Elaida do Avriny a’Roihan, sentada diante da enorme escrivaninha, passava os dedos, absorta, pela estola de sete cores sobre os ombros — a estola do Trono de Amyrlin. À primeira vista, muitos a considerariam bela, mas um olhar mais atento deixava claro que a expressão austera em seu rosto de idade indefinida, típico de uma Aes Sedai, não era passageira. Naquele dia, ainda havia algo mais, um traço de raiva em seus olhos escuros. Ninguém tinha percebido.
Ela mal dava ouvidos às mulheres sentadas nos bancos à sua frente, mulheres com vestidos de todos os tons, do branco ao vermelho mais escuro, de seda ou de lã, conforme ditasse o gosto de cada uma. Mesmo com a variedade, apenas uma não trajava o xale formal com a Chama Branca de Tar Valon bordada nas costas e a franja colorida que indicava a Ajah, como se aquela fosse uma reunião no Salão da Torre. Discutiam as notícias e os rumores sobre os acontecimentos do mundo e tentavam separar a realidade da ficção para decidir como a Torre deveria agir, mas raramente olhavam na direção da mulher atrás da escrivaninha, a quem tinham jurado obedecer. Elaida não conseguia se concentrar nelas. Aquelas mulheres não sabiam o que era realmente importante. Ou melhor, sabiam, mas tinham medo de tocar no assunto.
— Parece que tem alguma coisa acontecendo em Shienar — disse Danelle, uma mulher franzina que vivia perdida em devaneios, a única irmã Marrom presente. Também só havia uma irmã Verde e uma Amarela, e nenhuma das três Ajahs parecia contente com isso. Não havia Azuis. Os grandes olhos azuis de Danelle pareciam pensativos. Havia um leve borrão de tinta em sua bochecha, e o vestido cinza-escuro de lã estava amarrotado. — Há rumores de conflitos. Não com Trollocs e nem com os Aiel, embora os ataques em Passos de Niamh pareçam estar mais frequentes. Entre os próprios shienaranos. Algo incomum para as Terras da Fronteira. É raro eles lutarem entre si.
— Se o que eles querem é guerra civil, escolheram a hora certa — opinou Alviarin, com voz tranquila. Alta, esbelta e toda vestida de seda branca, ela era a única sem xale. A estola de Curadora em seus ombros era da mesma cor, indicando que a mulher provinha da Ajah Branca, e não da Vermelha, antiga Ajah de Elaida, como ditava a tradição. As Brancas eram sempre frias. — Parece que os Trollocs sumiram. A Praga está tão calma que dois fazendeiros e uma noviça dariam conta de vigiá-la.
Os dedos ossudos de Teslyn folheavam um maço de papéis em seu colo, embora ela mal os olhasse. Era uma das quatro irmãs Vermelhas presentes — mais do que de qualquer outra Ajah —, e quase tão austera quanto Elaida, apesar de jamais ter sido considerada bela por ninguém.
— No caso, talvez essa calmaria seja mau sinal — opinou Teslyn com seu sotaque illianense carregado. — Recebi uma mensagem hoje de manhã informando que o exército do Marechal-General de Saldaea foi posto em marcha. Nem é para a Praga, no caso, mas na direção oposta. Sudeste. Ele nunca faria isso sem achar que a Praga está hibernando.
— Então a notícia sobre Mazrim Taim vazou. — Alviarin parecia estar discutindo o clima ou o preço dos tapetes, e não um desastre em potencial. Muito esforço fora feito para capturar Taim, e as Aes Sedai tentaram com o mesmo empenho ocultar as notícias de sua fuga. Não seria nada bom para a Torre se o mundo inteiro ficasse sabendo que elas não haviam conseguido manter um falso Dragão preso após sua captura. — E parece que alguém do reino; a Rainha Tenobia, Davram Bashere, ou ambos; crê que não se pode confiar na Torre para lidar com ele de novo.
À menção a Taim seguiu-se um silêncio sepulcral. O homem era capaz de canalizar e estava a caminho de Tar Valon para ser amansado e apartado de vez do Poder Único quando fora resgatado, mas não foi isso que calou aquelas bocas. No passado, a existência de homens capazes de canalizar fora o pior dos anátemas, e caçá-los era o principal objetivo das Vermelhas, que recebiam toda a ajuda possível das outras Ajahs. Naquele momento, porém, a maioria das mulheres em torno da escrivaninha se remexia, inquietas, evitando contato visual, já que falar de Taim trazia à tona outro assunto no qual não queriam tocar. Até Elaida sentiu o estômago se revirar.
Aparentemente, Alviarin não se sentia tão relutante em falar. O canto de sua boca se curvou em um rápido movimento que poderia ser tanto um sorriso quanto uma careta.
— Vou redobrar os esforços para recapturar Taim e sugiro que uma irmã seja enviada para servir como conselheira de Tenobia. Alguém acostumada a lidar com a teimosia das mulheres jovens.
As outras logo ajudaram a preencher o silêncio.
Joline ajeitou o xale de franja verde nos ombros magros e sorriu, ainda que o gesto parecesse um tanto forçado.
— Sim, a Rainha precisa de uma Aes Sedai a seu lado. Alguém que consiga dar conta de Bashere. Ele exerce uma influência enorme sobre Tenobia. E precisa deslocar seu exército de volta para um local onde possa ser útil caso a Praga desperte. — A abertura em seu xale exibia um decote mais revelador do que o apropriado, e a seda verde clara era muito justa, bem colada ao corpo. Além disso, ela sorria demais para o gosto de Elaida, em especial para os homens. As Verdes eram sempre assim.
— A última coisa de que precisamos é outro exército em marcha — apressou-se a dizer Shemerin, a irmã Amarela. Ela era um pouco rechonchuda, e jamais havia conseguido dominar a placidez típica das Aes Sedai. Seus olhos sempre transmitiam certa ansiedade, ainda mais ultimamente.
— E temos que mandar alguém para Shienar — completou Javindhra, outra Vermelha. Apesar das maçãs do rosto robustas, a expressão na face angulosa era dura o bastante para martelar pregos, e a voz, áspera. — Não gosto desse tipo de problema nas Terras da Fronteira. A última coisa de que precisamos é que Shienar se enfraqueça a ponto de permitir a invasão de um exército Trolloc.
— Talvez — concordou Alviarin, pensativa. — Mas há agentes em Shienar. Vermelhas, certamente, mas talvez também de outras Ajahs. — As quatro irmãs Vermelhas assentiram, relutantes, mas ninguém as acompanhou. — Elas podem nos alertar caso esses pequenos conflitos se tornem mais preocupantes.
Não era segredo algum que todas as Ajahs, exceto a Branca, devotada à lógica e à filosofia como era, possuíam informantes espalhados em diferentes esferas por todas as nações, embora a rede da Amarela fosse considerada lastimável. Não havia nada sobre doenças ou Cura que elas pudessem aprender com quem não era capaz de canalizar. Algumas irmãs tinham informantes particulares, talvez mais secretos que os agentes oficiais das Ajahs. As Azuis detinham a maior rede, tanto oficial quanto pessoal.
— Quanto a Tenobia e Davram Bashere — continuou Alviarin —, estamos de acordo que alguma irmã deve tratar deles? — Ela quase não esperou que assentissem. — Ótimo. Assunto encerrado. Memara dará conta disso. Ela não vai aceitar disparates de Tenobia, nem vai deixá-la perceber que está sendo manipulada. Agora… alguém teve notícias de Arad Doman ou Tarabon? Se não agirmos logo, pode ser que Pedron Niall e os Mantos-brancos debandem de Bandar Eban para a Costa da Sombra. Sabe de algo, Evanellein?
Arad Doman e Tarabon tinham sido arrasadas por guerras civis e coisas piores. O caos era generalizado. Elaida ficou surpresa por o assunto ter surgido.
— Só boatos — respondeu a irmã Cinza. Seu vestido de seda, que combinava com a franja do xale, era muito requintado e tinha um decote profundo. Elaida achava que a mulher deveria ter sido Verde, já que se preocupava tanto com roupas e aparência. — Quase todos os habitantes daquelas pobres áreas viraram refugiados, incluindo os que poderiam mandar notícias. A Panarca Amathera parece ter desaparecido, e tudo indica que uma Aes Sedai estava envolvida…
Elaida agarrou a estola a força. Seu rosto nada demonstrava, mas os olhos ardiam feito fogo. O assunto do exército de Saldaea estava encerrado. Ao menos Memara era Vermelha, o que a surpreendera, mas ninguém tinha pedido sua opinião. Assunto encerrado. A possibilidade alarmante de que uma Aes Sedai estivesse envolvida no desaparecimento da Panarca — caso essa não fosse mais uma das milhares de histórias improváveis vindas da costa oeste — não era o bastante para desviar seu pensamento daquilo. Havia Aes Sedai espalhadas desde o Oceano de Aryth até a Espinha do Mundo, e das Azuis, pelo menos, podia-se esperar qualquer coisa. Menos de dois meses antes, todas aquelas mulheres se ajoelharam para jurar fidelidade a Elaida, que representava a Torre Branca, mas aquela decisão fora tomada sem que sequer lhe dirigissem um olhar.
Apesar de ficar em um dos níveis mais baixos da Torre Branca, o gabinete da Amyrlin era o coração do lugar — assim como a própria Torre, com sua cor de osso embranquecido, era o coração da grande cidade-ilha de Tar Valon, circundada pelo rio Erinin. E Tar Valon era, ou deveria ser, o coração do mundo. O aposento emanava o poder exercido pela longa linhagem de mulheres que o havia ocupado, com piso de pedra vermelha polida das Montanhas da Névoa, uma enorme lareira de mármore dourado de Kandori e paredes de uma madeira pálida, com listras exóticas, maravilhosamente entralhada há mais de mil anos com animais selvagens e pássaros desconhecidos. Pedras reluzentes como pérolas emolduravam as altas janelas em arco que davam para a varanda com vista para o jardim particular da Amyrlin. Era o único lugar onde essa pedra podia ser encontrada, resgatada de uma cidade sem nome que fora engolida pelo Mar das Tempestades durante a Ruptura do Mundo. Um aposento poderoso, reflexo de Amyrlins que, por quase três mil anos, tinham feito tronos se curvarem à sua vontade. E sequer fora consultada.
Desrespeitos desse tipo aconteciam com uma frequência grande demais. Pior ainda — e talvez o mais duro de engolir —, as mulheres usurpavam a autoridade de Elaida sem se dar conta. Todas sabiam como obtivera o direito de usar a estola, e sabiam que, sem o auxílio delas, a peça não estaria em seus ombros. A própria Elaida tinha plena consciência disso. No entanto, as mulheres tinham ido longe demais. Em pouco tempo, seria hora de tomar alguma providência. Mas ainda não.
Elaida já dera ao gabinete o máximo possível de seu toque pessoal, acrescentando uma escrivaninha ornada com um entalhe de três anéis entrelaçados e uma cadeira robusta cujo espaldar alto era encrustado com a chama de Tar Valon em marfim. Sobre a escrivaninha, precisamente equidistantes uma da outra, encontravam-se três caixas de laca altarana, e uma delas continha as melhores peças de sua coleção de estatuetas. Um pedestal simples fora disposto diante de uma das paredes, sustentando um vaso branco cheio de rosas vermelhas que perfumavam o ambiente com uma fragrância doce. Não caíra sequer uma gota de chuva desde que ela fora empossada, mas sempre dava para arranjar belas flores por meio do Poder, e Elaida sempre gostara delas. Era bem fácil podá-las e treiná-las para produzir beleza.
Havia duas pinturas posicionadas de maneira que, sentada, bastava Elaida erguer a cabeça para vê-las. As demais mulheres evitavam encarar as obras. Entre todas as Aes Sedai presentes no gabinete, apenas Alviarin atrevera-se a dar uma olhadela.
— Alguma novidade sobre Elayne? — perguntou Andaya, hesitante. Magra feito um passarinho e de aparência tímida, apesar das feições de Aes Sedai, à primeira vista ninguém diria que a Cinza era uma boa mediadora, mas, na verdade, ela era uma das melhores. Seu sotaque ainda tinha resquícios tarabonianos. — Ou sobre Galad? Se descobrir que perdemos o enteado dela, a Rainha Morgase, ela talvez comece a fazer mais perguntas sobre o paradeiro da filha, sim? E se ela souber que perdemos a Filha-herdeira, Andor pode ficar tão fechada para nós quanto Amadícia.
Algumas mulheres balançaram a cabeça. Não havia novidades.
— Uma irmã Vermelha está a postos no Palácio Real. Como foi elevada há pouco tempo, consegue disfarçar que é Aes Sedai — disse Javindhra, querendo dizer que tal mulher ainda não incorporara a expressão de idade indefinida que se adquiria com o uso prolongado do Poder. Se alguém tentasse adivinhar a idade de qualquer irmã presente no gabinete, a margem de erro giraria em torno de vinte anos, e, em alguns casos, talvez se errasse por até duas vezes mais que isso. — Ela é bem-treinada, muito forte e boa observadora. Morgase está concentrada em levar adiante seu plano de tomar posse do trono de Cairhien.
Várias irmãs se agitaram nos assentos. Como se percebesse que tinha se aproximado demais de um terreno perigoso, Javindhra apressou-se em continuar.
— E parece que o novo amante dela, Lorde Gaebril, a mantém bastante ocupada. — Seus lábios finos se estreitaram ainda mais. — A Rainha está totalmente encantada pelo sujeito.
— Ele a mantém concentrada em Cairhien — afirmou Alviarin. — A situação por lá está quase tão ruim quanto em Tarabon e Arad Doman, com todas as Casas disputando o Trono do Sol e o povo passando fome. Morgase vai restabelecer a ordem, mas deve levar algum tempo para que assegure o trono. Até lá, sobrará pouca energia para ela se preocupar com outros assuntos, até mesmo com a Filha-herdeira. Incumbi uma escrivã de enviar cartas de vez em quando. A mulher imita bem a letra de Elayne. Morgase seguirá assim até termos certeza de que voltamos a controlá-la de maneira adequada.
— Pelo menos ainda temos o filho dela sob nosso controle. — Joline sorriu.
— No caso, é difícil mantermos controle sobre Gawyn — respondeu Teslyn, asperamente. — Ele e aquela Jovem Guarda andam brigando com os Mantos-brancos nos dois lados do rio. Ele, no caso, age tanto por vontade própria quanto por ordem nossa.
— Ele vai ficar sob controle — respondeu Alviarin.
Elaida começava a achar detestável aquela atitude sempre impassível.
— Falando em Mantos-brancos — intrometeu-se Danelle —, parece que Pedron Niall tem conduzido negociações secretas para tentar convencer Altara e Murandy a ceder terras para Illian e evitar que o Conselho dos Nove invada um deles ou até os dois.
Já em terreno seguro, as mulheres do outro lado da escrivaninha discutiam se as ações do Senhor Capitão Comandante aumentariam demais a influência dos Filhos da Luz. Talvez tais negociações devessem ser interrompidas, para que a Torre pudesse assumir as rédeas e substituí-lo.
Elaida apertou os lábios. Ao longo da história, a Torre muitas vezes fora obrigada a ser prudente — muitos a temiam, muitos desconfiavam dela —, mas nunca temera nada nem ninguém. Agora, a Torre temia.
A Amyrlin ergueu o olhar para as pinturas. Uma delas consistia em três painéis de madeira com ilustrações de Bonwhin, a última Vermelha a ser elevada ao Trono, mil anos antes, e razão pela qual nenhuma outra Vermelha usara a estola desde então. Até Elaida. Bonwhin, alta e orgulhosa, dando ordens às Aes Sedai sobre como manipular Artur Asa-de-gavião; Bonwhin, desafiadora, no topo das muralhas brancas de uma Tar Valon sob o ataque das forças de Asa-de-gavião; e Bonwhin de joelhos e submissa perante o Salão da Torre, enquanto retiravam a estola e o cajado por ter quase destruído a Torre.
Muitas se perguntavam por que Elaida retirara o tríptico do depósito onde estivera esquecido, coberto de poeira. Ainda que ninguém falasse abertamente, ela ouvia o burburinho. As irmãs não compreendiam a necessidade de uma lembrança permanente do custo de um infortúnio.
A segunda pintura era mais atual, feita em tela de tecido; uma cópia do esboço de um artista de rua do oeste distante. Aquela obra causava ainda mais desconforto entre as Aes Sedai que pousavam os olhos nela. Dois homens lutavam em meio às nuvens, aparentemente no céu, usando relâmpagos como armas. Um deles tinha o rosto feito de chamas. O outro era alto, jovem e ruivo. Era aquele jovem que despertava medo e fazia até Elaida cerrar os dentes. Só não tinha certeza se era de raiva ou para evitar que eles batessem. Mas medo era algo que podia e devia ser controlado. Controle era tudo.
— Então é isso — disse Alviarin, começando a se levantar. As outras a imitaram, ajustando saias e xales enquanto se preparavam para sair. — Em três dias, espero que…
— Dei permissão para alguma de vocês sair, filhas? — Aquelas eram as primeiras palavras que Elaida dizia desde que pedira para as irmãs se sentarem. Surpresas, todas olharam para a Amyrlin. Surpresas! Algumas voltaram para os assentos, mas sem a menor pressa. E sem qualquer pedido de desculpas. Elaida deixara aquilo ir longe demais. — Já que estão de pé, continuarão assim até eu terminar. — As Aes Sedai que estavam voltando para os bancos ficaram confusas por um momento. Elaida continuou a falar enquanto, hesitantes, elas voltavam a se pôr de pé. — Não ouvi nenhuma menção à busca por aquela mulher e os acompanhantes dela.
Não era preciso citar o nome daquela mulher, a predecessora de Elaida. Todas sabiam a quem ela se referia, e a própria Elaida achava cada vez mais penoso até lembrar o nome da antiga Amyrlin. Todos os seus problemas atuais — todos! — podiam ser atribuídos àquela mulher.
— É complicado — opinou Alviarin, em tom neutro —, já que alimentamos os boatos de que ela foi executada. — A mulher tinha mesmo sangue-frio. Elaida encarou-a com firmeza até ela acrescentar um “Mãe” atrasado que também soou plácido, até casual.
A Amyrlin desviou o olhar para as demais e transformou a voz em aço.
— Joline, você está responsável por essa busca e pela investigação da fuga dela. Em ambos os casos, só ouço falar de dificuldades. Talvez uma penitência diária ajude você a aumentar a diligência, filha. Ponha no papel o que achar adequado e mande para mim. Caso eu não considere adequado, triplico o castigo.
O sorriso constante de Joline desapareceu, para satisfação de Elaida. Sob o olhar fixo da Amyrlin, ela abriu a boca e voltou a fechá-la. Por fim, fez uma longa reverência.
— Como a senhora ordenar, Mãe. — As palavras saíram entredentes, a docilidade soou forçada, mas bastava. Por enquanto.
— E o que me dizem de tentar recapturar as que escaparam? — Desta vez, seu tom de voz foi ainda mais firme.
O retorno das Aes Sedai que haviam fugido quando aquela mulher fora deposta significava a volta das Azuis à Torre. Elaida não sabia se poderia confiar em alguma Azul. Aliás, não sabia se um dia poderia confiar em qualquer uma das irmãs que, em vez de saudar sua subida ao Trono, um dia haviam debandado. Porém, a Torre precisava ficar completa outra vez.
Javindhra ficara incumbida da tarefa.
— De novo, temos dificuldades. — Suas feições permaneciam tão severas quanto antes, mas ela lambeu rapidamente os lábios diante da tempestade silenciosa que viu no rosto de Elaida. — Mãe.
Elaida balançou a cabeça.
— Não quero saber de dificuldades, filha. Amanhã, você me entregará uma lista de tudo o que já fez, incluindo todas as medidas tomadas para evitar que o mundo fique sabendo de qualquer desavença aqui na Torre. — Esse era um ponto crucial. Havia uma nova Amyrlin, mas o mundo deveria ter a imagem de uma Torre mais unida e forte do que nunca. — Caso não tenha tempo para a tarefa que lhe incumbi, talvez devesse abrir mão de sua condição de Votante em nome das Vermelhas. É algo que devo considerar.
— Não será necessário, Mãe — respondeu Javindhra, depressa, com expressão severa. — Amanhã a senhora vai receber o relatório que pediu. Estou certa de que muitas irmãs vão começar a voltar em breve.
Elaida não tinha tanta certeza, por mais que desejasse — a Torre precisa ser forte. Precisa! —, mas dera o recado. Todas as mulheres tinham expressões confusas, exceto por Alviarin. Se Elaida parecia pronta para punir uma irmã de sua própria antiga Ajah e ser ainda mais contundente com uma Verde que estivera ao seu lado desde o primeiro dia, talvez tivessem cometido um erro ao tratá-la como uma efígie cerimonial. Aquelas mulheres podiam até tê-la colocado no Trono, mas ela era a Amyrlin. Mais alguns exemplos nos dias seguintes deveriam pôr as coisas em ordem. Se fosse preciso, Elaida obrigaria todas as mulheres a pagar penitências até pedirem perdão.
— Há soldados tairenos e andorianos em Cairhien — continuou, ignorando os olhares fugidios. — Soldados tairenos enviados pelo homem que tomou a Pedra de Tear.
Shemerin apertou as mãos gorduchas, e Teslyn se encolheu. Só Alviarin permanecia impassível feito uma lagoa congelada. Elaida ergueu a mão e apontou para a pintura com os dois homens se enfrentando com relâmpagos.
— Olhem aquilo. Olhem! Ou deixarei todas vocês de quatro esfregando o chão! Se não têm sangue-frio nem para olhar para uma pintura, que coragem terão para enfrentar o que ainda temos pela frente? Covardes não têm serventia para a Torre!
Elas ergueram o olhar lentamente, movendo os pés feito garotinhas nervosas, não como Aes Sedai. Apenas Alviarin encarava a pintura parecendo inabalada. Shemerin retorcia as mãos, e lágrimas brotavam em seus olhos. Algo teria que ser feito em relação a ela.
— Rand al’Thor. Um homem capaz de canalizar. — As palavras saíram como um chicote da boca de Elaida, fazendo até mesmo o estômago da própria Amyrlin se revirar até deixá-la com ânsia de vômito. De algum modo, manteve o rosto sereno e seguiu pressionando, despejando suas palavras como um estilingue lançando pedras. — Um homem fadado a enlouquecer e usar o Poder para causar terror, antes de morrer. Porém, mais que isso. Arad Doman, Tarabon e tudo o que existe entre as duas cidades estão se transformando em ruína e rebeliões por causa dele. Apesar de a guerra e a fome em Cairhien não poderem ser diretamente atribuídas a Rand al’Thor, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que ele precipita uma guerra ainda maior entre Tear e Andor, justamente quando o que a Torre precisa é de paz! Em Ghealdan, algum shienarano sem juízo prega a respeito dele para multidões grandes demais até para o exército de Alliandre conter. O maior perigo que a Torre já enfrentou, a maior ameaça que o mundo já conheceu, e vocês não conseguem nem falar deste homem? Não têm nem coragem de olhar para uma pintura dele?
O silêncio foi a única resposta. Todas, exceto Alviarin, pareciam ter engolido a própria língua. A maioria encarava o jovem na pintura como pássaros hipnotizados por uma serpente.
— Rand al’Thor. — O nome tinha gosto de fel nos lábios de Elaida.
Certa vez, a Amyrlin tivera aquele jovem, de aparência tão inocente, ao seu alcance, mas não percebera o que ele era. A predecessora dela tinha esse conhecimento, e só a Luz sabia desde quando, mas permitira que ele ficasse livre. Aquela mulher revelara muitas coisas a Elaida antes de escapar. Quando pressionada a falar, mencionara fatos em que Elaida não tinha como acreditar — se os Abandonados estivessem mesmo soltos, tudo poderia estar perdido —, mas, de algum modo, conseguira se recusar a responder certas perguntas e acabara escapando antes que pudesse ser interrogada novamente. Aquela mulher e Moiraine. Aquela mulher e a Azul sempre souberam de tudo. Elaida pretendia trazer as duas de volta à Torre. Elas teriam que revelar até a última letra do que sabiam. Implorariam pela morte de joelhos antes de a nova Amyrlin se dar por satisfeita.
Ela se obrigou a continuar falando, ainda que as palavras murchassem em sua boca.
— Rand al’Thor é o Dragão Renascido, filhas. — Os joelhos de Shemerin fraquejaram, e a Amarela desabou no chão. Algumas das outras irmãs também pareciam ter perdido a força nas pernas. Os olhos de Elaida as açoitavam com desdém. — Não restam dúvidas. É dele que falam as Profecias. O Tenebroso está se libertando da prisão, a Última Batalha se aproxima, e o Dragão Renascido precisa estar lá para enfrentá-lo, ou o mundo será condenado a eras de fogo e à destruição enquanto a Roda do Tempo girar. E ele está à solta, filhas. Não sabemos por onde anda. Sabemos de dezenas de locais onde ele não está. O Dragão não está mais em Tear, mas também não está mais aqui na Torre devidamente protegido, como deveria. Ele provoca um redemoinho no mundo, e devemos pará-lo em nome de qualquer esperança de sobrevivermos a Tarmon Gai’don. Precisamos dele por perto para garantir que o Dragão lutará a Última Batalha. Ou alguma de vocês acredita que, para salvar o mundo, ele aceitará passivamente a morte profetizada? Estamos falando de um homem que já deve estar enlouquecendo! Precisamos dele sob controle!
— Mãe — começou Alviarin, com sua irritante indiferença, mas Elaida interrompeu-a com um olhar.
— Pôr nossas mãos em Rand al’Thor é muito mais importante do que as escaramuças em Shienar ou se a Praga está calma ou não, mais importante do que encontrar Elayne ou Galad, e mais importante até do que Mazrim Taim. Vocês vão encontrá-lo. Ah, se vão! Na próxima reunião, quero todas prontas para me dar detalhes do que fizeram para conseguirmos isso. Agora podem ir, filhas.
Após uma onda de reverências vacilantes e murmúrios ofegantes de “Como a senhora ordenar, Mãe”, as irmãs saíram quase correndo, com Joline ajudando a cambaleante Shemerin a se levantar. A irmã Amarela daria um bom próximo exemplo, já que ainda seriam necessários alguns para garantir que nenhuma das mulheres titubeasse. Além disso, ela era fraca demais para fazer parte do conselho. De qualquer forma, o conselho não existiria por muito mais tempo. Elas apenas receberiam ordens de Elaida e correriam para obedecer.
Todas se foram, exceto Alviarin.
Por um longo momento após a porta ter se fechado atrás das demais Aes Sedai, as duas mulheres se encararam. Alviarin havia sido a primeira, a primeiríssima, a ouvir e concordar com as acusações contra a predecessora de Elaida. E a Branca sabia muito bem por que ela, e não alguma Vermelha, usava a estola de Curadora. A Ajah Vermelha fora unânime a favor da nova Amyrlin, mas a Branca, não, e, sem o apoio integral da Ajah de Alviarin, muitas outras também poderiam ter se oposto. Fosse esse o caso, Elaida estaria em uma cela, não sentada no Trono de Amyrlin. Isso se os restos de sua cabeça não estivessem decorando uma estaca e servindo de refeição para os corvos. Alviarin não se intimidaria tão facilmente quanto as outras. Talvez nem houvesse como intimidá-la. Seu olhar inabalável transmitia uma sensação perturbadora de igual para igual.
Uma batida na porta quebrou o silêncio.
— Entre! — exclamou Elaida.
Uma das Aceitas, uma garota pálida e esguia, entrou no cômodo, hesitante. A jovem fez uma reverência tão exagerada que sua saia branca com sete faixas coloridas na bainha formou uma enorme circunferência no chão em torno dela. Pelos olhos azuis arregalados e a maneira como os mantinha voltados para baixo, captara o estado de espírito das mulheres que haviam saído. Se Aes Sedai tinham ido embora tremendo, uma Aceita corria grande perigo.
— M-Mãe, Mestre F-Fain está aqui. Ele disse que a s-senhora o receberia a-agora. — Ainda agachada, a garota tremia tanto que parecia a ponto de tombar de medo.
— Então mande o homem entrar, garota, em vez de deixá-lo esperando! — Elaida soava irritada, mas verdade era que teria arrancado o couro da Aceita caso a menina não tivesse deixado o homem lá fora. A raiva que sentia de Alviarin, e que não permitiria que a mulher pensasse que ela tinha receio de demonstrar, aflorou. — E se não conseguir aprender a falar de modo adequado, talvez as cozinhas lhe sejam mais propícias do que a antessala da Amyrlin. E então? Não vai fazer o que mandei? Mexa-se, garota! E vá dizer à Mestra das Noviças que você precisa ser treinada para obedecer prontamente!
A garota guinchou o que talvez fosse uma resposta apropriada e saiu em disparada.
Elaida se esforçou para manter a compostura. Não queria nem saber se Silviana, a nova Mestra das Noviças, daria uma surra na garota ou se resolveria a questão com uma reprimenda. A Amyrlin quase não lidava com noviças e Aceitas, a menos que alguma delas se intrometesse em seu caminho, e se importava muito pouco com elas. Era Alviarin quem queria humilhar e ver de joelhos a seus pés.
Mas primeiro, Fain. Elaida tamborilava o dedo nos lábios. O homenzinho magrelo e narigudo aparecera na Torre poucos dias antes, em trajes sujos e grandes demais, mas que outrora haviam sido refinados. Ora arrogante, ora servil, o homem requisitara uma audiência com a Amyrlin. Exceto pelos que serviam à Torre, os homens só apareciam ali sob coação ou em caso de grande necessidade, e nenhum pedia para falar com a Amyrlin. Era um tolo, ou talvez até um tanto estúpido. Fain afirmava ser de Lugard, em Murandy, mas falava com vários sotaques, por vezes mudando de um para outro no meio de uma frase. Ainda assim, parecia que podia ser útil.
Alviarin ainda encarava Elaida com uma complacência gélida. Seu olhar revelava apenas uma pista das perguntas que devia querer fazer sobre Fain. O rosto da Amyrlin endureceu. Ela quase apelou para saidar, a metade feminina da Fonte Verdadeira, para pôr aquela mulher em seu devido lugar. Mas o caminho não era esse. Alviarin poderia resistir, e lutar feito uma camponesa em um estábulo não era modo de uma Amyrlin afirmar sua autoridade. De qualquer maneira, Alviarin teria que aprender a se curvar a ela tanto quanto as outras. O primeiro passo seria deixá-la sem qualquer informação a respeito de Mestre Fain, fosse qual fosse seu nome verdadeiro.
Assim que adentrou o gabinete da Amyrlin, Padan Fain tratou de esquecer a jovem e inquieta Aceita. A garota era até atraente, e ele gostava das nervosinhas, mas havia assuntos mais importantes em que se concentrar naquele momento. Esfregando as mãos na roupa, Fain curvou a cabeça, humilde como convinha, mas a princípio as duas mulheres que o aguardavam nem pareceram notar sua presença, se encarando como estavam. Ele ficou parado, embora a tensão entre elas fosse quase palpável; achava que poderia quase tocá-la se estendesse a mão. A Torre Branca estava tomada pela tensão, com as Aes Sedai divididas. Melhor assim. Conforme a necessidade, tensões podiam ser manipuladas, e divisões, exploradas.
Fain se surpreendera ao encontrar Elaida no Trono de Amyrlin. No entanto, era melhor do que ele esperava. O homem ficara sabendo que Elaida, sob vários aspectos, não era tão dura quanto a mulher que usara a estola antes dela. Mais severa, sim, e mais cruel também, porém mais vulnerável. Provavelmente, ela seria mais difícil de dobrar, porém mais fácil de partir. Isso no caso de uma das opções ser necessária. Ainda assim, para ele, as Aes Sedai, e até as Amyrlin, eram todas iguais. Tolas. Tolas perigosas, verdade, mas, algumas vezes, úteis.
Quando as duas finalmente se deram conta da presença de Fain, a Amyrlin franziu a testa de leve por ter sido pega de surpresa, mas a Curadora das Crônicas se manteve impassível.
— Pode ir agora, filha — ordenou Elaida com firmeza, com uma pequena, mas clara ênfase no “agora”. Ah, sim… as tensões, as rachaduras no poder. Rachaduras onde sementes podiam ser plantadas. Fain se deu conta de que estava prestes a rir.
Alviarin hesitou antes de fazer a mais breve das reverências. Enquanto deixava o gabinete, seus olhos percorreram Fain de cima a baixo com uma expressão neutra, mas desconcertante. Ele se encolheu inconscientemente, curvando os ombros em um gesto de autoproteção; seus lábios formaram em um leve rosnado para as costas estreitas da mulher. Às vezes, por um breve instante, Fain tinha a sensação de que Alviarin sabia demais sobre dele, mas não podia explicar por quê. A frieza no rosto e nos olhos da mulher não mudava nunca. Naquelas ocasiões, sentia o desejo de obrigá-los a mudar. Medo. Agonia. Súplica. Fain quase gargalhou só de pensar. Não fazia sentido, claro. Não havia como ela saber de nada. Com paciência, ele poderia se ver livre dela e de seus olhos imutáveis.
Considerando o tipo de coisa que a Torre guardava em seus cofres, valia a pena ter um pouco de paciência. Era lá que estava a Trombeta de Valere, a lendária peça construída para invocar os heróis mortos de seus túmulos na hora da Última Batalha. A maioria das Aes Sedai ignorava esse fato, mas Fain sabia farejar informações. A adaga estava lá. Sentia seu chamado até do lugar onde estava. Poderia até apontar a direção. A adaga pertencia a ele, fazia parte dele, e fora roubada e escondida ali por aquelas Aes Sedai. Recuperá-la recompensaria muitas perdas. O homem não sabia como, mas tinha certeza disso. Recompensaria a perda de Aridhol. Era perigoso demais retornar para lá, pois havia o risco de ficar preso de novo. Fain sentiu um arrepio. Tanto tempo preso. De novo, não.
Claro que ninguém mais chamava o lugar de Aridhol, e sim de Shadar Logoth. Onde a Sombra Espreita. Um nome apropriado. Tanta coisa mudara… Ele próprio, inclusive. Padan Fain. Mordeth. Ordeith. Por vezes, não tinha certeza de qual era seu nome de fato e de quem era de verdade. De uma coisa, estava certo: ele não era o que ninguém imaginava. Aqueles que acreditavam conhecê-lo estavam muito enganados. Agora estava mudado. Seu poder era único, estava além de qualquer outro. Um dia, todos se dariam conta disso.
De repente, com um sobressalto, Fain percebeu que a Amyrlin dissera alguma coisa e, vasculhando a mente, lembrou o que era.
— Sim, Mãe, o casaco fica muito bem em mim. — Passou a mão no veludo negro para mostrar como o apreciava. Como se vestimentas importassem. — É um casaco muito bom. Agradeço de coração, Mãe. — Fain estava preparado para mais tentativas da Amyrlin de deixá-lo à vontade, pronto para ajoelhar-se e beijar seu anel, mas, desta vez, ela foi direto ao ponto.
— Me fale mais a respeito do que sabe sobre Rand al’Thor, Mestre Fain.
Os olhos de Fain se voltaram para a pintura com os dois homens, e, enquanto a observava, suas costas se empertigaram. A imagem de al’Thor o afetou quase da mesma forma que o próprio homem o faria se estivesse em sua frente, fazendo suas veias se encherem de fúria e ódio. Por causa daquele jovem, Fain passara por dores inimagináveis, das quais sequer se permitia lembrar, e sofrera bem mais do que as dores em si. Ele fora destruído e reconstruído por causa de al’Thor. Claro que essa reconstrução havia lhe dado os meios para se vingar, mas a questão não era exatamente essa. Perto do desejo de destruir al’Thor, qualquer coisa se tornava insignificante.
Quando se voltou novamente para a Amyrlin, Fain não percebeu que sua atitude estava tão imponente quanto a dela e que retribuía seu olhar de igual para igual.
— Rand al’Thor é astuto e dissimulado. Ele não se importa com nada ou ninguém, só com o próprio poder. — Aquela tola. — Ele é do tipo que nunca faz o que se espera dele. — Mas se ela pudesse pôr as mãos em al’Thor… — É difícil guiá-lo, muito difícil, mas acredito que seja possível. Primeiro, é preciso se aproximar de um dos poucos em quem ele confia. — Se a Amyrlin lhe entregasse al’Thor, talvez ele a deixasse viva no fim das contas, mesmo sendo Aes Sedai.
Esparramado em uma poltrona dourada, vestindo mangas curtas e de botas nos pés, com uma das pernas apoiada no braço estofado, Rahvin sorria enquanto a mulher de pé à frente da lareira repetia o que ele lhe dissera. Seus grandes olhos castanhos estavam ligeiramente distantes. Era jovem e bonita, mesmo usando as roupas de lã cinza sem graça que adotara como disfarce, mas seu interesse nela não era dessa natureza.
Nenhuma nesga de ar entrava pelas altas janelas do aposento. Enquanto a mulher falava, o suor escorria de seu rosto delicado, e gotículas brotavam na face estreita do outro homem presente. Ainda que trajasse um belo casaco de seda vermelha com bordados dourados, o sujeito se mantinha tão imóvel quanto um serviçal — o que ele era, de certo modo, ainda que por vontade própria, ao contrário dela. Mas claro que, naquele momento, estava cego e surdo.
Rahvin manejou com delicadeza os fluxos de Espírito que havia urdido em torno dos dois. Não havia motivo para causar danos a serviçais valiosos.
Ele próprio não suava, claro. Não permitia que o teimoso calor do verão o afetasse. Era um homem alto, grande, de pele escura e bonito, apesar dos cabelos brancos nas têmporas. Não tivera dificuldades em compelir aquela mulher.
Uma careta retorceu seu rosto. Tinha dificuldades com algumas pessoas. Uns poucos, muito poucos, tinham força de vontade o bastante para que suas mentes buscassem brechas pelas quais escapar, ainda que inconscientemente. Para seu azar, ele ainda precisava de uma pessoa que era desse tipo. Era possível manipulá-la, mas ela continuava tentando encontrar uma saída, mesmo sem saber que estava presa. Ela em breve não seria mais necessária, claro, e Rahvin teria que decidir se a mandaria embora ou se melhor seria livrar-se dela de um jeito mais definitivo. As duas opções representavam perigo. Nada que pudesse ameaçá-lo, claro, mas ele era um homem cuidadoso e meticuloso. Se ignorados, pequenos perigos encontravam um jeito de crescer, e ele sempre escolhia os riscos com uma pitada de prudência. Matá-la ou mantê-la?
O cessar do discurso da mulher o fez abandonar seus devaneios.
— Quando sair daqui — disse a ela —, você não vai se lembrar de nada desta visita, apenas de ter feito sua habitual caminhada matinal. — Ela concordou, ávida por agradá-lo, e Rahvin afrouxou os fios de Espírito para que evaporassem da mente da mulher tão logo ela pusesse os pés na rua. O uso repetido da compulsão facilitava a obediência, mesmo quando não estava sendo usada. Porém, enquanto estivesse, sempre havia o perigo de ser detectada.
Feito isso, Rahvin também libertou a mente de Elegar. Lorde Elegar. Um nobre menor, mas fiel a seus juramentos. O sujeito lambeu nervosamente os lábios finos, olhou para a mulher com nervosismo e se ajoelhou prontamente diante de Rahvin. Os Amigos da Escuridão — que atualmente se chamavam Amigos das Trevas — tinham começado a perceber que precisariam se manter rigorosamente fiéis aos juramentos, agora que Rahvin e os demais tinham sido libertados.
— Leve-a até a rua pelos fundos — orientou Rahvin — e deixe-a lá. Ela não deve ser vista.
— Como desejar, Grande Mestre — respondeu Elegar, fazendo uma reverência ainda de joelhos. Ao se levantar, deixou a presença de Rahvin com uma mesura, puxando a mulher pelo braço. Ela o acompanhou docilmente, claro, com os olhos ainda perdidos. Elegar não perguntaria nada a ela. Era esperto o bastante para estar bem ciente de que havia coisas que não desejava descobrir.
— Um de seus belos brinquedinhos? — perguntou uma voz feminina atrás dele, enquanto a porta entalhada se fechava. — Agora é assim que você as veste?
Agarrando saidin, ele se preencheu do Poder, e mácula da metade masculina da Fonte Verdadeira foi barrada pela proteção de seus laços e juramentos, os elos com o que Rahvin julgava ser um poder maior que a Luz ou até o Criador.
No meio da câmara, um portal se projetava acima do carpete vermelho e dourado, uma abertura para algum outro lugar. Rahvin teve um vislumbre de uma câmara em que tapeçarias de seda branca cobriam as paredes, até ela se esvanecer, deixando apenas uma mulher de vestido branco e cinto de prata trançada. O suave formigamento na pele dele, como um leve arrepio, foi o único aviso de que a mulher canalizara. Alta e esguia, era tão bonita quanto ele, com olhos escuros que pareciam poços sem fundo, e um cabelo que caía sobre os ombros em perfeitas ondas negras, enfeitado com estrelas e luas crescentes prateadas. A maioria dos homens ficaria com a boca seca de tanto desejo.
— O que você pretende aparecendo assim do nada, Lanfear? — perguntou Rahvin, áspero, sem largar o Poder. Em vez disso, preparou várias surpresinhas maldosas, caso precisasse delas. — Se quiser falar comigo, mande um emissário que eu decidirei quando, onde, e se irei.
Lanfear abriu seu sorriso doce e traiçoeiro.
— Você sempre foi um patife, Rahvin, mas nem sempre foi tolo. Aquela mulher é Aes Sedai. E se sentirem falta dela? Também vai enviar arautos para anunciar onde está?
— Canalizar? — caçoou ele. — Ela sequer é forte o bastante para andar por aí sozinha. Chamam essas crianças destreinadas de Aes Sedai quando metade do que sabem são truques de autodidatas e a outra metade não passa de meras superficialidades?
— Você continuaria sendo tão complacente se treze dessas crianças destreinadas formassem um círculo ao seu redor? — O escárnio frio na voz dela o apunhalou, mas Rahvin não deixou transparecer.
— Tomo minhas precauções, Lanfear. Ela não é uma de meus “belos brinquedinhos”, como você colocou, e sim a espiã da Torre aqui. Só que agora relata exatamente o que eu quero, e fica ávida para fazê-lo. Os que servem aos Escolhidos na Torre me disseram exatamente onde encontrá-la. — Não tardaria a chegar o dia em que o mundo renunciaria ao nome “Abandonados” e se ajoelharia perante os Escolhidos. Isso fora prometido, muito tempo atrás. — Por que veio até aqui, Lanfear? Certamente não foi para ajudar mulheres indefesas.
Ela apenas deu de ombros.
— No que me cabe, você pode se divertir o quanto quiser com seus brinquedos. Quando o assunto é hospitalidade, Rahvin, você oferece muito pouco, então me perdoe, mas...
Um jarro de prata ergueu-se em uma mesinha ao lado da cama de Rahvin e se inclinou para servir um vinho escuro em um cálice com detalhes em ouro. Quando o jarro voltou à posição inicial, o cálice flutuou até a mão de Lanfear. Rahvin não sentiu nada além de um leve formigamento, claro, e não viu fluxos sendo urdidos. Ele nunca gostara daquilo. Que Lanfear também não fosse capaz de ver os fluxos que Rahvin urdia não chegava perto de restaurar o equilíbrio.
— Por quê? — perguntou ele mais uma vez.
Ela bebericou calmamente antes de responder.
— Como você evita o restante de nós, alguns Escolhidos virão até aqui. Só vim na frente para que você soubesse que não se trata de um ataque.
— Os outros? Vocês estão planejando alguma coisa? Que necessidade eu tenho de saber dos planos alheios? — De repente, Rahvin deu uma gargalhada, profunda e grave. — Então não se trata de um ataque, certo? Vocês nunca foram mesmo de atacar abertamente, não é? Talvez não tanto quanto Moghedien, mas vocês sempre preferiram atacar pelos flancos ou pelas costas. Vou confiar em você desta vez, o suficiente para escutá-la, contanto que fique sob minha vigilância. — Qualquer um que confiasse em Lanfear longe dos olhos merecia a faca que provavelmente encontraria cravada nas costas. Não que ela fosse muito mais confiável sob vigilância, já que, na melhor das hipóteses, seu temperamento era inconstante. — Quem mais supostamente faz parte disso?
Desta vez, Rahvin teve um aviso mais claro — era obra de outro homem — quando outro portal se abriu, exibindo arcos de mármore que davam para amplas varandas de pedra, com gaivotas grasnando em um céu azul sem nuvens. Por fim, um homem surgiu e atravessou o portal, a passagem se fechando atrás dele.
Sólido e compacto, Sammael parecia maior do que de fato era. Seus passos eram rápidos e ágeis, e seus modos, abruptos. Com olhos azuis, cabelos dourados e uma bela barba em formato quadrado, sua aparência talvez estivesse acima da média, não fosse pela cicatriz oblíqua, como se um ferro em brasa tivesse sido arrastado por seu rosto, desde o cabelo até a mandíbula. Poderia tê-la removido assim que fora feita, muitos anos antes, mas preferira mantê-la.
Ligado a saidin tanto quanto Rahvin — àquela distância, Rahvin podia sentir de leve a ligação do outro —, Sammael o encarava com cautela.
— Estava esperando serviçais e dançarinas, Rahvin. Será que finalmente se cansou do seu esporte favorito, após todos estes anos?
Lanfear riu suavemente enquanto bebia o vinho.
— Alguém mencionou algum esporte?
Rahvin sequer percebera a abertura de um terceiro portal, exibindo um amplo salão cheio de piscinas e colunas caneladas, com acrobatas seminuas e criadas usando ainda menos pano. Estranhamente, um velhote magrelo de casaco amarrotado estava sentado parecendo desconsolado em meio aos artistas. Duas serviçais trajando peças tênues de quase roupa nenhuma, um homem musculoso carregando uma bandeja de ouro fundido, e uma moça bela e voluptuosa servindo vinho de uma botija de cristal em um cálice combinando sobre a bandeja seguiram a recém-chegada antes de a abertura desaparecer.
Na presença de qualquer outra, exceto Lanfear, Graendal seria vista como uma mulher estonteante, luxuriante e madura. Usava um vestido curto de seda verde. Um rubi do tamanho de um ovo de galinha aninhava-se entre os seios, e uma pequena coroa cravejada de mais rubis repousava sobre os longos cabelos dourados. Perto de Lanfear, ela era apenas bonitinha e roliça. Se a comparação inevitável a incomodava, o sorriso divertido não dava sinais.
Braceletes de ouro chacoalharam quando ela acenou para trás com a mão cheia de anéis. A serviçal, com um sorriso bajulador igualzinho ao do colega, se apressou em pôr o cálice ao alcance de Graendal, que mal percebeu.
— Que tal? — começou, animada. — Praticamente metade dos Escolhidos restantes em um único lugar. E ninguém tentando matar ninguém. Quem poderia imaginar uma coisa dessas antes do retorno do Grande Senhor das Trevas? Ishamael até conseguiu nos manter longe do pescoço uns dos outros por algum tempo, mas isto…
— Você sempre fala assim tão abertamente na frente de seus serviçais? — perguntou Sammael com uma careta.
Graendal piscou e voltou o olhar para os dois, como se tivesse se esquecido deles.
— Eles não abrem a boca fora de hora. Os dois me idolatram. Não é? — Ambos se ajoelharam, demonstrando o amor intenso que sentiam por ela. E era verdadeiro. Eles de fato a amavam. Naquele momento. Um instante depois, Graendal franziu a testa de leve, e os serviçais ficaram paralisados, com as bocas abertas, como que interrompidos no meio de uma palavra. — Eles vão continuar aqui, mas não vão incomodar vocês, não é?
Rahvin balançou a cabeça e se perguntou quem eram aqueles dois, ou quem haviam sido. Beleza física não bastava para os serviçais de Graendal, que também precisavam ter poder ou prestígio: um antigo lorde como lacaio, uma lady para lhe dar banho. Era assim que ela gostava. Permitir-se certos luxos era uma coisa, mas Graendal era esbanjadora. A dupla até podia ter alguma utilidade, caso fosse manipulada de forma adequada, mas o nível de compulsão que Graendal utilizava certamente só os deixava aptos para pouco mais que mera decoração. Aquela mulher não tinha sofisticação.
— Eu deveria esperar por mais alguém, Lanfear? — grunhiu Rahvin. — Você convenceu Demandred a parar de pensar que é herdeiro do Grande Senhor?
— Duvido que a arrogância dele chegue a esse ponto — retrucou Lanfear, tranquila. — Demandred sabe aonde isso levou Ishamael. E essa é a questão levantada por Graendal. Éramos treze, imortais. Agora, quatro estão mortos e um nos traiu. Só nós quatro estamos reunidos aqui hoje, e já é o bastante.
— Tem certeza de que Asmodean mudou de lado? — questionou Sammael. Ele nunca teve coragem de tentar. Onde buscou forças para abraçar uma causa perdida?
Lanfear deu um breve sorriso, divertido.
— Ele teve a coragem de fazer uma emboscada que pensou que o colocaria acima de nós. Mas, quando a escolha passou a ser a morte ou uma causa perdida, ele precisou de pouquíssima coragem para fazer sua opção.
— E de pouco tempo, aposto. — A cicatriz tornava o sorriso de Sammael ainda mais incisivo. — Se estava tão perto a ponto de saber tudo isso, por que não o matou? Você poderia ter acabado com a vida dele antes que Asmodean se desse conta de sua presença.
— Não sou tão rápida em matar quanto você. É um último recurso, sem volta, e quase sempre existem alternativas mais interessantes. Além disso, para explicar em termos que você entenda, eu não queria desencadear um ataque frontal contra forças superiores.
— Ele é mesmo forte assim? — perguntou Rahvin calmamente. — Esse tal Rand al’Thor, cara a cara, poderia ter derrotado você?
Não que ele ou mesmo Sammael não pudessem derrotá-la, se fosse o caso, ainda que Graendal provavelmente se unisse a Lanfear na hipótese de um dos dois tentarem. Naquele exato instante, inclusive, as duas mulheres deviam estar tomadas de Poder, prontas para atacar à mínima suspeita de um dos dois, ou de ambos. Mas aquele moleque fazendeiro? Um pastor destreinado! Destreinado, a menos que Asmodean estivesse cuidando disso.
— Ele é Lews Therin Telamon renascido — afirmou Lanfear, com a mesma calma —, e Lews Therin era tão forte quanto qualquer um de nós.
Sammael esfregou a cicatriz no rosto, distraidamente. Fora Lews Therin quem lhe impusera aquela marca. Acontecera havia mais de três mil anos, muito antes da Ruptura do Mundo e da prisão do Grande Senhor, antes de muita coisa, mas Sammael jamais se esquecera.
— Bem — Graendal assumiu a palavra —, será que finalmente chegamos à questão que viemos discutir?
Rahvin se sobressaltou, desgostoso. Os dois serviçais ainda estavam imóveis — ou melhor dizendo, de novo. Sammael resmungava com seus botões.
— Se Rand al’Thor é de fato Lews Therin Telamon renascido — continuou Graendal, sentando-se nas costas do serviçal, agora de quatro no chão —, estou surpresa por você ainda não ter tentado arrastá-lo para a cama, Lanfear. Ou será que não é tão fácil? Acho que me lembro de ver você comendo na mão de Lews Therin, e não o contrário. Ele abafava seus chiliques. Fazia você servir o vinho dele, coisas do tipo. — Graendal depositou o cálice na bandeja, agora carregada com rigidez pela mulher apoiada em um joelho. — Você era tão obcecada por aquele homem que era capaz de se estender aos pés dele, se Lews pedisse por um tapete.
Os olhos escuros de Lanfear brilharam por alguns instantes, até ela recuperar o controle.
— Ele pode até ser Lews Therin renascido, mas não é Lews Therin.
— Como você sabe? — provocou Graendal com um sorriso, como se tudo não passasse de uma brincadeira. — Pode até ser, como muitos acreditam, que todos nasçam e renasçam conforme a Roda gira, mas, que eu saiba, nunca aconteceu algo do tipo. Um homem específico renascendo conforme reza uma profecia? Quem pode saber o que ele é?
Lanfear respondeu com um sorriso desdenhoso.
— Eu já o observei de perto. Ele não é nada mais do que aparenta: um pastor, e ainda bastante ingênuo. — Seu escárnio se transformou em seriedade. — Mas agora ele conta com Asmodean, ainda que seja um aliado fraco. E, mesmo antes de Asmodean, quatro Escolhidos morreram em confronto com ele.
— E daí se o pastorzinho matar os novilhos — opinou Sammael, irritadiço.
Ele urdiu fios de Ar para arrastar uma cadeira pelo carpete e se esparramou nela, as botas cruzadas na altura do tornozelo e um braço apoiado no espaldar baixo e entalhado. Quem acreditasse que estava relaxado seria um tolo. Sammael sempre gostara de ludibriar os inimigos, fazendo-os pensar que poderia ser apanhado de surpresa.
— Sobra mais para nós no Dia do Retorno. Ou você acha que ele poderia vencer Tarmon Gai’don, Lanfear? Mesmo que ele torne Asmodean mais forte, desta vez não terá os Cem Companheiros. Com ou sem Asmodean, o Grande Senhor fará a vida dele se apagar feito um sar-luz quebrado.
Lanfear lançou a ele um olhar carregado de desprezo.
— Quantos de nós ainda estarão vivos quando o Grande Senhor finalmente for libertado? Quatro já se foram. Será que você é o próximo na lista, Sammael? Talvez fosse até bom. Se o derrotasse, você finalmente poderia se livrar desta cicatriz. Mas não lembro… Quantas vezes você o enfrentou na Guerra do Poder? Venceu alguma? Não lembro mesmo. — Sem nenhuma pausa, Lanfear se voltou para Graendal. — Ou talvez seja você. Por algum motivo, ele reluta em machucar mulheres, mas acho que você não terá a escolha de Asmodean, já que não tem capacidade para ensinar a ele mais do que uma pedra ensinaria. A menos que ele decida mantê-la como animal de estimação. Seria uma grande mudança, não acha? Em vez de decidir qual de suas belezinhas lhe agrada mais, você poderia aprender a agradar.
O rosto de Graendal se contorceu, e Rahvin se preparou para se defender de qualquer investida que uma das duas pudesse fazer contra a outra, pronto para Viajar à menor ameaça de fogo devastador. Então sentiu Sammael acumulando Poder, e sentiu algo de diferente — algo que Sammael chamaria de aproveitar uma vantagem tática —, por isso se curvou para agarrar o braço do homem. Sammael o afastou com raiva, mas o momento passara. As duas mulheres já olhavam para eles, e não uma para a outra. Nenhuma tinha como saber o que quase acontecera, mas estava claro que houvera alguma discordância entre Rahvin e Sammael, e a suspeita iluminou os olhos delas.
— Quero ouvir o que Lanfear tem a dizer. — Rahvin não olhava para Sammael, mas se dirigia a ele. — Deve ter mais aí do que uma tentativa tola de nos assustar.
Sammael balançou a cabeça no que poderia ter sido um gesto de concordância ou de irritação. Foi o suficiente.
— Ah, tem sim, mas um sustinho não faz mal a ninguém. — Os olhos escuros de Lanfear ainda demonstravam desconfiança, mas a voz estava mais límpida do que água parada. — Ishamael tentou controlá-lo e fracassou, tentou matá-lo, no fim, e fracassou. Mas ele tentou usar a intimidação e o medo, e Rand al’Thor é imune a intimidações.
— Ishamael era mais do que meio louco — resmungou Sammael — e menos do que meio humano.
— É isso que somos? — Graendal arqueou uma sobrancelha. — Simples humanos? Tenho certeza de que somos mais que isso. Humano é isto aqui. — Ela bateu com o dedo na bochecha da mulher ajoelhada ao seu lado. — Vão ter que criar uma nova palavra para nos descrever.
— O que quer que sejamos — interrompeu Lanfear —, podemos triunfar onde Ishamael fracassou. — Ela se inclinou ligeiramente para a frente, como se quisesse empurrar as palavras para os demais. Era raro Lanfear demonstrar tensão. Por que agora?
— Por que só nós quatro? — questionou Rahvin. Seu próximo “por que” teria que esperar.
— Para que mais? — retrucou Lanfear. — Se conseguirmos colocar o Dragão Renascido de joelhos perante o Grande Senhor no Dia do Retorno, por que dividir a honra e as recompensas além do necessário? Talvez ele até já esteja acostumado a… como foi que você disse, Sammael? Matar os novilhos.
Era o tipo de resposta que Rahvin compreendia. Não que confiasse nela, claro, ou em qualquer um dos demais, mas de ambição ele entendia. Os Escolhidos haviam tramado galgar posições entre si desde o dia em que Lews Therin os aprisionara ao selar a prisão do Grande Senhor, e haviam recomeçado assim que foram libertados. Rahvin só precisava ter certeza de que o plano de Lanfear não comprometia os dele.
— Prossiga — disse a ela.
— Primeiro, existe outra pessoa tentando controlá-lo. Talvez para matar. Suspeito de Moghedien ou Demandred. Moghedien sempre tentou agir às escondidas, e Demandred sempre odiou Lews Therin. — Sammael sorriu, ou talvez tenha sido uma careta, mas seu ódio empalidecia diante do ódio de Demandred, ainda que fosse por uma causa maior.
— Como pode saber que não é um dos que estão aqui? — indagou Graendal, casualmente.
O sorriso de Lanfear expôs tantos dentes quanto o da outra mulher, e a mesma frieza.
— Porque vocês três preferem construir os próprios nichos e garantir seu poder, enquanto o resto vive se enfrentando. E por outros motivos. Eu disse que vigio Rand al’Thor de perto.
O que ela dissera sobre os três era verdade. O próprio Rahvin preferia a diplomacia e a manipulação ao conflito aberto, embora não se esquivasse da luta, caso fosse necessária. Sammael sempre escolhera exércitos e conquistas, e jamais chegaria perto de Lews Therin, mesmo renascido como um pastor, até ter certeza da vitória. Graendal também almejava conquistas, apesar de seus métodos não envolverem soldados. Como se preocupava demais com seus brinquedos, se movia devagar e com cautela. Agia abertamente, até porque os Escolhidos apreciavam isso, mas nunca dava um passo maior do que a perna.
— Vocês sabem que posso ficar de olho nele sem ser vista — continuou Lanfear —, mas os três precisam ficar longe, ou correm o risco de ser detectados. Precisamos atraí-lo de volta…
Graendal inclinou-se para a frente, interessada, e Sammael começou a balançar a cabeça em concordância à medida que Lanfear prosseguia. Rahvin escondeu sua opinião. Talvez o plano funcionasse. Se não… Se não, ele via várias maneiras de moldar os acontecimentos em seu proveito. Sim, aquilo poderia funcionar muito bem.