Cuidadosamente, Nynaeve formou em sua mente uma imagem do gabinete da Amyrlin, da mesma forma como visualizara o Coração da Pedra ao ir dormir. Nada aconteceu, e ela franziu a testa. Deveria ter sido levada à Torre Branca, ao aposento que havia visualizado. Tentou de novo, imaginando outro aposento do local, mas um que visitara com muito mais frequência, ainda que em momentos menos alegres.
O Coração da Pedra se transformou no gabinete da Mestra das Noviças, um aposento compacto, com painéis escuros e mobília simples e robusta que tinha sido usada por várias gerações de mulheres que se apropriaram daquele escritório. Quando as transgressões de uma noviça eram tamanhas que algumas horas a mais esfregando o chão ou capinando trilhas não eram suficientes, era para lá que a mandavam. Para que uma Aceita recebesse um chamado do tipo, era necessária uma transgressão ainda maior, mas ainda assim ela ia, arrastando os pés e sabendo que a consequência seria tão dolorosa quanto, talvez ainda pior.
Nynaeve não queria nem olhar para o aposento — em suas numerosas visitas, Sheriam a chamara de “intencionalmente teimosa” —, mas se pegou encarando o espelho na parede, no qual noviças e Aceitas tinham que ficar olhando os próprios rostos chorosos enquanto ouviam o sermão de Sheriam sobre obedecer regras, mostrar o devido respeito ou o que fosse. Obedecer às regras dos outros e mostrar o respeito exigido sempre havia sido um estorvo para Nynaeve. Os débeis vestígios dourados na moldura entalhada indicavam que o objeto estivera ali desde a Guerra dos Cem Anos, se não desde a Ruptura.
O vestido taraboniano era bonito, mas qualquer pessoa que a visse naqueles trajes ficaria desconfiada. Até as domanesas se vestiam de modo circunspecto quando visitavam a Torre, e Nynaeve não conseguia imaginar que alguém pudesse sonhar em estar ali sem se comportar da melhor forma possível. Não que fosse provável que encontrasse alguém, exceto, talvez, uma pessoa que adentrasse Tel’aran’rhiod por alguns momentos durante um sonho. Antes de Egwene, não houvera nenhuma mulher na Torre capaz de entrar no Mundo dos Sonhos sem ajuda desde Corianin Nedeal, mais de quatrocentos anos antes. Por outro lado, entre os ter’angreal roubados da Torre que ainda estavam nas mãos de Liandrin e seus confederados, onze tinham sido estudados pela última vez pela própria Corianin. Os outros dois que a mulher estudara, os dois que Nynaeve e Elayne tinham em mãos, davam acesso a Tel’aran’rhiod. Era melhor presumir que os demais também davam. Havia pouca chance de que Liandrin ou qualquer uma das outras fossem sonhar que estavam de volta à Torre da qual tinham fugido, mas mesmo essa pequena chance era um risco grande demais, já que podia significar ser apanhada em uma cilada. Na verdade, Nynaeve não tinha como ter certeza de que os únicos ter’angreal roubados eram aqueles que Corianin estudara. Os registros sobre ter’angreal que ninguém compreendia costumavam ser obscuros, e outros poderiam muito bem estar nas mãos de irmãs Negras que ainda estavam na Torre.
O vestido mudou por completo, virou uma lã branca e macia, mas não de qualidade particularmente alta, com uma faixa de sete listras coloridas na bainha, uma para cada Ajah. Se visse alguém que não desaparecesse após alguns instantes, Nynaeve se transportaria de volta para Sienda, e a pessoa pensaria que ela era apenas uma das Aceitas tocando Tel’aran’rhiod em seus sonhos. Não. Não voltaria para a estalagem, e sim para o gabinete de Sheriam. Afinal de contas, qualquer pessoa assim teria de ser da Ajah Negra, e Nynaeve teria que caçá-la.
Para completar o disfarce, segurou a trança, subitamente loura-avermelhada, e fez uma careta para o rosto de Melaine no espelho. Aquela, sim, era uma mulher que ela gostaria de entregar para Sheriam.
O gabinete da Mestra das Noviças ficava perto dos alojamentos das noviças, e os largos corredores ladrilhados tremeluziam com movimentos ocasionais, para além das lamparinas apagadas e das tapeçarias de parede. Eram relances de garotas apavoradas, todas trajando o branco das noviças. Grande parte dos pesadelos daquelas garotas era com Sheriam. Nynaeve as ignorou enquanto passava apressadamente. Elas não estavam presentes o suficiente no Mundo dos Sonhos para vê-la, ou, se a vissem, pensariam apenas que ela fazia parte do sonho.
O gabinete da Amyrlin ficava a apenas uma rápida subida por uma larga escadaria. Ao se aproximar, Elaida surgiu de repente à sua frente, de rosto suado e usando um vestido vermelho-sangue, a estola do Trono de Amyrlin em torno dos ombros. Ou quase a estola da Amyrlin, já que não tinha a listra azul.
Aqueles olhos escuros inflexíveis se concentraram em Nynaeve.
— Eu sou o Trono de Amyrlin, garota! Você não sabe demonstrar respeito? Vou fazer vo… — No meio da palavra, ela desapareceu.
Nynaeve soltou o ar, abalada. Elaida, Amyrlin. Aquilo com certeza era um pesadelo. Provavelmente o maior sonho dela, pensou, sarcástica. Mais fácil nevar em Tear do que ela chegar tão alto.
A antessala era bem parecida com o que se lembrava, com uma mesa ampla e uma cadeira para a Curadora das Crônicas logo atrás. Algumas cadeiras estavam dispostas ao longo da parede para as Aes Sedai que aguardavam para falar com a Amyrlin. Noviças e Aceitas ficavam de pé. Porém, o conjunto de papéis arrumado sobre a mesa, rolos amarrados, grandes pergaminhos com selos e cartas, não tinha o jeito de Leane. Não que ela fosse desorganizada, muito pelo contrário, mas Nynaeve sempre imaginara que, de noite, ela mantivesse tudo guardado.
Abriu a porta para a sala interna, mas diminuiu o passo conforme foi entrando. Não era surpresa que não tivesse conseguido sonhar que estava ali. O local não era nem um pouco parecido com o que se lembrava. A mesa ricamente entalhada e a cadeira alta feito um trono. Os bancos com entalhes de vinhas dispostos em uma curva perfeita à frente da mesa, nenhum deles uma mísera polegada fora do lugar. Siuan Sanche apreciava mobílias simples, como se fingisse que ainda era apenas a filha de um pescador, e mantinha apenas uma única cadeira sobressalente, que nem sempre permitia que os visitantes utilizassem. E aquele vaso branco cheio de rosas vermelhas, arrumado rigorosamente em um pedestal, como se fosse um monumento. Siuan gostava de flores, mas preferia buquês coloridos, como um campo de flores silvestres em miniatura. Pendurado acima da lareira houvera um desenho bem simples de barcos de pesca em meio a juncos altos. Agora eram duas pinturas, uma das quais Nynaeve reconheceu. Rand, lutando contra o Abandonado que se autodenominava Ba’alzamon nas nuvens acima de Falme. A outra, em três painéis de madeira, retratava cenas para as quais sua memória não encontrava referência.
A porta se abriu, e o coração de Nynaeve foi parar na garganta. Uma Aceita de cabelos ruivos que ela nunca vira antes entrou no aposento e a encarou. A menina não desapareceu imediatamente. No momento em que Nynaeve se preparava para saltar de volta ao gabinete de Sheriam, a ruiva disse:
— Nynaeve, se Melaine soubesse que você estava usando o rosto dela, faria bem mais do que colocar você em um vestidinho de criança. — E, tão de repente quanto aparecera, a menina se transformou em Egwene, em seu traje Aiel.
— Você quase me matou de susto — resmungou Nynaeve. — Então as Sábias finalmente decidiram deixar você ir e vir como bem entender? Ou Melaine está por trás…
— Acho bom você ter levado um susto — irrompeu Egwene, as bochechas ficando mais coradas. — Você é uma tola, Nynaeve. Uma criança brincando em um estábulo com uma vela.
Nynaeve ficou boquiaberta. Egwene repreendendo-a ?
— Escute aqui, Egwene al’Vere. Eu não aceito broncas de Melaine, e muito menos…
— É melhor aceitar a bronca de alguém, antes que acabe morta.
— Eu…
— Preciso tirar este anel de pedra de você. Deveria ter dado ele para Elayne e dito a ela para não deixar você usar de jeito nenhum.
— Dito a ela para não…!
— Você acha que Melaine estava exagerando? — perguntou Egwene, inflexível, balançando o dedo quase que exatamente como a Sábia de cabelos loiros. — Não estava, Nynaeve. As Sábias disseram a verdade nua e crua sobre Tel’aran’rhiod diversas vezes, mas você parece pensar que elas não passam de idiotas falando com o vento. Você deveria ser uma mulher adulta, não uma criancinha idiota. Eu juro, qualquer bom senso que um dia você teve na cabeça parece ter desaparecido feito um sopro de fumaça. Bem, trate de encontrá-lo, Nynaeve! — Ela bufou bem alto, reposicionando o xale nos ombros. — Neste momento, você está tentando brincar com as lindas chamas da lareira, mas é tola demais para perceber que pode cair lá dentro.
Nynaeve encarou-a com espanto. Elas discutiam com alguma frequência, mas Egwene nunca havia lhe tratado como uma garotinha pega com o dedo no pote de mel. Nunca! O vestido. Era o vestido de Aceita que ela estava usando, além do rosto de outra pessoa. Voltou a se transformar em quem era, trajando uma boa lã azul que usara bastante em reuniões do Círculo e quando queria guiar o Conselho. Sentiu-se revestida de toda sua antiga autoridade de Sabedoria.
— Eu estou bem ciente do quanto desconheço — retrucou, com a voz calma —, mas aquelas Aiel…
— Você percebe que pode sonhar com algo de que não consiga escapar? Os sonhos aqui são reais. Se você se deixar levar por um sonho gostoso, ele pode lhe prender. Você prenderia a si mesma. Até morrer.
— Você vai…?
— Há pesadelos caminhando em Tel’aran’rhiod, Nynaeve.
— Você vai me deixar falar? — rosnou ela. Ou melhor, tentou rosnar. Havia súplicas frustradas demais no tom, para o seu gosto. Qualquer quantidade teria sido demais.
— Não, não vou — retrucou Egwene com firmeza. — Não até que você queira dizer algo que valha a pena ouvir. Eu disse pesadelos, e me refiro mesmo a pesadelos, Nynaeve. Quando alguém tem um pesadelo estando em Tel’aran’rhiod, ele também é real. E às vezes ele sobrevive mesmo depois de o sonhador já ter ido embora. Você simplesmente não entende isso, não é?
De repente, mãos ásperas envolveram os braços de Nynaeve. Sua cabeça foi sacudida para um lado e para outro, os olhos quase saltando das órbitas. Dois homens enormes e maltrapilhos ergueram-na no ar, seus rostos eram ruínas meio derretidas de carne embrutecida, as bocas babando, repletas de dentes amarelados e afiados. Nynaeve tentou fazê-los desaparecer — se uma Sábia Andarilha dos Sonhos conseguia, ela também era capaz —, e um dos homens rasgou a frente de seu vestido, abrindo-o feito um pergaminho. O outro a segurou pelo queixo com a mão desejosa, cheia de calos, e girou o rosto dela em sua direção. A cabeça dele se curvou até ela, a boca se abrindo. Se a intenção era beijar ou morder, Nynaeve não sabia, mas preferia morrer a permitir qualquer das opções. Tentou alcançar saidar e não encontrou nada. Estava com medo, não com raiva. Unhas espessas se afundaram em suas bochechas e seguraram sua cabeça com firmeza. Egwene, de alguma forma, fizera aquilo. Egwene.
— Por favor, Egwene! — Saiu apenas um grunhido, mas ela estava aterrorizada demais para se importar. — Por favor!
Os homens — criaturas — desapareceram, e os pés de Nynaeve bateram no chão. Por um momento, ela só conseguiu tremer e chorar. Consertou depressa os danos ao vestido, mas ainda dava para sentir os arranhões daquelas unhas compridas em seu pescoço e peito. Era bem fácil recuperar roupas em Tel’aran’rhiod, mas o que quer que acontecesse a um humano… Seus joelhos tremiam tanto que o máximo que conseguia era se manter de pé.
Ela meio que esperava que Egwene a confortasse, e, desta vez, teria aceitado com gosto, mas a outra mulher apenas disse:
— Há coisas piores aqui, mas os pesadelos são suficientemente ruins. Eu criei estes homens e os desfiz, mas até eu tenho problemas com aqueles que acabo encontrando. E não tentei segurá-los, Nynaeve. Se você soubesse desfazê-los, poderia ter desfeito.
Nynaeve sacudiu a cabeça com raiva, recusando-se a limpar as lágrimas das bochechas.
— Eu poderia ter me retirado do sonho. Para o gabinete de Sheriam, ou até de volta para a minha cama. — Ela não soou mal-humorada. Claro que não.
— Isso se você não estivesse tão apavorada que nem conseguiu pensar a respeito — afirmou Egwene de maneira ácida. — Ah, e pare de fazer cara feia. Faz você parecer idiota.
Nynaeve encarou a mais nova, mas não obteve o resultado de sempre. Em vez de explodir em uma discussão, Egwene simplesmente arqueou uma das sobrancelhas.
— Nada disso parece coisa de Siuan Sanche — disse Nynaeve, mudando de assunto. O que dera na garota?
— Não mesmo — concordou Egwene, examinando o local. — Agora entendi por que tive que vir primeiro para o meu antigo quarto no alojamento das noviças. Mas de vez em quando as pessoas decidem renovar as cores.
— Foi o que eu quis dizer — disse Nynaeve pacientemente. Não tinha soado irritada e nem aparentava mau humor. Era ridículo. — A mulher que mobiliou este aposento não enxerga o mundo da mesma maneira que a mulher que escolheu o que costumava haver aqui. Olhe para estas pinturas. Não sei o que é aquela peça tripla, mas você é capaz de reconhecer a outra tão bem quanto eu. — Ambas haviam visto aquilo acontecer.
— Eu imagino que seja Bonwhin — falou Egwene, prestativa. — Você nunca prestou atenção às palestras como deveria. Isto é um tríptico.
— Seja o que for, a outra é que é importante. — Ouvira muito bem as Amarelas. As demais, na maioria das vezes, falavam um monte de bobagens inúteis. — Me parece que a mulher que a pendurou quer ser lembrada de como Rand é perigoso. Se Siuan Sanche, por algum motivo, tiver se voltado contra ele… Egwene, isso poderia ser bem pior do que ela só querer Elayne de volta na Torre.
— Talvez — ponderou Egwene. — Pode ser que os papéis revelem algo. Procure aqui. Quando eu terminar na escrivaninha de Leane, ajudo você.
Indignada, Nynaeve ficou olhando para as costas de Egwene enquanto a mulher saía. Procure você aqui, ora! Egwene não tinha o direito de lhe dar ordens. Deveria ir imediatamente atrás dela para deixar isso bem claro. Então por que você está aqui parada feito uma pateta?, questionou-se, com raiva. Examinar os papéis era uma boa ideia, e ela poderia fazer isso tanto ali dentro quanto lá fora. Na verdade, era mais provável que houvesse algo importante na escrivaninha da Amyrlin. Resmungando sozinha a respeito do que faria para enquadrar Egwene, caminhou até a mesa ricamente entalhada, chutando as saias a cada passo.
Não havia nada na mesa além de três caixas laqueadas com adornos, arrumadas com dolorosa precisão. Tendo em mente as armadilhas que podiam ser armadas por alguém que quisesse garantir a própria privacidade, ela conjurou uma vara comprida para empurrar e abrir as dobradiças da tampa da primeira, um objeto dourado e verde decorado com garças. Era um estojo com material para escrever, cheio de canetas, tinta e areia. A caixa maior, com rosas vermelhas se enroscando em rolos dourados, abrigava vinte ou mais delicados entalhes de marfim e turquesa, animais e pessoas, todos dispostos em veludo cinza-claro.
Quando abriu a tampa da terceira caixa — falcões dourados lutando em meio a nuvens brancas em um céu azul —, percebeu que as duas primeiras tinham se fechado novamente. Esse tipo de coisa acontecia ali. Tudo parecia querer permanecer como era no mundo desperto, e, para completar, se desviasse os olhos de alguma coisa, por um momento que fosse, poderia ver detalhes diferentes quando tornasse a olhar.
A terceira caixa continha documentos. A vara desapareceu, e ela levantou com cautela a folha de pergaminho que estava por cima. Formalmente assinada “Joline Aes Sedai”, tratava-se de uma humilde solicitação para que se cumprisse uma série de penitências que fizeram Nynaeve se retrair só de passar os olhos por elas. Não havia nada ali que importasse, a não ser para Joline. Um rabisco com letras angulosas na parte inferior dizia “aprovado”. Quando a garota se esticou para recolocar o pergaminho no lugar, ele desapareceu. A caixa também se fechou.
Com um suspiro, tornou a abri-la. Os papéis lá dentro pareciam diferentes. Segurando a tampa, ela os ergueu um a um, lendo tudo rapidamente. Ou tentando ler. Às vezes, as letras e relatos desapareciam enquanto ainda os erguia diante dos olhos. Outras, quando a leitura ainda não havia passado de meia página. Se traziam alguma saudação, era simplesmente “Mãe, com respeito”. Uns eram assinados por Aes Sedai, outros por mulheres com outros títulos, nobres ou não. Nenhum deles parecia tratar do assunto em questão. O Marechal-General de Saldaea e seu exército não foram encontrados, e a Rainha Tenobia estava se recusando a cooperar. Ela até conseguiu concluir esse relatório em especial, mas o documento presumia que o leitor soubesse por que o homem não estava em Saldaea e com o quê a rainha deveria estar cooperando. Não havia chegado qualquer relato de nenhum dos espiões das Ajahs em Tanchico havia três semanas, mas ela não conseguiu ir além dessa descoberta. Alguns problemas vinham se abatendo entre Illian, de um lado, e Murandy, do outro, e Pedron Niall estava assumindo o crédito. Mesmo nas poucas linhas que tinha em mãos, Nynaeve era capaz de sentir o ranger de dentes do autor. As cartas eram, sem dúvida, muito importantes, tanto as que conseguira ler apressadamente quanto as que sumiram sob seus olhos, mas sem qualquer serventia para ela. Havia começado a examinar o que parecia um relatório sobre uma reunião suspeita — a palavra usada era esta — de irmãs Azuis, quando um grito sofrido de “Ai, Luz, não!” veio do outro aposento.
Correndo em direção à porta, Nynaeve fez aparecer em suas mãos um pesado porrete de madeira, a cabeça encrespada de espinhos. Porém, quando entrou apressada, esperando encontrar Egwene no meio de uma batalha, viu apenas a mulher por trás da mesa da Curadora, encarando o nada. Com uma expressão de horror no rosto, certamente, mas ainda sem nenhum perigo ou ameaça que Nynaeve conseguisse divisar.
Egwene se assustou ao vê-la, então se recompôs visivelmente.
— Nynaeve, Elaida é o Trono de Amyrlin.
— Não seja idiota — debochou a mais velha. No entanto, a outra sala estava tão diferente de Siuan Sanche… — Você está imaginando coisas. Só pode ser.
— Eu estava com um pergaminho nas mãos, Nynaeve, assinado “Elaida do Avriny a’Roihan, Vigia dos Selos, Chama de Tar Valon, O Trono de Amyrlin” e selado com o selo da Amyrlin.
O estômago de Nynaeve se revirou até subir ao peito.
— Mas como? O que aconteceu com Siuan? Egwene, a Torre não depõe uma Amyrlin, exceto por algo bem sério. Foram só duas em quase três mil anos.
— Talvez Rand fosse um motivo sério o bastante. — A voz de Egwene permanecia inabalável, embora os olhos ainda estivessem bastante arregalados. — Talvez ela tenha adoecido de algo que as Amarelas não conseguiram Curar, ou caiu das escadas e quebrou o pescoço. O que importa é que Elaida é a Amyrlin. Acho que ela não vai apoiar Rand como Siuan apoiava.
— Moiraine — murmurou Nynaeve. — Ela estava tão certa de que Siuan conduziria a Torre a segui-lo. — Não conseguia imaginar que Siuan Sanche estivesse morta. Odiara a mulher muitas vezes, sentira algum medo dela de vez em quando, e podia admitir isso àquela altura, ao menos para si mesma, mas também a respeitara. Pensara que Siuan duraria para sempre. — Elaida. Luz! Ela é má feito uma cobra e cruel feito um gato. Não há como prever o que ela é capaz de fazer.
— Temo que eu tenha uma pista. — Egwene pressionou as mãos contra a barriga, como se acalmasse o próprio estômago revolto. — Era um documento bem curto. Consegui ler tudo. “Exige-se que todas as irmãs leais reportem a presença da mulher Moiraine Damodred. Ela deve ser detida, se possível, por quaisquer meios necessários, e trazida de volta à Torre para ser julgada pela acusação de traição”. O mesmo tipo de linguagem que parece ter sido usada a respeito de Elayne.
— Se Elaida quer Moiraine presa, deve significar que ela sabe que Moiraine tem ajudado Rand, e não gosta nem um pouco disso. — Falar era bom. Falar evitava que vomitasse. Traição. Mulheres eram espancadas por conta daquilo. Elaida quisera derrubar Moiraine. Agora, era Elaida quem faria isso por ela. — Elaida com certeza não vai apoiar Rand.
— Exatamente.
— Irmãs leais. Egwene, isso se encaixa na mensagem daquela mulher que Macura mencionou. O que quer que tenha acontecido com Siuan, as Ajahs estão divididas quanto a Elaida ser a Amyrlin. Deve ser isso.
— Claro que sim. Muito bom, Nynaeve. Eu ainda não tinha pensado por esse lado.
A mulher sorria com tanta satisfação que Nynaeve lhe retribuiu o sorriso.
— Há um relatório na escrivaninha de Siu… da Amyrlin, sobre uma reunião das Azuis. Eu estava lendo exatamente essa parte quando você gritou. Sou capaz de apostar que as Azuis não apoiaram Elaida. — Nas melhores épocas, as Ajahs Azul e Vermelha tinham uma espécie de trégua armada, mas, nas piores, chegavam perto de pular no pescoço uma da outra.
Porém, quando as duas voltaram para a sala interior, não conseguiram encontrar o relatório. Havia vários documentos — a carta de Joline reaparecera, e uma breve leitura dela fez as sobrancelhas de Egwene se erguerem quase até o cabelo —, mas não o que elas queriam.
— Você consegue se lembrar do que dizia? — indagou Egwene.
— Eu só tinha lido algumas linhas quando você gritou e… Não consigo lembrar.
— Tente, Nynaeve. Tente com todo o afinco.
— Estou tentando, Egwene, mas não vai ter jeito. Eu estou tentando.
Nynaeve se deu conta do que estava fazendo de forma súbita, feito uma martelada no meio da testa. Desculpando-se. E para Egwene, uma garota em cujo traseiro tinha dado umas palmadas por teimosia não havia nem dois anos. E, momentos antes, estivera orgulhosa feito uma galinha com um ovo novo só por Egwene ter ficado contente com ela. Lembrava-se com total clareza do dia em que o equilíbrio entre elas mudara, quando haviam deixado de ser a Sabedoria e a garota que obedecia a qualquer de suas ordens e passado a ser apenas duas mulheres que estavam longe de casa. Parecia que esse equilíbrio havia mudado ainda mais, e Nynaeve não gostava disso. Teria que tomar alguma providência para fazê-lo voltar ao que era.
A mentira. Mentira de propósito para Egwene pela primeira vez naquele dia. Por isso sua autoridade moral desaparecera, por isso estava chafurdando na lama, incapaz de se impor de maneira adequada.
— Eu tomei o chá, Egwene. — Forçou cada palavra a sair. Precisou forçá-las. — O chá de raiz-dupla daquela mulher, Macura. Ela e Luci nos arrastaram para o andar de cima que nem sacas cheias de penas. Era mais ou menos essa a força que nós duas tínhamos. Se Thom e Juilin não tivessem aparecido para nos salvar, é provável que ainda estivéssemos lá. Ou a caminho da Torre, tão entupidas de raiz-dupla que só acordaríamos quando chegássemos. — Respirando fundo, tentou um tom de voz honrado e firme, o que era difícil depois de acabar de confessar ter sido uma completa idiota. O que acabou por dizer soou muito mais titubeante do que gostaria. — Se você contar isso para as Sábias, especialmente para aquela Melaine, vou lhe dar uma bofetada na orelha.
Algo naquelas palavras deveria ter inflamado a ira de Egwene. Parecia estranho querer começar uma discussão — em geral, as brigas entre as duas giravam em torno de Egwene se recusando a entender as coisas, e era raro elas acabarem bem, já que a garota criara o hábito de continuar a se recusar —, mas certamente seria melhor que aquilo. Egwene, no entanto, só fez sorrir para ela. Um sorriso divertido. Um sorriso divertido e condescendente.
— Eu mais do que suspeitava disso, Nynaeve. Você costumava ficar tagarelando sobre ervas dia e noite, mas nunca mencionou nenhuma planta chamada raiz-dupla. Eu tive certeza de que você nunca tinha ouvido falar nela até aquela mulher citá-la. Você sempre tentou maquiar as coisas. Se caísse de cara em um chiqueiro, tentaria convencer a todos de que foi de propósito. Agora, o que temos que decidir é…
— Eu não faço essas coisas — balbuciou Nynaeve.
— Claro que faz. Fatos são fatos. Você bem que podia parar de ficar choramingando por causa disso e me ajudar a decidir…
Choramingando! Aquilo não estava se desenrolando nem um pouco ao seu gosto.
— Não é nada disso. Me refiro aos fatos. Nunca fiz isso que você falou.
Por um momento, Egwene a encarou em silêncio.
— Você não vai esquecer esse assunto, não é? Muito bem. Você mentiu para mim…
— Não foi uma mentira — resmungou ela. — Não exatamente.
A outra mulher ignorou a interrupção.
— … e mente para si mesma. Você se lembra do que me obrigou a beber na última vez em que menti para você? — Uma xícara apareceu de repente em sua mão, cheia de um líquido verde viscoso medonho. Parecia que havia sido retirado de um lago espumoso e estagnado. — A única vez em que eu menti para você. A lembrança daquele gosto foi um desencorajamento bem eficaz. Se você não é capaz de dizer a verdade nem para si mesma…
Nynaeve deu um passo atrás antes de conseguir se refrear. Samambaia-felina fervida e folha-sábia em pó. Sua língua se retorceu só de pensar.
— Eu não cheguei a mentir, na realidade. — Por que estava dando desculpas? — Só não contei toda a verdade. — Eu sou a Sabedoria! Eu era a Sabedoria. Isso ainda deve valer de alguma coisa. — Você não pode estar pensando… — Conte logo para ela. Não é você a criança aqui, e com certeza não vai tomar nada. — Egwene, eu… — Egwene empurrou a xícara até quase debaixo do nariz dela. Nynaeve sentiu o cheiro acre. — Tudo bem — disse, mais que depressa. Isso não pode estar acontecendo! Mas não conseguia tirar os olhos daquela xícara transbordando, nem impedir as palavras de irem saindo atropeladas. — Às vezes eu tento fazer com que as coisas pareçam melhores para mim do que de fato elas foram. Às vezes. Mas nunca com nada importante. Eu nunca… menti… sobre nada importante. Nunca, eu juro. Só coisas pequenas. — A xícara desapareceu, e Nynaeve deu um pesado suspiro de alívio. Tola, sua tola! Ela não tinha como ter obrigado você a tomar! O que há com você?
— O que nós temos que decidir — disse Egwene, como se nada tivesse acontecido — é para quem vamos contar. Moiraine certamente precisa saber, Rand também, mas se todo mundo ouvir falar nessa história… Os Aiel são um pouco estranhos, mesmo com relação às Aes Sedai. Apesar de tudo, acho que vão seguir Rand como Aquele Que Vem Com a Aurora, mas, assim que descobrirem que a Torre Branca está contra ele, talvez não o sigam com tanta empolgação.
— Mais cedo ou mais tarde eles vão descobrir — resmungou Nynaeve. Ela não tinha como ter me obrigado a tomar!
— Quanto mais tarde, melhor, Nynaeve. Então trate de controlar esse seu gênio e não saia falando sobre isso com as Sábias em nosso próximo encontro. Na verdade, seria melhor se você nem mencionasse esta visita à Torre. Assim, talvez consiga manter o segredo.
— Eu não sou idiota — retrucou Nynaeve, ríspida, irritando-se quando Egwene voltou a erguer a sobrancelha. Não queria falar sobre a visita com as Sábias. Não por ser mais fácil desafiá-las pelas costas. Nada disso. E não estava tentando maquiar nada. Não era justo que Egwene pudesse perambular por Tel’aran’rhiod como bem entendesse, enquanto Nynaeve tinha de aguentar sermões e provocações.
— Sei que não — afirmou Egwene. — A não ser quando perde a cabeça. Você precisa controlar seu gênio e ficar de cabeça fria, caso esteja certa a respeito dos Abandonados, especialmente Moghedien. — Nynaeve olhou feio para ela, abrindo a boca para dizer que conseguia, sim, controlar o temperamento, e que lhe daria uma bofetada na orelha caso ela pensasse diferente, mas a jovem não lhe deu a chance. — Precisamos encontrar a tal reunião das irmãs Azuis, Nynaeve. Se elas estão contra Elaida, talvez, e apenas talvez, apoiem Rand como Siuan apoiava. Mencionaram alguma cidade ou aldeia? Ou mesmo um país?
— Acho que… Não consigo lembrar. — Ela se esforçou para retirar o tom defensivo da própria voz. Luz, eu confessei tudo, me fiz de idiota, e só piorei as coisas! — Vou continuar tentando.
— Ótimo. Precisamos encontrá-las. — Por um momento, Egwene a analisou, enquanto ela se recusava a se repetir. — Nynaeve, tome cuidado com Moghedien. Não se apresse feito um urso na primavera só porque ela escapou de você em Tanchico.
— Eu não sou idiota, Egwene — respondeu Nynaeve com cautela. Era frustrante precisar controlar o temperamento, mas se Egwene ia só ficar ignorando-a ou lhe dando broncas, não havia vantagem nenhuma em se exaltar, além de que pareceria uma boboca ainda maior do que já parecia.
— Eu sei. Você já disse. Só não se esqueça disso. Tenha cuidado. — Egwene não foi sumindo desta vez. Apenas desapareceu, tão de repente quanto Birgitte.
Nynaeve encarou o local onde ela estivera, repassando na mente todas as coisas que deveria ter dito. Por fim, percebeu que poderia passar a noite toda ali. Estava se repetindo, e o momento para dizer tudo aquilo já havia passado. Resmungando baixo, saiu de Tel’aran’rhiod e voltou para sua cama em Sienda.
Os olhos de Egwene se abriram na escuridão quase total, quebrada apenas pelo parco luar que entrava pelo buraco de saída da fumaça. Ficou feliz por estar debaixo de uma pilha de cobertores. O fogo tinha se extinguido, e um frio congelante tomava conta da tenda. Sua respiração orvalhava bem diante do rosto. Sem levantar a cabeça, observou os arredores. Nenhuma Sábia. Ainda estava sozinha.
Aquele era seu maior medo nas incursões solitárias por Tel’aran’rhiod: retornar e encontrar Amys ou uma das outras esperando por ela. Bem, talvez não fosse o maior medo, já que os perigos do Mundo dos Sonhos eram tão grandes quanto descrevera para Nynaeve, mas, ainda assim, era um medo enorme. Não eram as punições que a amedrontavam, não do tipo que Bair impunha. Caso tivesse acordado e dado de cara com uma Sábia, teria aceitado sua pena com prazer, mas Amys dissera a Egwene, logo no início, que se ela entrasse em Tel’aran’rhiod sem a companhia de uma das Sábias elas a mandariam embora, recusando-se a continuar a ensiná-la. Aquilo a amedrontava bem mais do que qualquer outra coisa que as mulheres pudessem fazer. Porém, ainda assim, precisava seguir em frente. Mesmo sendo rápidas para ensinar, as Sábias não eram rápidas o bastante. Egwene queria aprender logo, e queria aprender tudo.
Canalizando, acendeu sua lamparina e pôs fogo na fogueira. Não havia mais nada ali para queimar, mas manteve o fluxo atado. Ficou deitada observando sua respiração enevoar bem à frente da boca e esperou que estivesse suficientemente quente para que pudesse se vestir. Estava tarde, mas Moiraine talvez ainda estivesse acordada.
O que acontecera com Nynaeve ainda a surpreendia. Acho que ela até teria tomado o chá, se eu tivesse pressionado. Tivera tanto medo de que Nynaeve descobrisse que ela não tinha a permissão das Sábias para perambular sozinha pelo Mundo dos Sonhos, estivera tão certa de que o rubor de embaraço a denunciara, que tudo em que conseguia pensar era em impedir que Nynaeve abrisse a boca, evitando que lhe arrancasse a verdade. E tivera certeza de que Nynaeve acabaria descobrindo de qualquer jeito — a mulher era bem capaz de denunciá-la e ainda dizer que era para seu próprio bem — que tudo o que pôde fazer foi tagarelar e tentar manter o foco no que quer que Nynaeve estivesse fazendo de errado. Não importava o quanto Nynaeve a irritasse, ela não podia começar uma discussão. E, mesmo com tudo isso, Egwene, de alguma forma, conseguira ficar por cima.
Pensando a respeito, Moiraine raramente levantava a voz e, quando o fazia, tinha menos sucesso em conseguir o que queria. Fora assim mesmo antes de ela começar a se comportar de forma tão estranha com relação a Rand. As Sábias também nunca gritavam com ninguém — exceto, às vezes, umas com as outras — e, mesmo resmungando tanto a respeito de os chefes não lhes darem mais ouvidos, elas ainda pareciam conseguir o que queriam com muita frequência. Havia um velho ditado que a garota nunca tinha entendido: “Empenha-se para ouvir um sussurro quem se recusa a ouvir um grito.” Não voltaria a gritar com Rand. Uma voz calma, firme, de mulher adulta era o que faria diferença. Aliás, também não deveria mais gritar com Nynaeve. Egwene era uma mulher adulta, não uma garota dando chiliques.
Pegou-se rindo. Não deveria mais levantar a voz para Nynaeve, especialmente ao ver que falar com calma produzia tais resultados.
Por fim, a tenda pareceu quente o bastante, e ela se moveu com pressa, vestindo-se rápido. Ainda precisou quebrar o gelo do jarro de água antes de poder tirar o gosto de sono da boca. Lançando o manto de lã escura por cima dos ombros, desatou os fios de Fogo — era perigoso deixar Fogo atado sem supervisão — e, à medida que as chamas se esvaneciam, curvou-se e saiu da tenda. O frio a envolveu feito um torno gelado enquanto atravessava o acampamento a passos rápidos.
Só conseguia enxergar as tendas mais próximas, contornos baixos e sombreados que bem podiam fazer parte do próprio relevo acidentado, exceto pelo fato de o acampamento se estender por muitas milhas para os dois lados do terreno montanhoso. Aqueles altos picos recortados não eram a Espinha do Mundo, bem mais alta, e ainda a dias de distância para o oeste.
Egwene aproximou-se da tenda de Rand com hesitação. Uma nesga de luz era visível ao longo da aba de entrada. Conforme chegou mais perto, uma Donzela pareceu se erguer do solo, um arco de chifre às costas, a aljava na cintura, e lanças e um broquel na mão. Egwene não enxergava mais ninguém naquela escuridão, mas sabia que elas estavam ao redor, mesmo ali, cercadas pelos seis clãs que haviam jurado lealdade ao Car’a’carn. Os Miagoma estavam em algum ponto ao norte, marchando em paralelo. Timolan não revelava quais eram suas intenções. Rand não parecia se importar com a localização dos demais clãs. Sua atenção estava toda na corrida até Passo de Jangai.
— Ele está acordado, Enaila? — perguntou.
As sombras do luar se moveram pelo rosto da Donzela quando ela assentiu.
— Ele não dorme tanto quanto deveria. Os homens não conseguem passar sem descanso. — Soava tal e qual uma mãe preocupada com um filho.
Uma sombra ao lado da tenda se mexeu, revelando Aviendha com o xale enrolado ao corpo. Não parecia perturbada pelo frio, só pelo horário.
— Se eu achasse que funcionaria, até cantaria uma canção de ninar para ele. Já ouvi falar de mulheres que passaram a noite acordadas por causa de uma criança, mas um homem adulto deveria saber que as outras pessoas gostariam de estar entre os cobertores. — Ela e Enaila compartilharam um risinho abafado.
Egwene balançou a cabeça para a estranheza dos Aiel e se curvou para bisbilhotar pela fresta. Várias lamparinas iluminavam o interior. Ele não estava sozinho. Os olhos escuros de Natael pareciam cansados, e o homem conteve um bocejo. Ele, pelo menos, queria dormir. Rand estava esparramado por perto, ao lado de uma das douradas lamparinas a óleo, lendo um surrado livro com encadernação de couro. Uma ou outra tradução das Profecias do Dragão, pelo que conhecia de Rand.
De repente, ele voltou algumas páginas do livro, leu e gargalhou. Egwene tentou dizer a si mesma que não havia nenhum quê de loucura naquela gargalhada, só amargura.
— Uma boa piada — disse ele para Natael, fechando o livro e jogando-o para o bardo. — Leia a página duzentos e oitenta e sete e a página quatrocentos e me diga se não concorda.
Egwene se empertigou, lábios apertados. Ele deveria ter mais cuidado com os livros. Não podia falar com Rand, não na presença do menestrel. Era uma pena ele ter de contar com um homem que mal conhecia para lhe fazer companhia. Não. Ele tinha Aviendha e os chefes sempre por perto, além de Lan, todos os dias, e Mat, às vezes.
— Por que não se junta a eles, Aviendha? Se você estivesse lá, talvez ele quisesse conversar sobre alguma coisa que não aquele livro.
— Rand queria conversar com o menestrel, Egwene, e raramente faz isso na minha frente ou na de qualquer pessoa. Se eu não tivesse saído, ele e Natael sairiam.
— As crianças são uma preocupação enorme, ouvi dizer — gargalhou Enaila. — E filhos ainda mais. Agora que você abriu mão da lança, talvez possa me contar se isso é verdade.
Aviendha franziu o cenho iluminado pelo luar e caminhou de volta para seu lugar, junto à lateral da tenda feito uma gata ofendida. Enaila também pareceu achar aquilo engraçado e, gargalhando, pôs as mãos na cintura.
Resmungando sozinha a respeito do humor Aiel, que ela quase nunca entendia, Egwene seguiu na direção da tenda de Moiraine, não muito longe da de Rand. Como ali também se via uma nesga de luz, soube que a Aes Sedai estava acordada. Moiraine estava canalizando. Só algumas pequenas quantidades do Poder, mas ainda o bastante para Egwene senti-lo. Lan estava dormindo ali perto, enrolado em seu manto de Guardião. Tirando a cabeça e as botas, o restante do corpo parecia fazer parte da noite. Segurando o manto, Egwene ergueu as saias e entrou na ponta dos pés para evitar acordá-lo.
A respiração do homem não mudou, mas algo a fez olhar novamente para Lan. A luz da lua cintilou nos olhos dele, abertos e encarando Egwene. Ela ainda estava girando a cabeça quando eles voltaram a se fechar. Nenhum outro músculo se mexeu. Talvez ele nem tivesse chegado a acordar. Às vezes, aquele homem a enervava. O que quer que Nynaeve visse nele, Egwene não conseguia enxergar.
Ajoelhando-se ao lado da aba da tenda, ela espiou o interior. Moiraine estava sentada, cercada por um brilho de saidar, a pedrinha azul que costumava ficar dependurada em sua testa balançando entre os dedos à frente do rosto. Ela brilhava, acrescentando um pouco de luminosidade à luz de uma única lamparina. A fogueira só continha cinzas. Até o cheiro já se dissipara.
— Posso entrar?
Precisou repetir a pergunta antes que Moiraine respondesse.
— Claro. — A luz de saidar se esvaneceu, e a Aes Sedai começou a prender a bela corrente dourada de volta no cabelo.
— Você estava espiando Rand? — Egwene se acomodou ao lado da mulher. O interior da tenda estava tão frio quanto lá fora. Canalizou chamas sobre as cinzas na fogueira e amarrou o fluxo. — Você disse que não ia mais fazer isso.
— Eu disse que, já que as Sábias podiam ver os sonhos dele, nós deveríamos garantir a Rand alguma privacidade. Elas não me pediram para espiá-lo de novo desde que Rand as bloqueou, e eu não ofereci. Lembre-se de que elas têm os próprios objetivos, que podem não ser os mesmos que os da Torre.
Rápido assim, já haviam chegado ao ponto. Egwene ainda não estava certa de como dizer o que sabia sem trair a si mesma perante as Sábias, mas o único método talvez fosse simplesmente começar e depois ir tateando o caminho.
— Elaida agora é a Amyrlin, Moiraine. Eu não sei o que aconteceu com Siuan.
— Como você sabe? — perguntou Moiraine, tranquilamente. — Descobriu alguma coisa caminhando em sonhos? Ou foi seu Talento de Sonhadora que finalmente se manifestou?
Aquela era a sua saída. Na Torre, algumas das Aes Sedai achavam que ela poderia ser uma Sonhadora, uma mulher cujos sonhos previam o futuro. Ela de fato já tivera sonhos que soubera ser significativos, mas aprender a interpretá-los era outra questão. As Sábias diziam que esse conhecimento precisava vir de dentro, e nenhuma das Aes Sedai tinha sido de maior utilidade. Rand sentado em uma cadeira, e de alguma forma ela sabia que a dona da cadeira sentiria uma raiva assassina por vê-la ocupada. Que a dona era uma mulher era o máximo que conseguira compreender daquilo, e mais nada. Algumas vezes, os sonhos eram complexos. Perrin relaxando com Faile no colo, beijando-a enquanto ela brincava com a barba que ele deixara crescer no sonho. Por trás deles, dois estandartes tremulando, uma cabeça de lobo vermelha e uma águia carmesim. Um homem com um reluzente casaco amarelo estava de pé junto ao ombro de Perrin, uma espada presa às costas. Por alguma razão, ela sabia que se tratava de um Latoeiro, embora nenhum Latoeiro tocasse em espadas. E cada detalhe de tudo, exceto a barba, parecia importante. Os estandartes, Faile beijando Perrin, e até o Latoeiro. Cada vez que ele se aproximava de Perrin, era como se o frio da destruição perpassasse tudo. Mais um sonho. Mat jogando dados com sangue escorrendo pelo rosto, a aba larga do chapéu tão puxada para baixo que ela não conseguia ver a ferida, enquanto Thom Merrilin colocava a mão em uma fogueira para retirar a pedrinha azul que agora balançava na testa de Moiraine. Ou um sonho de uma tempestade, grandes nuvens escuras revolvendo sem nenhum vento ou chuva enquanto relâmpagos impressionantes, todos idênticos, rasgavam a terra. Ela até conseguia ter os tais sonhos, mas, como Sonhadora, até então era um fracasso.
— Eu vi um mandado de prisão para você, Moiraine, assinado por Elaida como Amyrlin. E não foi um sonho comum. — Tudo verdade. Só não toda a verdade. De repente, ficou contente por Nynaeve não estar ali. Se estivesse, eu é que estaria olhando para uma xícara.
— Há de ser o que a Roda tecer. Talvez não importe tanto caso Rand leve os Aiel além da Muralha do Dragão. Duvido que Elaida tenha continuado a se aproximar de governantes, ainda que soubesse que era o que Siuan vinha fazendo.
— Isso é tudo? Pensei que Siuan tivesse sido sua amiga um dia, Moiraine. Você é incapaz de derramar uma lágrima por ela?
A Aes Sedai a encarou, e aquele olhar tranquilo e sereno disse à garota quanto ainda faltava para que Egwene pudesse se referir a ela daquela maneira. Sentada, Egwene era quase uma cabeça mais alta, e, além disso, era mais forte com o Poder, mas ser uma Aes Sedai envolvia mais do que força.
— Não tenho tempo para lágrimas, Egwene. A Muralha do Dragão está a poucos dias de distância, e o Alguenya… Siuan e eu já fomos amigas. Daqui a alguns meses, vai completar vinte e um anos que iniciamos nossa busca pelo Dragão Renascido. Só nós duas, recém-elevadas a Aes Sedai. Sierin Vayu foi elevada a Amyrlin pouco depois, uma Cinza com mais do que um quê de Vermelha. Se ela tivesse descoberto nossas intenções, teríamos passado o resto da vida cumprindo penitência, e com irmãs Vermelhas nos vigiando até enquanto dormíamos. Há um ditado em Cairhien, apesar de eu já tê-lo escutado em lugares tão distantes quanto Tarabon e Saldaea: “Pegue o que quiser e pague por isso.” Siuan e eu seguimos pelo caminho que escolhemos, e nós sabíamos que, algum dia, teríamos que pagar por isso.
— Não entendo como você consegue ficar tão calma. Siuan pode estar morta, ou até ter sido estancada. Ou Elaida vai se opor totalmente a Rand ou vai tentar prendê-lo em algum lugar até Tarmon Gai’don. Você sabe que ela nunca deixaria um homem capaz de canalizar à solta. Pelo menos nem todas estão apoiando Elaida. Uma parte da Ajah Azul está reunida em algum lugar, mas ainda não sei onde, e acho que outras mais também deixaram a Torre. Nynaeve disse que recebeu uma mensagem de um dos espiões das Amarelas sobre todas as irmãs serem bem-vindas para retornar à Torre. Se tanto as Azuis quanto as Amarelas se foram, outras devem ter seguido. E se elas se opuserem a Elaida, pode ser que apoiem Rand.
Moiraine suspirou, um som suave.
— Você espera que eu esteja feliz pela Torre Branca ter se dividido? Eu sou uma Aes Sedai, Egwene. Dei minha vida à Torre muito antes de chegar a suspeitar que o Dragão iria renascer durante meu tempo. Faz três mil anos que a Torre tem sido um bastião contra a Sombra. Ela tem orientado governantes a tomar decisões sábias, evitou guerras antes que elas estourassem e interrompeu outras que já haviam começado. É graças à Torre que a humanidade sequer se lembra de que o Tenebroso aguarda para fugir e que a Última Batalha é um futuro certo. À Torre, inteira e unida. Quase desejo que todas as irmãs tivessem jurado fidelidade a Elaida, não importa o que tenha acontecido com Siuan.
— E Rand? — Egwene manteve a voz igualmente inabalável, igualmente suave. As chamas estavam começando a dar ao ar um pouco de calor, mas Moiraine acabara de acrescentar sua própria frieza. — O Dragão Renascido. Você mesma disse que ele não pode se preparar para Tarmon Gai’don a menos que lhe seja garantida a liberdade, tanto para aprender quanto para afetar o mundo. A Torre unida poderia fazê-lo prisioneiro, mesmo apesar de todos os Aiel do Deserto.
Moiraine abriu um sorrisinho.
— Aprenda: um juízo frio é sempre melhor do que palavras esquentadas. Mas você se esquece de que apenas treze irmãs unidas são capazes de blindar qualquer homem de saidin, e mesmo que não conheçam o truque de amarrar fluxos, precisa de menos ainda para manter essa blindagem.
— Eu sei que você não vai desistir, Moiraine. O que pretende fazer?
— Pretendo lidar com as coisas conforme acontecerem, enquanto eu puder. Ao menos Rand vai ser… mais fácil de conviver… agora que não preciso tentar afastá-lo do que ele quer. Suponho que eu deveria estar feliz por ele não me obrigar a servir seu vinho. Na maioria das vezes, Rand me ouve, mesmo que raramente dê alguma pista de sua opinião sobre o que eu falo.
— Vou deixar que você conte a ele sobre Siuan e a Torre. — Isso evitaria perguntas esquisitas. Com Rand agindo de forma tão prepotente, talvez quisesse saber mais sobre o Talento dela de Sonhar do que Egwene seria capaz de inventar. — E tem mais. Nynaeve viu Abandonados em Tel’aran’rhiod. Ela mencionou todos os que ainda estão vivos, exceto Asmodean e Moghedien, inclusive Lanfear. Acha que eles estão tramando alguma coisa, possivelmente juntos.
— Lanfear — disse Moiraine após alguns instantes.
As duas sabiam que Lanfear havia visitado Rand em Tear, e talvez em outras ocasiões que ele não mencionara. Ninguém além dos próprios Abandonados tinha muito conhecimento sobre eles — apenas fragmentos de fragmentos permaneciam na Torre —, mas sabia-se que Lanfear amara Lews Therin Telamon. Elas duas, e Rand, sabiam que ainda amava.
— Com sorte — prosseguiu a Aes Sedai —, não teremos que nos preocupar com Lanfear. Os outros que Nynaeve viu são outra questão. Você e eu devemos vigiar o mais atentamente que pudermos. Eu gostaria que mais Sábias fossem capazes de canalizar. — Ela deu uma risadinha. — Mas, se for para ficar desejando, poderia incluir que todas fossem treinadas pela Torre, ou que eu pudesse viver para sempre. Elas podem ser fortes em alguns aspectos, mas infelizmente carecem de muita coisa em outros.
— Ficar de olho é bom, mas o que mais? Se seis Abandonados investirem juntos contra ele, Rand vai precisar de toda e qualquer ajuda que pudermos dar.
Moiraine se inclinou para tocar seu braço, uma expressão afetuosa no rosto.
— Não podemos segurar a mão dele para sempre, Egwene. Ele já aprendeu a andar. Está aprendendo a correr. Só nos resta torcer para que aprenda antes de seus inimigos o pegarem. E, claro, continuar a aconselhá-lo. Orientá-lo sempre que pudermos. — Endireitando-se, Moiraine se alongou e conteve um pequeno bocejo com a mão. — Está tarde, Egwene. E acho que Rand vai pedir para levantarmos acampamento daqui a bem poucas horas, mesmo que ele não consiga dormir nada. Eu, no entanto, gostaria de descansar o máximo possível antes de encarar a sela.
Egwene se preparou para ir embora, mas, antes, tinha uma pergunta:
— Moiraine, por que você começou a fazer tudo o que Rand lhe diz? Nem Nynaeve acha isso certo.
— Não acha, é? — murmurou Moiraine. — Ela ainda vai ser uma Aes Sedai, querendo ou não. Por quê? Porque me lembrei de como se controla saidar.
Após um momento, Egwene assentiu. Para controlar saidar, primeiro era preciso se render a ele.
Foi só quando já estava tremendo no caminho de volta para a própria tenda que Egwene se deu conta de que Moiraine conversara com ela o tempo inteiro como uma igual. Talvez estivesse mais perto do que pensava de estar pronta para escolher sua Ajah.