46 Outras batalhas, outras armas

Franzindo a testa para as costas de Asmodean e se perguntando até onde confiava no sujeito, Rand levou um susto quando Aviendha arremessou seu copo, espirrando vinho nos tapetes. Os Aiel não desperdiçavam nada que pudesse ser bebido, não apenas água.

Ao encarar o ponto molhado, ela pareceu tão surpresa quanto ele, mas apenas por um momento. No instante seguinte, já plantara as mãos na cintura, ainda sentada, e cravara os olhos nele.

— Então o Car’a’carn vai entrar na cidade, sendo que mal consegue se sentar. Eu disse que o Car’a’carn deve ser mais que um homem, mas não sabia que agora ele era mais do que um mortal.

— Onde estão minhas roupas, Aviendha?

— Você é de carne e osso!

— Minhas roupas?

— Lembre-se do seu toh, Rand al’Thor. Se eu consigo me lembrar do ji’e’toh, você também consegue. — Aquilo lhe soou uma comparação estranha, já que seria mais fácil o sol nascer à meia-noite do que Aviendha se esquecer do ji’e’toh mesmo que por um segundo.

— Se você continuar com isso — disse ele com um sorriso —, vou começar a achar que se importa comigo.

Foi uma brincadeira — só havia duas maneiras de lidar com a mulher: brincar ou simplesmente ignorá-la, pois discutir era fatal —, e bem leve, considerando que já tinham passado uma noite inteira um nos braços do outro, mas os olhos de Aviendha se arregalaram, ultrajados, e ela agarrou o bracelete de marfim como se fosse puxá-lo e atirá-lo em Rand.

— O Car’a’carn está tão acima dos outros homens que não precisa de roupas — rebateu ela. — Se ele quiser ir, deixe que vá nu! Devo chamar Sorilea e Bair? Ou quem sabe Enaila, Somara e Lamelle?

Rand se enrijeceu. De todas as Donzelas que o tratavam como um filho de dez anos de idade, ela citara as três piores. Lamelle até lhe trouxera sopa — a mulher não sabia cozinhar nada, mas insistia em lhe preparar sopas!

— Chame quem você quiser — disse ele com voz firme e neutra —, mas eu sou o Car’a’carn e eu vou até a cidade.

Com sorte, conseguiria encontrar suas roupas antes que ela voltasse. Somara era quase da altura de Rand e, naquele momento, provavelmente mais forte. O Poder Único não contaria para nada. Não teria conseguido tocar saidin nem se Sammael aparecesse na sua frente, muito menos agarrar-se a ele.

Por um longo tempo, Aviendha sustentou seu olhar, e então, abruptamente, pegou o copo entalhado com leopardos e tornou a enchê-lo de um jarro de prata.

— Se você encontrar suas roupas e se vestir sem cair — retrucou, calma —, então pode ir. Mas vou acompanhá-lo e, se eu achar que você está fraco demais para continuar, vai voltar para cá nem que Somara tenha que carregá-lo no colo.

Rand observou Aviendha se deitar, apoiada apenas no cotovelo, arrumar as saias com cuidado e começar a bebericar o vinho. Se ele voltasse a falar em casamento, não havia dúvida de que ela tornaria a lhe dizer poucas e boas, mas, de certa maneira, Aviendha se comportava como se fossem casados. Nas piores partes, pelo menos. Nas partes que eram a mesmíssima coisa que Enaila ou Lamelle faziam.

Resmungando sozinho, ele se enrolou no cobertor, passou se arrastando por ela e pela fogueira e foi apanhar as botas. Meias de lã limpas estavam dobradas dentro delas, mas nada além disso. Ele podia convocar os gai’shain. E fazer a fofoca se espalhar por todo o acampamento. Sem falar na possibilidade de que as Donzelas acabassem se envolvendo na questão. Então, a pergunta seria se ele era o Car’a’carn, que deveria ser obedecido, ou se era apenas Rand al’Thor, um homem totalmente diferente aos olhos delas. Um tapete enrolado nos fundos da tenda chamou sua atenção. Tapetes estavam sempre abertos. A espada de Rand estava lá dentro, o cinturão com a fivela do Dragão enrolado em torno da bainha.

Cantarolando baixinho, os olhos praticamente cerrados, Aviendha parecia semiadormecida enquanto o observava procurar.

— Você não precisa mais… daquilo. — Ela pôs tanto desgosto na palavra que ninguém teria acreditado que fora ela quem lhe dera a espada.

— Como assim?

Só havia uns poucos bauzinhos na tenda, entalhados com madrepérola, trabalhados em latão, ou, no caso de um deles, folheado a ouro. Os Aiel preferiam colocar seus objetos em trouxas. Nenhum guardava as roupas de Rand. O baú revestido de ouro, cheio de pássaros e animais nada familiares, abrigava sacos de couro bem amarrados, e exalou um cheiro de especiarias quando Rand levantou a tampa.

— Couladin está morto, Rand al’Thor.

Sobressaltado, ele parou e a encarou.

— Do que você está falando? — Será que Lan contara para ela? Ninguém mais sabia. Mas por quê?

— Ninguém me contou, se é isso que você está pensando. Eu já conheço você, Rand al’Thor. Todo dia aprendo mais a seu respeito.

— Eu não estava pensando nada disso — rosnou ele. — Não tem nada para ninguém contar.

Irritado, ele apanhou a espada embainhada e a carregou desajeitadamente debaixo do braço enquanto procurava. Aviendha continuou bebericando o vinho. Rand achou que ela poderia estar escondendo um sorriso.

Que ótimo. Os Grão-lordes de Tear suavam quando Rand al’Thor olhava para eles, e os cairhienos talvez lhe oferecessem seu trono. O maior exército Aiel que o mundo já conhecera havia cruzado a Muralha do Dragão sob as ordens do Car’a’carn, o chefe dos chefes. Nações tremiam com a mera menção ao Dragão Renascido. Nações! E, se não encontrasse suas roupas, teria que ficar quieto esperando que várias mulheres que pensavam saber mais do que ele sobre tudo lhe dessem permissão para sair.

Finalmente encontrou as peças quando notou o punho bordado em ouro de uma manga vermelha escapando por baixo do corpo de Aviendha. Ela estivera sentada nas roupas o tempo todo. A mulher grunhiu, mal-humorada, quando ele pediu para ela se afastar, mas obedeceu. Finalmente.

Como de costume, ela o observou se barbear e se vestir, canalizando para esquentar a água para Rand, sem comentar nada — e sem ele pedir —, depois de o rapaz ter se cortado e reclamado da água fria pela terceira vez. A verdade era que dessa vez estava irritado com a chance de Aviendha ver como ele estava instável, mais do que qualquer outra coisa. Dá para se acostumar a qualquer coisa, caso a situação perdure por tempo suficiente, pensou, irônico.

Aviendha interpretou mal o balançar de cabeça de Rand.

— Elayne não se importa se eu ficar olhando, Rand al’Thor.

Ele fez uma pausa no ato de amarrar a camisa, e a encarou.

— Você acredita mesmo nisso?

— Claro. Você pertence a ela, mas Elayne não é dona da sua imagem.

Rindo em silêncio, ele voltou a amarrar. Foi bom se lembrar de que o mistério recém-descoberto de Aviendha escondia certa ignorância, apesar de tudo. Rand não pôde evitar um sorriso convencido enquanto terminava de se vestir, afivelava a espada e apanhava a ponta borlada da lâmina Seanchan. O último objeto pôs um quê sombrio em seu sorriso. Sua intenção era de que a lâmina fosse um lembrete de que os Seanchan ainda estavam à solta, mas servia para recordá-lo de tudo que ele ainda precisava encarar: cairhienos e tairenos, Sammael e os outros Abandonados, os Shaido e as nações que ainda nem o conheciam, nações que teriam que segui-lo, e antes de Tarmon Gai’don. Lidar com Aviendha era de fato bastante simples, se comparado a tudo aquilo.

Donzelas se puseram de pé aos saltos quando ele saiu da tenda depressa, para disfarçar as pernas vacilantes. Rand não teve certeza se foi bem-sucedido. Aviendha se manteve a seu lado como se não apenas pretendesse segurá-lo, caso ele caísse, mas como se tivesse certeza de que era o que aconteceria. Não ajudou em nada o humor de Rand quando Sulin, com sua touca de bandagens, olhou de modo inquisitivo para ela — não para ele, mas para ela! — e aguardou Aviendha assentir para ordenar que as Donzelas se aprontassem para partir.

Asmodean subiu a colina no dorso de sua mula, trazendo Jeade’en pelas rédeas. De algum modo, o homem encontrara tempo para vestir roupas limpas, peças de seda verde-escura. Com rendas brancas aos borbotões, claro. A harpa dourada pendia às suas costas, mas ele desistira de usar a capa de menestrel e não carregava mais o estandarte carmesim com o antigo símbolo das Aes Sedai. A função recaíra para um refugiado cairhieno chamado Pevin, um sujeito sem expressão que trajava um casaco remendado de lã cinza-escura e montava uma mula marrom que parecia velha demais até para puxar carroças. Uma longa cicatriz, ainda vermelha, lhe percorria toda a lateral do rosto estreito, desde a mandíbula até o cabelo, que já rareava.

Pevin perdera a esposa e a irmã para a fome, e o irmão e um filho para a guerra civil. Não tinha ideia de que homens e de quais Casas os haviam assassinado, ou quem eles apoiavam para o Trono do Sol. A fuga para Andor lhe custara um segundo filho pelas mãos de soldados andorianos e um segundo irmão nas mãos de bandidos, e o retorno custara o último filho, morto por uma lança Shaido, além da filha, raptada enquanto ele era deixado para morrer. O homem raramente falava, mas, pelo que Rand entendera, ele agora só acreditava em três coisas: o Dragão Renascera, a Última Batalha estava próxima, e, se ficasse por perto de Rand al’Thor, vingaria sua família antes que o mundo fosse destruído. O mundo acabaria, com certeza, mas não importava, nada importava, contanto que ele obtivesse vingança. Da sela, ele fez uma reverência silenciosa para Rand assim que chegou ao cume. Seu rosto era absolutamente vazio, mas o homem mantinha o estandarte ereto e firme.

Rand montou em Jeade’en, depois puxou Aviendha para a garupa sem deixá-la usar o estribo, só para mostrar que conseguia, e então pôs o sarapintado em movimento antes que ela estivesse aprumada. Aviendha abraçou sua cintura e reclamou não muito baixo, permitindo que ele capturasse mais alguns fragmentos de sua opinião sobre Rand al’Thor e também sobre o Car’a’carn. Mas ela não fez menção de se soltar, pelo que ele ficou agradecido. Não só era agradável tê-la apertada contra suas costas, como o apoio era bem-vindo. No meio do gesto de erguer Aviendha para a sela, ficara na dúvida se ela estava subindo ou se ele estava descendo. Rand torcia para que ela não tivesse notado. Torcia para que não fosse esse o motivo para ela estar abraçando-o com tanta força.

O estandarte carmesim com o grande disco branco e preto ondulava atrás de Pevin à medida que eles ziguezagueavam colina abaixo e seguiam pelos vales rasos. Como de hábito, os Aiel deram pouca atenção ao grupo conforme eles passaram, embora o estandarte marcasse sua presença com tanta veemência quanto a escolta de centenas de Far Dareis Mai que não tinham problemas para acompanhar o ritmo de Jeade’en e das mulas. Os Aiel continuaram cuidando das próprias vidas, espalhados entre as tendas que recobriam as encostas, no máximo dando uma olhadela ao ouvirem as patas dos cavalos.

Tinha sido espantoso ouvir que quase vinte mil pessoas haviam sido feitas prisioneiras na batalha — até sair de Dois Rios, nunca realmente acreditara que podia haver tanta gente em um mesmo lugar —, mas vê-las lhe chocou duas vezes mais. Em grupos de quarenta ou cinquenta, elas pontilhavam as encostas das colinas como repolhos, homens e mulheres igualmente sentados nus sob o sol, cada conjunto sob a vigilância de um gai’shain, quando muito. Era certo que ninguém mais lhes dava muita atenção, apesar de uma figura trajando o cadin’sor de vez em quando se aproximar de um dos grupos e ordenar que um homem ou uma mulher fosse realizar alguma tarefa. A pessoa chamada sempre partia às pressas, sem vigilância, e Rand viu vários retornarem e se esgueirarem de volta a seus lugares. Quanto aos demais, ficavam sentados, quietos, parecendo quase entediados, como se não tivessem motivos nem desejo de estar em outro local.

Talvez todos fossem vestir robes brancos com a mesma calma. Porém, Rand se lembrava de como aquelas mesmas pessoas já tinham violado as próprias leis e costumes com tanta facilidade. Couladin podia até ter iniciado ou ordenado a violação, mas todos o haviam seguido e obedecido.

Com o cenho franzido para os prisioneiros — vinte mil, e outros mais por vir, mas que ele certamente nunca confiaria em transformar em gai’shain —, levou certo tempo para Rand notar algo estranho entre os outros Aiel. Donzelas e homens Aiel que portavam lanças nunca trajavam nada na cabeça além da shoufa, e sempre de alguma cor que sumisse em meio às rochas e sombras, mas agora via homens usando uma faixa vermelha estreita. Talvez um em cada quatro ou cinco tinha uma tira de pano amarrada em torno da têmpora, com um disco bordado ou pintado acima das sobrancelhas, duas lágrimas unidas, uma preta e outra branca. O mais estranho de tudo, porém, talvez fosse que os gai’shain também a usavam. A maior parte usava os capuzes erguidos, mas todos os que estavam com a cabeça descoberta usavam uma faixa. E os algai’d’siswai com seus cadin’sor viam aquilo e não faziam nada, estivessem ou não usando a faixa. Gai’shain jamais deveriam usar nada que fosse usado por aqueles que podiam tocar em armas. Jamais.

— Não sei — respondeu Aviendha de maneira rude às costas de Rand quando ele perguntou o que significava aquilo. Ele tentou se sentar mais ereto, já que ela parecia mesmo estar lhe segurando com mais força que o necessário. Após um momento, ela prosseguiu, mas falando tão baixo que ele precisou escutar com toda a atenção para poder compreender. — Bair ameaçou me bater se eu tocasse de novo no assunto, e Sorilea chegou mesmo a me bater nas costas com uma vara, mas acho que são aqueles que afirmam que nós somos siswai’aman.

Rand abriu a boca para perguntar o que era aquilo — só conhecia algumas poucas palavras na Língua Antiga —, quando a tradução surgiu sozinha em sua mente. Siswai’aman. Literalmente, a lança do Dragão.

— Às vezes — gracejou Asmodean —, é difícil enxergar a diferença entre si mesmo e os inimigos. Eles querem ser donos do mundo, mas você já é dono de um povo.

Rand virou a cabeça e o encarou até seu ar bem-humorado desaparecer e, dando de ombros em constrangimento, Asmodean deixou que sua mula ficasse para trás, ao lado de Pevin e do estandarte. O problema era que aquele nome de fato sugeria — mais que sugeria — propriedade. Essa informação também vinha das memórias de Lews Therin. Não parecia possível ser dono de pessoas, mas, caso fosse possível, Rand não queria. Tudo o que eu quero é usá-las, pensou, irônico.

— Vejo que você não acredita nisso — afirmou ele, por cima do ombro. Nenhuma das Donzelas vestira aquela peça.

Aviendha hesitou antes de responder.

— Não sei no que acreditar — falou tão baixo quanto antes, ainda que o tom demonstrasse raiva e incerteza. — Existem muitas crenças, e as Sábias costumam ficar em silêncio, como se não soubessem a verdade. Há quem diga que, ao seguir você, expiamos os pecados de nossos ancestrais ao… terem falhado com as Aes Sedai.

A hesitação na voz dela o alarmou. Rand nunca havia considerado que Aviendha se preocupasse tanto quanto os outros Aiel a respeito do que ele revelara sobre o passado de seu povo. “Envergonhada” talvez se encaixasse melhor do que “preocupada”, já que a vergonha era uma parte importante do ji’e’toh. Eles tinham vergonha do que haviam sido — seguidores do Caminho da Folha — e, ao mesmo tempo, tinham vergonha de ter abandonado a promessa de segui-lo.

— A esta altura, muitos já ouviram alguma versão de parte da Profecia de Rhuidean — prosseguiu Aviendha, com a voz mais controlada, como se ela mesma tivesse ouvido algo sobre a profecia antes de começar a treinar para se tornar uma Sábia —, mas ela foi deturpada. Eles sabem que você vai nos destruir… — O controle fraquejou quando ela respirou profundamente. — Mas muitos acreditam que você vai matar todos nós em infinitas danças da lança, um sacrifício para compensar os pecados. Outros creem que a própria Desolação já é uma provação que vai deixar só os fortes para a Última Batalha. Já ouvi até dizerem que os Aiel agora são um sonho seu e que, quando você acordar desta vida, já não existiremos.

Crenças sinistras, aquelas. Era uma pena Rand ter revelado um passado que eles viam como desonra. Era incrível que todos já não o tivessem abandonado. Ou enlouquecido.

— No que as Sábias acreditam? — perguntou Rand, tão baixo quanto o tom dela.

— Que o que tiver que ser, será. Nós vamos salvar o que puder ser salvo, Rand al’Thor. Não esperamos fazer mais que isso.

Nós. Ela se incluiu entre as Sábias, assim como Egwene e Elayne se incluíam entre as Aes Sedai.

— Bem — disse ele, calmo —, imagino que pelo menos Sorilea também acredite que eu mereço uma bofetada no ouvido. É provável que Bair concorde. E com certeza Melaine.

— Entre outras coisas — murmurou Aviendha. Para sua decepção, ela se afastou, apesar de ainda se agarrar ao seu casaco. — Elas acreditam em muita coisa que eu queria que não acreditassem.

Rand sorriu a contragosto. Então ela não achava que ele merecia uma bofetada. Uma mudança agradável em comparação a quando ele acordara.

Os carroções de Hadnan Kadere repousavam a cerca de uma milha da tenda de Rand, dispostos em círculo em um amplo vale entre duas colinas, de onde eram vigiados pelos Cães de Pedra. Com um casaco cor de creme lhe apertando o corpo massudo, o Amigo das Trevas de nariz adunco ergueu os olhos e enxugou o rosto com o lenço que sempre trazia consigo quando Rand passou cavalgando com o estandarte e a escolta galopante. Moiraine também estava lá, examinando o carroção onde o ter’angreal em forma de batente de porta estava amarrado sob uma tela, atrás do assento do condutor. Sequer olhou para os lados até Kadere falar com ela. Pelos gestos, ele parecia estar sugerindo que Moiraine gostaria de acompanhar Rand. Na verdade, parecia ansioso para que ela partisse, o que não era surpresa. Kadere devia estar orgulhoso de esconder por tanto tempo o fato de ser um Amigo das Trevas, mas, quanto mais ficava na companhia de uma Aes Sedai, mais corria o risco de ser descoberto.

De fato, Rand ficou surpreso de o homem ainda estar ali. Pelo menos metade dos condutores que haviam entrado no Deserto com ele já tinha dado o fora desde que cruzaram a Muralha do Dragão, substituídos por refugiados cairhienos escolhidos pelo próprio Rand, para garantir que não eram da estirpe de Kadere. Todas as manhãs, esperava descobrir que o sujeito tinha ido embora, ainda mais desde a fuga de Isendre. As Donzelas haviam quase destruído os carroções procurando por ela enquanto Kadere deixava três lenços ensopados de suor. Rand não lamentaria caso o homem desse um jeito de escapar durante a noite. Os guardas Aiel tinham ordens para deixá-lo ir, desde que não tentasse levar os preciosos carroções de Moiraine. Ficava mais óbvio a cada dia que suas cargas eram preciosas para a Aes Sedai, e Rand não permitiria que ela as perdesse.

Ele espiou por cima do ombro, mas Asmodean estava com o olhar fixo à frente, ignorando completamente os carroções. Afirmava não ter tido nenhum contato com Kadere desde que Rand o capturara, e o rapaz acreditava nisso. Sabia que o mercador nunca abandonava seus carroções e nunca saía do campo de visão dos guardas Aiel, exceto quando dentro do próprio carroção.

Em frente aos carroções Rand puxou as rédeas, sem pensar, e reduziu a velocidade. Moiraine com certeza iria querer acompanhá-lo até Cairhien. Ela podia já ter entupido sua cabeça, mas sempre parecia querer compartilhar mais alguma informação, e pelo menos desta vez a presença e o conselho dela poderiam ser úteis. Moiraine, porém, só fez olhar para ele por um longo instante, e então tornou a se virar para o carroção.

Com o cenho franzido, Rand enfiou os calcanhares no sarapintado. Era bom lembrar que ela tinha outras missões a cumprir além das que ele sabia. Rand se tornara confiante demais. Era melhor ter com ela a mesma cautela que tinha com Asmodean.

Não confie em ninguém, pensou, sombrio. Por um momento, não soube se o pensamento era dele ou de Lews Therin, mas, no fim das contas, decidiu que não importava. Todos tinham os próprios objetivos, os próprios desejos. Era melhor não confiar cegamente em ninguém além de si mesmo. No entanto, se perguntava até que ponto podia confiar em si com outro homem perambulando pelo fundo de seus pensamentos.

O céu em torno de Cairhien estava tão tomado de abutres que se tornara uma espiral de asas negras. No solo, as aves vagavam em meio a nuvens de moscas e chiavam para os corvos lustrosos que tentavam usurpar seus direitos sobre os mortos. Por onde os Aiel passavam recuperando os corpos de seus mortos nas colinas descampadas, os pássaros se moviam em voos pesados, guinchando protestos, para então tornar a pousar assim que os humanos vivos se afastavam algumas passadas. Nem abutres, corvos e moscas juntos conseguiriam sombrear a luz do sol, mas era assim que parecia.

Com o estômago revirando, tentando não olhar para a cena, Rand esporeou para acelerar Jeade’en até Aviendha tornar a se agarrar às suas costas e as Donzelas voltarem a correr. Ninguém reclamou, e ele não achou que fosse só porque os Aiel tinham a capacidade física para correr por horas. Até Asmodean estava pálido em torno dos olhos. O rosto de Pevin não se alterou, apesar de o estandarte reluzente açoitando o ar acima dele parecer escarnecer de um lugar como aquele.

O que havia à frente era pouco melhor. Rand se lembrava de Portão Frontal como uma colmeia estridente, um labirinto enroscado de ruas cheias de barulho e cor. Agora era uma faixa espessa e imóvel de brasas circundando as cinzentas muralhas quadradas de Cairhien por três lados. Pedaços calcinados de madeira caíam desordenados por cima de fundações de pedra e, aqui e ali, havia uma chaminé enegrecida de fuligem ainda de pé, às vezes pendendo precariamente. Em pontos distintos, sabia-se lá como, jazia uma cadeira intacta na rua de terra, uma trouxa apressada largada por alguém em fuga, e até uma boneca de pano, que davam ainda mais ênfase à desolação.

Brisas agitavam alguns dos estandartes nas torres da cidade e ao longo das muralhas. Um Dragão vermelho e dourado contra um fundo branco; a Lua Crescente de Tear, branca no vermelho e dourado. A seção intermediária do Portão de Jangai encontrava-se aberta, três arcos altos e quadrados na pedra cinza, guardados por soldados tairenos em elmos com abas. Alguns montavam cavalos, mas a maioria estava a pé, e as listras de cores variadas em suas mangas indicavam que eram empregados de lordes diversos.

Independentemente do que se sabia na cidade sobre a vitória na batalha e os Aiel aliados que vieram em resgate, a aproximação de centenas de Far Dareis Mai criou certo alvoroço. Mãos temerosas procuraram punhos de espada, lanças e escudos compridos. Alguns soldados chegaram a dar meio passo, como se quisessem fechar os portões mesmo enquanto fitavam seu oficial, que, com três plumas brancas no elmo e de pé nos estribos, hesitava e protegia os olhos do sol para examinar o estandarte carmesim. E Rand, mais especificamente.

Em um movimento abrupto, o oficial se sentou e disse algo que fez dois dos tairenos a cavalo voltarem galopando pelos portões adentro. Quase de imediato, ele acenou para os outros homens se afastarem, anunciando:

— Abram caminho para o Lorde Dragão Rand al’Thor! Que a Luz ilumine o Lorde Dragão! Toda a glória para o Dragão Renascido!

Os soldados ainda pareciam incomodados com a presença das Donzelas, mas formaram filas dos dois lados dos portões, fazendo reverências enquanto Rand passava. Aviendha bufou atrás dele, e de novo quando ele gargalhou. Ela não entendeu, e Rand não tinha nenhuma intenção de explicar. O que ele achava engraçado era que, por mais que tairenos, cairhienos ou qualquer outro fizessem de tudo para inflar seu ego, ele sempre podia contar com Aviendha e as Donzelas, pelo menos, para colocá-lo de volta no lugar. E Egwene. E Moiraine. E Elayne e Nynaeve, por sinal, se algum dia voltasse a vê-las. Parando para pensar, aquelas pessoas pareciam ter como missão de vida murchar sua arrogância.

A cidade além dos portões fez sua gargalhada morrer.

Ali, as ruas eram pavimentadas, algumas largas o bastante para uma dúzia de carroções grandes, ou até mais, passarem lado a lado todas retas feito cortes de faca e formando ângulos retos ao se cruzarem. As colinas que, fora das muralhas, ondulavam o terreno, ali eram lavradas, aplanadas e revestidas de pedras. Pareciam tão artificiais quanto os edifícios, com suas linhas retas severas, ou as grandes torres, os topos inacabados cercados por andaimes. As pessoas lotavam as ruas e os becos, os olhos opacos e as bochechas fundas, encolhidas sob alpendres provisórios ou cobertores esfarrapados improvisados como tendas, ou então simplesmente amontoadas a céu aberto, com as roupas escuras segundo a moda de Cairhien ou coloridas, costume de Portão Frontal, além da indumentária grosseira de fazendeiros e aldeões. Até os andaimes estavam ocupados em todos os níveis, até o topo, onde as pessoas pareciam minúsculas por conta da altura. Apenas o meio das ruas permanecia livre enquanto Rand e as Donzelas passavam, e isso só até o povo surgir aos borbotões para cercá-los.

Foram as pessoas que o fizeram parar de rir. Exaustas e esfarrapadas como estavam, amontoadas feito carneiros em um curral demasiado apertado, elas davam vivas. Rand não tinha ideia de como sabiam quem ele era, a menos que os gritos do oficial nos portões tivessem sido ouvidos, mas um bramido irrompia à sua frente conforme circulava pelas ruas, as Donzelas forçando passagem em meio à multidão. O estrondo abafava quaisquer palavras, exceto por um “Lorde Dragão” ocasional quando um número suficiente de pessoas gritava ao mesmo tempo. Mas o sentido daquilo tudo ficava claro nos homens e mulheres levantando crianças para vê-lo passar, nos cachecóis e trapos de roupa acenados de todas as janelas, nas pessoas que, com mãos estendidas, tentavam abrir passagem entre as Donzelas.

Eles não pareciam ter medo dos Aiel, não quando tinham a oportunidade de encostar um dedo nas botas de Rand. E era tanta gente, a pressão de centenas de pessoas empurrando-os adiante, que algumas conseguiam dar um jeito de passar. Na verdade, boa parte delas acabou tocando em Asmodean — que decerto parecia um lorde, cheio de rendas, e talvez as pessoas achassem que o Lorde Dragão devesse ser um homem mais velho que o jovem de casaco vermelho —, mas não fazia diferença. Todos que conseguiam tocar a bota ou o estribo de qualquer deles, até de Pevin, estampavam a alegria no rosto e pronunciavam “Lorde Dragão” em meio ao alarido, mesmo quando as Donzelas forçavam o povo para trás com seus broqueis.

Entre o clamor da ovação e os cavaleiros enviados pelo oficial no portão, não foi surpresa quando Meilan apareceu, uma dúzia a menos de tairenos em seu séquito e cinquenta Defensores da Pedra para lhe abrir caminho, investindo contra as pessoas com os cabos das lanças. De cabelos grisalhos, vigoroso e esguio em seu belo casaco de seda listrada e punhos de cetim verde, o Grão-lorde estava sentado na sela com a naturalidade de quem havia sido colocado em um cavalo e ensinado a comandá-lo quase tão cedo quanto aprendera a andar. Ignorava o suor no rosto, assim como a possibilidade de que sua escolta pudesse pisar em alguém. As duas coisas eram apenas aborrecimentos menores, e o suor, provavelmente, o maior deles.

Edorion, o fidalgote de bochechas rosadas que fora a Eianrod, estava entre os demais, mais magro agora do que antes, de modo que o casaco de listras vermelhas parecia largo. A única outra pessoa que Rand reconheceu foi um sujeito de ombros largos vestido em tons de verde. Reimon gostava de jogar cartas com Mat na Pedra, Rand se recordava. Os demais, em sua maioria, eram homens mais velhos. Nenhum deles demonstrava mais consideração do que Meilan pela multidão que atravessavam, determinados. Não havia um só cairhieno no grupo.

As Donzelas deixaram Meilan passar cavalgando após o meneio de Rand, mas se fecharam atrás dele para excluir o resto, algo que o Grão-lorde, de início, não notou. Quando percebeu, seus olhos escuros arderam de raiva. Sentia raiva com frequência, o tal Meilan, desde a primeira vez que Rand fora a Pedra de Tear.

A balbúrdia começou a diminuir com a chegada do taireno, reduzindo-se a um débil murmúrio quando Meilan, do alto da sela, curvou-se de modo rígido para Rand. Ele olhou de relance para Aviendha antes de decidir ignorá-la, assim como tentava ignorar as Donzelas.

— Que a Luz o ilumine, Milorde Dragão. Seja bem-vindo a Cairhien. Devo me desculpar pelos passantes, mas eu não estava ciente de que pretendia entrar na cidade agora. Se eu soubesse, todos teriam sido afastados. Minha intenção era lhe oferecer uma entrada triunfal, condizente com o Dragão Renascido.

— Eu a tive — afirmou Rand, deixando o outro homem atônito.

— Como diz, Milorde Dragão. — O homem seguiu em frente após um momento, a voz deixando claro que não havia entendido. — Se me acompanhar até o Palácio Real, organizei uma pequena recepção. Pequena de fato, temo eu, já que não fui alertado de sua vinda, mas, em face disso, posso garantir…

— O que você tiver organizado está bom — interrompeu Rand, recebendo como resposta outra reverência e um sorriso tímido e bajulador.

No momento, o sujeito era pura subserviência, e, uma hora depois, estaria falando como se Rand fosse burro demais para ver o que estava bem debaixo de seu nariz. Mas, abaixo de tudo aquilo, ainda havia um desdém e um ódio que o homem pensava que Rand não via, embora reluzissem em seus olhos. Desdém porque Rand não era um lorde. Não de verdade, na visão de Meilan, que devia ser lorde de nascença. E ódio porque Meilan tivera o poder da vida e da morte antes da chegada de Rand, com poucos no seu nível e ninguém acima. Acreditar que as Profecias do Dragão algum dia se realizariam era uma coisa. Vê-las realizadas, com o próprio poder reduzido por conta delas, era outra bem diferente.

Houve um momento de confusão antes de Rand autorizar Sulin a permitir que os outros lordes tairenos trouxessem seus cavalos para junto de Asmodean e do estandarte de Pevin. Meilan teria mandado os Defensores tornarem a abrir caminho, mas Rand ordenou sucintamente que os homens seguissem atrás das Donzelas. Os soldados obedeceram, rostos inalterados sob as abas dos elmos, apesar de o oficial de plumas brancas balançar a cabeça e de o Grão-lorde abrir um sorriso condescendente. Sorriso que sumiu tão logo ficou claro que a multidão abria passagem com tranquilidade à frente das Donzelas. Meilan acreditava que a fama de selvagem dos Aiel fosse o motivo de não precisarem abrir caminho a pauladas, e franziu o cenho quando Rand não lhe respondeu. Mas Rand reparou em uma coisa: agora que estava acompanhado dos tairenos, o povo não dava mais vivas.

Quadrado, escuro e monumental, o Palácio Real de Cairhien ocupava o centro exato da colina mais alta da cidade. Na verdade, entre o palácio com todos os seus andares e os terraços revestidos de pedra, era difícil afirmar até que havia uma colina ali. Altas galerias colunadas e janelas compridas e estreitas, bem acima do solo, não conseguiam atenuar a rigidez, assim como as torres escalonadas e cinzentas posicionadas com precisão dentro de quadrados concêntricos, um mais alto que o outro. A rua se transformava em uma rampa larga e extensa que levava a imensos portões de bronze e a um enorme pátio quadrado, com filas de soldados tairenos de pé feito estátuas, as lanças inclinadas. Havia outros mais nas varandas de pedra acima.

Uma onda de murmúrios percorreu as fileiras quando as Donzelas apareceram, mas foi logo abafada sob os gritos em coro de “Toda a glória para o Dragão Renascido! Toda a glória para o Lorde Dragão e para Tear! Toda a glória para o Lorde Dragão e para o Grão-lorde Meilan!”. Pela expressão de Meilan, parecia até que tudo aquilo era espontâneo.

Serviçais com roupas escuras, os primeiros cairhienos que Rand vira no palácio, aproximaram-se apressados com tigelas trabalhadas em ouro e panos de linho branco, assim que ele se moveu para descer da sela. Outros vieram para lhe tomar as rédeas. Ele usou a desculpa de lavar o rosto e as mãos com a água fresca para deixar que Aviendha descesse sozinha. Tentar ajudá-la poderia ter acabado com os dois estatelados nos paralelepípedos.

De pronto, Sulin apontou vinte Donzelas, além de si mesma, para acompanhá-lo para dentro do palácio. Por um lado, Rand ficou grato pela mulher não querer manter todas as lanças em torno dele. Por outro, gostaria que Enaila, Lamelle e Somara não estivessem entre as vinte. Os olhares avaliadores que elas lhe lançavam — em especial Lamelle, uma ruiva esguia e de queixo forte, quase vinte anos mais velha que ele — fizeram-no ranger os dentes enquanto tentava abrir um sorriso confiante. De alguma forma, Aviendha devia ter falado com elas, e com Sulin, por suas costas. Talvez eu não possa fazer nada em relação às Donzelas, pensou, emburrado, ao arremessar uma toalha de linho de volta para um dos serviçais, mas que me queime se vai haver um único Aiel que não vai entender que eu sou o Car’a’carn !

Os demais Grão-lordes cumprimentaram-no aos pés dos amplos degraus cinzentos que subiam do pátio, todos com casacos de seda coloridos com listras de cetim e botas com detalhes em prata. Estava claro que nenhum deles soubera que Meilan fora se encontrar com Rand até que já tivesse sido feito. Torean, com sua cara de batata e lânguido demais para um homem tão grande, fungava ansiosamente em um lenço perfumado. Gueyam, cuja barba oleada fazia a cabeça parecer ainda mais calva, apertava os punhos do tamanho de presuntos e encarava Meilan mesmo enquanto fazia uma reverência para Rand. O nariz pontudo de Simaan parecia tremer com tamanho ultraje. Maraconn, dono de olhos azuis raros em Tear, apertava os lábios finos até eles praticamente desaparecerem. E, mesmo que Hearne exibisse um grande sorriso, estava puxando distraidamente o lóbulo da orelha, como fazia quando estava furioso. Apenas Aracome, esbelto feito uma lâmina, não externava emoção alguma — mas ele sempre mantinha a raiva bem guardada até estar pronto para deixá-la explodir.

Era uma oportunidade boa demais para deixar passar. Agradecendo Moiraine em silêncio pelas lições — era mais fácil fazer um tolo tropeçar do que derrubá-lo, dizia ela —, Rand apertou simpaticamente a mão gorducha de Torean e deu um tapinha no ombro largo de Gueyam; retribuiu o sorriso de Hearne com outro, íntimo e afetuoso, e fez um meneio silencioso para Aracome, lançando-lhe um olhar que pareceu significativo. Simaan e Maraconn ele praticamente ignorou após dirigir a cada um deles um olhar tão monótono e frio quanto um lago no auge do inverno.

Era o suficiente por enquanto, e Rand observou os olhos dos homens se agitarem e os rostos se retesarem enquanto eles divagavam. Todos haviam jogado o Daes Dae’mar, o Jogo das Casas, a vida inteira, e estar entre cairhienos, que conseguiam interpretar muita coisa de uma tosse ou um arquear de sobrancelha, só havia acentuado suas sensibilidades. Todos aqueles homens sabiam que Rand não tinha motivo para ser amigável com eles, e todos se perguntariam se a saudação recebida era apenas para mascarar a cumplicidade de Rand com algum outro deles. Simaan e Maraconn pareciam os mais preocupados, ainda que os outros encarassem os dois como os mais suspeitos de todos. Talvez a frieza de Rand tivesse sido o verdadeiro disfarce. Ou talvez aquilo fosse exatamente o que Rand queria que pensassem.

Rand achava que Moiraine teria ficado orgulhosa dele, assim como Thom Merrilin. Mesmo que nenhum daqueles sete estivesse tramando ativamente contra ele naquele momento — algo em que nem Mat apostaria —, homens ocupando as posições que eles ocupavam poderiam fazer muito para atrapalhar os planos de Rand de modos discretos, e o fariam, se não por outro motivo, por força do hábito. Ou teriam feito. Agora Rand os desequilibrara. Se tivesse como mantê-los assim, todos ficariam ocupados demais vigiando uns aos outros, e, por sua vez, receosos demais de estarem sendo vigiados, para incomodá-lo. Poderiam até obedecê-lo, para variar, sem encontrar uma centena de motivos para as coisas serem feitas de maneira diferente de como ele queria. Bem, isso talvez já fosse pedir muito.

Sua satisfação desapareceu quando ele viu o sorriso sardônico de Asmodean. Pior foi o olhar inquisidor de Aviendha. Ela estivera em Pedra de Tear, sabia quem eram aqueles homens e por que Rand os mandara até ali. Eu faço o que preciso fazer, pensou, com amargura, desejando que aquilo não soasse como uma desculpa.

— Para dentro — ordenou, mais incisivo do que pretendia, e os sete Grão-lordes saltaram como se, de repente, tivessem lembrado quem e o que ele era.

Os homens quiseram se aglomerar em torno de Rand enquanto ele subia os degraus, mas, exceto por Meilan, para mostrar o caminho, as Donzelas simplesmente formaram um círculo compacto ao redor dele, e os Grão-lordes seguiram na retaguarda, junto com Asmodean e os lordes inferiores. Aviendha estava bem perto… claro, e Sulin ocupou o outro lado, com Somara, Lamelle e Enaila logo atrás. Rand estava ao alcance da mão de todas elas, e lançou um olhar acusador a Aviendha, que arqueou as sobrancelhas de forma tão questionadora que ele quase acreditou que ela não tinha nada a ver com aquilo. Quase.

Os corredores do palácio estavam vazios, exceto pelos serviçais de vestes escuras, que se curvavam até quase encostar o peito nos joelhos ou faziam reverências igualmente acentuadas conforme Rand passava. Mas, quando adentrou o Grande Salão do Sol, descobriu que a nobreza cairhiena não fora completamente excluída do palácio.

— Aí vem o Dragão Renascido — entoou um homem de cabelo branco posicionado um pouco depois das enormes portas douradas e entalhadas com o Sol Nascente. O casaco vermelho bordado com estrelas azuis de seis pontas, um pouco grande nele após os dias em Cairhien, identificavam-no como um serviçal superior da Casa de Meilan. — Todos saúdam o Lorde Dragão Rand al’Thor. Toda a glória para o Lorde Dragão.

Um rugido súbito preencheu a câmara até o teto, com sua abóbada angulada de cinquenta passadas de altura.

— Salve o Lorde Dragão Rand al’Thor! Toda a glória para o Lorde Dragão! Que a Luz ilumine o Lorde Dragão! — O silêncio que se seguiu, em comparação, pareceu duplamente mais intenso.

Entre as monumentais colunas quadradas de mármore com grossas tiras de um azul tão escuro que era quase negro, havia mais tairenos do que Rand esperava, fileiras de Lordes e Ladies da Terra trajando suas melhores roupas; chapéus pontiagudos de veludo e casacos com mangas listradas e bufantes, vestidos coloridos, rufos rendados e boinas apertadas com pérolas ou pequenas gemas bordadas ou costuradas em trabalhos intricados.

Atrás deles estavam os cairhienos, com sua indumentária escura, exceto pelas barras coloridas no peito dos vestidos ou dos casacos compridos. Quanto mais listras nas cores da Casa, maior a graduação de quem as usava, mas mesmo os homens e mulheres com cores do pescoço à cintura ou até mais embaixo ficavam atrás dos tairenos que claramente pertenciam a Casas menores, com seus bordados amarelos, em vez de fios de ouro, e lã, em vez de seda. Muitos dos homens cairhienos haviam raspado e passado pó na parte frontal da cabeça, ao menos todos os mais jovens.

Os tairenos pareciam cheios de expectativa, ainda que desconfortáveis. Os rostos cairhienos poderiam ter sido cinzelados em gelo. Não havia como dizer quem o aplaudira e quem não, mas Rand suspeitava que a maior parte dos gritos viera das fileiras da frente.

— Boa parte destas pessoas desejava lhe servir — murmurou Meilan, enquanto caminhavam pelo piso de ladrilhos azuis com seu belo mosaico dourado do Sol Nascente. Uma onda de reverências e mesuras silenciosas se seguiu.

Rand apenas grunhiu em resposta. Desejavam lhe servir? Ele não precisava de Moiraine para saber que aqueles nobres menores esperavam se tornar maiores com propriedades obtidas em Cairhien. Não restava dúvida de que Meilan e os outros seis já haviam intimado os locais e até prometido quais terras seriam de quem.

Na outra extremidade do Grande Salão, o próprio Trono do Sol repousava centralizado no alto de um largo estrado de mármore azul-marinho. Ali a restrição cairhiena se mantinha, já que se tratava de um trono, afinal. A grande cadeira de braços maciços reluzia com douraduras e seda dourada, mas, de alguma forma, parecia composta apenas por linhas verticais simples, a não ser pelo Sol Nascente com seus raios ondulados que se destacaria acima da cabeça de quem quer que a ocupasse.

E a intenção era que fosse ele, percebeu Rand, bem antes de alcançar os nove degraus que conduziam ao estrado. Aviendha o acompanhou, e Asmodean, por ser seu bardo, também teve permissão para tal, mas Sulin logo dispôs as outras Donzelas em torno do estrado, as lanças casualmente empunhadas bloqueando Meilan, bem como o restante dos Grão-lordes. A frustração tingia os rostos tairenos. O Salão estava tão quieto que Rand ouvia a própria respiração.

— Isto pertence a outra pessoa — afirmou, por fim. — Além do quê, passei tempo demais na sela para ver com bons olhos um assento tão duro. Tragam uma cadeira confortável.

Houve um momento de silêncio e estupor antes que um murmúrio percorresse o Salão. O olhar de Meilan se tornou especulativo, mas logo foi suprimido, e Rand quase gargalhou. Era muito provável que Asmodean estivesse certo em relação ao homem. O próprio Asmodean estava encarando Rand com um ar de suspeita que mal conseguia esconder.

Passaram-se alguns minutos antes que o sujeito com o casaco com estrelas bordadas chegasse correndo, ofegante, seguido por dois cairhienos com roupas escuras que traziam consigo uma cadeira de espaldar alto repleta de almofadas revestidas de seda, indicando onde ela deveria ser colocada em meio a muitíssimas olhadelas preocupadas na direção de Rand. Entalhes dourados verticais percorriam o encosto e as grossas pernas da cadeira, mas pareciam insignificantes diante do Trono do Sol.

Enquanto os três serviçais ainda faziam suas reverências e saíam, curvando-se a cada passo, Rand jogou a maior parte das almofadas para o lado e se sentou com gosto, a lança Seanchan sobre os joelhos. Mas teve o cuidado de não suspirar. Aviendha o observava muito de perto para que fizesse isso, e o modo como Somara ficava alternando olhadelas entre os dois confirmava as suspeitas de Rand.

No entanto, fossem quais fossem seus problemas com Aviendha e as Far Dareis Mai, a maior parte dos presentes aguardava suas palavras com muita ansiedade e nervosismo. Pelo menos estes aí vão pular quando eu mandar imitar um sapo, pensou. Poderiam até não gostar, mas pulariam.

Com o auxílio de Moiraine, ele decidira o que devia fazer naquele local. Algumas coisas soubera mesmo sem as sugestões dela. Teria sido bom tê-la ali para falar em seu ouvido, caso necessário, em vez de ter Aviendha aguardando para dar um sinal a Somara, mas não havia por que esperar. Todos os nobres tairenos e cairhienos na cidade decerto estavam naquela câmara.

— Por que os cairhienos ficam atrás? — questionou em voz alta, no que a multidão de nobres se agitou e trocou olhares confusos. — Os tairenos vieram para ajudar, mas isso não é motivo para os cairhienos se manterem sempre na retaguarda. Deixem que todos se organizem por graduação. Todos.

Foi difícil dizer quais eram os mais estupefatos, se tairenos ou cairhienos, embora Meilan parecesse pronto para engolir a língua, e os outros seis não ficassem muito atrás. Mesmo Aracome, cujo pavio era mais comprido, ficou com o rosto pálido. Com muito arrastar de botas e repuxar de saias, com demasiados olhares gélidos de ambos os lados, todos se organizaram, até que as filas da frente ficassem todas compostas por homens e mulheres com listras no peito e a seguinte contasse apenas com alguns tairenos. No pé do estrado, Meilan e seus companheiros estavam acompanhados pelo dobro de lordes e ladies cairhienos, a maioria já grisalha, e todos com listras do pescoço até quase o joelho, apesar de “acompanhados” talvez não ser a palavra correta. Eram dois grupos separados por boas três passadas, e faziam tanta questão de não olhar uns para os outros que dava no mesmo que gritar ou erguer os punhos. Todos os olhos se detinham em Rand, e, se os tairenos estavam furiosos, os cairhienos ainda eram uma pedra de gelo, dando apenas meros sinais de descongelamento no modo sugestivo como o examinavam.

— Notei os estandartes tremulando sobre Cairhien — prosseguiu, tão logo a movimentação se abrandou. — É bom ver tantas Crescentes de Tear ao vento. Sem os Grão-lordes tairenos, Cairhien não estaria viva para hastear um estandarte, e sem as espadas tairenas, o povo desta cidade, que hoje sobreviveu, tanto os nobres quanto os plebeus, estaria aprendendo a obedecer aos Shaido. Tear conquistou sua honra. — Aquilo inflou os tairenos, claro, e provocou meneios impetuosos e sorrisos mais impetuosos ainda, embora os Grão-lordes decerto tenham parecido confusos. Até os cairhienos abaixo do estrado se entreolhavam, cheios de dúvidas. — Mas eu não preciso de tantos estandartes para mim. Deixem um estandarte do Dragão no lugar, na torre mais alta da cidade, para que todos que se aproximem possam vê-lo, mas façam com que os outros sejam retirados e substituídos pelos estandartes de Cairhien. Esta é Cairhien, e o Sol Nascente deve e vai tremular orgulhosamente. Cairhien tem a própria honra, que deve ser mantida.

A câmara irrompeu em um rugido tão repentino que a as Donzelas levantaram as lanças; uma balbúrdia que reverberou de parede a parede. Em um instante, Sulin estava gesticulando naquela linguagem das Donzelas, mas os véus, já parcialmente erguidos, foram soltos novamente. Os nobres cairhienos aplaudiam com o mesmo entusiasmo que o povo nas ruas o fizera, saltitando e acenando como os habitantes de Portão Frontal em um festival. Naquele pandemônio, foi a vez de os tairenos trocarem olhares silenciosos. Não pareciam com raiva. Até Meilan dava a impressão de estar mais incerto do que qualquer outra coisa, embora, assim como Torean e os demais, observasse com estupor os lordes e ladies que o cercavam, há pouco cheios de dignidade fria, agora dançando e gritando o nome do Lorde Dragão.

Rand não sabia o que eles haviam interpretado de suas palavras. Decerto esperara que entendessem mais do que ele dissera, sobretudo os cairhienos, e talvez até que alguns de fato compreendessem o que ele quis dizer, mas nada o preparara para aquela demonstração. A discrição cairhiena era esquisita, ele sabia muito bem, e por vezes se misturava com uma ousadia inesperada. Moiraine tratara o assunto com reticência, comparando com sua insistência eterna em tentar lhe ensinar tudo. O máximo que dissera foi que, se aquela discrição fosse quebrada, poderia ser em um nível surpreendente. De fato, surpreendente.

Quando os vivas por fim se dissiparam, começaram os juramentos de fidelidade. Meilan foi o primeiro a se ajoelhar, o rosto constrito quando se comprometeu, sob a Luz e por sua esperança na Salvação e no Renascimento, a servir com lealdade e a obedecer. Era uma forma antiga, e Rand torcia para que ela de fato compelisse alguns deles a manter o juramento. Tão logo Meilan beijou a ponta da lança Seanchan, tentando esconder uma careta amarga ao passar a mão na barba, Lady Colavaere o substituiu. Uma linda mulher de meia-idade, com renda cor de marfim derramando-se pelas mãos que colocou sobre as de Rand, e tiras coloridas horizontais do alto do colarinho rendado até o joelho, ela prestou seu juramento com uma voz clara e firme e com o sotaque melodioso que ele estava acostumado a ouvir de Moiraine. Seu olhar misterioso também se assemelhava ao da Aes Sedai, ainda mais quando ela encarou Aviendha ao fazer sua reverência e tornar a descer os degraus. Torean a substituiu, suando profusamente ao jurar, e Lorde Dobraine veio em seguida; com os olhos fundos e analíticos, ele era um dos poucos homens mais velhos a ter raspado a parte da frente do cabelo comprido e grisalho. Então veio Aracome e…

Rand foi ficando impaciente à medida que a procissão continuou, um por um subindo para se ajoelhar diante dele, cairhieno sucedendo taireno sucedendo cairhieno, conforme ele decretara. Tudo aquilo era necessário, Moiraine dissera — e a voz em sua mente que ele sabia se tratar de Lews Therin concordou —, mas, para ele, era parte do atraso. Rand precisava ter a lealdade daquelas pessoas, ainda que apenas na aparência, para poder começar a tornar Cairhien segura. E esse começo, pelo menos, tinha que ser posto em prática antes que pudesse cuidar de Sammael. E eu vou fazer isso! Ainda tenho muito o que fazer para permitir que ele continue saindo de trás da moita e me enfiando uma faca no tornozelo! Ele vai descobrir o que significa provocar o Dragão!

Rand não entendeu por que os que vinham se ajoelhar diante dele começaram a suar e a lamber os lábios, gaguejando suas palavras de fidelidade. Mas também ele não conseguia enxergar a luz fria que ardia nos próprios olhos.

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