Elayne se segurava nas dobradiças de couro da carruagem enquanto o veículo seguia saculejando, e tentava ignorar a expressão amarga de Nynaeve, à sua frente. As cortinas estavam abertas, apesar da poeira que às vezes as açoitavam pela janela. A brisa afastava um pouco do calor do fim de tarde. Sucessivas colinas com florestas estendiam-se na paisagem, a mata interrompida vez ou outra por pequenos trechos de plantações. A propriedade de um lorde, construída à moda de Amadícia, encimava uma das colinas a algumas milhas da estrada, um enorme edifício de pedra de cinquenta metros de altura com uma elaborada estrutura de madeira no topo, com varandas ornamentadas e telhado vermelho. No passado, a construção seria inteiramente de pedra, mas muitos anos haviam se passado desde que um lorde necessitara de uma fortaleza em Amadícia, e a atual lei do rei exigia a utilização de madeira. Nenhum lorde rebelde tinha a capacidade de resistir por muito tempo ao rei. Os Filhos da Luz, obviamente, estavam isentos dessa lei; eles estavam acima de várias das leis amadicianas. Quando criança, Elayne tivera de aprender algumas coisas sobre as leis e os costumes de outros países.
Descampados também pontilhavam as colinas ao longe, feito retalhos marrons em um tecido majoritariamente verde, os homens que neles trabalhavam parecendo formigas. Tudo aparentava secura. Um único relâmpago desencadearia um incêndio que poderia arder por léguas. Mas relâmpagos eram sinal de chuva, e as poucas nuvens no céu estavam demasiado altas e finas para isso. Distraída, Elayne se perguntou se conseguiria fazer chover. Já aprendera a ter um controle considerável sobre o clima. Ainda assim, era muito difícil ter que começar do nada.
— Milady está entediada? — perguntou Nynaeve, ácida. — Pela maneira como milady está olhando para o campo, com ar de desaprovação, acho que milady deve estar querendo viajar mais rápido. — Virando a cabeça para trás sobre o ombro, ela empurrou uma pequena aba e gritou: — Mais rápido, Thom. Não discuta comigo! Você também, Juilin Caçador de Ladrões, cuidado com o que fala! Eu disse mais rápido!
A aba de madeira bateu, mas Elayne ainda ouviu Thom resmungando alto. Xingando, muito provavelmente. Nynaeve passara o dia todo gritando com os homens. Instantes depois, o chicote estalou e a carruagem zarpou adiante ainda mais rápido, balançando tão forte que as duas mulheres não paravam quietas nos assentos de seda dourada. O tecido havia sido cuidadosamente limpo quando Thom comprara o veículo, mas o estofamento já estava bem duro. Mesmo pulando para lá e para cá, o queixo travado de Nynaeve sugeria que ela não pediria para Thom desacelerar logo depois de tê-lo mandado ir mais depressa.
— Por favor, Nynaeve — pediu Elayne. — Eu…
A outra mulher a interrompeu.
— Milady está desconfortável? Sei que as ladies estão habituadas ao conforto, com o tipo de coisa que uma pobre criada sequer sabe que existe, mas tenho certeza de que milady quer chegar à próxima cidade antes do anoitecer, não quer? Para que a criada de milady possa servir o jantar de milady e preparar a cama de milady? — Os dentes de Nynaeve se cerraram em um clique quando o assento, subindo, se chocou contra o corpo dela, descendo. A mulher olhou com raiva para Elayne, como se tivesse sido culpa dela.
Elayne soltou um longo suspiro. Nynaeve entendera a questão, lá em Mardecin. Uma lady nunca viajava sem uma criada, e duas ladies provavelmente teriam duas criadas. A menos que colocassem vestidos em Thom e Juilin, aquilo significava que uma delas teria de fazer esse papel. Nynaeve tinha entendido que Elayne sabia mais sobre como ladies se comportavam. Ela explicara de modo bem gentil, e Nynaeve normalmente conseguia entender os apelos do bom senso. Normalmente. Mas tudo se passara ainda na loja da Senhora Macura, depois de terem enchido as duas mulheres com sua própria bebida horrorosa.
Saindo de Mardecin, viajaram depressa até a meia-noite, chegando a uma pequena aldeia com uma estalagem, onde tiraram o dono da cama para alugar dois quartos apertados com colchões estreitos. Despertaram antes da primeira luz do dia seguinte para seguir em frente, circundando Amador a algumas milhas de distância. Ninguém pensaria que eram mais do que afirmavam ser, mas nenhum deles se sentia confortável com a ideia de passar por uma cidade grande cheia de Mantos-brancos. A Fortaleza da Luz ficava em Amador. Elayne ouvira falar que quem reinava em Amador era o rei, mas quem mandava era Pedron Niall.
O problema começara na noite anterior, em um lugar chamado Bellon, em um riacho lamacento que tinha o grandioso nome de Rio Gaean, mais ou menos vinte milhas depois da capital. A estalagem Vau de Bellon era maior que a primeira, e a Senhora Alfara, dona do lugar, oferecera à Lady Morelin uma sala de jantar privada, o que Elayne não podia recusar. A Senhora Alfara pensara que apenas a criada de Lady Morelin, Nana, saberia como servi-la adequadamente. As ladies exigiam que tudo fosse de certa maneira, dizia a mulher, e tinham mesmo de exigir, mas as garotas do local simplesmente não estavam acostumadas com ladies. Nana saberia a maneira exata como Lady Morelin desejava que sua cama fosse preparada, e providenciaria para ela um belo banho após um calorento dia de viagem. A lista de providências que Nana tomaria de forma perfeita para a sua senhora era infinita.
Elayne não tinha certeza se aquilo era comum para a nobreza amadiciana ou se a Senhora Alfara só estava se aproveitando de uma serviçal forasteira. A garota tentara poupar Nynaeve, mas a mulher estivera tão afeita a “como a senhora quiser” e “milady é muito especial” quanto a dona da estalagem. Teria soado tola, ou pelo menos esquisita, se insistisse. Estavam tentando não atrair atenção indevida.
Durante todo o tempo que estiveram em Bellon, Nynaeve agira em público como uma criada perfeita. Em particular, era diferente. Elayne só queria que Nynaeve voltasse a ser ela mesma, em vez de perturbá-la agindo como uma criada vinda diretamente da Praga. Pedidos de desculpas vinham sendo correspondidos com “milady é muito gentil”, ou apenas ignorados. Não vou me desculpar de novo, pensou, pela quinquagésima vez. Não por algo que não foi minha culpa.
— Andei pensando, Nynaeve. — Segurando-se firmemente a uma alça, ela se sentia como a bola de uma brincadeira infantil chamada Quique de Andor, que consistia em tentar manter uma bola de madeira colorida quicando para cima e para baixo com uma raquete. No entanto, não ia pedir para que desacelerassem a carruagem. Conseguia suportar, contanto que Nynaeve também suportasse. A mulher era tão teimosa! — Quero chegar a Tar Valon e descobrir o que está acontecendo, mas…
— Milady andou pensando? Milady deve estar com dor de cabeça depois de todo esse esforço. Vou preparar um bom chá de raiz de língua-de-ovelha e margarida vermelha assim que…
— Fique quieta, Nana — disse Elayne, calma, mas firme. Havia sido sua melhor imitação da mãe. Nynaeve ficou de queixo caído. — Se você puxar essa sua trança para mim, vai viajar lá no teto, junto com a bagagem. — Nynaeve emitiu um som abafado, esforçando-se tanto para falar que nada saía. Bem satisfatório. — Às vezes você parece pensar que eu ainda sou criança, mas é você quem está se comportando como uma. Eu não pedi para você lavar minhas costas, mas precisaria ter lutado para fazer você parar. Até me ofereci para esfregar as suas costas também, lembre-se disso. E me ofereci para dormir na cama de baixo. Mas você se deitou e não quis mais sair. Pare de birra. Se quiser, posso ser a criada na próxima estalagem. — Provavelmente seria um desastre. Nynaeve gritaria com Thom em público, ou daria uma bofetada na orelha de alguém. Mas qualquer coisa por um pouco de paz. — Podemos parar aqui mesmo e trocar de roupa nas árvores.
— Escolhemos os vestidos que ficam bons em você — resmungou a outra após um momento. Voltando a abrir a aba, gritou. — Mais devagar! Estão querendo nos matar? Seus tolos!
Fez-se um silêncio mortal do lado de fora, conforme a velocidade da carruagem diminuía para algo bem mais razoável, mas Elayne poderia apostar que os dois homens estavam conversando. Arrumou o cabelo da melhor maneira que pôde sem espelho. Quando pousava os olhos em um, ainda se espantava de ver aquelas mechas negras. Até o vestido de seda verde precisaria de uma boa escovada.
— Em que você estava pensando, Elayne? — indagou Nynaeve. Suas bochechas ficaram vermelhas. Ao menos sabia que Elayne tinha razão, mas recuar era, muito provavelmente, o pedido máximo de desculpas que faria.
— Estamos voltando às pressas para Tar Valon, mas temos de fato alguma ideia do que nos espera na Torre? Se a Amyrlin realmente deu aquelas ordens… Não acredito que tenha sido o caso, e nem entendo, mas não pretendo entrar na Torre até entender. “Só um tolo enfia a mão no oco de uma árvore sem primeiro ver o que tem dentro.”
— Uma sábia, essa Lini — disse Nynaeve. — Talvez a gente descubra mais se eu encontrar outro monte de flores amarelas penduradas de cabeça para baixo, mas, até lá, acho que temos que nos comportar como se a própria Ajah Negra estivesse no controle da Torre.
— A esta altura, a Senhora Macura já deve ter enviado outro pombo para Narenwin. Com descrições desta carruagem, dos vestidos que pegamos e, muito possivelmente, de Thom e Juilin também.
— Não podemos fazer nada. Nada disso teria acontecido se não tivéssemos enrolado tanto em Tarabon. Devíamos ter pegado um navio. — Elayne ficou embasbacada com aquele tom acusatório, e Nynaeve teve a graciosidade de voltar a enrubescer. — Bem, o que está feito, está feito. Moiraine conhece Siuan Sanche. Talvez Egwene possa perguntar a ela se…
A carruagem se sacudiu e parou de repente, arremessando Elayne para cima de Nynaeve. A garota escutou o relincho desesperado dos cavalos enquanto tentava se erguer freneticamente, Nynaeve também a empurrando.
Agarrando saidar, pôs a cabeça para fora da janela, e, aliviada, tornou a largar a Fonte Verdadeira. O que havia ali era algo que já vira passar por Caemlyn mais de uma vez. Um conjunto itinerante de animais estava acampado em meio às sombras da tarde em uma grande clareira ao lado da estrada. Um imenso leão de juba escura estava deitado, sonolento, em uma jaula que ocupava toda a parte traseira de um carroção, enquanto suas duas consortes caminhavam confinadas em outra. Uma terceira jaula estava aberta. À frente dela, uma mulher fazia dois ursos negros de cara branca se equilibrarem em grandes bolas vermelhas. Outra jaula mantinha cativo o que parecia ser um enorme e peludo javali, exceto pelo focinho, excessivamente pontiagudo, e pelas garras em cada dedo. O animal era originário do Deserto Aiel, Elayne sabia, e seu nome era capar. As demais jaulas abrigavam outros animais, além de pássaros de coloração brilhante, mas, diferentemente de qualquer conjunto de animais itinerante que Elayne já vira, aquele viajava com artistas humanos: dois homens faziam malabarismo, jogando argolas enroladas com fitas um para o outro, quatro acrobatas se equilibravam um no ombro do outro, formando uma coluna altíssima, e uma mulher alimentava uma dúzia de cães que caminhavam apoiados só nas patas traseiras e, ao seu comando, davam cambalhotas para trás. Ao fundo, alguns homens instalavam dois postes altos. A garota não tinha ideia de para quê.
Porém, nada daquilo era o que tinha feito os cavalos se empinarem nos arreios e revirarem os olhos, apesar de toda a habilidade de Thom com as rédeas. Até Elayne sentia o cheiro dos leões, mas era para três imensos animais cinzentos e enrugados que os cavalos lançavam seu olhar aterrorizado. Dois deles eram da altura da carruagem, com enormes orelhas e grandes presas curvadas que ladeavam um nariz comprido que balançava até o chão. O terceiro, mais baixo que os cavalos, mas provavelmente com o mesmo peso, não tinha presas. Um bebê, supôs. Uma mulher de cabelos louros bem claros usava um pesado aguilhão curvo para esfregar atrás da orelha do menorzinho. Elayne também já vira criaturas como aquela. E nunca esperara voltar a ver.
Um homem alto de cabelos escuros saiu a passos largos do acampamento, trajando, apesar do calor, um manto de seda vermelha que ele balançou ao se curvar com elegância. Tinha boa aparência, pernas bem-torneadas, e sabia muito bem disso.
— Perdoe-me, milady, se os cavalos-javali gigantes assustaram seus animais. — Ao se endireitar, ele acenou para que dois de seus homens ajudassem a acalmar os cavalos, e então fez uma pausa, encarando-a, e murmurou: — Calma, coração. — Foi alto o bastante para que Elayne tivesse certeza de que ele queria que ela escutasse. — Sou Valan Luca, milady, produtor de espetáculos. Sua presença me extasia. — O homem fez outra reverência, ainda mais elaborada que a primeira.
Elayne e Nynaeve se entreolharam, e a Filha-herdeira viu o mesmo sorriso divertido que sabia que ela própria estampava. Um homem bem cheio de si, aquele Valan Luca. Seus homens pareciam muito bons em aquietar os cavalos, que ainda bufavam e batiam as patas, mas cujos olhos já não estavam tão assustados quanto antes. Thom e Juilin encaravam os animais estranhos com olhares tão fixos quanto os dos cavalos.
— Cavalos-javali, Mestre Luca? — indagou Elayne. — De onde são?
— Cavalos-javali gigantes, milady — retrucou o sujeito prontamente —, da lendária Shara, onde eu mesmo liderei uma expedição a um mundo selvagem cheio de civilizações estranhas e paisagens mais estranhas ainda só para capturá-los. Eu ficaria fascinado em lhe contar a respeito. Povos gigantes, duas vezes maiores que um Ogier. — O homem ilustrava a conversa com gestos grandiosos. — Criaturas sem cabeça. Aves grandes o bastante para carregar um touro adulto. Cobras capazes de engolir um homem. Cidades feitas de ouro maciço. Desça, milady, e me permita lhe contar o que vi.
Elayne não tinha dúvidas de que Luca ficaria fascinado com as próprias histórias, mas certamente duvidava de que aqueles animais viessem de Shara. Para começo de conversa, nem o Povo do Mar via mais de Shara do que os portos amuralhados aos quais ficavam confinados. Qualquer um que cruzasse as muralhas jamais voltava a ser visto. Os próprios Aiel pouco sabiam. Além disso, tanto ela quanto Nynaeve já tinham visto criaturas como aquelas em Falme, durante a invasão Seanchan. Os Seanchan os usavam como animais para o trabalho e para a guerra.
— Acho que não, Mestre Luca.
— Então permita que nos apresentemos para você — respondeu o homem, mais do que depressa. — Como pode ver, este não é um conjunto comum de animais itinerantes, e sim algo totalmente novo. Um espetáculo particular. Acrobatas, malabaristas, animais treinados, o homem mais forte do mundo. Até fogos de artifício. Temos nosso próprio Iluminador. Estamos a caminho de Ghealdan, e amanhã o vento já terá nos levado. Mas, por uma ninharia…
— Minha senhora disse que acha que não — intrometeu-se Nynaeve. — Ela tem coisas melhores com que gastar seu dinheiro do que assistir a animais. — Na verdade, era a própria Nynaeve quem controlava todo o dinheiro com mãos de ferro, gastando com relutância apenas o necessário. Ela parecia pensar que tudo deveria custar o que custava em Dois Rios.
— Por que deseja ir a Ghealdan, Mestre Luca? — questionou Elayne. A outra mulher fez cara feia e deixou que a própria Elayne resolvesse o assunto. — Soube que há muitos problemas por lá. Ouvi falar que o exército não conseguiu deter esse homem que chamam de Profeta, com suas pregações sobre o Dragão Renascido. Com certeza você não quer viajar para onde só há tumulto.
— Muitíssimo exagero, milady. Muitíssimo exagero. Onde há multidões, há pessoas querendo se divertir. E onde há pessoas querendo se divertir, meu espetáculo sempre é bem-vindo. — Luca hesitou, depois se aproximou da carruagem. Uma expressão encabulada perpassou seu rosto quando ele ergueu os olhos para os de Elayne. — Milady, a verdade dos fatos é que me faria um enorme favor se permitisse que eu me apresentasse. Na realidade, um dos cavalos-javali causou um pequeno problema na próxima cidade por onde vão passar. Foi um acidente — acrescentou ele, depressa —, posso lhe garantir. São criaturas gentis. Nem um pouco perigosas. Mas o povo de Sienda não só não está querendo que eu monte o espetáculo, como não quer nem que eu vá até lá… Bem, gastei todas as minhas moedas para pagar os prejuízos e as multas. — Ele fez uma careta. — Especialmente as multas. Se me deixasse lhe divertir, e realmente por uma mixaria, eu a nomearia patrona do meu espetáculo em todos os lugares do mundo aonde formos, espalhando a fama de sua generosidade, milady…?
— Morelin — respondeu Elayne. — Lady Morelin da Casa Samared. — Com seu novo cabelo, passaria por cairhiena. Não tinha tempo para assistir ao espetáculo, ainda que teria adorado fazê-lo em outra ocasião, e informou isso ao homem, acrescentando: — Mas vou lhe dar uma pequena ajuda, se não tem mesmo nenhum dinheiro. Dê algo a ele, Nana, para ajudá-lo a chegar a Ghealdan. — A última coisa que ela queria era que ele “espalhasse a fama” dela, mas ajudar os pobres e necessitados era um dever do qual não fugiria sempre que tivesse os meios para tal, mesmo em terras estrangeiras.
Resmungando, Nynaeve desenterrou uma bolsinha da cintura e enfiou a mão nela. Inclinou-se para fora da carruagem o suficiente para pressionar a mão de Luca em torno do que entregou ao homem. Ele pareceu se assustar quando ela disse:
— Se você arrumasse um trabalho decente, não precisaria ficar mendigando. Pode ir, Thom!
O chicote de Thom estalou, e Elayne foi lançada de volta ao assento.
— Não precisava ter sido rude. Nem tão abrupta. O que você deu para ele?
— Uma moeda de prata — retrucou Nynaeve com calma, recolocando a bolsa no lugar. — Mais do que ele merecia.
— Nynaeve — gemeu Elayne —, o homem deve estar pensando que estávamos nos divertindo às custas dele.
Nynaeve fungou.
— Com aqueles ombros, um bom dia de trabalho não iria matá-lo.
Elayne ficou em silêncio, embora não concordasse. Não completamente. Trabalhar certamente não faria mal ao homem, mas ela achava que não havia muitas opções disponíveis. Não que eu ache que Mestre Luca aceitaria um trabalho que não lhe permitisse usar aquela capa. Se tocasse no assunto, porém, Nynaeve provavelmente discutiria. Quando Elayne explicava gentilmente qualquer coisa que Nynaeve desconhecia, a mulher a acusava de ter uma postura arrogante ou de querer fazer discursos, e Valan Luca não era nada que justificasse outra briga tão pouco tempo depois de a última ter sido relevada.
As sombras já se estendiam quando o grupo chegou a Sienda, uma aldeia de bom tamanho com construções de pedra e palha, além de duas estalagens. A primeira, O Lanceiro do Rei, exibia um enorme buraco no lugar onde um dia estivera a porta da frente, e uma multidão assistia aos operários que a consertavam. Talvez o “cavalo-javali” de Mestre Luca não tivesse gostado da placa, agora escorada ao lado do buraco, onde um soldado em posição de ataque segurava uma lança abaixada. Ela parecia ter sido derrubada.
Surpreendentemente, havia ainda mais Mantos-brancos nas ruas de terra abarrotadas do que em Mardecin, bem mais, além de outros soldados, homens em armaduras e chapéus cônicos de aço cujos mantos azuis exibiam a Estrela e o Cardo de Amadícia. Devia haver guarnições por perto. Os homens do Rei e os Mantos-brancos pareciam não se gostar nem um pouco. Ou se cruzavam agindo como se os homens trajando a cor errada nem existissem, ou trocavam olhares desafiadores, à beira de desembainhar as espadas. Alguns dos homens de mantos brancos exibiam cajados vermelhos de pastor por trás dos raios de sol de seus mantos. A Mão da Luz, como eles próprios se denominavam, a Mão que buscava a verdade, mas todos os demais os chamavam de Questionadores. Mesmo os outros Mantos-brancos se mantinham longe deles.
Em suma, era o bastante para fazer o estômago de Elayne se revirar. Mas restava apenas uma hora de luz do sol, se tanto, e isso levando em consideração os dias longos do fim do verão. Mesmo que seguissem viagem outra vez por mais metade da noite, não havia garantia de que surgiria outra estalagem à frente, e viajar tão tarde poderia chamar atenção. Além do mais, tinham motivo para parar cedo naquele dia.
A garota lançou um olhar significativo para Nynaeve, que, após um momento, assentiu e disse:
— Precisamos parar.
Quando a carruagem se aproximou da frente d’A Luz da Verdade, Juilin saltou para abrir a porta, enquanto Nynaeve, com um olhar de deferência no rosto, aguardava que ele oferecesse a mão para Elayne descer. Mas lançou um sorriso a Elayne: não voltaria a fazer birra. A bolsa de couro que a mulher carregava nos ombros parecia um pouco incompatível, mas Elayne esperava que não fosse muito. Agora que Nynaeve readquirira um estoque de ervas e unguentos, não pretendia tirar o olho dele.
Desde que vira a placa da estalagem, com um reluzente sol dourado como o que os Filhos usavam em seus mantos, preferira que o “cavalo-javali” tivesse desgostado daquele lugar, e não da outra estalagem. Pelo menos não havia nenhum cajado de pastor por trás. Metade dos homens que enchiam o salão usava mantos brancos como a neve, seus elmos repousando na mesa à frente deles. A garota respirou fundo e precisou se conter para não dar meia-volta e ir embora.
Afora os soldados, era uma estalagem agradável, com bonitas vigas sustentando o teto alto e paredes escuras polidas. Galhos verdes decoravam a parede de duas grandes lareiras apagadas, e das cozinhas vinha o cheiro apetitoso de comida. Todas as atendentes, com seus aventais brancos, pareciam alegres ao passar apressadas em meio às mesas com as bandejas de vinho, cerveja e comida.
A chegada de uma lady gerou pouco burburinho em uma aldeia tão perto da capital. Ou talvez fosse pela postura daquela lady. Alguns poucos homens olharam para ela. A maior parte encarou com mais interesse a “criada”, apesar de a expressão dura de Nynaeve ao perceber os olhares fazê-los voltar a atenção depressa ao vinho. Nynaeve parecia pensar que um homem olhá-la era um crime, mesmo que ele não dissesse nada e não agisse de modo lascivo. Entretanto, Elayne às vezes se perguntava por que ela insistia em usar roupas que caíam tão bem. Elayne tivera que trabalhar duro até que aquele vestido cinza comum caísse perfeitamente em Nynaeve. Em se tratando de trabalhos mais finos, a mulher era uma negação com a agulha.
A dona da pousada, a Senhora Jharen, era uma mulher rechonchuda com longos cachos grisalhos, um sorriso acolhedor e olhos escuros curiosos. Elayne suspeitou que ela fosse capaz de identificar uma bainha puída ou uma bolsa vazia a dez passadas. Elas obviamente passaram pelo crivo da taverneira, pois a mulher fez uma elaborando reverência, as saias cinza se espalhando ao seu redor, e lhes deu efusivas boas-vindas, perguntando se a lady estava indo ou vindo de Amador.
— Vindo — retrucou Elayne, com lânguida presunção. — Os bailes da cidade foram extremamente agradáveis, e o Rei Ailron é mesmo bonito como dizem, o que nem sempre é o caso com os reis, mas eu preciso voltar para minha terra. Quero um quarto para mim e para Nana, e algo para meu lacaio e meu condutor. — Lembrando-se de Nynaeve na cama de baixo, acrescentou: — Quero duas camas separadas. Preciso de Nana por perto, mas, se ela ficar na cama de baixo, não vai me deixar dormir de tanto roncar. — A expressão respeitosa de Nynaeve vacilou, ainda bem que apenas por um momento, mas era mesmo verdade. Ela roncava muito alto.
— Claro, milady — concordou a proprietária. — Tenho exatamente o que você precisa. Mas seus homens terão que dormir lá no estábulo, no depósito de feno. Estamos bem lotados, como pode ver. Uma trupe de vagabundos trouxe alguns animais imensos e horrorosos aqui para a aldeia ontem, e um deles praticamente destruiu O Lanceiro do Rei. O pobre do Sinn perdeu metade ou até mais da clientela, e todos vieram para cá. — O sorriso da Senhora Jahren era mais de satisfação do que de pena. — Mas tenho um quarto sobrando, sim.
— Tenho certeza de que vai servir muito bem. Se puder mandar uma refeição leve e um pouco de água para eu me lavar, acho que vou me recolher cedo. — Ainda se via a luz do sol pelas janelas, mas Elayne cobriu a boca com delicadeza, como se reprimisse um bocejo.
— Claro, milady. Como quiser. Por aqui.
A Senhora Jharen parecia achar que precisava manter Elayne entretida enquanto mostrava às duas o segundo andar. Seguiu falando sobre a estalagem lotada e o milagre que era ainda ter um quarto vago, sobre o grupo de viajantes com seus animais, o modo como haviam sido expulsos da cidade e como aquela escória já ia tarde, sobre todos os nobres que já haviam se hospedado em seu estabelecimento ao longo dos anos, o que incluíra, certa vez, até mesmo o Senhor Capitão Comandante dos Filhos. Aliás, um Caçador da Trombeta aparecera ali no dia anterior, a caminho de Tear, onde se dizia que a Pedra de Tear caíra nas mãos de algum falso Dragão — e não era uma perversidade horrorosa que os homens fossem capazes de tais atos?
— Espero que nunca encontrem. — Os cachos grisalhos da dona da estalagem balançaram quando ela sacudiu a cabeça.
— A Trombeta de Valere? — indagou Elayne. — Por que não?
— Ora, milady, porque se encontrarem, significa que a Última Batalha está próxima. O Tenebroso está se libertando. — A Senhora Jharen estremeceu. — Que a Luz permita que a Trombeta nunca seja encontrada. Dessa forma, a Última Batalha não tem como acontecer, não é? — Não parecia haver muitas respostas para uma lógica tão curiosa.
O quarto era bem pequeno, embora não exatamente um cubículo. Duas camas estreitas com lençóis listrados repousavam de cada lado de uma janela que dava para a rua, e o espaço entre elas e as paredes com reboco branco era o suficiente apenas para se passar. Entre as camas, uma mesinha com uma lamparina e uma caixa de madeira, um pequeno tapete florido e um lavatório com um espelhinho logo acima completavam a mobília. Ao menos tudo estava limpo e bem polido.
A proprietária afofou os travesseiros, alisou os lençóis e disse que os colchões eram da melhor pena de ganso, que os homens da lady trariam os baús para cima pela escada dos fundos, que tudo ficaria muito aconchegante, e que à noite havia uma brisa gostosa, caso a lady abrisse a janela e não fechasse a porta. Como se ela fosse dormir deixando aberta uma porta que dava para um corredor público. Antes que Elayne conseguisse fazer com que a Senhora Jharen saísse, duas garotas de avental chegaram com uma grande jarra azul com água quente e uma enorme bandeja laqueada coberta com um pano branco. O formato de um cântaro de vinho e duas canecas se desenhava em um dos lados, sob o pano.
— Acho que ela pensou que podíamos ir para O Lanceiro do Rei mesmo com um buraco na entrada — disse Elayne assim que a porta foi bem fechada. Examinando o quarto, ela fez uma careta. Mal haveria lugar para as duas e os baús. — Talvez devêssemos ir…
— Eu não ronco — afirmou Nynaeve, tensa.
— Claro que não. Mas eu precisava dizer alguma coisa.
Nynaeve pigarreou alto, porém, tudo o que disse foi:
— Ainda bem que estou suficientemente cansada para ir para a cama. Tirando a raiz-dupla, não identifiquei nada para ajudar a dormir no que aquela tal de Macura tinha.
Thom e Juilin precisaram de três viagens para trazer para cima os baús de madeira com borda de ferro, resmungando o tempo todo, como sempre faziam os homens, por ter que carregá-los até o segundo andar usando os degraus apertados dos fundos da estalagem. Também estavam reclamando de serem obrigados a dormir nos estábulos quando trouxeram o primeiro dos baús, que tinha dobradiças em forma de folha. A maior parte do dinheiro e dos objetos de valor que possuíam estava na base daquele baú, incluindo os ter’angreal recuperados, mas bastou eles darem uma olhada no quarto e depois entre si para calá-los. Sobre aquele assunto, ao menos.
— Vamos ver o que conseguimos descobrir no salão — informou Thom assim que o último baú foi empurrado para dentro. Quase não restava espaço para se chegar ao lavatório.
— E quem sabe dar uma volta pela aldeia — completou Juilin. — Quando há tanto desgosto quanto o que vi na rua, os homens costumam falar.
— Isso vai ser ótimo — opinou Elayne. Os dois queriam muito pensar que tinham mais utilidade do que só arrastar e carregar coisas. Havia sido assim em Tanchico e em Mardecin, claro, e talvez fosse ser o caso outras vezes, mas não ali. — Só tenham o cuidado de não se meter em confusão com os Mantos-brancos, ouviram? — Os dois trocaram olhares resignados, como se ela já não tivesse visto ambos com os rostos machucados e ensanguentados após darem voltinhas em busca de informação, mas Elayne os perdoou e sorriu para Thom. — Não vejo a hora de ouvir o que vocês descobrirem.
— De manhã — disse Nynaeve com firmeza. Ela estava evitando tanto olhar para Elayne que daria no mesmo se estivesse lhe lançando olhares furiosos. — Se vocês nos incomodarem antes disso por qualquer coisa menos importante que Trollocs, vão ver o que é bom.
O olhar que os homens trocaram foi muito revelador, fazendo Nynaeve arquear as sobrancelhas, mas tão logo ela lhes entregou algumas moedas, relutante, os dois foram embora concordando em deixar as duas dormirem sem serem importunadas.
— Se eu não puder nem falar com Thom… — começou Elayne, assim que os homens se foram, no que Nynaeve a cortou.
— Não quero que eles entrem aqui e me vejam dormindo de camisola. — Ela estava desabotoando a parte de trás do vestido, desajeitada. Elayne foi ajudá-la, mas Nynaeve a impediu. — Eu dou conta. Pegue o anel para mim.
Bufando, Elayne ergueu a saia para alcançar o bolsinho que costurara na parte interna da roupa. Se Nynaeve queria ser rabugenta, que fosse. Não responderia, mesmo que ela voltasse a ficar resmungando. Havia dois anéis no bolso. Deixou ali o da Grande Serpente, dourado, que recebera ao ser elevada a Aceita e retirou o anel de pedra.
Listrado e manchado de tons de vermelho, azul e marrom, era grande demais para ser usado em qualquer dedo, além de ser achatado e retorcido. Estranho como era, o anel só tinha uma aresta. Um dedo que percorresse essa aresta circularia a parte interna e externa antes de voltar para onde começara. Era um ter’angreal que dava acesso a Tel’aran’rhiod, inclusive para alguém que não tivesse o Talento que Egwene e as Andarilhas dos Sonhos Aiel compartilhavam. Bastava dormir com ele em contato com a pele. Diferentemente dos dois ter’angreal que haviam recuperado da Ajah Negra, este não exigia canalização. Pelo que Elayne sabia, até um homem talvez conseguisse usá-lo.
Vestindo apenas a camisola de linho, Nynaeve enredou o anel na tira de couro que já carregava o anel de sinete de Lan e seu próprio anel da Grande Serpente, depois reatou e voltou a pendurá-la em torno do pescoço antes de se deitar em uma das camas. Posicionando os anéis cuidadosamente bem perto da pele, aquietou a cabeça nos travesseiros.
— Ainda falta muito para Egwene e as Sábias chegarem lá? — perguntou Elayne. — Eu nunca consigo saber que horas são no Deserto.
— Falta, a menos que ela chegue cedo, o que não vai fazer. As Sábias a controlam muito de perto. Vai fazer bem para ela, a longo prazo. Sempre foi cabeça-dura.
Nynaeve abriu os olhos e lhe lançou um olhar significativo — para ela! —, como se aquilo também se aplicasse a Elayne.
— Lembre-se de falar para Egwene dizer a Rand que estou pensando nele. — Não deixaria a outra iniciar uma discussão. — Diga a ela para… dizer a ele que eu o amo, e só ele. — Pronto. Tinha posto para fora.
Nynaeve revirou os olhos de modo bastante ofensivo.
— Se é o que você quer — disse ela, seca, aconchegando-se nos travesseiros.
Conforme a respiração da outra mulher começou a desacelerar, Elayne empurrou um dos baús contra a porta e se sentou nele para esperar. Sempre odiara esperar. Seria bem feito para Nynaeve se Elayne descesse até o salão. Thom provavelmente ainda estaria lá, e… E nada. A função dele era ser seu cocheiro. Ficou se perguntando se Nynaeve pensara naquilo antes de concordar em ser a criada. Elayne suspirou e se recostou na porta. Realmente detestava esperar.