— Vocês estão completamente perdidas — disse Siuan para as seis mulheres à sua frente, sentadas em seis cadeiras de estilos diferentes.
O próprio aposento estava uma bagunça. Sobre duas grandes mesas de cozinha junto às paredes havia canetas, frascos de tinta e garrafas com areia muito bem-arrumadas. Lamparinas que não combinavam, algumas de cerâmica esmaltada e outras douradas, além de velas de todas as espessuras e comprimentos, estavam prontas para fornecer luz ao cair da noite. Um farrapo de tapete de seda illianense, rico em tons de azul, vermelho e dourado, repousava em um piso de tábuas ásperas e desgastadas. Ela e Leane estavam sentadas em uma ponta do tapete, de frente para as mulheres, do outro lado, de maneira a serem o foco de todos os olhares. Janelas com vidros quebrados ou substituídos por seda impermeável permitiam que uma brisa entrasse, mas não era o bastante para afastar o calor. Siuan disse a si mesma que não invejava aquelas mulheres por sua capacidade de canalizar, já havia superado a questão, mas as invejava pelo modo como nenhuma delas transpirava. Seu rosto estava bastante úmido.
— Todo esse movimento aí fora é só jogo de cena. Vocês podem estar enganando umas às outras, e talvez até os Gaidin, embora, se eu fosse vocês, não fosse contar com isso, mas não me enganam.
Ela gostaria que Morvrin e Beonin não tivessem se juntado ao grupo. Morvrin duvidava de tudo, apesar do aspecto plácido e, por vezes, vagamente ausente; era uma Marrom robusta com mechas grisalhas que exigia seis provas distintas antes de acreditar que peixes tinham escamas. E Beonin, uma bonita Cinza com cabelos escuros cor de mel e grandes olhos azul-acinzentados que a faziam parecer sempre meio assustada, fazia Morvrin parecer fácil de enganar.
— Elaida tem a Torre nas mãos, e vocês sabem que ela vai lidar mal com Rand al’Thor — afirmou Siuan com desdém. — Vai ser pura sorte ela não entrar em pânico e mandar amansá-lo antes de Tarmon Gai’don. Vocês sabem que não importa como se sintam sobre homens canalizando, as Vermelhas se sentem dez vezes pior. A Torre Branca está mais fraca quando deveria estar mais forte. Nas mãos de uma tola, quando precisa de uma líder competente. — Ela franziu o nariz e fitou-as uma a uma, olhos nos olhos. — E vocês aqui, sentadas, navegando com as velas abaixadas. Ou vão conseguir me convencer de que estão fazendo mais do que brincar com os dedos e estourar bolhas?
— Concorda com Siuan, Leane? — indagou Anaiya com um tom de voz ameno.
Siuan nunca entendera por que Moiraine gostava daquela mulher. Tentar convencê-la a fazer qualquer coisa que não quisesse era como bater em um saco cheio de penas. Ela não confrontava nem discutia com ninguém, simplesmente se recusava silenciosamente. Até o modo como se sentava, com as mãos entrelaçadas, parecia mais com o de uma mulher esperando para amassar o pão do que com uma Aes Sedai.
— Concordo em parte — respondeu Leane. Siuan lhe lançou um olhar incisivo, que ela ignorou. — Sobre Elaida, com certeza. Ela vai fazer mau uso de Rand al’Thor, e isso é tão certo quanto o mau uso que vem fazendo da Torre. Quanto ao resto, sei que vocês se esforçaram muito para reunir o máximo de irmãs que conseguiram, e imagino que estejam trabalhando com o mesmo afinco para tomar alguma providência com relação a Elaida.
Siuan bufou. Ao atravessar o salão, vira relances de alguns daqueles pergaminhos que estavam sendo examinados assiduamente: listas de provisões, lotes de madeira para reconstruções e designações para cortar lenha, consertar casas e limpar poços. Nada mais. Nada que se parecesse nem de longe com um relatório das atividades de Elaida. O plano daquelas mulheres era passar o inverno ali. Bastava que uma das Azuis fosse capturada depois de ficar sabendo de Salidar, uma única mulher levada a interrogatório — ela não guardaria o segredo por muito tempo, caso Alviarin fosse a responsável por interrogar — e Elaida saberia exatamente onde apanhá-las. Enquanto elas se preocupavam em plantar hortas e cortar madeira suficiente antes da primeira nevasca.
— Então esse assunto está encerrado — afirmou Carlinya com frieza. — Vocês parecem não entender que não são mais a Amyrlin e a Curadora. Não são mais nem Aes Sedai. — Algumas tiveram o cuidado de parecer constrangidas. Não Morvrin e Beonin, mas as outras. Nenhuma Aes Sedai gostava de falar sobre estancamento, ou de se lembrar disso. Achariam especialmente ruim fazer isso diante delas duas. — Não digo isso para ser cruel. Não acreditamos nas acusações contra vocês, apesar do acompanhante de viagem, ou não estaríamos aqui, mas vocês não podem assumir suas antigas posições entre nós, e isso é um fato.
Siuan se lembrava bem de Carlinya como noviça e Aceita. Uma vez por mês, ela cometia algum leve deslize, uma coisinha pequena que lhe valia uma ou duas horas extras de tarefas. Exatamente uma vez por mês. Não queria que as demais a vissem como arrogante. Aqueles tinham sido os únicos deslizes dela — nunca quebrara outra regra ou dera um passo errado; isso não seria lógico — e, mesmo assim, nunca havia entendido por que as outras garotas a consideravam um bichinho de estimação das Aes Sedai. Um bocado de lógica e não muito bom senso: esta era Carlinya.
— Ainda que a punição de vocês tenha seguido estritamente o que diz a lei — disse Sheriam gentilmente —, concordamos que foi de uma injustiça maldosa, uma distorção extrema do espírito da lei. — O encosto da cadeira atrás de seus cabelos vermelhos era estranhamente entalhado com o que parecia um monte de serpentes brigando. — Não importa o que dizem os boatos, a maioria das acusações feitas contra vocês era tão frágil que deveria ter sido motivo de riso.
— Não a acusação de que ela sabia sobre Rand al’Thor e que conspirou para escondê-lo da Torre — interrompeu Carlinya bruscamente.
Sheriam aquiesceu.
— Mas, ainda que seja verdade, mesmo isso não era suficiente para a punição que foi dada. E vocês não deveriam ter sido julgadas em sigilo, sem sequer terem a chance de se defender. Jamais temam que viremos as costas para vocês. Vamos cuidar para que as duas sejam bem tratadas.
— Eu agradeço — respondeu Leane, a voz suave e quase trêmula.
Siuan fez uma careta.
— Vocês ainda nem me perguntaram sobre os espiões que posso usar. — Ela gostava de Sheriam na época em que estudavam juntas, embora os anos e as posições tivessem feito as duas se afastarem. “Bem tratadas”, pois sim! — Aeldene está por aqui? — Anaiya começou a balançar a cabeça antes de ficar imóvel. — Suspeito que não, ou vocês saberiam mais sobre o que está acontecendo. Vocês deixaram que continuassem enviando relatórios para a Torre. — Uma lenta compreensão despontou nos rostos de cada uma. Não tinham conhecimento do cargo de Aeldene. — Eu chefiei a rede de espiões da Ajah Azul antes de ser elevada a Amyrlin. — Mais uma surpresa. — Com um pequeno esforço, cada um dos agentes das Azuis, e também aqueles que me serviram na época de Amyrlin, podem passar a enviar os relatórios para vocês por meio de rotas que não revelem o destino final dos documentos. — Seria necessário bem mais do que um pequeno esforço, mas Siuan já rascunhara a maior parte do plano na cabeça, e não era preciso dizer mais que isso naquele momento. — E eles podem continuar a enviar relatórios para a Torre, relatórios contendo o que… vocês quiserem que Elaida saiba. — Quase dissera “nós”. Precisava tomar cuidado com as palavras.
Claro que elas não gostaram daquilo. As mulheres que cuidavam das redes talvez só fossem conhecidas de algumas delas, mas todas eram Aes Sedai. Sempre haviam sido. Mas aquele era o único pé-de-cabra de que dispunha para abrir caminho para o círculo que tomava as decisões. Caso contrário, elas provavelmente enfiariam Siuan e Leane em uma casa de campo com uma serviçal para cuidar delas, e as duas talvez recebessem uma rara visita de uma Aes Sedai que quisesse examinar mulheres que haviam sido estancadas, até o dia em que morressem. Em tais circunstâncias, morreriam logo.
Luz, talvez elas até nos arrumem casamentos! Havia quem pensasse que um marido e filhos eram capazes de ocupar o suficiente a vida de uma mulher para substituir o Poder Único. Mais de uma mulher, exaurida por canalizar acima de suas capacidades, ou por testar um ter’angreal de função desconhecida, se vira sendo apresentada a potenciais maridos. Como aquelas que de fato se casavam sempre mantinham o máximo possível de distância entre si mesmas e a Torre e suas lembranças, a teoria permanecia sem comprovação.
— Não deve ser difícil — afirmou Leane, timidamente — entrar em contato com as pessoas que foram meus espiões antes de eu virar Curadora. Ainda mais importante, como Curadora das Crônicas, eu tinha agentes inclusive em Tar Valon. — Alguns olhos se arregalaram, embora os de Carlinya tenham se estreitado. Leane piscou, se mexeu desconfortavelmente e abriu um sorriso tímido. — Sempre achei uma tolice prestarmos mais atenção aos ânimos de Ebou Dar ou Bandar Eban do que ao humor da nossa própria cidade. — As mulheres deviam entender a importância de ter espiões em Tar Valon.
— Siuan. — Inclinando-se para a frente em sua cadeira de braços robustos, Morvrin pronunciou o nome com firmeza, como se quisesse enfatizar que não dissera “Mãe”. Agora seu rosto redondo parecia mais teimoso do que plácido, sua robustez, uma massa ameaçadora. Quando Siuan era noviça, Morvrin raramente notava o mau comportamento das garotas ao seu redor, mas, quando notava, ela mesma cuidava da questão de um modo que fazia com que todas se sentassem bem eretas e pisassem com cuidado por vários dias. — Por que deveríamos permitir que você faça o que quer? Você foi estancada, mulher. O que quer que tenha sido, você não é mais uma Aes Sedai. Se quisermos os nomes desses agentes, vocês duas nos darão essas informações. — As últimas palavras traziam uma certeza absoluta. Elas dariam os nomes, de um jeito ou de outro. Se aquelas mulheres quisessem, elas dariam.
Leane tremeu visivelmente, mas a cadeira de Siuan rangeu quando ela enrijeceu as costas.
— Sei que não sou mais a Amyrlin. Acham que eu não sei que fui estancada? Meu rosto mudou, mas meu interior não. Todo o meu conhecimento ainda está na minha cabeça. Usem! Pelo amor da Luz, me usem!
Siuan respirou fundo para se acalmar. Que me queime se eu permitir que elas me deixem de lado até apodrecer! Quando ela fez uma pausa, Myrelle tomou a palavra.
— O temperamento de uma jovem para combinar com o rosto de uma jovem. — Ela sorriu, sentada na beira de uma poltrona de encosto duro que poderia estar diante da lareira de uma fazenda, caso o fazendeiro não se importasse com o verniz descamando. O sorriso, porém, não era o habitual, ao mesmo tempo lânguido e sagaz, e os olhos escuros, quase tão grandes quanto os de Beonin, estavam cheios de pena. — Tenho certeza de que ninguém quer que você se sinta inútil, Siuan. E tenho certeza de que todas nós desejamos fazer pleno uso do seu conhecimento. O que você sabe vai ser de grande serventia para nós.
Siuan não queria a pena dela.
— Vocês parecem ter se esquecido de Logain e de por que eu o arrastei de Tar Valon até aqui. — Ela não pretendera tocar no assunto por conta própria, mas se elas não iam mencionar… — Minha ideia “sem pé nem cabeça”?
— Muito bem, Siuan — cedeu Sheriam. — Por quê?
— Porque o primeiro passo para derrubar Elaida é fazer Logain revelar para a Torre, ou para o mundo inteiro, se for preciso, que a Ajah Vermelha armou para ele se tornar um falso Dragão e depois poder derrubá-lo. — Agora, sim, tinha a atenção de todas. — Ele foi encontrado pelas Vermelhas em Ghealdan pelo menos um ano antes de se proclamar, mas, em vez de levá-lo a Tar Valon para ser amansado, elas plantaram na cabeça dele a ideia de afirmar que era o Dragão Renascido.
— Você tem certeza disso? — perguntou Beonin, baixinho, com um pesado sotaque taraboniano. Estava sentada bem quieta na cadeira alta de assento trançado, observando com atenção.
— Ele não sabe quem Leane e eu somos. Conversou conosco algumas vezes durante a jornada até aqui, tarde da noite, quando Min estava dormindo e ele não conseguia descansar. Não disse nada antes porque acha que a Torre inteira estava por trás, mas sabe que foram as irmãs Vermelhas que o protegeram e falaram para ele sobre o Dragão Renascido.
— Por quê? — questionou Morvrin, e Sheriam assentiu.
— É, por quê? Qualquer uma de nós faria todo o possível para ver um homem como ele amansado, mas a Ajah Vermelha vive só para isso. Por que elas inventariam um falso Dragão? — perguntou Sheriam.
— Logain não sabe — respondeu Siuan. — Talvez achem que ganham mais capturando um falso Dragão do que amansando um pobre idiota que talvez aterrorizasse uma aldeia. Talvez elas tenham algum motivo para querer criar mais tumulto.
— Não estamos sugerindo que elas tenham tido alguma coisa a ver com Mazrim Taim ou qualquer um dos outros — acrescentou Leane, mais do que depressa. — Elaida com certeza poderá lhes dizer o que vocês querem saber.
Siuan observou-as ponderar o assunto em silêncio. Nem consideraram a possibilidade de que ela estivesse mentindo. Uma vantagem de ter sido estancada. Pareceu não ocorrer a elas que ter sido estancada podia ter quebrado todos os laços com os Três Juramentos. Algumas Aes Sedai estudavam mulheres estancadas, verdade, mas superficialmente e com relutância. Nenhuma delas queria ser lembrada do que poderia acontecer consigo mesma.
Quanto a Logain, Siuan não tinha preocupações. Não, desde que Min continuasse a ver o que andara vendo. Ele viveria o suficiente para revelar o que Siuan queria, assim que conversasse com o homem. Não ousara arriscar que Logain decidisse seguir o próprio caminho, o que ele poderia muito bem ter feito, caso ela tivesse lhe contado o plano antes. Mas aquela era a única chance que ele tinha de se vingar das que o amansaram, agora que estava cercado por Aes Sedai. Vingança apenas da Ajah Vermelha, verdade, mas ele teria que se contentar com aquilo. Mais valia um peixe no barco que um cardume na água.
Ela olhou de relance para Leane, que abriu o sorriso mais discreto possível. Isso era bom. Leane não havia gostado de ser mantida no escuro sobre os planos dela para o homem até aquela manhã, mas Siuan vivera tempo demais envolta em segredos para que fosse fácil revelar mais do que o necessário, até mesmo para uma amiga. Achou que a ideia do envolvimento da Ajah Vermelha com os outros falsos Dragões fora muito bem plantada. As Vermelhas haviam liderado sua deposição do Trono. Quando aquilo tudo terminasse, talvez a Ajah Vermelha não existisse mais.
— Isto muda bastante as coisas — afirmou Sheriam, depois de algum tempo. — Não podemos seguir uma Amyrlin capaz de fazer esse tipo de coisa.
— Segui-la?! — exclamou Siuan, pela primeira vez realmente perplexa. — Vocês realmente estavam considerando voltar lá para beijar o anel de Elaida? Sabendo o que ela fez e o que vai fazer? — Leane se agitou no assento, como se ela própria quisesse proferir alguns insultos, mas as duas haviam concordado que seria Siuan a perder a cabeça.
Sheriam parecia um pouco envergonhada, e as bochechas morenas de Myrelle estavam um pouco vermelhas, mas as outras receberam as palavras tão placidamente como se estivessem tomando um banho de sol.
— A Torre precisa ser forte — afirmou Carlinya, com a voz tão dura quanto uma pedra congelada. — O Dragão já Renasceu, a Última Batalha se aproxima, e a Torre precisa estar unida.
Anaiya assentiu.
— Nós compreendemos seus motivos para não gostar de Elaida, até para odiá-la. Nós realmente entendemos, mas precisamos pensar na Torre e no mundo. Confesso que eu mesma não gosto de Elaida. Mas, por outro lado, também nunca gostei de Siuan. Não é necessário gostar do Trono de Amyrlin. Não precisa olhar assim, Siuan. Sua língua é afiada desde os tempos de noviça, e isso só piorou com o passar dos anos. E, como Amyrlin, você mandava irmãs para onde bem entendia e poucas vezes explicava o porquê. Essas duas coisas não são uma combinação agradável.
— Eu vou tentar… segurar a língua — disse Siuan, seca. Aquela mulher esperava que o Trono de Amyrlin tratasse todas as irmãs como amigas de infância? — Mas torço para que o que contei a vocês mude seu desejo de se ajoelhar aos pés de Elaida.
— Se essa é você segurando a língua — ponderou Myrelle indolente —, talvez eu mesma tenha que dobrá-la, caso deixemos que você administre os espiões para nós.
— Claro que não podemos voltar para a Torre agora — opinou Sheriam. — Não depois de saber disso. Não até estarmos em uma posição para depor Elaida.
— O que quer que ela tenha feito, as Vermelhas vão continuar a apoiá-la — afirmou Beonin, como um fato, não uma objeção. Não era segredo que as Vermelhas se ressentiam do fato de que não houvera uma Amyrlin de sua Ajah desde Bonwhin.
Morvrin anuiu vigorosamente.
— Outras também irão. Todas as que apoiaram Elaida por tempo demais para acreditar que agora têm outra opção. Todas as que apoiam autoridades, mesmo que sejam vis. E algumas que vão crer que estamos dividindo a Torre quando ela deveria estar unida a qualquer custo.
— Tirando as irmãs Vermelhas, todas podem ser abordadas — ponderou Beonin, com sensatez —, podem estar abertas a negociação. — Mediar e negociar era o que sua Ajah fazia.
— Parece que vamos fazer uso dos seus agentes, Siuan. — Sheriam correu o olhar pelas demais. — A menos que alguém aqui ainda ache que deveríamos tomá-los dela. — Morvrin foi a última a balançar a cabeça, mas finalmente o fez, após um olhar demorado que fez Siuan se sentir nua.
Ela não conseguiu conter um suspiro de alívio. Nada de uma vida curta murchando em uma casa de campo, mas sim uma vida com um propósito. Talvez ainda fosse uma vida curta — ninguém sabia quanto tempo uma estancada poderia viver tendo algo para substituir o Poder Único em sua vida —, mas, com um propósito, seria suficientemente longa. Quer dizer que Myrelle ia dobrar sua língua por ela, hein? Eu vou mostrar para aquela Verde de olhos de raposa… Eu vou é controlar a minha língua e me dar por satisfeita por ela não estar fazendo nada além de olhar para mim, isso sim. Eu sabia que isso ia acontecer. Que me queime, mas eu sabia.
— Obrigada, Aes Sedai — disse, com o tom de voz mais humilde que conseguiu. Chamá-las daquilo lhe doía. Era mais uma mudança, mais um lembrete do que já não era. — Vou tentar fazer um bom trabalho. — Myrelle não precisava ter assentido com tanta satisfação. Siuan ignorou uma vozinha interna dizendo que ela teria feito o mesmo ou até mais em seu lugar.
— Se me permitem uma sugestão — disse Leane —, não basta esperar até vocês terem apoio suficiente no Salão da Torre para depor Elaida. — Siuan exibiu um olhar interessado, como se ouvisse aquilo pela primeira vez na vida. — Elaida está em Tar Valon, na Torre Branca, e, para o mundo, é a Amyrlin. No momento, vocês são apenas um bando de dissidentes. Ela pode dizer que vocês são rebeldes e conspiradoras, e, vindo do Trono de Amyrlin, o mundo vai acreditar.
— Não temos como impedi-la de ser a Amyrlin antes de depô-la — disse Carlinya, mudando de posição na cadeira com um desdém gélido. Se estivesse com o xale de franjas brancas, teria se enrolado nele.
— Vocês podem dar ao mundo uma verdadeira Amyrlin — Leane não se dirigiu à irmã Branca, mas a todas elas, encarando uma por uma, falando com confiança, mas, ao mesmo tempo, parecendo apenas fazer uma sugestão que torcia para que acatassem. Fora Siuan quem apontara que as técnicas que ela usava com os homens podiam ser adaptadas para as mulheres. — Vi Aes Sedai de todas as Ajahs, menos da Vermelha, no salão e nas ruas. Façam com que elejam um Salão da Torre aqui, e deixem o Salão escolher uma nova Amyrlin. Aí vocês podem se apresentar ao mundo como a verdadeira Torre Branca, apenas exilada, e Elaida como uma usurpadora. Com mais as revelações de Logain, têm dúvida de quem as nações vão aceitar como o verdadeiro Trono de Amyrlin?
A ideia foi ouvida com interesse. Siuan viu que elas estavam considerando a sugestão. O que quer que as demais tenham pensado, Sheriam foi a única a se pronunciar contrariamente:
— Vai significar que a Torre está de fato dividida — concluiu a mulher de olhos verdes, com tristeza.
— Ela já está dividida — retrucou Siuan, amargamente, desejando não ter dito nada quando todas as mulheres olharam para ela.
Aquela ideia era para vir toda de Leane. Siuan tinha a reputação de ser uma manipuladora hábil, e era bem possível que elas suspeitassem de qualquer sugestão sua. Por isso começara fulminando-as. Ninguém teria acreditado se ela começasse com palavras amenas. Siuan falaria com elas como se ainda pensasse ser a Amyrlin, e deixaria que as mulheres a colocassem em seu devido lugar. Leane, por outro lado, pareceria mais cooperativa, oferecendo apenas o pouco que podia, e seria mais provável que as Aes Sedai lhe escutassem. Cumprir a parte que lhe cabia não tinha sido difícil — até chegar a hora de suplicar. Então desejara pendurar todas elas para secar ao sol. Sentada ali sem fazer nada!
Você não precisava se preocupar com elas suspeitarem de algo. Para elas, você é um junco quebrado. Se tudo saísse como devia, elas não mudariam de opinião. Um junco útil, mas fraco, sobre o qual não se deveria pensar duas vezes. Fora um ajuste doloroso de se fazer, mas Duranda Tharne lhe mostrara, em Lugard, a necessidade disso. Aquelas mulheres só a aceitariam nos próprios termos, e Siuan teria de utilizar isso da melhor forma possível.
— Eu gostaria de ter pensado nisso — continuou ela. — Ouvindo agora, a ideia de Leane dá a vocês uma maneira de reconstruir a Torre sem precisar primeiro destruí-la por completo.
— Ainda não consigo concordar. — A voz de Sheriam endureceu. — Mas o que tiver que ser, será. Há de ser o que a Roda tecer, e, se a Luz quiser, ela vai tecer Elaida para longe da estola.
— Vamos precisar negociar com as irmãs que continuam na Torre — divagou Beonin, quase consigo mesma. — A Amyrlin que escolhermos precisa ser uma negociadora habilidosa, não?
— É necessário alguém que pense com cuidado — ponderou Carlinya. — A nova Amyrlin precisa ser uma mulher de lógica e juízo sereno.
O bufar de Morvrin foi alto o bastante para fazer todas saltarem em suas cadeiras.
— Sheriam é a mais elevada entre nós, e nos manteve unidas quando já estaríamos correndo em dez direções diferentes.
Sheriam balançou a cabeça vigorosamente, mas Myrelle não lhe deu chance de falar.
— Sheriam é uma escolha excelente. Posso garantir que todas as irmãs Verdes aqui a apoiariam, sei disso. — Anaiya abriu a boca, a concordância estampada em seu rosto.
Era hora de pôr um fim naquilo, antes que a situação saísse do controle.
— Me permitem uma sugestão?
Siuan achou que simulou a modéstia bem melhor do que administrara a docilidade. Foi preciso esforço, mas era melhor aprender a mantê-la. Myrelle não é a única que vai tentar me enfiar no fundo de um porão se acharem que eu passei dos limites. Sejam eles quais forem. Só que elas não tentariam, elas fariam. As Aes Sedai esperavam, ou melhor, exigiam respeito de quem não era uma igual.
— Me parece que qualquer que seja a escolhida de vocês, deve ser alguém que não estava na Torre quando eu… fui deposta. Não seria melhor que a mulher que vai voltar a unir a Torre fosse alguém que não se pudesse acusar de ter escolhido um lado naquele dia? — Se precisasse continuar com aquilo, sua cabeça acabaria explodindo.
— Alguém muito forte com o Poder — acrescentou Leane. — Quanto mais forte for, mais vai poder defender tudo o que a Torre representa. Ou voltará a representar, assim que Elaida cair.
Siuan poderia ter dado um chute nela. Aquela ideia deveria aguardar um dia inteiro para ser jogada no ar quando elas já tivessem começado de fato a considerar nomes. Ela e Leane sabiam o suficiente a respeito de cada irmã para apontar alguma fraqueza, alguma dúvida para ser plantada sutilmente sobre sua aptidão para a estola e o cajado. Siuan preferiria nadar nua no meio de um cardume de lúcios do que imaginar aquelas mulheres percebendo que ela estava tentando manipulá-las.
— Uma irmã que não estava na Torre — refletiu Sheriam, assentindo. — Faz bastante sentido, Siuan. Muito bom. — Como era fácil conseguir tapinhas nas costas!
Morvrin contraiu os lábios.
— Não vai ser fácil encontrar essa escolhida.
— A força limita as possibilidades. — Anaiya olhou em volta para as demais. — Não só fará dela um símbolo melhor, pelo menos para as outras irmãs, como a força com o Poder costuma vir acompanhada de força de vontade, e a escolhida certamente vai precisar disso.
Carlinya e Beonin foram as últimas a concordar.
Siuan manteve o rosto calmo, sorrindo só por dentro. A ruptura da Torre mudara muitas coisas, muitas maneiras de pensar, além da dela própria. Aquelas mulheres tinham guiado as irmãs reunidas ali, e agora estavam discutindo quem deveria ser apresentada ao novo Salão da Torre como se isso não devesse ser uma escolha do próprio Salão. Não seria difícil convencê-las, bem discretamente, de que a nova Amyrlin deveria ser alguém que elas pudessem manejar. E, sem saber, as mulheres e a Amyrlin que Siuan escolhera para substituí-la seriam guiadas por ela própria. Ela e Moiraine tinham trabalhado tempo demais para encontrar Rand al’Thor e prepará-lo, haviam dado muito de suas vidas para que arriscasse que o tempo que ainda lhe restava fosse estragado por outra pessoa.
— Me permitem outra sugestão? — A modéstia simplesmente não fazia parte de sua natureza. Ela teria que encontrar outra coisa. Tentando não ranger os dentes, esperou Sheriam assentir antes de prosseguir: — Elaida vai tentar descobrir onde Rand al’Thor está. Quanto mais para o sul eu vim, mais boatos escutei de que ele já saiu de Tear. Acho mesmo que sim, e acho que concluí para onde ele foi.
Siuan não precisava dizer que elas tinham que encontrá-lo antes de Tar Valon. Todas compreendiam isso. Não só Elaida certamente lidaria mal com Rand, como, caso pusesse as mãos nele e o tivesse blindado e sob seu controle, qualquer esperança de derrubá-la cairia por terra. Os governantes conheciam as Profecias, ainda que seus povos não conhecessem. Eles perdoariam uma dúzia de falsos Dragões, por pura necessidade.
— Para onde? — rosnou Morvrin, um instante antes de Sheriam, Anaiya e Myrelle também perguntarem em uníssono.
— Para o Deserto Aiel.
Houve um momento de silêncio, até que Carlinya disse:
— Isso é ridículo.
Siuan conteve uma resposta raivosa e sorriu de um jeito que esperava ser apologético.
— Talvez, mas eu li um pouco sobre os Aiel quando me tornei uma Aceita. Gitara Moroso achava que algumas das Sábias Aiel pudessem canalizar. — Gitara era a Curadora, naquela época. — Um dos livros que ela me deu para ler, um volume velho que ficava no canto mais poeirento da biblioteca, afirmava que os Aiel se autointitulavam o Povo do Dragão. Eu não me lembrei disso até tentar decifrar para onde Rand poderia ter ido. As Profecias dizem que “a Pedra de Tear não cairá até que o Povo do Dragão venha”, e havia Aiel na conquista da Pedra. Sobre isso, todos os boatos e histórias estão de acordo.
De repente, os olhos de Morvrin pareceram se desviar para outro lugar.
— Lembro de especulações sobre as Sábias, na época em que fui elevada ao xale. Seria fascinante, caso fosse verdade, mas os Aiel recebem Aes Sedai apenas um pouco melhor do que recebem qualquer outra pessoa que entre no Deserto, e parece que as Sábias têm alguma lei ou costume que as proíbe, pelo que eu entendi, de falar com estranhos, o que torna extremamente difícil se aproximar o suficiente de uma delas para sentir se… — Ela estremeceu de repente e encarou Siuan e Leane como se suas divagações tivessem sido culpa delas. — Algo que você se lembra de ter lido em um livro que provavelmente foi escrito por alguém que nunca viu um Aiel é um fio muito frágil para se tecer um cesto.
— Um fio muitíssimo frágil — reforçou Carlinya.
— Mas que faça valer a pena mandar alguém para o Deserto? — Foi preciso se esforçar para fazer daquilo uma pergunta, em vez de uma ordem. Siuan achava que ia derreter em suor, caso não encontrasse outra maneira. Ainda tinha controle suficiente sobre si mesma para ignorar o calor, geralmente, mas não enquanto tentava arrastar aquelas mulheres consigo sem que elas percebessem seu punho no cabelo delas. — Não creio que os Aiel tentariam machucar uma Aes Sedai. — Não se a mulher fosse rápida em mostrar que era uma Aes Sedai. Siuan realmente achava que não. Precisavam arriscar. — E, caso ele esteja no Deserto, os Aiel vão saber. Lembrem-se daqueles Aiel na Pedra.
— Talvez — ponderou Beonin, hesitante. — O Deserto é grande. Quantas pessoas precisaríamos mandar?
— Se o Dragão Renascido estiver no Deserto — disse Anaiya —, o primeiro Aiel que for encontrado vai saber disso. Rand al’Thor está no centro de todos os acontecimentos. Ele não conseguiria escorregar e cair no oceano sem fazer um barulho que seria ouvido em todos os cantos do mundo.
Myrelle sorriu.
— Tem que ser uma Verde. Ninguém do restante de vocês cria elos com mais de um Guardião, e dois ou três Gaidin podem ser muito úteis no Deserto até os Aiel perceberem que se trata de uma Aes Sedai. Eu sempre quis ver um Aiel. — Ela havia sido noviça durante a Guerra dos Aiel, e não tivera permissão para sair da Torre. Não que qualquer Aes Sedai tenha tomado parte na guerra, além de Curar, claro. Os Três Juramentos as impediam, a menos que Tar Valon, ou talvez até a própria Torre, fosse atacada. E aquela guerra não chegara a cruzar os rios.
— Nem você — avisou Sheriam — nem qualquer outra integrante deste Conselho. Quando concordou em se juntar a nós, Myrelle, concordou em ir até o fim, o que não inclui perambular por aí só porque está entediada. Receio que vá haver mais situações emocionantes do que qualquer uma de nós gostaria, até isso tudo terminar. — Em outras circunstâncias, ela teria sido uma excelente Amyrlin. Naquela, era simplesmente forte e segura demais de si. — Mas Verde… É, acho que sim. Duas? — Seus olhos verdes passearam por todas as demais. — Para garantir?
— Kiruna Nachiman? — sugeriu Anaiya.
— Bera Harkin? — acrescentou Beonin.
As outras assentiram, exceto Myrelle, que se remexia, irritada. Aes Sedai não faziam bico, mas ela chegou perto.
Siuan respirou aliviada pela segunda vez. Tinha certeza de que seu raciocínio estava correto. Ele fora para algum lugar e, se estivesse em qualquer ponto entre a Espinha do Mundo e o Oceano de Aryth, os boatos estariam correndo de vento em popa. E, onde quer que ele estivesse, Moiraine estaria lá, segurando-o pelo colarinho. Kiruna e Bera com certeza estariam dispostas a levar uma carta para Moiraine, e haveria sete Guardiões com elas para evitar que os Aiel as matassem.
— Não queremos cansar você e Leane — prosseguiu Sheriam. — Vou pedir para uma das irmãs Amarelas dar uma olhada em vocês. Talvez ela possa fazer algo para ajudar, aliviá-las de alguma forma. Vou mandar arrumarem quartos onde possam descansar.
— Se você vai ser nossa chefe dos espiões — completou Myrelle, solícita —, deve se manter forte.
— Não sou tão frágil quanto vocês parecem pensar — protestou Siuan. — Se fosse, teria conseguido vir atrás de vocês por quase duas mil milhas? Qualquer fraqueza que eu tenha tido, depois de ser estancada, já ficou no passado, acreditem. — A verdade era que tinha reencontrado um centro de poder e não queria abandoná-lo, mas não podia dizer isso. Todos aqueles olhos preocupados fixos nela e em Leane. Bem, não o de Carlinya, particularmente, mas os demais. Luz! Vão mandar uma noviça nos enfiar na cama para tirarmos uma soneca!
Uma batida na porta foi imediatamente sucedida por Arinvar, Guardião de Sheriam. Cairhieno, ele não era alto nem esbelto, mas, apesar das têmporas grisalhas, tinha o rosto severo e se movia como um leopardo à espreita.
— Há uns vinte e poucos cavaleiros a leste — anunciou, sem cerimônia.
— Não são Mantos-brancos — afirmou Carlinya —, ou imagino que vocês teriam nos informado.
Sheriam a encarou. Muitas irmãs ficavam irritadiças quando outra se colocava entre ela e seus Gaidin.
— Não podemos permitir que fujam, talvez para espalhar informação de que estamos aqui. Eles podem ser capturados, Arinvar? Eu preferia isso a matá-los.
— As duas opções podem ser bem difíceis — respondeu ele. — Machan afirma que estão armados e aparentam ser veteranos. Valem dez vezes mais do que a mesma quantidade de jovens.
Morvrin soltou um muxoxo contrariado.
— Temos que conseguir uma coisa ou outra. Me perdoe, Sheriam. Arinvar, os Gaidin conseguiriam levar sorrateiramente algumas das irmãs mais ágeis até bem perto desses homens para tecer Ar em torno deles?
Ele balançou minimamente a cabeça.
— Machan diz que eles podem ter visto alguns Guardiões vigiando. Com certeza perceberiam se tentássemos levar mais de uma ou duas de vocês até lá perto. Mas ainda estão se aproximando.
Siuan e Leane não foram as únicas a trocar olhares surpresos. Poucos homens viam um Guardião que não quisesse ser visto, mesmo sem o manto dos Gaidin.
— Então vocês devem fazer como acharem melhor — disse Sheriam. — Capturem esses homens, se possível. Mas nenhum pode escapar para nos denunciar.
Antes que Arinvar pudesse concluir a reverência, a mão no punho da espada, outro homem apareceu ao lado dele, escuro, alto e largo feito um urso, com cabelos até os ombros e uma barba cerrada que deixava o lábio superior aparente. Os movimentos fluidos de um Guardião pareciam estranhos nele. O homem piscou para Myrelle, sua Aes Sedai, enquanto falava com forte sotaque illianense:
— A maioria deles, no caso, resolveu ficar onde estava, mas um parece estar vindo sozinho. Mesmo que minha velha mãe discordasse, eu ainda diria que é Gareth Bryne, pelo que consegui ver.
Siuan o encarou, as mãos e os pés subitamente frios. Havia muitos rumores de que Myrelle havia se casado com este Nuhel e com os outros dois Guardiões, o que desafiava as convenções e leis de todas as terras de que Siuan já tinha ouvido falar. Era o tipo de pensamento incongruente que flutuava por uma mente em choque, e naquele momento ela se sentia como se um mastro tivesse desabado em sua cabeça. Bryne, ali? Impossível! É loucura! Claro que o homem não poderia tê-las seguido todo esse tempo para… Ah, sim, poderia e seguiria. Aquele ali seguiria. Enquanto viajavam, ela dissera a si mesma que se tratava apenas de cautela e sensatez não deixar rastros, que Elaida sabia que as duas não estavam mortas, independentemente dos boatos, e que não pararia de caçá-las até que fossem encontradas ou que ela fosse derrubada. Siuan ficara irritada de ter precisado pedir informações, ao fim, mas o pensamento que a devorara feito um tubarão não tinha sido o de que Elaida, de alguma forma, pudesse encontrar um ferreiro de uma pequena aldeia em Altara, mas sim de que tal ferreiro fosse como uma placa pintada para Bryne. Eu falei para você que era uma tolice, não falei? E agora aqui está ele.
Siuan se lembrava muito bem do confronto quando precisara dobrá-lo na questão envolvendo Murandy. Fora como dobrar uma barra espessa de ferro, ou alguma mola imensa que saltaria de volta se ela a soltasse por um instante. Precisara fazer uso de toda a sua força, tivera de humilhá-lo publicamente, para garantir que Bryne permanecesse curvado pelo tempo que fosse necessário. Ele não podia ir contra o que havia concordado em fazer de joelhos, suplicando o perdão dela, com cinquenta nobres assistindo a tudo. A própria Morgase já havia sido bem difícil, e Siuan não estivera disposta a arriscar que Bryne desse à rainha uma desculpa para desobedecer suas instruções. Estranho pensar que ela e Elaida haviam trabalhado juntas naquela ocasião, quando obrigaram Morgase a obedecê-las.
Precisava manter a compostura. Estava atordoada, pensando em tudo, menos no que tinha de pensar. Concentre-se. Não é hora de entrar em pânico.
— Vocês precisam expulsá-lo daqui. Ou matá-lo.
Soube que fora um erro enquanto as palavras ainda estavam saindo da boca, todas exalando urgência. Até os Guardiões olharam para ela, assim como as Aes Sedai… Nunca antes soubera qual era a sensação, para alguém desprovida do Poder, de ter aqueles olhos em si com força total. Sentiu-se nua, com a própria mente despida. Mesmo sabendo que Aes Sedai não eram capazes de ler pensamentos, ainda teve vontade de se confessar antes que aquelas mulheres listassem suas mentiras e crimes. Siuan torceu para que seu rosto não estivesse como o de Leane, com as bochechas vermelhas e os olhos arregalados.
— Você sabe por que ele está aqui. — A voz de Sheriam tinha uma certeza tranquila. — Vocês duas sabem. E não querem confrontá-lo. A ponto de nos pedir para matá-lo para vocês.
— São poucos os grandes capitães ainda vivos. — Nuhel listou-os nos dedos enluvados: — Agelmar Jagad e Davram Bashere nunca vão sair da Praga, eu acho, e Pedron Niall, no caso, seria inútil para vocês. Se Rodel Ituralde estiver vivo, vai estar atolado no que resta de Arad Doman. — O homem ergueu o dedo grosso. — E então só resta Gareth Bryne.
— Então você acha que vamos precisar de um grande capitão? — indagou Sheriam, em voz baixa.
Nuhel e Arinvar não olharam um para o outro, mas, ainda assim, Siuan teve a sensação de que os dois haviam se entreolhado.
— A decisão é sua, Sheriam — respondeu Arinvar, no mesmo tom. — Sua e das outras irmãs, mas, se sua intenção é voltar para a Torre, Bryne poderia ser útil. Se pretendem permanecer aqui até Elaida vir atrás de vocês, então, não. — Myrelle fitou Nuhel com um olhar questionador, e o homem assentiu.
— Parece que você estava certa, Siuan — disse Anaiya com ironia. — Não enganamos os Gaidin.
— A questão é saber se ele vai aceitar nos servir — afirmou Carlinya.
Morvrin anuiu e acrescentou:
— Temos que fazer Bryne enxergar nossa causa de modo que ele queira servir. Não vai nos ajudar em nada todos ficarem sabendo que nós matamos ou aprisionamos um homem tão notável antes mesmo de começarmos.
— Sim — concordou Beonin —, e precisamos oferecer recompensas que o prendam firmemente a nós.
Sheriam desviou o olhar para os dois homens.
— Quando Lorde Bryne chegar à aldeia, não digam nada a ele, mas tragam-no até nós. — Tão logo a porta se fechou atrás dos Guardiões, o olhar da mulher se firmou. Siuan o reconheceu, os mesmos olhos verdes que faziam os joelhos das noviças tremerem antes que qualquer palavra fosse pronunciada. — Agora vocês vão nos dizer exatamente por que Bryne está aqui.
Não havia escolha. Se a apanhassem mesmo na menor das mentiras, passariam a questionar tudo. Siuan respirou fundo.
— Resolvemos nos abrigar para passar a noite em um estábulo perto de Fontes de Kore, em Andor. Bryne é o lorde de lá, e…