31 As neves distantes

As ruas de Eianrod eram perfeitamente paralelas, sem curvas, e se cruzavam em ângulos retos. Onde era necessário, atravessavam colinas que, na maioria dos casos, eram aterradas com pedras. As construções de pedra e telhado de ardósia tinham um aspecto angular, como se todas as linhas fossem verticais. Eianrod não caíra nas mãos de Couladin. Não havia ninguém quando os Shaido passaram por lá. Contudo, boa parte das casas não passava de vigas queimadas e cascas ocas em ruínas, incluindo a maioria das largas edificações de mármore com três andares e varandas, que Moiraine afirmara pertencer a mercadores. Móveis quebrados e roupas estavam espalhados pelas ruas, além de pratos estilhaçados, cacos de vidro das janelas, botas, ferramentas e brinquedos.

Os incêndios haviam ocorrido em épocas diferentes — Rand chegara sozinho a essa conclusão, analisando o desgaste das madeiras enegrecidas e o cheiro de queimado que ainda se sentia em determinados locais —, mas Lan delineara o fluxo das batalhas que conquistaram e reconquistaram a cidade. Os conquistadores eram as diferentes Casas disputando o Trono do Sol, embora provavelmente, pelo aspecto das ruas, os últimos a dominar Eianrod tivessem sido bandidos. Boa parte dos bandos que vagavam por Cairhien não se mantinha leal a nada e a ninguém, exceto ao ouro.

Foi a uma das casas dos mercadores que Rand se dirigiu, na maior das duas praças da cidade. Eram três andares quadrados de mármore cinza, com varandas pesadas e degraus largos ladeados por espessos corrimãos de pedra que davam para uma fonte silenciosa, com a bacia redonda empoeirada. A oportunidade de voltar a dormir em uma cama tinha sido boa demais para deixar passar, e ele tivera esperanças de que Aviendha decidisse permanecer em uma tenda. Se na dele ou na das Sábias, não se importava, contanto que não precisasse tentar dormir ouvindo a respiração dela a poucas passadas de distância. Ultimamente, começara a imaginar que escutava o coração dela batendo mesmo quando não estava agarrando saidin. Mas, caso ela não ficasse longe, havia tomado algumas precauções.

As Donzelas pararam junto aos degraus, espalhando-se pelo prédio para guardá-lo de todas as direções. Rand temera que elas fossem tentar declarar aquele local como Teto das Donzelas, ainda que só por uma noite, então, assim que escolheu a casa, uma das poucas na cidade com o telhado inteiro e a maioria das janelas intacta, dissera a Sulin que estava declarando-a o Teto dos Irmãos do Fonte de Vinho. Só podia entrar ali quem já tivesse bebido do riacho Fonte de Vinho, em Campo de Emond. Pelo olhar que lançou a ele, Sulin sabia muito bem quais eram suas intenções, mas ninguém o acompanhou além das portas largas que mais pareciam estreitos painéis verticais.

Dentro, os amplos aposentos estavam vazios, apesar de alguns gai’shain de roupões brancos terem espalhado cobertores para si mesmos no espaçoso hall de entrada, cujo teto alto de gesso exibia um padrão de quadrados rigorosos. Manter os gai’shain lá fora estava além de sua capacidade, mesmo que Rand quisesse, assim como manter Moiraine, a não ser quando ela estava dormindo em outro local. Não importava a ordem que Rand desse quanto a não ser perturbado, ela sempre encontrava um jeito de fazer as Donzelas a deixarem entrar, e ele sempre tinha que mandá-la embora com todas as letras para que a mulher partisse.

Os gai’shain se levantaram suavemente, homens e mulheres, antes que Rand fechasse a porta. Não dormiriam até que ele dormisse, e alguns se revezariam acordados para o caso de ele querer algo no meio da noite. Tentara ordenar que não fizessem isso, mas dizer um gai’shain para não servir de acordo com os costumes era como chutar um fardo de lã: qualquer impacto causado desapareceria assim que o pé desencostasse. Rand os dispensou com um aceno e subiu os degraus de mármore. Alguns dos gai’shain haviam recuperado alguns móveis, incluindo uma cama e dois colchões de penas, e ele não via a hora de se lavar e…

Rand ficou paralisado assim que abriu a porta do quarto. Aviendha optara por não permanecer nas tendas. Ela estava de pé junto ao lavatório com uma pia quebrada e um cântaro que não combinavam, um pedaço de pano em uma das mãos e uma barra de sabão amarelo na outra. Estava sem roupa. Parecia tão estarrecida e incapaz de se mover quanto ele.

— Eu… — Ela parou para engolir, os grandes olhos verdes fixos no rosto dele. — Não consegui armar uma tenda de vapor aqui nesta… cidade, então pensei em tentar o seu jeito de… — Ela tinha músculos definidos e curvas suaves, e a umidade a fazia brilhar da cabeça aos pés. Rand jamais imaginara que suas pernas fossem tão compridas. — Achei que você ia ficar mais tempo na ponte. Eu… — Seu tom de voz ficou agudo, os olhos se arregalaram em pânico. — Eu não armei para você me ver assim! Preciso ficar longe de você! O mais longe que puder! Eu preciso!

De repente, uma linha vertical tremeluzente apareceu no ar perto dela. A linha se alargou, como se estivesse em rotação, e formou um portal. Um vento gelado soprou de lá e percorreu o quarto, trazendo espessas cortinas de neve.

— Preciso sair daqui! — gritou ela, saindo em disparada em direção à nevasca.

Imediatamente, o portão voltou a se estreitar, girando, mas, sem nem pensar, Rand canalizou e o bloqueou na metade da largura anterior. Não sabia o que havia feito, nem como, mas tinha certeza de que aquele era um portão para Viajar, tal como Asmodean lhe contara e fora incapaz de ensinar. Não havia tempo para pensar. Para onde quer que Aviendha tivesse ido, adentrara nua no coração de uma nevasca. Rand desamarrou os fluxos que tecera, já puxando todos os cobertores da cama para jogá-los por cima das roupas e do catre da garota. Pegou os lençóis, as roupas e os tapetes, tudo junto, e se lançou portão adentro poucos instantes depois de Aviendha.

O vento gelado uivava pelo ar noturno tomado por espirais brancas. Mesmo enrolado no Vazio, ele sentia o corpo tremendo. Conseguia identificar vagamente alguns vultos dispersos na escuridão. Árvores, pensou. Não sentia cheiro de nada, só o frio. À frente, uma forma se moveu, obscurecida pela escuridão e pela tempestade de neve. Não fosse a nitidez de sua visão no Vazio, talvez não a enxergasse. Aviendha estava correndo o máximo que podia. Ele se arrastou atrás dela, a neve batendo nos joelhos, segurando o embrulho compacto bem firme contra o peito.

— Aviendha! Pare! — Temeu que o vento uivante abafasse seu grito, mas ela o ouviu. O que apenas a fez correr mais ainda. Rand se forçou a acelerar, vacilando e tropeçando à medida que a neve cada vez mais profunda lhe pesava nas botas. As pegadas deixadas pelos pés descalços dela se preenchiam rapidamente. Se ele a perdesse de vista ali… — Pare, sua tola! Está tentando se matar? — O som de sua voz parecia impeli-la a correr mais rápido.

Sem arrefecer, Rand seguiu em frente, quase caindo e se esforçando para tornar a ficar de pé, empurrado tanto pelo vento que o açulava quanto pelos tropeços na neve e colisões com as árvores. Não podia tirar os olhos dela. Ficou agradecido por aquela floresta, ou o que quer que fosse aquilo, ter árvores tão espaçadas.

No Vazio, as ideias se sucediam rapidamente e logo eram descartadas. Poderia tentar domar a tempestade, e talvez, como resultado, o ar virasse gelo. Um abrigo de Ar para se proteger da neve que caía não ajudaria em nada contra a neve já sob seus pés. Com Fogo, poderia derreter um caminho para si mesmo e, em troca, tropeçar em meio à lama. A menos que…

Ele canalizou, e a neve logo adiante derreteu em uma faixa de uma braça de largura, uma faixa que ia correndo à frente conforme ele corria. O vapor subiu, e a neve que caía desaparecia a um pé do solo arenoso. Rand sentia o calor atravessando as botas. Afundado quase na altura dos tornozelos, seu corpo tremia com o frio de gelar os ossos. Os pés suavam e se contraíam no solo aquecido. Mas ele já a estava alcançando. Mais cinco minutos e…

De repente, a imagem vaga que ele vinha seguindo desapareceu, como se Aviendha tivesse caído em um buraco.

Mantendo os olhos fixos no ponto em que a vira pela última vez, Rand correu o mais rápido que pôde. Subitamente, havia água gelada correndo por seus tornozelos, quase no meio das panturrilhas. À frente, a neve derretia, revelando cada vez mais, e o gelo voltava se refazendo, devagar. Nenhum vapor subia da água negra. Regato ou rio, era grande demais para que sua capacidade de canalizar aquecesse minimamente a corrente que fluía com velocidade. Ela devia ter corrido até o gelo e caído, mas Rand não a salvaria tentando entrar naquela água. Preenchido por saidin, mal se dava conta do frio, mas os dentes batiam sem controle.

Recuou até a margem, mantendo os olhos fixos no local onde achava que Aviendha caíra, e canalizou fluxos de Fogo no solo ainda descoberto, bem afastado do córrego, até a areia derreter, se fundir e ganhar um brilho branco. Mesmo naquela tempestade, aquilo ficaria quente por algum tempo. Colocando o embrulho ao lado — a vida dela dependeria de reencontrarem os cobertores e tapetes —, ele avançou pela branquidão da neve, perto da areia derretida, e se estirou. Lentamente, Rand rastejou até o gelo coberto de neve.

O vento passava assobiando. Era como se seu casaco nem existisse. As mãos, àquela altura, estavam dormentes, os pés, quase isso. Parara de tremer, exceto por um calafrio ocasional. Calmo e sereno dentro do Vazio, ele sabia o que estava acontecendo. Havia nevascas em Dois Rios, talvez tão intensas quanto aquela. Seu corpo estava se esgotando. Se não encontrasse logo alguma fonte de calor, seria capaz de assistir calmamente à própria morte de dentro do Vazio. Mas, caso morresse, Aviendha também morreria. Isso se já não estivesse morta.

Ele mais sentiu do que ouviu o gelo rachando com seu peso. As mãos tateantes caíram na água. O local era aquele, mas, com a neve rodopiando pelo ar, ele mal conseguia ver. Debateu-se, procurando, as mãos dormentes espirrando água. Uma delas bateu em alguma coisa na borda do gelo, e Rand comandou que seus dedos se fechassem, sentindo os cabelos congelados.

Tenho que tirá-la daqui. Ele rastejou para trás, arrastando-a. Aviendha era um peso morto deslizando devagar para fora d’água. Dane-se se o gelo arranhá-la. Melhor do que congelar ou se afogar. Para trás. Continue se mexendo. Se você desistir, ela morre. Continue se mexendo, e que se queime! Rastejando. Puxava com as pernas, com uma das mãos. A outra estava presa ao cabelo de Aviendha. Não havia tempo para tentar segurar melhor. Fosse como fosse, ela não sentiria nada. Faz muito tempo que você só tem tido facilidades. Lordes se ajoelhando, gai’shain correndo para buscar seu vinho, Moiraine fazendo o que você manda. Para trás. Hora de fazer alguma coisa você mesmo, se é que ainda consegue. Mexa-se, seu bastardo chamejante nascido de uma cabra decrépita! E continue se mexendo!

De repente, seus pés começaram a doer e a dor foi subindo pelas pernas. Ele precisou de um momento para olhar para trás, e então rolou para fora do caminho fumegante de areia derretida. Fios de fumaça, no ponto em que suas calças haviam começado a pegar fogo, eram levados embora pelo vento.

Manuseando desajeitadamente o embrulho que havia deixado ali, ele enrolou Aviendha da cabeça aos pés em tudo o que encontrou: os cobertores, os tapetes do catre, as roupas dela. Cada pedacinho de proteção era vital. Os olhos estavam fechados, e ela não se mexia. Rand abriu os cobertores o suficiente para colocar o ouvido no peito dela. O coração batia tão devagar que ele não tinha certeza se realmente estava escutando. Nem quatro lençóis e meia dúzia de tapetes bastavam, e ele não tinha como canalizar calor nela, como fizera com o solo. Mesmo que afilasse o fluxo o máximo possível, era mais provável que a matasse do que a aquecesse. Rand sentia a tessitura que usara para manter o portão dela aberto, mesmo a uma ou talvez duas milhas de distância tempestade adentro. Se tentasse carregá-la até tão longe, nenhum dos dois sobreviveria. Ambos precisavam de abrigo, e teria de ser um local próximo.

Canalizou fluxos de Ar, e a neve começou a se mover pelo chão em sentido contrário ao do vento, formando espessas paredes quadradas de todos os lados, com três passadas de comprimento, e uma abertura funcionando como porta, erguendo-se cada vez mais, compactando a neve até fazê-la brilhar feito gelo e criando um telhado alto o bastante para se sustentar. Aconchegando Aviendha nos braços, ele adentrou o interior escuro aos tropeções, tecendo e amarrando chamas que dançavam nos cantos para dar luz e canalizando para despejar mais neve até fechar a porta.

Bastou o vento ficar de fora para a sensação de calor aumentar, mas aquilo não seria suficiente. Usando o truque que Asmodean lhe mostrara, Rand teceu Ar e Fogo, e o ar em torno deles se aqueceu. Nem ousava atar aquela tessitura. Se pegasse no sono, ela poderia crescer e derreter a cabana. Na verdade, as chamas eram quase tão perigosas de se amarrar, mas ele estava extenuado e com frio demais para manter mais de uma tessitura.

O chão da parte interna fora desobstruído conforme Rand construíra o abrigo, um solo arenoso só com algumas folhas marrons que ele não reconhecia e ervas daninhas baixas, mortas e imundas que lhe eram igualmente estranhas. Largando a tessitura que aquecia o ar, esquentou o chão o suficiente para deixá-lo menos gélido, depois voltou à outra tessitura. O máximo que conseguiu foi deitar Aviendha gentilmente, em vez de largá-la.

Enfiou a mão dentro dos cobertores para sentir a bochecha e o ombro dela. Gotas d’água percorriam o rosto dela à medida que o cabelo de Aviendha derretia. Rand estava com frio, mas ela estava um gelo, precisava de cada fiapo de calor que ele pudesse proporcionar, e Rand não ousava aquecer mais o ar. As paredes internas já brilhavam com uma discreta camada derretida. Por mais congelado que se sentisse, ele tinha muito mais calor no corpo do que Aviendha.

Rand tirou as roupas e se enfiou ao lado dela debaixo de todos os tecidos, as próprias vestes úmidas virando outra camada, já que podiam ajudar a manter o calor dos corpos. Com o tato acentuado pelo Vazio e por saidin, foi maravilhoso senti-la. Sua pele fazia seda parecer áspera. Comparado à pele dela, cetim era… Não pense. Tirou fios de cabelo úmidos do rosto de Aviendha. Deveria tê-los secado, mas a água já não parecia tão fria e, de qualquer forma, não havia nada além dos cobertores e das roupas para usar. Os olhos dela estavam fechados, o peito se mexendo lentamente contra o dele. A cabeça repousava no braço de Rand, aninhada em seu peito. Se não parecesse gelada como o inverno, poderia estar apenas dormindo. Tão em paz, sem raiva nenhuma. Tão linda. Pare de pensar. Foi um comando ríspido nas bordas do Vazio. Fale.

Rand tentou falar a primeira coisa que lhe veio à mente, sobre Elayne e a confusão que suas duas cartas haviam criado, mas aquilo logo fez pensamentos sobre Elayne e seus cabelos dourados flutuarem pelo Vazio, dos beijos trocados em lugares isolados da Pedra. Não pense em beijos, seu idiota! Passou a Min. Nunca pensara nela daquela maneira. Bem, uns poucos sonhos não contavam. Min teria lhe dado um tapa na cara se Rand algum dia tentasse beijá-la, ou gargalhado e o chamado de cabeça oca. O problema era que pensar em qualquer mulher fazia com que se lembrasse de que estava abraçado a uma completamente nua. Preenchido com o Poder, sentia o cheiro e cada polegada da pele dela com tanta clareza quanto se estivesse correndo as mãos por seu cor… O Vazio estremeceu. Luz, você só está tentando aquecê-la! Mantenha a mente longe da pocilga, homem!

Para tentar afastar os pensamentos, falou de suas esperanças quanto a Cairhien, de trazer a paz e um fim para a fome e de conseguir o apoio das nações sem mais derramamentos de sangue. Mas aquilo também tinha vida própria, o caminho inevitável a Shayol Ghul, onde teria que enfrentar o Tenebroso e morrer, caso as Profecias estivessem corretas. Parecia covardia dizer que, de alguma maneira, esperava sobreviver a tudo aquilo. Os Aiel não eram covardes. Mesmo o pior deles era bravo feito um leão. “A Ruptura do Mundo matou os fracos”, ouvira Bael dizer, “e a Terra da Trindade matou os covardes.”

Começou a falar sobre que lugar era aquele onde estavam, para onde Aviendha os arrastara em sua fuga desenfreada e sem sentido. Algum lugar distante e estranho, para haver neve nesta época do ano. Fora mais que uma fuga sem sentido. Loucura. Ainda assim, sabia que ela fugira dele. Fugira dele. Devia mesmo odiá-lo para ter que fugir para o mais longe possível, em vez de apenas dizer para ele deixá-la tomar banho com privacidade.

— Eu devia ter batido na porta. — De seu próprio quarto? — Sei que você não quer ficar perto de mim. E não precisa. Não importa o que as Sábias queiram, o que digam, você vai voltar para as tendas delas. Não vai ter mais que ficar do meu lado. Na verdade, se você chegar perto, eu… eu vou mandar você embora. — Por que estava hesitando? Ela o tratava com raiva, frieza e amargura quando estava acordada. E dormindo… — Isso foi loucura. Você podia ter morrido. — Rand alisava o cabelo dela de novo. Parecia não conseguir parar. — Se aprontar metade disso outra vez, quebro seu pescoço. Faz ideia de quanto vou sentir falta de ouvir sua respiração à noite? — Falta? Ela era enlouquecedora! Rand já estava maluco. Precisava parar com aquilo. — Você vai embora e ponto final, mesmo que eu tenha que mandá-la de volta para Rhuidean. Se for uma ordem do Car’a’carn, as Sábias não podem impedir. Você não vai precisar fugir de mim outra vez.

A mão que ele não conseguia fazer com que parasse de alisar o cabelo de Aviendha ficou paralisada quando ela se mexeu. Ela estava quente, Rand percebeu. Muito quente. Devia enrolar um cobertor ao redor de si mesmo e se afastar. Ela abriu os olhos, claros e profundos, verdes, encarando-o com seriedade a menos de um pé de distância. Não parecia surpresa por vê-lo, e não se afastou.

Rand desentrelaçou os braços do corpo dela, começando a recuar, e Aviendha agarrou um punhado de seu cabelo em um aperto doloroso. Se ele se movesse, ficaria um pouco careca. Ela não lhe deu chance de explicar nada.

— Prometi para minha quase-irmã que vigiaria você. — Com voz baixa e neutra, parecia estar falando mais para si mesma do que para Rand. — Fugi de você o máximo que pude para proteger minha honra. E, mesmo aqui, você me seguiu. Os anéis não mentem, e eu não posso mais fugir. — Seu tom de voz se firmou de modo decisivo. — Não vou mais fugir.

Rand tentou perguntar o que aquilo significava enquanto se esforçava para soltar os dedos de Aviendha de seu cabelo, mas ela o agarrou de novo e puxou a boca de Rand para si. Foi o fim de seus pensamentos racionais. O Vazio se estilhaçou, e saidin escapou. Não achou que conseguiria interromper o beijo, mesmo que quisesse. E nem podia pensar em querer aquilo. Aviendha com certeza também não parecia desejar que ele quisesse. Na verdade, seu último pensamento coerente por um longo tempo foi que não haveria como fazer Aviendha parar.

Após um tempo considerável — duas horas, talvez três, Rand não tinha como ter certeza —, ele se pegou deitado nos tapetes com cobertores sobre o corpo, as mãos atrás da cabeça, observando Aviendha examinar as paredes brancas escorregadias. Os dois haviam retido uma quantidade surpreendente de calor, e não era mais necessário agarrar saidin nem para isolar o frio nem para tentar aquecer o ar. Aviendha não fizera mais do que pentear o cabelo com os dedos ao se levantar, e se movia sem a menor vergonha da nudez. Claro que já era um pouco tarde para sentir vergonha de algo tão pequeno quanto estar sem roupa. Rand se preocupara em não machucá-la ao arrastar Aviendha para fora da água, mas ela exibia menos arranhões que ele e, de algum modo, nenhum maculava minimamente sua beleza.

— O que é isso? — perguntou ela.

— Neve.

Ele explicou o que era neve da melhor maneira possível, mas ela apenas balançou a cabeça, meio admirada, meio descrente. Para alguém que crescera no Deserto, água congelada caindo do céu devia parecer tão impossível quanto voar. De acordo com os registros, a única vez que sequer chovera no Deserto tinha sido quando Rand gerara a chuva.

Ele não conteve um suspiro de pesar quando ela começou a passar a camisola pela cabeça.

— As Sábias podem nos casar assim que voltarmos. — Ele ainda sentia sua tessitura mantendo o portão de Aviendha aberto.

A cabeça vermelho-escura da mulher passou pela gola da camisola, e ela o encarou sem expressão. Não de modo hostil, mas também nada amigável. Determinada, no entanto.

— O que faz você pensar que um homem tem o direito de me pedir isso? Além do mais, você pertence a Elayne.

Ele só conseguiu fechar a boca após alguns instantes.

— Aviendha, nós acabamos de… Nós dois… Luz, nós temos que nos casar. Não que eu esteja fazendo isso por obrigação — acrescentou, mais do que depressa. — Eu quero. — Não tinha muita certeza disso, na verdade. Talvez amasse Aviendha, mas talvez também amasse Elayne. E, por algum motivo, Min continuava a perturbá-lo. Você é tão libertino quanto Mat. Mas, desta vez, podia fazer o que era certo só porque era certo.

Aviendha bufou para ele, examinou as meias só para se certificar de que estavam secas e se sentou para calçá-las.

— Egwene conversou comigo sobre os costumes de casamento de vocês, de Dois Rios.

— Você quer esperar um ano? — indagou ele, incrédulo.

— Um ano. Sim, era disso que eu estava falando. — Ele nunca reparara quanto uma mulher exibia da perna ao calçar meias. Estranho que aquilo pudesse parecer tão excitante depois de tê-la visto nua, suada e… Rand se concentrou em ouvi-la. — Egwene disse que pensou em pedir permissão à mãe dela para se casar com você, mas, antes que ela sequer mencionasse, a mãe disse que ela precisava esperar mais um ano, mesmo depois que já tivesse tranças no cabelo. — Aviendha franziu o rosto, um dos joelhos quase tocando o queixo. — Isso está certo? Ela disse que uma garota só pode fazer tranças no cabelo quando já tem idade para casar. Está me entendendo? Você parece aquele… peixe… que Moiraine pegou no rio. — Não havia peixes no Deserto. Os Aiel só os conheciam dos livros.

— Claro que estou — respondeu Rand. Entendera tanto quanto se fosse cego e surdo. Remexendo-se sob os cobertores, tentou parecer o mais confiante possível. — Pelo menos… Bem, costumes são complicados, e eu não tenho certeza de que parte você está falando.

Por um momento, Aviendha o encarou, desconfiada, mas os costumes Aiel eram tão intricados que ela acabou acreditando. Em Dois Rios, namorava-se por um ano, e, caso desse certo, vinha o noivado e, por fim, o casamento. Os costumes terminavam aí. Enquanto se vestia, ela continuou:

— Eu estou falando de a garota pedir permissão à mãe durante o ano, e para a Sabedoria também. Não posso dizer que entendo. — A blusa branca passando pela cabeça abafou momentaneamente suas palavras. — Se a mulher quer o homem e já tem idade para casar, por que deveria pedir permissão? Mas viu só? Pelos meus costumes — seu tom de voz sugeria que eram esses que importavam —, cabe a mim escolher se lhe peço ou não em casamento, e eu não vou fazer isso. Pelos seus costumes — apertando o cinto, ela balançou a cabeça com desdém —, eu não tinha a permissão da minha mãe. E você precisaria da permissão do seu pai, suponho. Ou do irmão do seu pai, já que seu pai está morto. Não temos nenhuma das duas coisas, então não podemos nos casar. — Aviendha começou a dobrar o cachecol para enrolá-lo em torno da testa.

— Entendi — respondeu ele, com voz fraca.

Qualquer garoto de Dois Rios que pedisse ao pai aquele tipo de permissão levaria uma sonora bofetada na orelha. Quando pensava nos rapazes que haviam suado e se preocupado que alguém, qualquer pessoa, descobrisse o que faziam com a garota com quem pretendiam se casar… Lembrava-se de quando Nynaeve flagrara Kimry Lewin e Bar Dowtry no depósito de feno do pai de Bar. Kimry usava trança havia cinco anos, mas quando Nynaeve terminou o sermão, a Senhora Lewin assumiu o comando. O Círculo das Mulheres quase arrancara o couro do pobre Bar, e aquilo não foi nada em comparação com o que fizeram com Kimry durante o mês que levou até que o casamento fosse organizado, tempo que elas pensaram ser a mínima espera decente a se fazer. A piada sussurrada, para que não chegasse ao Círculo das Mulheres, era de que nem Bar nem Kimry tiveram condições de se sentar durante toda a primeira semana depois do casamento. Rand supôs que Kimry não havia pedido permissão.

— Mas acho que Egwene não sabe de todos os costumes masculinos, afinal de contas — continuou ele. — As mulheres não sabem tudo. Olha, já que fui eu que comecei, temos que nos casar. Essas permissões não importam nada.

Você começou? — Aviendha bufou de um jeito bem significativo. Aiel, andorianas ou o que fossem, as mulheres usavam aqueles sons como varas para cutucar ou bater. — Seja como for, não importa, já que vamos seguir os costumes Aiel. Isso não vai se repetir, Rand al’Thor. — Ele ficou surpreso e contente pelo tom de pesar na voz dela. — Você pertence à quase-irmã da minha quase-irmã. Tenho toh com Elayne agora, mas isso não é da sua conta. Vai ficar deitado aí para sempre? Já ouvi dizer que os homens ficam preguiçosos depois dessas coisas, mas logo os clãs vão começar a marcha da manhã. Você precisa estar lá. — De repente, um olhar triste perpassou o rosto de Aviendha, e ela caiu de joelhos. — Isso se tivermos como voltar. Não sei se lembro o que fiz para abrir o buraco, Rand al’Thor. Você precisa encontrar o caminho de volta.

Rand contou que havia bloqueado o portal e que ainda o sentia aberto. Aviendha pareceu aliviada e até abriu um sorriso. Mas ficou cada vez mais claro, quando ela se sentou e arrumou as saias, que não pretendia virar de costas enquanto ele se vestia.

— O que é justo é justo — resmungou Rand, após um longo instante, saindo desajeitado de debaixo dos cobertores.

Tentou parecer tão indiferente quanto ela, mas não foi fácil. Sentia os olhos de Aviendha feito um toque, mesmo quando estava de costas. Ela não tinha o direito de falar que Rand tinha um traseiro bonito. Ele não dissera nada sobre quão lindo era o dela. Aviendha só fez isso para vê-lo enrubescer. Mulheres não olhavam para homens daquele jeito. E elas não pedem permissão para as mães para…? Rand concluiu que a vida com Aviendha não se tornara nem minimamente mais fácil.

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