Perrin já estava ficando irritado com o povo dançando nas ruas de Cairhien, tão cheias que era quase impossível abrir caminho pela multidão. Uma fileira de pessoas passou por ele, serpenteando atrás de um sujeito narigudo e sem camisa tocando flauta. A última da fila era uma mulherzinha redonda e saltitante, gargalhando feliz, que soltou uma das mãos agarrada à cintura do homem à sua frente e tentou puxar Perrin para a fileira. Ele balançou a cabeça em negativa, e ou os olhos amarelos assustaram a mulher ou seu mau humor era visível, pois ela engoliu o sorriso e seguiu adiante, sem parar de olhá-lo por cima do ombro até sumir na multidão. Uma mulher grisalha e ainda vistosa, ostentando listras coloridas até a cintura no vestido de seda escura, agarrou o pescoço de Perrin com os braços esguios e foi com a boca ávida em direção à dele. Acabou levando um susto quando Perrin a agarrou com toda a delicadeza por debaixo dos braços e a tirou do caminho. Um grupo de homens e mulheres mais ou menos da sua idade que andava cabriolando ao som de tambores trombou com ele, rindo alegremente e puxando seu casaco. Eles ignoraram o balançar negativo da cabeça, até que Perrin empurrou um dos homens para longe com força e soltou um rosnado para os outros. Por um instante, o riso deu lugar a olhares embasbacados, mas o grupo logo voltou a berrar, tentando imitar o rosnado, antes de sair galhofando pela multidão.
Era o primeiro dia do Festival das Luzes, o dia mais curto e o último do ano, e a cidade celebrava de formas que Perrin jamais teria imaginado. Claro que o povo de Dois Rios gostava de dançar durante os festejos, mas aquilo era…! Os cairhienos pareciam determinados a compensar o ano inteiro de reserva e seriedade naqueles dois dias de festa. O decoro fora posto de lado, assim como todas as barreiras entre nobres e plebeus, ao menos publicamente. Mulheres transpirando sob a lã áspera e simples agarravam homens suados em roupas de seda escura com listras coloridas, puxando-os para a dança; homens usando casacos de condutor e coletes de cavalariço rodopiavam mulheres cujos vestidos exibiam listras coloridas às vezes até a cintura. Homens de torso desnudo derrubavam vinho no próprio corpo e em quem mais estivesse por perto. Ao que parecia, qualquer homem podia beijar qualquer mulher, e qualquer mulher podia beijar qualquer homem. E, em cada canto onde Perrin olhava, todos pareciam fazer exatamente aquilo. Tentava não ficar olhando muito tempo para uma só cena. Algumas das nobres que usavam os cabelos em torres de cachos elaboradas estavam nuas até a cintura, usando apenas capas leves, que faziam pouco esforço para manter fechadas. Entre os plebeus, poucas mulheres que tinham tirado as blusas se davam ao trabalho de usar qualquer cobertura além dos próprios cabelos, que eram quase sempre curtos demais para dar conta do recado — elas também jogavam vinho por cima do corpo, aliás, e espalhavam bebidas em todos por perto, no mesmo descontrole dos homens. Gargalhadas sonoras disputavam espaço com mil notas musicais diferentes, vindas de flautas, tambores, cornetas, cítaras, sabiolas e saltérios.
O Círculo das Mulheres de Campo de Emond teria tido um ataque com aquilo, e o Conselho da Aldeia também teria ficado sem palavras, mas aquela depravação era só mais um detalhe para se somar à irritação de Perrin. Quando Nandera foi procurá-lo, disse que Rand provavelmente sumiria por umas poucas horas, mas já tinham se passado seis dias desde seu desaparecimento. E ou Min tinha ido com ele ou estava com os Aiel, só que ninguém parecia saber de nada. Fora aquela tal de Sorilea, as Sábias eram tão evasivas quanto as Aes Sedai — isso quando Perrin conseguia botar alguma contra a parede. Sorilea mandou, sem rodeios, que cuidasse da própria esposa e mantivesse o bedelho fora de assuntos que não diziam respeito aos aguacentos. Perrin não fazia ideia de como Sorilea sabia do problema entre ele e Faile, mas não queria nem saber. Sentia o puxão de Rand feito uma comichão por sob toda a pele, e estava mais forte a cada dia. Estava voltando da escola, onde fora em uma última tentativa de encontrá-lo, mas todos por lá estavam ocupados com bebedeiras, dança e devassidão, feito o restante de Cairhien. Uma mulher chamada Idrien foi apontada como diretora da escola, mas quando ele enfim conseguiu — com alguma dificuldade e muito constrangimento — tirá-la dos beijos que dava em um rapaz com idade para ser filho dela por tempo suficiente para perguntar o que queria, a mulher só conseguiu responder que talvez um sujeito chamado Fel soubesse de alguma coisa. Bem, acabou que o tal Fel estava dançando com três jovens que poderiam ser suas netas. E com as três ao mesmo tempo! Fel mal conseguia lembrar o próprio nome — o que talvez, dadas as circunstâncias, não fosse muito surpreendente. Ah, que a Luz queimasse Rand! Tinha ido embora sem uma palavra, mesmo sabendo sobre a visão de Min, mesmo sabendo que precisaria de Perrin. Ao que parecia, até as Aes Sedai tinham ficado chocadas com aquilo. Naquela mesma manhã, Perrin ficara sabendo que elas tinham partido de volta para Tar Valon havia três dias, depois de afirmarem que não havia mais sentido em permanecer por ali. O que Rand estaria aprontando? Aquela comichão estava deixando Perrin desesperado.
Quando chegou ao Palácio do Sol, encontrou todas as lamparinas acesas e velas queimando em todos os cantos possíveis, fazendo os corredores brilharem feito pedras preciosas sob o sol. Em Dois Rios, todas as casas também estariam iluminadas com todos os lampiões e velas disponíveis pelos dois dias seguintes, até o amanhecer. A maioria dos serviçais do palácio estava pelas ruas, e os poucos que permaneciam lá dentro dançavam, cantavam e gargalhavam quase tanto quanto trabalhavam. Mesmo ali, viam-se mulheres nuas até a cintura, tanto garotas que mal teriam idade para trançar os cabelos em Dois Rios quanto avós de cabeça branca. Os Aiel nos corredores pareciam incomodados quando reparavam nas comemorações, embora na maioria das vezes não esboçassem reação. As Donzelas em particular pareciam furiosas, embora Perrin suspeitasse de que aquela raiva não tivesse a ver com o despudor das cairhienas — desde o sumiço de Rand, as Donzelas ficavam mais parecidas com gatas irritadas.
Ali dentro, pelo menos Perrin conseguiu avançar a passos largos pelos corredores. Quase desejou que Berelain o atacasse. Na imagem que lampejou em sua mente, cravava os dentes na nuca da mulher e a sacudia até que ela saísse correndo com o rabo entre as pernas. Talvez tenha sido a sorte que o fez chegar a seus aposentos sem avistar sequer um fio de cabelo dela.
Teve certeza de que Faile quase desviou os olhos do tabuleiro de pedras quando ele entrou. A mulher ainda exalava aquele cheiro de ciúmes, mas não era o mais forte no momento; a raiva estava mais aguçada, ainda que não estivesse no auge. Em vez disso, o odor mais poderoso era um cheiro insípido e embotado que ele identificou como decepção. Por que a mulher estava decepcionada com ele? Por que não queria conversar? Bastava uma palavra, uma só dica de que tudo voltaria a ser como era, que Perrin cairia de joelhos e aceitaria a culpa por qualquer coisa que Faile quisesse despejar sobre ele. Mas ela apenas moveu uma pedra preta e murmurou:
— É a sua vez, Loial. Loial?
As orelhas do Ogier se remexeram, incomodadas, e as compridas sobrancelhas desabaram. Loial podia ter um péssimo olfato — bem, tão ruim quanto o de Faile, por exemplo —, mas podia perceber mudanças de humor que nenhum humano percebia. Quando Perrin e Faile estavam no mesmo ambiente, o Ogier sempre parecia com vontade de chorar. Ele apenas suspirou, um som que pareceu uma ventania em uma caverna, e depositou uma pedra branca em um ponto em que prenderia grande parte das pedras de Faile, se ela não reparasse e tomasse uma providência. E Faile decerto faria algo a respeito. Ela e Loial eram oponentes do mesmo nível, jogadores muito melhores do que Perrin.
Sulin saiu do dormitório com um travesseiro nos braços, franzindo o cenho para Faile e Perrin. Seu cheiro remetia a uma loba que aguentara quanto pudera enquanto um sem-número de lobinhos puxavam seu rabo em brincadeiras. Também cheirava a preocupação. E, estranhamente, a medo — bem, Perrin não sabia dizer por que era estranho encontrar uma serviçal de cabelos brancos cheirando a medo, por mais que fosse uma de cara curtida e cheia de cicatrizes como Sulin.
Ele pegou um livro de capa de couro trabalhada com douraduras, afundou em uma poltrona e abriu o exemplar. Só que não leu, nem sequer olhou para o livro direito para saber qual volume tinha em mãos. Inspirou profundamente, deixando tudo de fora, menos Faile. Decepção, raiva, ciúmes, e por baixo de tudo aquilo, ainda mais sutil que o suave aroma herbóreo de sabão, estava ela. Sorveu-a com sofreguidão. Uma palavra, era só o que ela precisava dizer.
Bateram à porta e Sulin saiu do quarto pisando duro, balançando as saias de tecido vermelho e branco e cravando os olhos em Perrin, Faile e Loial como se perguntasse por que nenhum deles atendera. Quando viu Dobraine ali, parado, Sulin chegou até a rosnar — coisa que vinha fazendo com bastante frequência desde o sumiço de Rand —, então respirou fundo, como se reunisse forças, e se obrigou a assumir uma postura servil. A mesura profunda poderia ter saudado um rei que fizesse as vezes de carrasco, e a mulher permaneceu naquela posição, com o rosto quase colado ao chão. De repente, começou a tremer. O cheiro de ira se dissolveu, e até a preocupação foi sobrepujada por um cheiro como milhares de estilhaços, todos finos como fios de cabelo e afiados feito a ponta de uma agulha. Perrin já farejara vergonha na Aiel, mas daquela vez ela parecia prestes a morrer daquilo. Sentiu o cheiro agridoce que as mulheres exalavam quando choravam de emoção.
Dobraine, naturalmente, sequer se virou para ela — seus olhos fundos analisaram Perrin, com o rosto sério e até meio sombrio por sob a testa raspada e empoada. Dobraine não cheirava nem de leve a bebida, e também não parecia ter dançado recentemente. Da única vez em que Perrin o vira, achou que o homem cheirava a cautela — não era medo, era mais como se ele atravessasse uma mata densa cheia de cobras venenosas. Aquele cheiro estava dez vezes mais forte.
— Que a graça o favoreça, Lorde Aybara — cumprimentou Dobraine, inclinando a cabeça. — Podemos conversar em particular?
Perrin deitou o livro no chão ao lado da poltrona e apontou para o assento à sua frente.
— Que a Luz brilhe sobre o senhor, Lorde Dobraine. — Se o homem queria ser formal, Perrin podia ser formal. Mas havia limites. — Seja lá o que o senhor queira dizer, minha esposa pode ouvir. Não guardo segredos dela. E Loial é meu amigo.
Sentia o olhar de Faile fixo nele, e o cheiro súbito dela quase o arrebatou. Por alguma razão, associava aquele cheiro ao amor que Faile sentia por ele, pois costumava surgir em seus momentos mais carinhosos ou quando ela o beijava com mais ardor. Pensou em pedir que Dobraine se retirasse, assim como a Loial e Sulin — se Faile estava exalando aquele odor, ele sem dúvida poderia dar um jeito de acertar as coisas —, mas o cairhieno logo foi se sentando.
— Um homem que tem uma esposa de confiança, Lorde Aybara, tem uma graça maior que a riqueza. — Ainda assim, Dobraine encarou Faile por um instante antes de prosseguir. — Hoje, Cairhien sofreu dois infortúnios. Esta manhã, Lorde Maringil foi encontrado morto em sua cama. Foi envenenado, ao que tudo indica. E, pouquíssimo tempo depois, o Grão-lorde Meilan foi vítima da facada de um salteador em plena rua. O que é algo muito incomum durante o Festival das Luzes.
— Por que está me contando isso? — perguntou Perrin, hesitante.
Dobraine espalmou as mãos.
— O senhor é amigo do Lorde Dragão, e ele não está aqui. — O homem hesitou e, quando prosseguiu, parecia forçar as palavras a saírem. — Ontem à noite, Colavaere jantou com convidados de algumas das Casas menores. Daganred, Chuliandred, Annallin, Osiellin, dentre outros. São Casas pequenas, porém numerosas. O assunto foi a aliança com a Casa Saighan e o apoio a Colavaere em sua reivindicação ao Trono do Sol. A mulher fez pouco esforço para manter a reunião em segredo. — Dobraine fez outra pausa, avaliando Perrin com o olhar. Fosse lá o que o sujeito tinha visto, parecia pensar que a situação exigia mais explicações. — Isso é muito estranho, porque tanto Maringil quanto Meilan almejavam o trono, e os dois teriam sufocado Colavaere com o próprio travesseiro se ficassem sabendo do acontecido.
Perrin enfim compreendeu a situação, embora ainda não entendesse por que o homem tinha feito tantos rodeios. Desejou que Faile se pronunciasse — a mulher tinha muito mais talento do que ele para aquele tipo de coisa. Podia vê-la com rabo de olho, a cabeça inclinada por cima do tabuleiro de pedras, observando-o de esguelha.
— Se acredita que Colavaere cometeu um crime, Lorde Dobraine, o senhor deveria ir… até Rhuarc.
Evitou dizer o nome de Berelain, mas mesmo assim o fio tênue do ciúme se intensificou de leve em Faile.
— O Aiel selvagem? — bufou Dobraine. — É melhor ir a Berelain, se tanto. Admito que aquela ali até sabe comandar uma cidade, mas ela acha que todos os dias são o Festival das Luzes. Colavaere vai mandar fatiar e cozinhar a mulher com pimentas. O senhor é amigo do Dragão Renascido. Colavaere… — Ele parou, depois de enfim perceber que Berelain entrara sem bater, trazendo nos braços algo comprido e delgado envolto em um cobertor.
Perrin tinha ouvido o clique da fechadura da porta, mas ao ver a mayenense ali, com metade dos seios expostos, a fúria quase varreu todos os seus outros pensamentos. A mulher fora até ali para continuar com aquele flerte, na frente de sua esposa? A ira o fez se levantar, e ele uniu as mãos espalmadas com um estrépito.
— Fora! Fora, mulher! Fora, agora! Saia, ou eu mesmo vou jogá-la para fora, e com tanta força que vai quicar no chão!
Berelain levou um susto tão grande logo no primeiro berro que deixou cair o que segurava e deu um passo atrás, arregalando os olhos, mas não se retirou. Quando Perrin terminou de gritar, percebeu que todos o encaravam. Dobraine parecia impassível, mas seu odor era de assombro. As orelhas de Loial estavam rígidas e eretas, o queixo batendo no peito. E Faile estava com um sorriso frio… Perrin não conseguia entender. Já estava esperando as ondas de ciúme, com Berelain bem ali, mas por que ela também tinha aquele cheiro tão forte de mágoa?
Foi quando Perrin viu o que Berelain deixara cair. O cobertor se abrira, revelando a espada de Rand e o cinto com a fivela do Dragão. Rand tinha deixado aquilo para trás? Perrin gostava de pensar antes de agir — caso se precipitasse, podia acabar magoando os outros sem intenção —, mas aquela espada caída no chão foi como o golpe de um raio. No trabalho da forja, era burrice e desleixo agir com pressa, mas, ali, Perrin sentiu os pelos da nuca se arrepiarem, e um rosnado ressoou fundo em sua garganta.
— Ele foi levado! — gritou Sulin, de repente, para surpresa de Perrin. Jogando a cabeça para trás e fechando os olhos com força, ela soltou um gemido para o teto, em um tom que fez Perrin estremecer. — As Aes Sedai levaram meu irmão-primeiro! — Seu rosto estava molhado de lágrimas.
— Acalme-se, minha boa mulher — retrucou Berelain, com firmeza. — Vá até o quarto ao lado e acalme-se. — Para Perrin e Dobraine, acrescentou: — Não podemos permitir que ela espalhe isso…
Sulin tratou de interrompê-la, irada:
— Você não está me reconhecendo com este vestido e o cabelo mais comprido. Se falar outra vez de mim como se eu não estivesse aqui, farei o que ouvi dizer que Rhuarc fez com você na Pedra de Tear, coisa que eu já devia ter feito há tempos.
Perrin trocou olhares confusos com Dobraine, Loial e até Faile, antes de a mulher desviar os olhos. Berelain, por outro lado, alternava-se entre o rubor e a palidez. Seu cheiro era pura mortificação, um odor trêmulo e encolhido.
Sulin avançou até a porta em passos firmes e abriu-a com vigor antes que qualquer um dos outros pudesse se mover — Dobraine até fez menção de impedi-la, mas não foi rápido o suficiente. Uma Donzela jovem e loura que passava a viu e escancarou um sorriso bem-humorado.
— Tire esse sorriso da cara, Luaine — vociferou a Aiel, o corpo bloqueando o movimento que fazia com as mãos. O sorriso escancarado de Luaine de fato sumiu no mesmo instante. — Diga a Nandera que venha aqui agora mesmo. E Rhuarc. E traga meu cadin’sor e tesouras para que eu corte o cabelo direito. Corra, mulher! Você é Far Dareis Mai ou Shae’en M’taal?
A Donzela saiu em disparada e Sulin voltou para o salão assentindo com a cabeça, satisfeita, e bateu a porta. Faile estava de queixo caído.
— A graça está conosco — disse Dobraine, aliviado. — Ela não disse nada à Aiel, a mulher deve estar louca. Podemos decidir o que contar a eles depois de prendê-la e amordaçá-la.
Ele avançou para fazer justamente aquilo, já puxando um lenço verde-escuro do bolso do casaco, mas Perrin agarrou seu braço.
— Ela é Aiel, Dobraine — avisou Berelain. — É uma Donzela da Lança. Só não entendi o uniforme…
Para surpresa de Perrin, Berelain foi alvo de um olhar de advertência de Sulin.
Perrin soltou um suspiro lento. E pensar que tentara proteger aquela velha grisalha de Dobraine. O cairhieno o encarou com um olhar inquisitivo, erguendo um pouco a mão que segurava o lenço — ao que parecia, ele ainda era a favor de atá-la e amordaçá-la. Perrin postou-se entre os dois e apanhou a espada de Rand.
— Quero ter certeza. — De súbito, percebeu que se aproximara bastante de Berelain. A mulher olhou para Sulin, aflita, e aproximou-se ainda mais dele, como se buscasse proteção. Mas ela exalava um odor de determinação, não de quem estava aflita. Era o cheiro de uma caçadora. — Não quero tirar conclusões precipitadas — continuou ele, caminhando para perto da cadeira de Faile. Sem se afoitar, apenas um homem indo postar-se ao lado da esposa. — Esta espada por si só não é prova de nada.
Faile levantou-se e contornou a mesa, com muita elegância, observando o tabuleiro por trás do ombro de Loial — ou melhor, por trás do cotovelo. Berelain também avançou, indo em direção a Perrin. Ela ainda lançava olhares temerosos a Sulin, mas não exalava o menor cheiro de medo. A mayenense ergueu a mão como se fosse tomar o braço de Perrin, que foi atrás de Faile, tentando parecer displicente.
— Rand disse que três Aes Sedai não poderiam lhe fazer mal algum, se ele tomasse cuidado — continuou. Faile deslizou pelo outro lado da mesa, de volta até a cadeira. — Duvido muito que ele tenha deixado mais de três se aproximarem. — Berelain o seguiu, lançando olhares comoventes para ele e claramente temerosos na direção de Sulin. — Fui informado de que apenas três estiveram aqui, no dia em que ele sumiu.
Perrin foi atrás de Faile, um pouco mais depressa. A mulher se levantou da cadeira de um pulo, voltando para o lado de Loial. O Ogier gemia, apoiando a cabeça nas mãos — um gemido que era baixo para um Ogier. Berelain seguiu Perrin outra vez, arregalando os olhos já grandes, a personificação de uma mulher buscando proteção. Luz, ela cheirava a determinação!
Perrin virou-se para encará-la, cravando o indicador no peito dela, o que bastou para fazê-la guinchar de susto.
— Pare aí mesmo! — mandou. Então percebeu onde o dedo estava aninhado e recolheu a mão, como se o contato tivesse queimado a pele. Ainda assim, conseguiu manter a voz dura. — Fique aí!
Afastou-se da mayenense, cravando os olhos com força suficiente para rachar uma muralha de pedras. Entendia por que o ciúme de Faile preenchia suas narinas, mas por que ela cheirava ainda mais a mágoa do que antes?
— Poucos homens conseguem minha obediência — comentou Berelain, com uma risadinha —, mas acho que você é um deles. — O rosto, o tom de voz e, mais importante, o odor assumiram um ar de seriedade. — Fui dar uma busca nos aposentos do Lorde Dragão porque estava com medo. Todos sabiam que as Aes Sedai tinham vindo para escoltá-lo até Tar Valon, e eu não estava entendendo por que elas de repente pareciam ter desistido. Eu mesma recebi pelo menos dez visitas de várias irmãs para me aconselhar a respeito do que eu deveria fazer quando ele voltasse à Torre. Pareciam todas muito confiantes de que era isso que ele faria. — Ela hesitou, e, embora a mulher não olhasse para Faile, Perrin teve a impressão de que estava avaliando se deveria dizer algo na frente dela. E na frente de Dobraine, mas o problema maior parecia ser Faile. O cheiro de caçadora voltou. — Dessas conversas, acabei com a forte impressão de que queriam que eu voltasse a Mayene, por bem ou por mal.
Sulin resmungou entredentes, mas as orelhas de Perrin ouviram com clareza.
— Rhuarc é um idiota. Se ela fosse mesmo filha dele, o homem não teria tempo de fazer nada além de dar umas surras nela.
— Dez? — perguntou Dobraine. — Eu só recebi uma visita. Acho que a mulher ficou bem decepcionada quando deixei claro que havia jurado lealdade ao Lorde Dragão. Mas, sejam dez ou uma, Colavaere é a chave. Ela sabe tanto quanto qualquer um que o Lorde Dragão pretende entregar o Trono do Sol a Elayne Trakand. — O homem fez uma careta. — Deveria ser Elayne Damodred. Taringail deveria ter insistido para que Morgase adotasse o Damodred dele, em vez de ter ele adotado o sobrenome Trakand. E ela teria concordado, porque precisava dele demais. Bom, Elayne Trakand ou Elayne Damodred, ela tem tanto direito ao trono quanto qualquer um, e de longe mais direito do que Colavaere. Ainda assim, estou convencido de que Colavaere mandou matar Maringil e Meilan para assegurar o direito ao trono. Ela jamais teria ousado fazer isso se pensasse que o Lorde Dragão fosse retornar.
— Então é por isso. — Berelain franziu o cenho de leve, deixando transparecer uma leve irritação. — Tenho provas de que ela mandou um serviçal envenenar o vinho de Maringil. Ela foi descuidada, e eu trouxe dois bons caçadores de ladrões… Mas não sabia o motivo. — Ela inclinou a cabeça um tantinho, reconhecendo o olhar de admiração de Dobraine. — Ela será enforcada por isso. Se houver alguma forma de trazer o Lorde Dragão de volta. Se não houver, temo que seja melhor descobrirmos uma maneira de preservar nossas próprias vidas.
Perrin apertou a bainha de couro de javali.
— Eu vou resgatar Rand — declarou, com um rosnado. Dannil e os outros homens de Dois Rios ainda deviam estar na metade do caminho até Cairhien, com o peso dos carroções. Mas ele tinha os lobos. — Nem que eu tenha que ir sozinho, vou trazê-lo de volta.
— Sozinho, não — retrucou Loial, a voz dura e inflexível feito uma pedreira. — Você nunca ficará sozinho enquanto eu estiver aqui, Perrin. — Ele remexeu as orelhas, constrangido. Sempre ficava envergonhado quando testemunhavam sua bravura. — Afinal de contas, meu livro não vai acabar bem se Rand for aprisionado na Torre. E eu não vou poder escrever sobre o resgate se não estiver presente.
— Você não vai sozinho, Ogier — acrescentou Dobraine. — Posso arranjar quinhentos homens de confiança até amanhã. Bem, não sei o que poderemos fazer contra seis Aes Sedai, mas mantenho minha palavra. — Olhando para Sulin, ele dedilhou o lenço ainda em sua mão. — Mas até onde podemos confiar nos selvagens?
— Até onde podemos confiar nos Assassinos da Árvore? — inquiriu Sorilea, com uma voz tão rígida e curtida quanto ela própria, entrando sem bater e avançando a um passo firme.
Rhuarc vinha a seu lado, com um cheiro soturno, acompanhado de Amys, com o rosto suspeitamente jovem emoldurado por aqueles cabelos brancos e uma expressão tão fria quanto a de qualquer Aes Sedai, e também de Nandera, que exalava um forte odor de fúria e carregava um embrulho cinza, marrom e verde.
— Vocês sabem? — perguntou Perrin, incrédulo.
Nandera atirou o embrulho para Sulin.
— Já passa da hora de ver que sua toh foi satisfeita. Quase quatro semanas e meia, um mês inteiro mais metade. Até os gai’shain dizem que você é orgulhosa demais.
Ela e Sulin desapareceram dormitório adentro.
Uma rajada daquele cheiro de irritação irrompeu de Faile assim que ela ouviu a pergunta de Perrin.
— A linguagem de sinais das Donzelas — murmurou a mulher, baixinho demais para qualquer ouvido além do dele.
Perrin olhou para a esposa, agradecido, mas ela parecia concentrada no tabuleiro de pedras. Por que não estava participando da discussão? Ela dava bons conselhos, e Perrin ficaria muito grato com qualquer sugestão que ela estivesse disposta a oferecer. Faile posicionou uma pedra e olhou feio para Loial, que estava atento a Perrin e aos outros.
Tentando não suspirar, Perrin disse, simplesmente:
— Não me interessa quem confia em quem. Rhuarc, está disposto a enviar seus Aiel contra as Aes Sedai? São seis delas. Acho que cem mil Aiel dariam a elas o que pensar…
Aquele número o fez refletir: dez mil homens já não era pouco para um exército, mas Rand falara em cem mil, e, pelo que vira no acampamento Aiel das colinas, Perrin acreditava que houvesse mesmo cem mil. Para sua surpresa, Rhuarc exalou um odor de hesitação.
— Não conseguiríamos um número tão alto — respondeu o chefe de clã, hesitante, então fez uma pausa antes de prosseguir: — Chegaram batedores hoje de manhã e informaram que um grande número dos Shaido está se deslocando para o sul, saídos da Adaga do Fratricida, em direção ao coração de Cairhien. Eu talvez tenha homens o suficiente para impedir o avanço, já que parece que não são todos que estão a caminho. Mas, se eu retirar tantas lanças desta terra, tudo o que já fizemos terá que ser refeito. Na melhor das hipóteses, os Shaido terão terminado de pilhar a cidade muito antes de voltarmos. Ninguém pode afirmar quanto eles terão avançado, até mesmo para dentro de outras terras, e quantos serão levados se dizendo gai’shain. — Um forte odor de desprezo emanou dele com essa última frase, mas Perrin não entendeu. De que interessava quanta terra teriam que reconquistar, ou mesmo quanta gente morreria? Se bem que essa última parte do raciocínio vinha cheia de sofrimento e relutância. Mas a verdade era que não sabia como poderiam comparar aquilo à magnitude de ver Rand, o Dragão Renascido, sendo levado como prisioneiro de Tar Valon.
Sorilea estava encarando Perrin havia algum tempo. Os olhos das Sábias eram como os das Aes Sedai e sempre o faziam se sentir medido e avaliado nos menores detalhes. Sorilea era um caso à parte e o fazia sentir-se desmantelado feito um arado quebrado, cada pino erguido e examinado para ver se deveria ser consertado ou substituído.
— Conte tudo a ele, Rhuarc — mandou a mulher, ríspida.
Amys apoiou a mão no ombro de Rhuarc.
— Ele tem o direito de saber, sombra do meu coração. É quase-irmão de Rand al’Thor. — A voz dela era mansa, mas o cheiro era bem firme.
Rhuarc lançou um olhar duro às Sábias e encarou Dobraine com uma expressão de desdém. Então empertigou-se o máximo que pôde.
— Só posso levar Donzelas e siswai’aman. — Pelo tom e cheiro, ele preferia perder um braço a proferir aquelas palavras. — Muitos dos outros não vão dançar as lanças contra nenhuma Aes Sedai.
Os lábios de Dobraine se curvaram em uma expressão de desprezo.
— Quantos cairhienos aceitam lutar contra Aes Sedai? — perguntou Perrin, baixinho. — Seis Aes Sedai, e nós só temos aço.
Quantas dessas Donzelas e sis-alguma-coisa Rhuarc conseguiria reunir? Não importava, sempre havia os lobos. Mas quantos lobos morreriam?
Dobraine desfez a carranca.
— Eu lutarei, Lorde Aybara — declarou, rígido. — Eu e meus quinhentos, mesmo que sejam sessenta Aes Sedai.
Até a risada de Sorilea soava coriácea.
— Não tema as Aes Sedai, Assassino da Árvore.
De repente, para surpresa de Perrin, uma chama diminuta dançou no ar diante dela. A mulher podia canalizar!
Sorilea deixou a chama se esvair enquanto começavam os planejamentos, mas a imagem não saiu da cabeça de Perrin — era uma chama, tremeluzindo fraquinha, mas era uma declaração de guerra mais forte que trompetes, o princípio de um combate mortal.
— Se você cooperar — começou Galina, em um tom casual —, sua vida será mais agradável.
A garota a encarou de volta, taciturna, e se remexeu no banquinho, ainda um pouco dolorida. Suava bastante, mesmo sem estar com o casaco. A tenda devia estar bem quente. Galina às vezes se esquecia completamente da temperatura. Mais uma vez, sentiu-se curiosa a respeito daquela Min — ou Elmindreda ou qualquer que fosse seu nome de verdade. Da primeira vez que a vira, a garota usava roupas de homem e acompanhava Nynaeve al’Meara e Egwene al’Vere. E Elayne Trakand, mas eram as outras duas que estavam ligadas a al’Thor. Da segunda vez, Elmindreda revelou ser o tipo de mulher que Galina odiava: toda suspirante e cheia de babados, sob proteção pessoal de Siuan Sanche. Não conseguia imaginar como Elaida pudera ser tola o bastante para sequer permitir que ela saísse da Torre. Que conhecimentos aquela garota guardava? Bem, talvez Elaida não precisasse ter a menina tão cedo — se bem usada, a garota talvez a ajudasse a capturar Elaida em sua rede feito uma andorinha. Apesar de Alviarin, Elaida se tornara uma daquelas Amyrlins fortes e capazes que tomavam as rédeas nas próprias mãos firmes — era por isso que aprisioná-la decerto enfraqueceria Alviarin. Ah, se bem usada, a garota…
Uma mudança nos fluxos que estava sentindo fez Galina se endireitar na cadeira.
— Conversaremos mais depois que você tiver um tempo para pensar, Min. Pense muito bem sobre quantas lágrimas um homem vale. — Então, saindo, vociferou para o Guardião de ombros largos que estava de vigia: — Trate de vigiar direito desta vez.
Carilo não estivera montando guarda durante o incidente da noite anterior, mas os Gaidin eram mimados demais por suas Aes Sedai. Já que precisavam daqueles homens, melhor tratá-los como meros soldados e nada mais.
Ignorando a mesura do Guardião, ela se afastou e foi procurar Gawyn. O rapaz andava muito recluso desde a captura de al’Thor, e quieto demais. Não estava disposta a ter tudo arruinado por conta de um garoto que tentava vingar a mãe. Mas, quando o encontrou, Gawyn estava na orla do campo, sentado em seu cavalo, conversando com um bando daqueles garotos que se denominavam Jovem Guarda.
Tinham parado cedo por necessidade, e o sol da tarde projetava sombras compridas das tendas e dos carroções que ladeavam a estrada. Morros suaves e colinas baixas circundavam o acampamento, com apenas alguns arbustos esparsos à vista, a maioria escassos e pequenos. Trinta e três Aes Sedai somavam-se às seis originais, junto com os serviçais e Guardiões — nove eram Verdes, apenas treze Vermelhas, e as demais eram Brancas, da antiga Ajah de Alviarin —, formando um grupo notável mesmo sem contar com Gawyn e seus soldados. O foco da atenção eram sete Aes Sedai, seis das quais estavam sentadas em banquinhos ao redor de um baú com bordas de latão, posicionado de modo a pegar todos os raios de sol que ainda restavam. A sétima era Erian — a mulher não se afastara do baú desde que al’Thor fora colocado de volta lá, na noite anterior. O rapaz tivera permissão de sair assim que se afastaram de Cairhien, mas Galina suspeitou de que Erian fosse querer que ele passasse o restante da viagem dentro do baú.
Assim que se aproximou, a Verde virou-se para ela. Erian sempre fora muito bonita, com o rosto claro, refinado e oval, mas suas bochechas estavam vermelhas desde a noite anterior, e os encantadores olhos escuros estavam injetados.
— Ele tentou vencer a blindagem outra vez, Galina. — A ira se mesclava ao desprezo pela insensatez do homem, tornando sua voz dura e áspera. — Ele deve ser punido de novo, no caso. Quero cuidar disso eu mesma.
Galina hesitou. Seria melhor punir Min — aquilo sim deixaria al’Thor quietinho. Ele ficara furioso ao vê-la ser punida na noite anterior — punição essa que, por sua vez, fora suscitada pela atitude da jovem ao vê-lo sendo punido. O incidente todo se dera logo depois que al’Thor descobriu que Min estava no acampamento, quando um dos Guardiões tivera o descuido de deixá-la sair andando noite adentro, em vez de mantê-la confinada na tenda. Quem teria imaginado que al’Thor, blindado e cercado, ficaria transtornado daquele jeito? Além de tentar destruir a blindagem, ele matara um Guardião com as próprias mãos e ferira outro com a espada do morto — um ferimento tão grave que o homem acabou morrendo durante a Cura. E isso tudo durante os poucos instantes que as irmãs levaram para se recuperar do choque e refreá-lo com o Poder.
Se dependesse de Galina, já teria reunido as outras Vermelhas e amansado al’Thor dias antes. Como aquilo estava proibido, melhor entregá-lo à Torre ileso — desde que ele demonstrasse o mínimo de educação, claro. Mesmo naquela situação, Galina prezava pela eficácia, e o mais eficaz seria levar Min até ali e deixar que al’Thor a ouvisse chorar e soluçar, sabendo que era o responsável pela dor que a mulher sofria. Porém, por acaso, os dois Guardiões mortos eram de Erian. A maioria das irmãs consideraria a punição direito dela, e a própria Galina queria que a Verde, uma illianense com cara de boneca, extravasasse a ira de uma vez. Seria muito melhor percorrer o restante do trajeto podendo admirar aquele rostinho de porcelana com uma expressão serena.
Galina assentiu.
Rand piscou com a claridade quando a luz inundou o baú de repente. Também foi inevitável se encolher — ele sabia o que estava por vir. Lews Therin jazia no Vazio, imóvel e silencioso — era por pouco que ele ainda sustentava o Vazio, mas tinha plena consciência dos próprios músculos, que urraram em câimbras quando ele foi posto de pé. Travou a mandíbula e tentou não estreitar os olhos para se proteger do que parecia o brilho do meio-dia. O ar estava fresco e maravilhoso, e a camisa ensopada grudou no corpo, empapado de suor. Nenhuma corda o prendia, mas não podia dar um passo sequer, nem que fosse para salvar a própria vida. Se não estivesse sendo sustentado pelo Poder, teria desabado no chão. Só percebeu quanto tempo passara preso quando notou como o sol estava baixo no céu — todo aquele tempo preso com a cabeça entre os joelhos, banhado em uma poça de seu próprio suor.
Ainda assim, mal prestou atenção ao sol. Seus olhos se voltaram para Erian antes mesmo que a Aes Sedai se posicionasse diante dele. A mulher pequena e esguia ergueu a cabeça para encará-lo, os olhos escuros cheios de fúria, e ele quase se encolheu outra vez. Ao contrário da noite anterior, ela não falou. Simplesmente começou.
O primeiro golpe invisível o atingiu entre os ombros; o segundo, no peito; e o terceiro bateu atrás das coxas. O Vazio se despedaçou. Ar. Era apenas Ar. Pensando assim, parecia menos dolorido. Só que cada golpe era uma chibatada desferida por um braço mais forte que o de qualquer homem. Já estava com hematomas por conta da última surra, manchas roxas que iam dos ombros aos joelhos. Tinha consciência daquelas marcas no corpo — e mais consciência do que gostaria; sentira vontade de chorar mesmo dentro do Vazio. Quando o Vazio se foi, ele quis berrar.
Mas, em vez disso, cerrou o maxilar. Às vezes um grunhido escapava entre os dentes e Erian redobrava os esforços quando isso acontecia, como se quisesse mais. Rand se recusava a dar o que ela queria. Não podia impedir os tremores a cada golpe daquela chibata invisível, porém não lhe daria mais do que isso. Encarava-a nos olhos, recusando-se a desviar o olhar e a piscar.
Eu matei minha Ilyena, gemia Lews Therin a cada golpe.
Rand tinha sua própria ladainha. A dor lhe fustigava o peito. Isso é por confiar nas Aes Sedai. O fogo assolava as costas. Nunca mais, nem um pouquinho, nem por um instante. Era como a lâmina de uma navalha. Isso é por confiar nas Aes Sedai.
Elas achavam que podiam subjugá-lo. Achavam que podiam fazê-lo rastejar até Elaida! Obrigou-se a fazer a coisa mais difícil que já fizera na vida: sorriu. Claro que o sorriso não chegava aos olhos, mas encarou Erian e sorriu. A mulher arregalou os olhos e sibilou. As chibatadas começaram a vir de todos os lugares ao mesmo tempo.
O mundo era dor e fogo. Rand não conseguia ver, apenas sentir. Por algum motivo, tinha ciência das mãos tremendo incontrolavelmente dentro das algemas invisíveis, mas concentrava-se em manter os dentes cerrados. Isso é por — Não vou gritar! Não vou grit — Nunca mais, nem um pouqu — Nem um pouquinho, nem por um instante! Nunca ma — Eu não vou! Nunca ma — Nunca! Nunca! NUNCA!
A primeira coisa que reparou foi que respirava. Ar, tragado avidamente pelas narinas. Seu corpo latejava, era uma chama pulsante, mas as pancadas tinham cessado. Reparar nisso foi quase um choque. O cessar de algo que uma parte dele se convencera de que jamais chegaria ao fim. Sentiu gosto de sangue e percebeu que a mandíbula doía quase tanto quanto o resto do corpo. Bom. Não tinha gritado. Os músculos do rosto estavam travados em uma câimbra dolorosa e seria um esforço abrir a boca, mesmo se quisesse muito.
A visão foi a última a voltar, e então ele se perguntou se estava alucinando por conta da dor. Viu um grupo de Sábias entre as Aes Sedai, todas remexendo os xales e encarando as mulheres com a maior arrogância possível. Quando concluiu que a visão era real — a menos que Galina estivesse conversando com um produto da imaginação de Rand —, seu primeiro pensamento foi de que estava sendo resgatado. De algum jeito, as Sábias tinham… era impossível, mas elas… então reconheceu a mulher que conversava com Galina.
Sevanna andou até ele com um sorriso nos lábios carnudos e vorazes. Os olhos verde-claros daquele rosto lindo emoldurado por cachos dourados o perscrutaram. Rand preferia estar diante de um lobo raivoso. Havia uma estranheza na postura da mulher, que avançava meio inclinada para a frente, os ombros para trás. Por mais ferido que estivesse, de repente teve vontade de rir — e teria rido, se tivesse certeza do som que produziria caso abrisse a boca. Lá estava ele, prisioneiro, apanhando quase até a morte, as pancadas ainda ardendo e o suor aguilhoando, e aquela mulher que o odiava — tinha certeza disso — e que provavelmente o culpava pela morte do homem que ela amava estava achando que ele olharia seu decote!
A mulher passou a unha lentamente por sua garganta — na verdade, ela envolveu seu pescoço o mais que pôde com as pontas das garras —, como se imaginasse sua decapitação. O que seria apropriado, considerando o fim de Couladin.
— Pronto, já o vi — declarou a mulher, com um suspiro satisfeito e um pequeno arrepio de prazer. — Você honrou sua parte no acordo, e eu honrei a minha.
A Aes Sedai então o obrigou a se dobrar de volta e o enfiou de novo no baú, a cabeça mais uma vez entre os joelhos, agachado naquela pequena poça de suor. A tampa se fechou, e a escuridão o envolveu.
Ele só então remexeu o maxilar até conseguir abrir a boca e soltou um suspiro longo e trêmulo. Não tinha certeza se, mesmo agora, conseguiria emitir qualquer som. Luz, estava pegando fogo!
O que Sevanna estava fazendo ali? Que acordo? Não. Muito bem, tinha descoberto que havia algum acordo entre a Torre e os Shaido, mas depois se preocuparia com aquilo. Tinha que se concentrar em Min. Precisava escapar. Aquelas mulheres tinham machucado Min — um pensamento tão terrível que quase abafava a dor. Quase.
Erguer outra vez o Vazio foi como cruzar um pântano de agonia, mas enfim viu-se rodeado daquele nada, tentando tocar saidin… apenas para encontrar Lews Therin na mesma prontidão, dois pares de mãos tentando agarrar uma luz que apenas um deles conseguiria segurar.
Que o queime!, rosnou Rand, na própria cabeça. Que o queime! Se pelo menos você trabalhasse ao meu lado uma vez na vida, em vez de ficar contra mim!
Trabalhe você comigo!, vociferou Lews Therin, em resposta.
Rand quase perdeu o Vazio, de tão chocado. Era inegável: Lews Therin tinha ouvido e respondido. Podemos trabalhar juntos, Lews Therin. Não queria trabalhar junto com ele, queria que o homem saísse de sua cabeça — mas precisava pensar em Min. E sabe-se lá quantos dias ainda teriam até Tar Valon. Tinha a certeza de que, se elas conseguissem botá-lo dentro da Torre, não haveria mais chances. Nunca mais.
A resposta veio na forma de uma risada apreensiva e indecisa. Juntos? Outra risada, completamente transtornada. Juntos. Seja lá quem você for. E a voz e a presença desapareceram.
Rand estremeceu. Ajoelhado ali, acrescentando suor à poça onde sua cabeça repousava, ele estremeceu.
Tentou tocar saidin outra vez, aos poucos… e deu de cara com a blindagem, claro. Bem, era ela que estava procurando, afinal. Bem devagar, com toda a delicadeza, tateou toda a extensão daquela barreira invisível, até onde o plano rígido se transformava em pontos macios.
Macios, declarou Lews Therin, ofegante. Porque elas ainda estão aqui, sustentando a tessitura. Fica mais rígido quando elas amarram os fluxos. Não há o que fazer quando os pontos ainda estão assim, macios, mas consigo desfazer o nó se elas atarem os fluxos. Com algum tempo. A voz ficou em silêncio por tanto tempo que Rand achou que tivesse ido embora outra vez. Você é real?, sussurrou por fim. Então foi embora de vez.
Aos poucos, com todo o cuidado, Rand foi tateando pela blindagem até chegar aos pontos macios. As seis Aes Sedai. Com algum tempo? Isso se atassem os fluxos, o que ainda não acontecera em… o quê? Seis dias? Sete? Oito? Não importava. Não podia se dar ao luxo de esperar tanto. Chegava mais perto de Tar Valon a cada dia. No dia seguinte tentaria romper a blindagem outra vez — tinha sido como esmurrar um bloco de pedra, mas esmurrara com toda a força. No dia seguinte, quando Erian o açoitasse — tinha certeza de que seria ela —, abriria outro sorriso. Então, quando a dor aumentasse, ele se permitiria gritar. No outro dia, não faria mais do que triscar a barreira, talvez com força suficiente para elas sentirem, porém não mais que isso, e só repetiria a tentativa depois de ver se seria ou não punido. Talvez implorasse por água. Tinha bebido um pouco ao anoitecer, mas estava com sede outra vez. Mesmo que o deixassem beber mais de uma vez ao dia, implorar seria adequado. Se ainda estivesse no baú, talvez implorasse também para ser solto. Achava que estaria — não eram grandes as chances de que o libertassem por muito tempo sem ter certeza de que ele aprendera a lição. Seus músculos se contorciam em câimbras diante da ideia de mais dois ou três dias enfiado ali. Não havia espaço para se mexer, mas o corpo tentava. Mais dois ou três dias, e as Aes Sedai teriam certeza de que ele fora subjugado. Pareceria assustado e evitaria olhar as pessoas nos olhos, como um pobre coitado que poderia ficar fora do baú sem oferecer riscos. Mais importante: um pobre coitado que elas não precisariam vigiar tão de perto. Então, talvez, elas decidissem que não precisavam de seis para manter a blindagem, ou que podiam simplesmente atar a trama ou… qualquer coisa. Precisava de alguma brecha. Qualquer coisa!
Era um plano desesperado. Percebeu que ria — ria e não conseguia parar. Também não conseguia parar de tatear a barreira, feito um cego desesperado deslizando os dedos por um pedaço de vidro liso.
Galina franziu o cenho depois que as Aiel foram embora, avançando até o topo de uma montanha e desaparecendo do outro lado do cume. Cada uma daquelas mulheres, tirando a própria Sevanna, conseguia canalizar, e muitas tinham força considerável. Sevanna decerto se sentira mais segura rodeada por aquela dezena de bravias — que engraçado. Aquele bando de selvagens não era nada confiável. Dentro de poucos dias teria mais alguma serventia para elas, na segunda parte do “acordo” com Sevanna. A triste morte de Gawyn Trakand e a melhor parte da Jovem Guarda.
De volta ao centro do acampamento, encontrou Erian ainda vigiando o baú de al’Thor.
— No caso, Galina, ele está mesmo chorando — comentou a mulher, a voz feroz. — Está ouvindo? Ele está sim… — De repente, lágrimas começaram a correr pelo rosto de Erian. Ela ficou ali, parada, soluçando baixinho, agarrando as saias com os punhos cerrados.
— Vamos para a minha tenda — chamou Galina, em um tom tranquilizador. — Tenho um bom chá de mirtilo e posso colocar um pano gelado e úmido na sua testa.
Erian sorriu em meio às lágrimas.
— Obrigada, Galina, mas é melhor eu ir. Rashan e Bartol estão me esperando. Eles estão sofrendo mais do que eu, no caso. Além de sentirem meu sofrimento, eles sofrem porque sabem que eu sofro. Preciso consolar os dois. — Apertando a mão de Galina de leve, agradecida, a Verde foi embora.
Galina franziu o cenho, encarando o baú. Al’Thor de fato parecia chorar — ou isso, ou estava rindo, o que ela duvidava bastante. Olhou para Erian, que desaparecia no interior da tenda de seus Guardiões. Ah, al’Thor ia chorar. Tinham pelo menos mais duas semanas até Tar Valon e a entrada triunfal que Elaida planejara. Sim, pelo menos mais vinte dias. Dali para a frente, Rand seria punido todos os dias, ao amanhecer e ao anoitecer, não importava se Erian quisesse participar ou não. Quando o conduzisse até a Torre Branca, Rand beijaria o anel de Elaida, só falaria quando se dirigissem a ele e, quando não fosse requisitado, ficaria ajoelhado a um canto. Com o olhar firme, foi beber o chá de mirtilo sozinha.
Quando entraram no bosque imenso, Sevanna virou-se para as outras, pensando em como era impressionante que agora encarasse as árvores com tanta indiferença. Nunca tinha visto tantas árvores juntas, e tão grandes, antes de cruzar a Muralha do Dragão.
— Vocês viram todas os meios que elas usaram para prendê-lo? — perguntou, fazendo soar como se dissesse “todos”, em vez de “todas”.
Therava encarou as outras, que assentiram.
— Sabemos tecer tudo o que elas fizeram — anunciou a mulher.
Assentindo, Sevanna correu os dedos pelo cubinho de pedra com entalhes intrincados em seu bolso — o estranho aguacento que lhe dera aquilo a orientara a usá-lo quando al’Thor estivesse preso. E ela de fato pretendera usar, até que viu al’Thor preso. Naquele momento, decidira jogar o cubo fora. Era viúva de um chefe que fora a Rhuidean e de um homem que fora chamado de chefe sem ter feito essa visita. Agora seria a esposa do próprio Car’a’carn. Cada lança dos Aiel estaria presa a ela. Ainda sentia no dedo o pescoço de al’Thor, onde traçara a linha da coleira que poria nele.
— Está na hora, Desaine — anunciou.
Claro que Desaine apenas piscou, surpresa, e só conseguiu gritar de susto antes que as outras iniciassem o trabalho. A mulher não parava de reclamar a respeito da posição de Sevanna, que decidira que poderia empregar melhor seu tempo do que ter que lidar com a mulher. Exceto por Desaine, todas as outras presentes a seguiam, e outras mais estavam a seu lado.
Sevanna ficou olhando o que as outras Sábias faziam. O Poder Único a fascinava. Tantos feitos milagrosos realizados sem qualquer esforço… E era muito importante que ficasse claro que Desaine fora liquidada com o Poder. Ah, era tão espantoso que um corpo humano pudesse ser despedaçado espirrando tão pouco sangue…