Demandred saiu para as encostas negras de Shayol Ghul, e a passagem, um buraco na trama da realidade, tremeluziu e desapareceu. Nuvens cinzentas se revolviam acima, encobrindo o céu como um mar invertido de ondas cinzentas morosas que arrebentavam em volta do pico oculto da montanha. Abaixo, estranhas luzes lampejavam pelo vale árido, em tons azuis e vermelhos desbotados que não eram suficientes para afastar as trevas sombrias encobrindo sua fonte feito uma mortalha. Relâmpagos subiam pelas nuvens, e trovões lentos ribombavam. Ao longo da encosta, vapor e fumaça se elevavam por vulcões isolados, alguns tão pequenos quanto a mão de um homem, outros enormes o bastante para engolir dez camaradas.
Na mesma hora, soltou o Poder Único — e com a mesma delicadeza que o Poder sumiu, esvaneceu-se também a agudez de sentidos que tornava tudo mais claro, mais penetrante. A ausência de saidin deixava um vazio, porém, naquele lugar, apenas um tolo se arriscaria a sequer parecer disposto a canalizar. Além do mais, apenas um tolo desejaria ver, farejar ou sentir com clareza as coisas daquele lugar.
No tempo que era agora conhecido como Era das Lendas, aquele lugar fora uma ilha idílica em um mar tranquilo, lugar predileto dos apreciadores de paisagens rústicas. Apesar do vapor, o frio era cortante. Demandred não se permitia senti-lo, mas o instinto o fazia apertar contra o corpo o manto de veludo forrado de pele. Uma leve bruma revelava sua respiração, quase invisível antes de ser tragada pelo ar. Poucas léguas a norte dali o mundo era puro gelo, mas Thakan’dar era sempre seca como um deserto, por mais que vivesse em um permanente inverno.
Havia água, por assim dizer, um arroio de águas negras que corria pela encosta rochosa ao lado de uma ferraria de teto cinza. Martelos retiniam lá dentro, e luz branca cintilava pelas janelas estreitas a cada repique. Uma mulher vestida em andrajos estava agachada, encostada na parede de pedras brutas da ferraria, parecendo desesperançosa, com um bebê aninhado nos braços e uma menina comprida afundando o rosto em suas saias. Prisioneiros capturados em uma invasão às Terras da Fronteira, sem dúvida. Mas eram muito poucos; os Myrddraal deviam estar rangendo os dentes, incomodados. Suas espadas sempre falhavam depois de algum tempo e tinham que ser substituídas, apesar de as incursões às Terras da Fronteira terem sido reduzidas.
Um dos forjadores apareceu, um homem robusto e de movimentos lentos que parecia ter sido esculpido de uma montanha. Os forjadores não estavam exatamente vivos: caso se afastassem de Shayol Ghul, transformavam-se em pedra ou pó. Também não eram exatamente ferreiros; não faziam nada além das espadas. Com as duas mãos, o sujeito segurava uma lâmina de espada presa em pinças compridas — a lâmina já estava temperada, pálida feito neve sob a lua. Vivo ou não, o forjador tomou cuidado ao mergulhar o metal reluzente no arroio escuro. Qualquer fragmento de vida que possuía poderia desaparecer ao encostar naquela água. Quando o metal emergiu outra vez, estava negro feito a morte. Porém, o trabalho ainda não havia sido terminado. O forjador voltou para dentro arrastando os pés, e de súbito uma voz masculina soltou um grito desesperado.
— Não? Não! NÃO!
Ouviu-se um ganido, e o som foi definhando sem perder a intensidade, como se o sujeito que gritara fosse arrastado a uma distância inimaginável. A espada estava pronta.
Outro forjador apareceu — talvez o mesmo, talvez outro — e ergueu a mulher com um puxão. Mulher, bebê e criança começaram a choramingar, mas o bebê foi arrancado do colo da mãe e enfiado nos braços da menininha. Por fim, a mulher encontrou um resquício de resistência. Aos soluços, começou a chutar e arranhar desesperadamente. O forjador parecia se abalar tanto quanto uma pedra. Os berros da mulher cessaram assim que ela entrou. Os martelos recomeçaram a retinir, abafando os soluços das crianças.
Uma espada pronta, e duas por vir. Demandred nunca tinha visto menos de cinquenta prisioneiros aguardando para entregar as crias ao Grande Senhor das Trevas. Os Myrddraal deviam estar mesmo rangendo os dentes, incomodados.
— Você está remanchando depois de ser convocado pelo Grande Senhor? — A voz era áspera feito couro podre.
Demandred virou-se devagar — como é que um Meio-homem se atrevia a dirigir-se a ele naquele tom? —, porém as palavras de repreensão morreram na boca. Não por causa do olhar sem olhos da criatura de rosto pálido — o olhar de um Myrddraal metia medo em qualquer homem, mas ele extirpara seu medo havia muito tempo. Foi pela própria criatura coberta de negro. Todos os Myrddraal tinham a altura de um homem alto, eram uma cópia serpeante de um homem, e todos pareciam ter saído do mesmo molde. Aquele era cerca de uma cabeça mais alto que o usual.
— Vou levá-lo ao Grande Senhor — anunciou o Myrddraal. — Sou Shaidar Haran.
A criatura deu meia-volta e começou a subir a montanha com seu caminhar fluido, feito uma serpente. A capa retinta permanecia estranhamente imóvel, sem a menor ondulação.
Demandred hesitou antes de segui-lo. Os Meios-homens sempre tinham nomes na língua enrolada dos Trollocs. “Shaidar Haran” vinha do idioma que o povo agora denominava Língua Antiga. Significava “Mão das Trevas”. Outra surpresa, e Demandred não gostava de surpresas, sobretudo em Shayol Ghul.
A entrada para a montanha poderia ser confundida com um dos vulcões, à diferença de que não emitia vapor ou fumaça. A abertura era ampla o bastante para a passagem de dois homens lado a lado, mas o Myrddraal manteve-se à frente. Logo na entrada, o caminho já formava um declive — um túnel de piso gasto e liso feito azulejos polidos. O frio foi diminuindo conforme Demandred seguia as largas costas de Shaidar Haran, cada vez mais para baixo, aos poucos substituído por um calor crescente. Demandred o percebia, mas não se deixava atingir. Uma luz pálida emanava da pedra e inundava o túnel, mais brilhante que o crepúsculo incessante lá fora. Do teto despontavam protuberâncias pontudas e serrilhadas, dentes de pedra prontos para se fecharem, os dentes do Grande Senhor para dilacerar os traidores e infiéis. Sem dúvida, não eram formações naturais, porém eram eficazes.
De súbito, Demandred notou algo. Todas as vezes que percorrera esse trajeto, os aguilhões quase roçavam o topo da cabeça. Daquela vez, havia um espaço de pelo menos duas mãos entre eles e a cabeça do Myrddraal. Aquilo o surpreendeu. Não o fato de a altura do túnel estar diferente — o estranho era costumeiro, por ali —, e sim de ter sido dado um espaço a mais ao Meio-homem. O Grande Senhor emitia avisos tanto aos homens quanto aos Myrddraal. Aquele espaço extra era um lembrete.
O túnel de repente se abria em uma ampla saliência que dava para um lago de pedras fundidas, vermelhas rajadas de preto, onde chamas da altura de um homem dançavam, se extinguiam e nasciam outra vez. Não havia teto, apenas um buraco imenso se erguendo montanha acima até um céu que não era o céu de Thakan’dar. Aquele céu fazia o de Thakan’dar parecer normal, com as nuvens estranhamente estriadas correndo feito raios, como se conduzidas pelos piores ventos que o mundo já vira. Os homens chamavam aquele lugar de Poço da Perdição, e poucos tinham noção de como o nome era apropriado.
Mesmo depois de tantas visitas — e a primeira fora em um passado de bem mais de três mil anos —, Demandred sempre sentia um pavor reverente. Ali, conseguia sentir a Fenda — o antiquíssimo buraco perfurado na prisão onde o Grande Senhor jazia desde o momento da Criação. Ali, a presença do Grande Senhor o inundava. Fisicamente, o lugar ficava tão distante da Fenda quanto qualquer outro no mundo, mas ali o Padrão parecia mais fino, o que permitia que fosse sentido.
Demandred viu-se perto de abrir um sorriso como nunca estivera antes. Como eram tolos os que haviam se oposto ao Grande Senhor. Sim, a Fenda ainda estava bloqueada, mesmo que de forma mais tênue do que quando o Grande Senhor despertara de seu longo sono e se libertara de sua prisão. Bloqueada, porém maior do que quando ele despertara. Ainda não tão grande quanto na época em que Demandred fora jogado lá com seus companheiros, no fim da Guerra do Poder, porém um pouco maior a cada visita. Logo, o bloqueio seria desfeito, e o Grande Senhor estenderia a mão outra vez por sobre a terra. Logo, chegaria o Dia do Retorno. E ele governaria o mundo pelo restante dos tempos. Abaixo do Grande Senhor, claro. E com os outros Escolhidos que sobrevivessem, certamente.
— Pode se retirar agora, Meio-homem.
Não queria a criatura ali para ver o êxtase tomando conta dele. O êxtase e a dor.
Shaidar Haran não se mexeu.
Demandred abriu a boca… e uma voz explodiu em sua cabeça.
DEMANDRED.
Chamar aquilo de voz era como chamar uma montanha de seixo. Aquilo quase esmagou o interior de seu próprio crânio, e ele foi completamente arrebatado. Tombou de joelhos. O Myrddraal continuava assistindo, impassível, mas apenas uma parte sua era capaz de notar a criatura, com aquela voz invadindo seu cérebro.
DEMANDRED. COMO VAI ESTE MUNDO?
Nunca sabia ao certo quanto o Grande Senhor sabia do mundo. A ignorância o surpreendia tanto quanto o conhecimento. Porém não tinha dúvidas a respeito do que o Grande Senhor queria ouvir.
— Rahvin foi morto, Grande Senhor. Ontem. — Sentiu dor. Uma euforia tão forte logo se tornava dor. Seus braços e pernas se contraíram. Estava suando. — Lanfear desapareceu sem deixar rastros, assim como Asmodean. E Graendal avisou que Moghedien não foi encontrá-lo, como haviam combinado. Também ontem, Grande Senhor. Não acredito em coincidências.
OS ESCOLHIDOS ESTÃO DEFINHANDO, DEMANDRED. OS FRACOS SUCUMBEM. QUEM ME TRAIR, MORRERÁ A MORTE FINAL. ASMODEAN, ESMAGADO PELA PRÓPRIA FRAQUEZA. RAHVIN, MORTO PELO PRÓPRIO ORGULHO. ELE SERVIU BEM, MAS NEM MESMO EU POSSO SALVÁ-LO DO FOGO DEVASTADOR. NEM MESMO EU POSSO CAMINHAR FORA DO TEMPO. Por um instante, uma ira terrível apossou-se daquela voz assustadora, e… seria frustração? Um instante apenas. MORTO POR MEU ANTIGO INIMIGO, O QUE CHAMAM DRAGÃO. VOCÊ USARIA O FOGO DEVASTADOR A MEU SERVIÇO, DEMANDRED?
Demandred hesitou. Uma gota de suor deslizou meia polegada por seu rosto; pareceu ter levado uma hora para escorrer. Durante a Guerra do Poder, ambos os lados passaram um ano usando fogo devastador. Até descobrirem as consequências. Sem acordo nem trégua — jamais houvera trégua, muito menos clemência —, os dois lados simplesmente pararam. Naquele ano, cidades inteiras pereceram sob o fogo devastador, centenas de milhares de tramas do Padrão foram queimadas, a própria realidade quase desfiou, mundo e universo evaporando em cerração. Se o fogo devastador fosse usado outra vez, poderia não restar um mundo para governar.
Outra coisa o deixou incomodado. O Grande Senhor já sabia como Rahvin morrera. E parecia saber mais sobre Asmodean do que ele.
— Como ordenar, Grande Senhor, assim será. — Seus músculos podiam estar trêmulos, mas sua voz estava firme. A pedra quente começava a formar bolhas em seus joelhos, mas a carne poderia muito bem ser de outra pessoa.
ASSIM SERÁ.
— Grande Senhor, é possível destruir o Dragão. — Um homem morto não conseguiria manejar o fogo devastador, e talvez então o Grande Senhor não visse mais necessidade disso. — Ele é fraco e ignorante, e sua atenção vive dispersa em dezenas de direções. Rahvin era um imbecil vaidoso. Eu…
VOCÊ SERIA NAE’BLIS?
A língua de Demandred congelou. Nae’blis. Aquele que se postava apenas um degrau abaixo do Grande Senhor, comandando todos os outros.
— Eu desejo apenas servi-lo, Grande Senhor, da forma que puder. — Nae’blis.
ENTÃO ESCUTE E SIRVA. OUÇA QUEM VAI MORRER E QUEM VAI VIVER.
Demandred gritou quando a voz o atingiu. Lágrimas de alegria correram por seu rosto.
Imóvel, o Myrddraal o observava.
— Fiquem quietas. — Nynaeve sacudiu a longa trança por cima do ombro. — Não vai dar certo se vocês ficarem se remexendo feito crianças com coceira.
Do outro lado da mesa instável, nenhuma das mulheres parecia muito mais velha do que ela, embora tivessem cerca de vinte anos a mais, e nenhuma estava de fato se remexendo, mas o calor deixava Nynaeve nervosa. O quartinho sem janelas estava abafado. Ela pingava de suor, enquanto as outras pareciam frescas e secas. Leane, com um vestido domanês de seda azul excessivamente fina, apenas deu de ombros — a mulher alta e de pele acobreada possuía um estoque aparentemente infindável de paciência. Quase sempre. Já Siuan, serena e robusta, quase nunca tinha paciência para oferecer.
Siuan grunhiu e ajeitou as saias outra vez, irritada. Em geral usava roupas lisas, porém esta manhã vestia um delicado linho amarelo com bordado taireno labiríntico envolvendo o decote que por pouco não era cavado demais. Os olhos azuis eram frios feito a água do fundo de um poço. Frios como seria a água no fundo de um poço, se o tempo não estivesse completamente doido. Os vestidos podiam ser diferentes, mas os olhos não.
— Não vai funcionar mesmo — vociferou ela. Seu modo de falar também permanecia o mesmo. — Não dá para remendar um casco com o barco todo queimado. Bom, é perda de tempo, mas eu prometi que tentaria, então vamos logo com isso. Leane e eu temos trabalho a fazer.
As duas comandavam a rede de olhos-e-ouvidos para as Aes Sedai ali em Salidar, as agentes que divulgavam os informes e rumores a respeito do que acontecia no mundo.
Nynaeve alisou as próprias saias para se acalmar. Seu vestido era de lã branca lisa com sete faixas coloridas na bainha, uma para cada Ajah. Um vestido de Aceita. Aquilo a incomodava mais do que poderia ter imaginado. Preferia estar usando o vestido de seda verde que guardara na bolsa. Estava disposta a admitir, pelo menos para si mesma, que tomara gosto por roupas refinadas, mas a escolha daquele vestido em particular fora apenas pelo conforto — era fino e leve —, e não porque verde era uma das cores preferidas de Lan. Não mesmo. Devaneios do pior tipo. Uma Aceita que usasse qualquer coisa que não o vestido branco com faixas logo descobriria que estava muito abaixo das Aes Sedai. Decidida, afastou todos aqueles pensamentos. Não estava ali para se preocupar com roupinhas frescas. Ele também gostava de azul. Não!
Sutilmente, usou o Poder Único para sondar as duas mulheres, primeiro Siuan, depois Leane. De certa forma, não estava canalizando. Não conseguia canalizar nem um fiapo se não estivesse irritada, sequer sentia a Fonte Verdadeira. No fim das contas, dava no mesmo. Finos filamentos de saidar, a metade feminina da Fonte Verdadeira, perpassavam as duas mulheres conforme Nynaeve tecia, só que não se originavam dela.
No pulso esquerdo, Nynaeve usava um bracelete fino, uma tira simples de prata segmentada. Quase toda de prata, de qualquer forma, e de origem especial, embora isso não fizesse diferença. Era a única joia que usava além do anel da Grande Serpente. As Aceitas eram desencorajadas a usar muitos adornos. Um colar do mesmo material envolvia o pescoço da quarta mulher, sentada em um banquinho encostado na parede de reboco grosseiro, as mãos cruzadas no colo. Usava lã grossa de fazendeiro e tinha o rosto rechonchudo e cansado das pessoas do campo, mas sequer suava. Também não movia um só músculo, mas seus olhos escuros observavam tudo. Nynaeve via o brilho de saidar que envolvia a mulher, mas era ela própria quem conduzia a canalização. Bracelete e colar criavam um elo bastante similar à forma como as Aes Sedai se conectavam para unir poderes. Segundo Elayne, a explicação envolvia “matrizes completamente idênticas”, mas a partir dali a explicação se tornava incompreensível. A verdade era que Nynaeve achava que Elayne não entendia nem a metade do que fingia entender. Ela mesma não entendia nada, a não ser o fato de que era capaz de sentir todas as emoções da outra mulher — e também de sentir a própria —, em um canto de sua mente, e ela detinha o controle de toda a saidar que a outra podia manipular. Às vezes, achava que teria sido melhor se aquela mulher no banquinho estivesse morta. Seria mais simples, sem dúvida. Menos complicado.
— Alguma coisa foi rasgada ou cortada — resmungou a Aceita, secando distraidamente o suor do rosto.
Era apenas uma vaga impressão, quase imperceptível, mas, por outro lado, era a primeira vez que sentia algo além de vazio. Poderia ser imaginação, o desejo desesperado de encontrar alguma coisa, qualquer que fosse.
— Rompida — explicou a mulher no banquinho. — Esse era o nome do que vocês hoje chamam de estancar, no caso das mulheres, e amansar, no dos homens.
Três cabeças se viraram na direção da mulher; três pares de olhos a encararam cheios de fúria. Siuan e Leane tinham sido Aes Sedai até serem estancadas durante o golpe à Torre Branca, que pusera Elaida no Trono de Amyrlin. Estancadas. Uma palavra que provocava arrepios. Nunca mais poderiam canalizar. E sempre se lembrariam disso, teriam consciência da perda. Sentiriam a Fonte Verdadeira eternamente, sabendo que jamais poderiam tocá-la outra vez. O estancamento era tão incurável quanto a morte.
Isso era o que todos acreditavam, ao menos, mas, na opinião de Nynaeve, o Poder Único deveria ser capaz de Curar qualquer coisa, exceto a morte.
— Só fale se tiver algo útil a acrescentar, Marigan — retrucou Nynaeve, com rispidez. — Caso contrário, fique quieta.
Marigan encolheu-se outra vez contra a parede, os olhos faiscantes cravados em Nynaeve. Medo e ódio percorreram o bracelete, o que sempre acabava acontecendo. Os prisioneiros quase nunca gostavam de seus captores, nem mesmo — talvez sobretudo — quando sabiam que mereciam ser presos, e até mais. O problema era que Marigan também dissera que o rompimento — o estancamento — não podia ser Curado. Ora, a mulher enchia a boca para dizer que na Era das Lendas havia Cura para tudo, a não ser para a morte, e que o que hoje a Ajah Amarela chamava de Cura nada mais era do que o trabalho grosseiro e apressado dos campos de batalha. No entanto, sempre que Nynaeve tentava arrancar informações mais específicas ou até um palpite a respeito de como eram os procedimentos, a mulher não abria a boca. Marigan sabia tanto sobre Cura quanto Nynaeve sobre o trabalho nas forjas — os ferreiros enfiavam metal no carvão quente e batiam nele com um martelo. Decerto não era o bastante para fazer uma ferradura. Nem para Curar qualquer coisa além de um hematoma.
Remexendo-se na cadeira, Nynaeve observou Leane e Siuan. Passara dias assim, examinando-as sempre conseguia convencê-las a deixar de lado seu outro trabalho, mas até então nada descobrira. De súbito, deu-se conta de que girava o bracelete no pulso. Fosse qual fosse o ganho, odiava permanecer conectada à mulher. A intimidade lhe causava arrepios. Pelo menos posso tentar aprender alguma coisa, pensou. E não pode ser pior do que tudo o que já aconteceu.
Tomando cuidado, abriu o bracelete — era impossível encontrar o fecho sem saber de antemão onde ele ficava — e entregou-o a Siuan.
— Coloque isso aqui.
Perder o acesso ao Poder era ruim, mas precisava fazer isso. E perder as ondas de emoção era como tomar um banho. Os olhos de Marigan acompanharam o fino aro de metal, hipnotizados.
— Por quê? — inquiriu Siuan. — Você disse que essa coisa só funciona…
— Anda logo, Siuan.
Siuan a encarou com teimosia — Luz, que mulher obstinada! — antes de fechar o bracelete no próprio pulso. Na mesma hora, foi tomada por uma expressão de espanto, depois estreitou os olhos para Marigan.
— Ela odeia a gente, mas disso eu já sabia. E sente medo, e… surpresa. O rosto dela não revela o menor traço, mas a mulher está chocada até a raiz dos cabelos. Acho que não acreditava que eu também pudesse usar isto aqui.
Marigan se remexeu, incomodada. Até então, apenas duas pessoas que sabiam a seu respeito podiam usar o bracelete. Quatro teriam mais chances de fazer perguntas. A mulher parecia cooperar, mas quanto estaria escondendo? O máximo possível, Nynaeve tinha certeza.
Siuan balançou a cabeça, com um suspiro.
— E eu não posso. Deveria conseguir tocar a Fonte a partir dela, não é mesmo? Pois é, não consigo. Mais fácil um peixe subir em árvores. Fui estancada e ponto final. Como é que se tira essa coisa? — A mulher sacudiu o bracelete. — Como é que se tira essa porcaria?
Com delicadeza, Nynaeve deitou a mão sobre a de Siuan, por cima do bracelete.
— Você não consegue ver? O bracelete não funciona para uma mulher incapaz de canalizar, assim como o colar não funcionaria. Se eu pusesse um dos dois em uma das cozinheiras, ia ser só uma joia bonita.
— Cozinheira ou não — retrucou Siuan, impassível —, eu não consigo canalizar. Fui estancada.
— Mas existe algo aí para ser Curado — insistiu Nynaeve —, senão você não receberia sensação nenhuma vinda do bracelete.
Siuan deu um puxão para soltar o braço e estendeu o punho.
— Tire isso de mim.
Nynaeve aquiesceu, balançando a cabeça. Às vezes Siuan conseguia ser tão cabeça-dura quanto qualquer homem!
Quando estendeu o bracelete para Leane, a domanesa ergueu o pulso com avidez. A antiga Curadora das Crônicas fingia aceitar o estancamento tão bem quanto Siuan — quanto Siuan fingia —, mas nem sempre se saía bem nisso. Supostamente, a única forma de sobreviver por um longo tempo após o estancamento era encontrar algo mais para preencher a vida, preencher o vazio deixado pelo Poder Único. Para Leane e Siuan, esse algo era administrar a rede de agentes e, mais importante, tentar convencer as Aes Sedai em Salidar a apoiar Rand al’Thor como o Dragão Renascido sem deixá-las saber o que estavam fazendo. A questão era se isso bastava. A amargura no rosto de Siuan, além do prazer no de Leane, quando o bracelete se fechou, denunciavam que talvez nada jamais fosse o bastante.
— Ah, sim. — Leane tinha um jeito direto de falar. Exceto quando se dirigia aos homens, pelo menos. Era domanesa, afinal, e vinha tentando tirar o atraso do tempo que passara na Torre. — É, ela está mesmo atônita, não está? Mas está começando a se controlar. — Por uns instantes, a mulher ficou sentada em silêncio, avaliando a figura no banquinho. Marigan a encarava de volta, receosa. Por fim, Leane deu de ombros. — Também não consigo tocar a Fonte. Tentei fazer com que ela sentisse uma picada de pulga no tornozelo. Se tivesse funcionado, ela teria dado algum sinal.
Este era outro truque do bracelete: provocar sensações físicas na mulher que portava o colar. Apenas sensações, pois o ato não gerava qualquer marca ou dano real. Ainda assim, a sensação de duas chicotadas bem dadas tinha bastado para convencer Marigan de que era melhor cooperar. A alternativa seria um julgamento rápido seguido de execução.
Apesar do fracasso, Leane não tirou os olhos do bracelete quando Nynaeve o abriu e o fechou outra vez no próprio punho. Parecia que ela, ao menos, não desistira completamente de algum dia canalizar outra vez.
Recuperar o acesso ao Poder parecia maravilhoso. Não tanto quanto abraçar e ser preenchida por saidar, porém até mesmo tocar a Fonte a partir de outra mulher era como duplicar a vida que corria em suas veias. Conter saidar dentro de si despertava a vontade de rir e dançar de pura alegria. Supunha que um dia se acostumaria com isso — imaginava que as Aes Sedai plenas com o tempo se acostumassem. Considerando o prazer que lhe trazia, a conexão com Marigan era um preço pequeno a se pagar.
— Agora que a gente sabe que existe uma chance — anunciou —, acho…
A porta se abriu com um estrondo, e Nynaeve viu-se de pé antes mesmo de pensar em reagir. Nem tinha cogitado usar o Poder, e teria gritado, se a garganta não estivesse completamente travada. Não foi a única, porém mal percebeu que Siuan e Leane também se levantaram de um salto. O medo cascateando pelo bracelete pareceu um eco do que ela própria sentia.
A jovem que fechou a porta de madeira irregular não percebeu a comoção que causara. Alta e empertigada em seu vestido de Aceita, os cachos dourados por sobre os ombros, parecia cuspir fogo, de tão irritada. No entanto, mesmo com o rosto rígido de raiva e pingando de suor, a jovem conseguia permanecer bonita — era uma das habilidades de Elayne.
— Vocês sabem o que elas estão fazendo? Estão enviando uma missão diplomática para… para Caemlyn! E se recusam a me deixar ir! Sheriam me proibiu de tocar outra vez nesse assunto. Me proibiu de sequer falar a respeito!
— Nunca ensinaram você a bater antes de entrar, Elayne? — Nynaeve endireitou a cadeira e sentou-se outra vez. Desabou, na realidade: os joelhos estavam bambos de alívio. — Achei que você fosse Sheriam. — A simples ideia de ser descoberta dilacerava suas entranhas.
Elayne teve a decência de corar e pedir desculpas na mesma hora. Então estragou tudo, acrescentando:
— Mas não entendo por que ficaram tão nervosinhas. Birgitte ainda está lá fora, e vocês sabem que ela avisaria caso alguém se aproximasse. Nynaeve, elas precisam me deixar ir.
— Elas não precisam fazer nada disso — retrucou Siuan com rispidez.
Ela e Leane também haviam se sentado de novo. Siuan mantinha as costas eretas, como sempre, mas Leane estava curvada para trás, meio bamba, feito os joelhos de Nynaeve. Marigan estava encostada na parede, ofegante, os olhos fechados, as mãos pressionadas com força no reboco da parede. Alívio e o mais completo terror jorravam pelo bracelete em solavancos alternados.
— Mas…
Siuan não permitiu que Elayne dissesse outra palavra.
— Você acha que Sheriam, ou qualquer uma das outras, vai deixar a Filha-herdeira de Andor cair nas mãos do Dragão Renascido? Ainda mais depois que sua mãe morreu…
— Eu não acredito nisso! — vociferou Elayne.
— Você não acredita que Rand a tenha matado — prosseguiu Siuan, inflexível —, e isso é outra coisa. Eu também não. No entanto, se Morgase estivesse viva, teria aparecido e reconhecido Rand como o Dragão Renascido. Ou, se acreditasse que ele era um falso Dragão, apesar das provas, estaria organizando a resistência. Nenhuma de minhas informantes ouviu um sussurro sequer a respeito de uma coisa ou outra. Nem em Andor, nem aqui em Altara, nem em Murandy.
— Ouviram, sim — retrucou Elayne. — Tem uma rebelião no oeste.
— Contra Morgase. Contra. Isso se também não for boato. — A voz de Siuan demonstrava tanta flexibilidade quanto um tronco de carvalho. — Sua mãe está morta, garota. É melhor admitir e acabar logo com esse período de luto.
Elayne ergueu a cabeça, um hábito muito irritante que tinha — era a imagem da arrogância fria, embora a maioria dos homens, sabe-se lá por quê, considerasse aquilo atraente.
— Você reclama o tempo todo sobre como demora para entrar em contato com as suas agentes — declarou a garota, muito calma —, mas vou deixar de lado o fato de que pode não ter ouvido tudo o que há para ouvir. Esteja minha mãe viva ou não, meu lugar agora é em Caemlyn. Eu sou a Filha-herdeira.
O bufo alto de desdém de Siuan fez Nynaeve dar um salto.
— Você já é Aceita há tempo o bastante para não se perder nessas besteiras.
Elayne possuía um potencial que não era visto em mil anos. Não tanto quanto Nynaeve, se a mulher aprendesse a canalizar por vontade própria, mas mesmo assim suficiente para fazer os olhos de qualquer Aes Sedai brilharem. A Filha-herdeira torceu o nariz. Sabia muito bem que, mesmo que já tivesse tomado posse do Trono do Leão, as Aes Sedai ainda a manteriam presa no treinamento — pedindo, se fosse possível, ou enfiando-a em um barril, caso necessário. Abriu a boca, mas Siuan continuou, sem sequer pausar para respirar:
— É verdade, ninguém vai se incomodar se você subir logo ao trono. Há muito não se vê uma Rainha abertamente declarada Aes Sedai. Mas não vão deixar você ir para lá até ser uma irmã completa, ou mesmo depois. Justamente porque você é a Filha-herdeira, em breve será a Rainha, não vão deixar que se aproxime do maldito Dragão Renascido até saberem quanto podem confiar nele. Sobretudo desde essa… anistia dele. — A boca da mulher se contorceu ao pronunciar a palavra, e Leane fez uma careta.
Nynaeve também conteve a língua. Fora criada para temer qualquer homem capaz de canalizar, todos destinados a enlouquecer e aterrorizar quem estivesse à sua volta antes que a metade masculina da Fonte, maculada pela Sombra, lhe trouxesse uma morte terrível. Rand, porém, um sujeito que vira crescer, era o Dragão Renascido — sua vinda era um sinal de que a Última Batalha estava próxima, uma batalha na qual ele deveria enfrentar o Tenebroso. O Dragão Renascido, a única esperança da humanidade — um homem capaz de canalizar. E pior: os informes revelavam que estava tentando reunir outros como ele. Naturalmente, não era possível que houvesse muitos. Qualquer Aes Sedai caçaria homens assim — a Ajah Vermelha tinha poucas funções além dessa. Ainda assim, segundo os relatórios, haviam encontrado alguns, embora bem menos do que antes houvera em outros tempos.
Elayne, no entanto, não estava disposta a desistir. Era uma de suas características admiráveis: não desistia nem com a cabeça no cadafalso e o machado já descendo. Permaneceu parada de cabeça erguida, enfrentando o olhar de Siuan, o que Nynaeve considerava muito difícil.
— Existem duas razões muito claras pelas quais eu devo ir. Primeiro: seja lá o que tenha acontecido com minha mãe, ela está desaparecida, e eu, como Filha-herdeira, posso acalmar o povo e assegurar que a sucessão continua intacta. Segundo: posso me aproximar de Rand. Ele confia em mim. Eu seria de longe melhor do que qualquer outra escolhida pelo Salão.
As Aes Sedai em Salidar tinham escolhido seu próprio Salão da Torre, um novo Salão no Exílio, por assim dizer. Sua suposta tarefa era considerar a escolha de um novo Trono de Amyrlin, uma Amyrlin legítima para clamar o título e a Torre de volta de Elaida, mas Nynaeve não vira muito sinal disso.
— É muita gentileza sua se oferecer para sacrifício, criança — retrucou Leane secamente.
A expressão de Elayne não se alterou, mas a jovem enrubesceu de fúria. Poucas pessoas fora daquele quarto sabiam, e nenhuma delas era Aes Sedai, mas Nynaeve não tinha dúvidas de que a primeira atitude de Elayne em Caemlyn seria ficar a sós com Rand e quase matá-lo de beijos. Leane continuou:
— Com sua mãe… desaparecida… se Rand al’Thor tiver você e Caemlyn, terá Andor, e o Salão não permitirá que ele possua Andor por mais do que o necessário, ou qualquer outro lugar, se for possível impedir. Ele carrega Tear e Cairhien no bolso, e os Aiel também, ao que parece. Se acrescentarmos Andor, Murandy e Altara desabariam a um espirro dele, e com a gente dentro. Rand está ficando cada vez mais poderoso, e muito depressa. Pode vir a decidir que não precisa de nós. Com Moiraine morta, não tem mais ninguém perto dele em quem possamos confiar.
Nynaeve estremeceu. Moiraine fora a Aes Sedai que a tirara de Dois Rios com Rand e mudara a vida deles. A dela e a de Rand, Egwene, Mat e Perrin. Passara tanto tempo desejando fazer Moiraine pagar pelo que fizera a eles que perdê-la era como perder um pedaço de si mesma. Mas a Aes Sedai morrera em Cairhien e levara Lanfear consigo. Estava rapidamente se tornando uma lenda entre as Aes Sedai, a única da Torre a ter matado não apenas um, mas dois dos Abandonados. A única coisa boa que Nynaeve via nisso, por mais que se envergonhasse de ver qualquer coisa boa, era que Lan agora estava livre de seu elo de Guardião. Se pelo menos conseguisse encontrá-lo.
Siuan prosseguiu, no ponto exato onde Leane parara:
— Não podemos nos dar ao luxo de deixar o garoto sair navegando sem ninguém para conduzir o timão. Quem é que sabe o que ele pode fazer? Sim, sim, sei que você fica aflita para defendê-lo, mas não quero nem ouvir. Estou tentando equilibrar um lúcio vivo no nariz, garota. Não podemos deixar que Rand se fortaleça demais antes de nos aceitar, mas também não ousamos refreá-lo muito. E estou tentando manter Sheriam e as outras convencidas de que devem apoiar Rand, mesmo com metade do Salão considerando, com seus botões, que não quer ter nada a ver com ele e a outra metade acreditando de todo o coração que ele deva ser amansado, Dragão Renascido ou não. Em todo caso, sejam quais forem seus argumentos, sugiro que aceite o que Sheriam diz. Você não vai fazer a cabeça de ninguém, e Tiana não tem noviças o suficiente para se ocupar, por aqui.
O rosto de Elayne se contraiu de raiva. Tiana Noselle, irmã Cinza, era Mestra das Noviças em Salidar. Uma Aceita precisava sair muito mais da linha do que uma noviça para ser mandada para Tiana, mas justamente por isso a visita era sempre muito mais dolorosa e vexatória. A Cinza podia demonstrar um pouco de bondade para com uma noviça, ainda que não muita, mas sentia que as Aceitas já não deviam cair em esparrelas e costumava fazê-las pensar o mesmo muito antes de deixarem o pequeno cubículo onde ficava seu gabinete.
Nynaeve andara observando Siuan, e um pensamento lhe veio à mente.
— Vocês sabem tudo a respeito dessa… missão diplomática, ou seja lá o que isso for… não sabem? Vocês duas sempre têm as ideias alinhadas com Sheriam e o circulozinho dela. — O Salão poderia muito bem ter toda a autoridade até que fosse escolhida uma nova Amyrlin, mas quem de fato controlava tudo era Sheriam e o grupinho de Aes Sedai que organizaram as primeiras chegadas em Salidar. — Quantas estão sendo enviadas, Siuan?
Elayne prendeu a respiração: estava claro que não havia pensado nisso. Era um sinal de como estava transtornada. Em geral era ela que notava os detalhes que Nynaeve deixava passar.
Siuan não negou a acusação. Desde o estancamento, conseguia mentir feito um mercador de lã, mas, quando decidia ser franca, era franca como um tapa na cara.
— Nove. “O bastante para honrar o Dragão Renascido”, elas disseram, afinal, costumamos mandar três para um rei, “mas não o suficiente para intimidá-lo”. Isso se ele tiver ficado sábio o suficiente para perceber que deveria ficar intimidado.
— É melhor torcer para que sim — retrucou Elayne, com frieza. — Senão nove podem ser oito a mais do que o necessário.
O número perigoso era treze. Rand era forte, talvez mais do que qualquer homem desde a Ruptura, porém treze Aes Sedai ligadas eram capazes de dominá-lo, blindá-lo de saidin e levá-lo prisioneiro. Treze era o número necessário para amansar um homem, embora Nynaeve já começasse a achar que se tratasse mais de costume do que de necessidade. As Aes Sedai faziam muitas coisas apenas por força do hábito.
Siuan abriu um sorriso longe de parecer de agrado.
— Eu fico imaginando… por que é que ninguém mais pensou nisso? Pense, garota! Sheriam pensa, o Salão também. A princípio só uma vai se aproximar dele, depois disso ninguém vai chegar perto, só se ele estiver à vontade. Mas Rand vai saber que tem nove das nossas lá, e sem dúvida alguém vai explicar a ele como isso é uma honra.
— Entendi — respondeu Elayne, com uma vozinha baixa. — Eu devia ter imaginado que uma de vocês pensaria nisso. Desculpe. — Era outra de suas qualidades. Podia ser teimosa feito uma mula vesga, mas, quando concluía que estava errada, admitia, tão mansa quanto uma camponesa. Muito raro para uma nobre.
— Min também vai — completou Leane. — Os… talentos dela podem ser úteis para Rand. As irmãs não saberão disso, é claro. Ela consegue guardar segredos. — Como se essa fosse a parte importante.
— Entendi — repetiu Elayne, desta vez de maneira inexpressiva. Fez esforço para avivar o tom, mas foi um fracasso. — Bom, estou vendo que estão ocupadas com… com Marigan. Não quis incomodar. Por favor, não me deixem interrompê-las.
Antes que Nynaeve pudesse abrir a boca, a Filha-herdeira se retirou e bateu a porta. Cheia de raiva, Nynaeve virou-se para Leane:
— Pensei que Siuan fosse a malvada das duas, mas isso foi cruel!
Foi Siuan quem respondeu.
— Sempre há problemas quando duas mulheres amam o mesmo homem, e quando o homem em questão é Rand al’Thor… sabe a Luz quanta lucidez ele ainda tem, ou em que direção mandarão que ele siga. Se arranhões e puxões de cabelo estiverem por vir, que aconteçam aqui e agora.
Sem pensar, a mão de Nynaeve agarrou a trança e deu um puxão por cima do ombro.
— Eu tenho que… — O problema era que havia pouco que pudesse fazer, e nada que fizesse muita diferença. — Vamos retomar de onde paramos quando Elayne entrou. Mas vou avisando, Siuan: se você fizer outra coisa dessas com ela — ou comigo, pensou —, farei você se arrepender por… aonde é que pensam que estão indo?
Siuan arrastara a cadeira para trás e se levantara, e, depois de uma olhadela, Leane fez o mesmo.
— Temos que trabalhar — respondeu a mulher, com aspereza, rumando para a porta.
— Você prometeu ficar disponível, Siuan. Sheriam mandou. — Não que Sheriam considerasse aquilo uma perda de tempo menos que Siuan, mas Nynaeve e Elayne haviam conquistado recompensas, além de certa quantidade de indulgências. Uma delas era ter Marigan servindo de criada, o que lhes deixava mais tempo para os estudos de Aceitas.
Siuan disparou um olhar bem-humorado pela porta.
— Talvez você deva reclamar com ela? E explicar como estão conduzindo essa pesquisa? Eu quero um tempo com Marigan hoje à noite; tenho mais umas perguntas.
Quando a antiga Amyrlin saiu, Leane anunciou, pesarosa:
— Seria ótimo, Nynaeve, mas nós temos que fazer o que podemos. Você podia tentar com Logain. — E também saiu.
A Aceita fechou a cara. Analisar Logain ajudara menos do que analisar as duas mulheres. Já não sabia ao certo se poderia descobrir qualquer coisa com ele. De todo modo, a última coisa que desejava era Curar um homem amansado. Ele a deixava muito nervosa.
— Vocês ficam se mordendo feito ratos presos em uma caixa — comentou Marigan. — Diante das evidências, suas chances não são muito boas. Talvez você devesse considerar… outras opções.
— Engula essa sua língua imunda! — Nynaeve cravou os olhos na mulher. — Engula, que a Luz a queime! — O medo ainda corria pelo bracelete, porém também algo mais, algo quase fraco demais para existir. Uma levíssima centelha de esperança, talvez. — Que a luz a queime — murmurou.
O nome verdadeiro da mulher não era Marigan, e sim Moghedien. Uma Abandonada, presa pelo próprio orgulho e arrogância, prisioneira entre as Aes Sedai. Apenas cinco mulheres no mundo sabiam disso, nenhuma delas Aes Sedai, mas manter Moghedien em segredo era a mais pura necessidade. Os crimes dos Abandonados a levariam à execução com a mesma certeza de que o sol nasceria. Siuan concordava: para cada Aes Sedai que preferisse aguardar, se houvesse alguma, dez exigiriam justiça imediata. Em sua sepultura sem lápide, também seria enterrado todo o conhecimento a respeito da Era das Lendas, época em que, com o Poder, se operavam feitos inimagináveis nos dias atuais. Nynaeve não sabia ao certo se acreditava em metade do que a mulher contava sobre aquela Era. Mas era certo que compreendia menos da metade.
Arrancar informações de Moghedien não era fácil. Às vezes era como Curar: Moghedien nunca se interessara por muita coisa que não fosse capaz de elevá-la, de preferência por atalhos. Era bastante improvável que revelasse a verdade, mas Nynaeve suspeitava de que a mulher tivesse sido uma espécie de vigarista antes de jurar a alma ao Tenebroso. Às vezes, ela e Elayne simplesmente não sabiam que perguntas fazer. Tinham apenas a certeza de que Moghedien quase nunca falava por vontade própria. Ainda assim, descobriram boas informações e repassaram a maior parte às Aes Sedai. Como se fossem resultado das pesquisas e dos estudos como Aceitas, claro. E ganharam bastante reconhecimento por isso.
Se fosse possível, ela e Elayne teriam guardado segredo a respeito da mulher, mas Birgitte soubera desde o início, e Siuan e Leane precisavam ser informadas. Siuan sabia o bastante sobre as circunstâncias que haviam levado à captura de Moghedien para exigir uma explicação detalhada, além de possuir poder de barganha para obtê-la. Nynaeve e Elayne sabiam alguns segredos de Siuan e Leane; já as duas pareciam saber tudo a respeito dela e de Elayne, exceto pela verdade em relação a Birgitte. Era um equilíbrio precário, com vantagem para a antiga Amyrlin e sua Curadora. Além do mais, alguns fragmentos das revelações de Moghedien faziam menção a supostas tramas de Amigos das Trevas e palpites a respeito do que os outros Abandonados poderiam estar tramando. A única maneira de passar essas informações adiante era fazer com que parecessem ter vindo das agentes de Siuan e Leane. Nada sobre a Ajah Negra — muitíssimo bem escondida e negada havia muito —, ainda que isso fosse o que mais interessava a Siuan. Sentia nojo dos Amigos das Trevas, mas a mera ideia de Aes Sedai prestando juramentos ao Tenebroso era suficiente para levá-la a uma fúria esmagadora. Moghedien alegava ter medo de chegar perto de qualquer Aes Sedai, e isso era perfeitamente crível. O medo era uma sensação permanente naquela mulher. Não era de se admirar que tivesse se escondido por tanto tempo nas sombras, a ponto de receber a alcunha de Aranha. Em suma, era um tesouro valioso demais para ser entregue ao carrasco, embora a maioria das Aes Sedai não a visse dessa forma. A maioria das Aes Sedai poderia se recusar a tocar ou confiar em qualquer coisa revelada por ela.
Culpa e repugnância açoitavam Nynaeve, e não era a primeira vez. Que montante de conhecimento poderia justificar manter uma Abandonada livre da justiça? Entregá-la acarretaria punição, decerto extrema, a todos os envolvidos, não apenas a ela própria, mas também a Elayne, Siuan e Leane. Entregá-la acarretaria a revelação do segredo de Birgitte. E a perda de todo aquele conhecimento. Moghedien podia não saber muito sobre Cura, mas dera a Nynaeve uma dezena de dicas a respeito do que era possível fazer, e sem dúvida tinha mais informações guardadas. Com tudo aquilo a conduzi-la, o que poderia vir a descobrir?
Nynaeve queria um banho, e não tinha nada a ver com o calor.
— Vamos conversar sobre o tempo — resmungou, em um tom amargo.
— Você sabe mais do que eu sobre controlar o tempo. — Moghedien soava exausta, e a sensação ecoou pelo bracelete. Muitas perguntas haviam sido feitas a respeito do assunto. — Tudo o que sei é que o que está acontecendo é obra do Grande… do Tenebroso. — Depois do ato falho, a mulher teve a coragem de abrir um sorriso insinuante. — Seres humanos comuns não têm força suficiente para mudar isso.
Nynaeve teve que se esforçar para não ranger os dentes. Elayne sabia mais sobre alterar o tempo do que qualquer outra em Salidar, e dissera o mesmo. Incluindo a parte do Tenebroso, embora bastasse não ser idiota para saber disso, com o calorão que fazia em uma época em que a neve deveria estar quase chegando, com a chuva escassa e a umidade evaporando.
— Então vamos falar sobre usar tramas diferentes para Curar doenças diferentes. — A mulher tinha contado que antigamente levava-se mais tempo do que nas Curas da atualidade, mas que toda a força provinha do Poder, não do paciente ou da mulher que canalizava. E, claro, que os homens de fato se saíam melhor em determinados tipos de Cura, mas Nynaeve não acreditaria numa coisa dessas. — Você deve ter visto alguém fazer isso pelo menos uma vez.
Pôs-se a escavar em busca de pepitas. Alguns conhecimentos valiam muito a pena. Só desejava não ter a sensação de que estava escavando lodo.
Elayne não hesitou ao sair, apenas acenou para Birgitte e prosseguiu. Com os cabelos dourados presos em uma trança intrincada que ia até a cintura, Birgitte brincava com dois garotinhos enquanto vigiava a viela estreita, o arco apoiado em uma cerca tombada logo ao lado. Ou tentava brincar. Jaril e Seve encaravam a mulher de estranhas calças amarelas e casaco curto e escuro, mas não exibiam qualquer outra reação. Nunca exibiam e nunca falavam. Os dois supostamente eram os filhos de “Marigan”. Birgitte estava contente em brincar com eles, mas também um pouco triste: gostava de crianças, sobretudo de meninos, e sempre se sentia assim quando brincava. Elayne sabia disso tão bem quanto sabia de seus próprios sentimentos.
Se achasse que Moghedien tinha qualquer coisa a ver com o estado dos dois… mas a mulher alegava que eles já estavam assim quando os apanhara em Ghealdan para o disfarce: órfãos de rua. E algumas irmãs Amarelas disseram que era porque os dois haviam visto muita coisa nos motins em Samara. Elayne acreditava, pelo que ela própria presenciara por lá. Segundo as irmãs Amarelas, os dois melhorariam com tempo e carinho. Elayne torcia que sim. Torcia para que não estivesse permitindo que a única responsável escapasse da justiça.
Não queria pensar em Moghedien. Em sua mãe. Não, definitivamente não queria pensar na mãe. Min. E Rand. Tinha de haver algum jeito de lidar com isso. Quase sem ver o assentir de cabeça que Birgitte dera em resposta, correu pela viela e emergiu na rua principal de Salidar sob o céu aberto e escaldante do meio-dia.
Por anos, Salidar permanecera abandonada, antes que ali começassem a se reunir as Aes Sedai em fuga após o golpe de Elaida. Naquele momento, havia palha fresca no telhado das casas, que em sua maioria exibiam reparos e remendos consideravelmente novos, assim como nas três grandes construções de pedra que antes eram estalagens. Uma, a maior delas, era chamada por alguns de Pequena Torre. Era lá que o Salão se reunia. Só haviam consertado o necessário, claro, e muitas janelas exibiam vidraças quebradas, ou não tinham vidro nenhum. Havia questões mais importantes do que recobrir os tijolos de argamassa ou pintar as paredes. As ruas de terra estavam abarrotadas. Não apenas de Aes Sedai, obviamente, mas também de Aceitas nos vestidos com listras e noviças apressadas, todas de branco, além de Guardiões, magros e corpulentos, movendo-se com a graça mortal de leopardos, de serviçais que acompanhavam as Aes Sedai vindas da Torre, e até de algumas crianças. E soldados.
O Salão dali se preparava para fazer cumprir as alegações contra Elaida à mão armada, caso necessário, tão logo escolhessem o verdadeiro Trono de Amyrlin. Vindo das forjas distantes nos arredores da Aldeia, o clangor distante de martelos entrecortava os murmúrios do povo, anunciando a ferração de cavalos e o conserto de armaduras. Um homem de rosto quadrado e cabelos escuros bem grisalhos cavalgava lentamente pela rua, vestindo um casaco meio amarelo e uma placa peitoral já gasta. Abria caminho por entre a multidão, observando os grupos de homens em marcha que levavam nos ombros lanças compridas ou arcos. Gareth Bryne concordara em recrutar e liderar o exército do Salão de Salidar, embora Elayne desejasse saber exatamente como e por quê. Tinha algo a ver com Siuan e Leane, mas não conseguia nem imaginar o quê, posto que o sujeito deixava as duas esgotadas — especialmente Siuan — com o cumprimento de algum juramento que Elayne também não sabia bem qual era. Só sabia que Siuan reclamava, amargurada, por ter que manter limpos o quarto e as roupas daquele homem antes de cumprir qualquer outra obrigação. Reclamava, mas fazia. O juramento devia ser mesmo poderoso.
Os olhos de Bryne passaram por Elayne quase sem hesitar. Desde que chegara a Salidar, o homem se comportara de modo educado, sempre frio e distante, embora a conhecesse desde o berço. Até menos de um ano antes, fora Capitão-General da Guarda da Rainha em Andor. Elayne chegou a pensar que ele e sua mãe fossem se casar. Não, não pensaria na mãe! Min. Precisava encontrar Min para conversar.
No entanto, assim que se pôs a andar por entre a multidão pela rua de terra batida, duas Aes Sedai a encontraram. Não havia escolha a não ser parar e lhes dispensar uma mesura enquanto o povo passava ao redor. As duas abriram sorrisos enormes. Nenhuma suava uma gota que fosse. Puxando um lencinho da manga para enxugar o rosto, Elayne desejou já dominar um pouquinho desse conhecimento em especial das Aes Sedai.
— Bom dia, Anaiya Sedai, Janya Sedai.
— Bom dia, criança. Tem mais alguma descoberta para nós? — Como sempre, Janya Frende falava como se não tivesse tempo para pronunciar as palavras. — Você e Nynaeve têm feito um progresso impressionante, ainda mais para duas Aceitas. Não sei como Nynaeve consegue, tendo tanta dificuldade com o Poder, mas devo dizer que estou muito satisfeita.
Ao contrário da maioria das irmãs Marrons, geralmente absortas em seus livros e estudos, Janya Sedai era bastante asseada: cada fio de cabelo escuro parecia muito arrumado, emoldurando o rosto etéreo que marcava as Aes Sedai depois de muito tempo manejando o Poder. Contudo, a aparência da mulher esguia denunciava sua Ajah. Usava um vestido liso de lã cinza pesada — as Marrons quase nunca pensavam em roupas como algo além de uma cobertura decente para o corpo —, e, mesmo enquanto falava, parecia ter a testa levemente franzida, como se tivesse a mente tomada por qualquer outra coisa. Janya Sedai seria muito bonita sem a testa franzida. Ela continuou:
— Essa técnica de se enrolar na luz para ficar invisível… Extraordinário. Tenho certeza de que alguém vai encontrar um meio de impedir as ondas, para que seja possível caminhar e manter o efeito ao mesmo tempo. E Carenna está bastante animada com aquele truquezinho de bisbilhotice da Nynaeve. Muito safado da parte dela, porém útil. Carenna está pensando em um jeito de adaptá-lo para conversarmos à distância. Pense só. Falar com alguém a uma milha de distância! Ou duas, ou até…
Anaiya tocou o braço da mulher, e ela parou de falar, olhando sem reação para a outra Aes Sedai.
— Vocês estão progredindo muito, Elayne — comentou Anaiya, com a voz calma. A mulher de rosto largo estava sempre calma. A melhor palavra para descrevê-la era “maternal”, às vezes “reconfortante”, embora as feições de Aes Sedai tornassem impossível atribuir-lhe qualquer idade. Além disso, ela pertencia ao pequeno círculo de Sheriam que detinha o verdadeiro poder em Salidar. — Muito mais que qualquer uma de nós esperava, a bem da verdade, esperávamos muito. A primeira a fazer um ter’angreal desde a Ruptura. Isso é extraordinário, criança, e quero que você saiba disso. Deveria estar muito orgulhosa de si mesma.
Elayne encarou o chão diante de seus pés. Dois garotos da altura de sua cintura passaram às gargalhadas, entrecortando a multidão. Queria que não houvesse ninguém por perto para ouvir aquilo. Não que qualquer transeunte estivesse prestando atenção. Com tantas Aes Sedai na aldeia, as próprias noviças só dispensavam mesuras às que lhes dirigiam a palavra, e todas estavam sempre cheias de tarefas atrasadas.
Não se sentia nem um pouco orgulhosa, já que todas as “descobertas” provinham de Moghedien. Houvera muitas, a começar pela “inversão” — fazer com que uma tessitura só pudesse ser vista pela mulher que a urdira —, porém não haviam passado todas as novas informações adiante. Como o talento de esconder a habilidade de canalizar, por exemplo. Sem ele, Moghedien teria sido desmascarada em questão de horas — qualquer Aes Sedai a dois ou três passos de uma mulher era capaz de sentir se ela podia ou não canalizar. Se as outras aprendessem esse truque, poderiam aprender a transpô-lo. E isso também ajudava a criar disfarces: as tramas invertidas faziam com que “Marigan” não se parecesse nem um pouco com Moghedien.
Algumas coisas que a mulher sabia eram absolutamente repugnantes. A Compulsão, por exemplo, uma forma de forçar a vontade alheia e plantar instruções de modo que o receptor executasse ordens que sequer se lembrava de ter recebido. Havia coisas piores. Repugnantes demais, talvez perigosas demais para confiá-las a qualquer pessoa. Nynaeve dizia que precisavam aprendê-las para poder contra-atacá-las, mas Elayne não queria. Guardavam tantos segredos, mentiam tanto para os amigos e as pessoas próximas, que quase desejava poder fazer os Três Juramentos no Bastão dos Juramentos sem ter de esperar até ser elevada a Aes Sedai. Um deles a limitaria a não dizer palavra que não fosse verdadeira como se esse fosse o limite de seu próprio corpo.
— Não me saí tão bem quanto poderia com o ter’angreal, Anaiya Sedai.
Aquilo, pelo menos, era feito dela e de mais ninguém. Os primeiros haviam sido o bracelete e o colar. Um segredo bem guardado, desnecessário dizer, mas eram uma cópia levemente alterada de uma invenção sórdida — o a’dam — que os Seanchan haviam deixado para trás ao retornarem para o mar após a invasão de Falme. O disco verde liso que permitia que alguém sem força suficiente — ou seja, a maioria das Aes Sedai — conseguisse reproduzir o truque da invisibilidade fora ideia dela desde o início. Não possuía qualquer angreal ou sa’angreal para estudar, portanto fora impossível tentar construí-los até então — e, mesmo tendo facilidade em reproduzir o artefato Seanchan, os ter’angreal se mostraram mais complicados do que ela imaginara. Esses objetos usavam o Poder Único, em vez de intensificá-lo, para um propósito específico, para fazer algo. Alguns podiam até ser utilizados por quem fosse incapaz de canalizar, até mesmo por homens. Deveria ter sido mais simples. Talvez as funções fossem simples, mas a fabricação não era.
A afirmação modesta desencadeou uma torrente de Janya.
— Bobagem, criança. Pura bobagem. Ora, não tenho dúvidas de que assim que chegarmos de volta à Torre e pudermos testar você a contento e pôr o Bastão dos Juramentos em suas mãos, você será elevada ao xale, bem como ao anel. Não tenho dúvidas. Está mesmo atingindo o potencial que vimos em você. E mais. Ninguém poderia imaginar…
Anaiya tocou o braço dela outra vez. Parecia um código entre as duas, pois mais uma vez Janya parou e ficou sem palavras.
— Não há necessidade de encher tanto assim a cabeça dessa criança — comentou. — Elayne, não vou aturar essa sua mania de ficar amuada. Você já deveria ter passado dessa fase há muito tempo. — A mãe conseguia ser firme e gentil ao mesmo tempo. — Não vou admitir que você faça bico por conta de uns poucos fracassos, não com um sucesso tão incrível. — Elayne fizera cinco tentativas com o disco de pedra. Duas não tinham dado em nada, e outras duas deixavam a pessoa fora de foco e causavam embrulhos no estômago. A tentativa bem-sucedida fora a terceira. Mais do que poucos fracassos, na opinião de Elayne. — Tudo o que você fez é incrível. E Nynaeve também.
— Obrigada — respondeu Elayne. — Obrigada às duas. Vou tentar não ficar amuada. — Quando uma Aes Sedai acusava alguém de qualquer coisa, era melhor não tentar negar. — Podem me dar licença, por favor? Fiquei sabendo que a missão diplomática para Caemlyn está partindo hoje e quero me despedir de Min.
As duas a dispensaram, claro, embora Janya talvez tivesse levado meia hora para fazer isso se não estivesse acompanhada de Anaiya, que encarou Elayne com um olhar cortante — decerto sabia tudo sobre a conversa com Sheriam —, mas nada disse. Às vezes, o silêncio de uma Aes Sedai falava tão alto quanto suas palavras.
Mexendo no anel no terceiro dedo da mão esquerda, Elayne disparou, quase correndo, os olhos focados bem à frente para poder alegar não ter visto qualquer outra pessoa que tentasse pará-la para lhe parabenizar. Talvez funcionasse, talvez significasse uma visita a Tiana — indulgências pelo bom trabalho tinham seus limites. Naquele exato instante, preferiria que fosse Tiana a lhe fazer elogios desmerecidos.
O anel de ouro era uma serpente mordendo a própria cauda, a Grande Serpente, símbolo das Aes Sedai, mas também usado pelas Aceitas. Quando vestisse o xale com franjas nas cores da Ajah que escolhesse, usaria o anel no dedo que quisesse. Escolheria a Ajah Verde por necessidade — apenas as irmãs Verdes tinham mais de um Guardião, e ela queria Rand. Ou quanto dele fosse possível, ao menos. A dificuldade era que já fizera um elo com Birgitte, a primeira mulher a se tornar Guardiã. Por isso conseguia sentir as sensações de Birgitte — sabia que a mulher cortara a mão naquela manhã. Só Nynaeve sabia sobre o elo. Guardiões eram reservados para as Aes Sedai completas, e se uma Aceita desobedecesse essa proibição não haveria indulgência no mundo que lhe salvasse a pele. Aquilo fora obra da necessidade, não um capricho — do contrário, Birgitte teria morrido —, mas Elayne não achava que faria diferença. Infringir uma regra com o Poder poderia ser fatal para si mesma e para os outros — para deixar isso bem claro, as Aes Sedai raramente deixavam alguém escapar ao infringir uma regra, pelo motivo que fosse.
Havia tantos subterfúgios ali em Salidar. Não apenas Birgitte e Moghedien. Um dos Juramentos proibia as Aes Sedai de mentir, mas as coisas não ditas não eram necessariamente mentiras. Moiraine aprendera a urdir um manto de invisibilidade, talvez o mesmo que haviam aprendido com Moghedien. Nynaeve vira Moiraine fazer isso uma vez, antes de aprender qualquer coisa sobre o Poder. No entanto, ninguém mais em Salidar aprendera. Ou admitia ter aprendido, de todo modo. Birgitte confirmara o que Elayne começara a suspeitar: a maioria das Aes Sedai, talvez todas, guardava para si pelo menos parte do que aprendia, e a maioria possuía seus truques secretos. Esses truques poderiam ser ensinados às noviças ou às Aceitas e tornar-se de conhecimento geral, se fossem aprendidos por um número suficiente de Aes Sedai… ou poderiam morrer com quem as descobrira. Por duas ou três vezes, Elayne pensou ter visto um leve brilho nos olhos de uma das mulheres ao demonstrar algo que descobrira. Carenna aprendera o truque da bisbilhotagem com rapidez surpreendente. Mas esse não era bem o tipo de acusação que uma Aceita podia fazer contra uma Aes Sedai.
Esse conhecimento não deixava seus próprios fingimentos mais palatáveis, mas talvez ajudasse um pouco. Isso e também se lembrar da necessidade. Se pelo menos parassem de elogiá-la pelo que não tinha feito…
Tinha certeza de onde encontraria Min. O rio Eldar ficava menos de três milhas a oeste de Salidar, e um pequeno córrego margeava a beirada da aldeia, abrindo caminho pela floresta até o rio. A maioria das árvores que crescera na cidade havia sido derrubada depois que as Aes Sedai começaram a chegar, mas ainda havia um pequeno trecho na ribanceira atrás de algumas casas, em um pedaço de terra estreito demais para ter qualquer utilidade. Min dizia gostar mais das cidades, porém ainda assim tinha o costume de se sentar entre essas árvores. Era uma forma de escapar da companhia de Aes Sedai e Guardiões por um tempo, e para Min isso era quase essencial.
Como esperado, tão logo Elayne virou a curva de uma casa de pedras em direção à estreita faixa de terra, avançando ao lado de um filete de água igualmente estreito, encontrou Min sentada, recostada em uma árvore, observando o pequeno córrego borbulhar por sobre as pedras. Ou o que restava dele: o riacho gotejava por um leito de lama seca com o dobro de sua largura. As árvores daquela área ainda tinham algumas folhas, mas a maior parte da floresta ao redor começava a desfolhar. Até os carvalhos.
Um galho seco se partiu sob a sandália de Elayne, e Min levantou-se de um salto. Como de costume, usava roupas masculinas — casaco cinza e calças —, mas tinha mandado bordar pequenas flores azuis nas lapelas e nas laterais das calças confortáveis. Por estranho que fosse para alguém que dizia ter sido criada por três tias costureiras, Min parecia não saber distinguir as duas pontas de uma agulha. A jovem encarou Elayne, fez uma careta e passou os dedos pelos cabelos escuros na altura do ombro.
— Você sabe. — Foi tudo o que disse.
— Achei que devíamos conversar.
Min passou as mãos pelos cabelos outra vez.
— Siuan só me contou hoje de manhã. Desde então venho tentando criar coragem para contar a você. Ela quer que eu o espione, Elayne. Por causa da missão diplomática. E me deu nomes de pessoas em Caemlyn que podem mandar recados de volta para ela.
— Você não vai, claro — respondeu Elayne, sem o menor tom de pergunta, e Min lhe devolveu um olhar de gratidão. — Por que estava com medo de vir falar comigo? Nós somos amigas, Min. Prometemos não deixar homem nenhum ficar entre nós. Mesmo que seja amado pelas duas.
A risada de Min era um pouco rouca, e Elayne supunha que muitos homens achassem atraente. E a jovem era bonita, mas de uma forma meio travessa. Além de alguns anos mais velha — o que seria vantagem ou desvantagem?
— Ah, Elayne, dissemos isso quando estávamos a salvo, com ele bem longe de nós duas. Perder você seria como perder uma irmã, mas e se uma de nós mudar de ideia?
Era melhor não perguntar qual das duas seria. Elayne tentava não pensar no fato de que se amarrasse e amordaçasse Min com o Poder e invertesse a trama, poderia escondê-la em um porão até que a missão diplomática estivesse bem distante.
— Não vamos — respondeu, simplesmente. Não, não poderia fazer isso com Min. Queria Rand todo para si, mas não podia magoar a amiga. Talvez pudesse só pedir que a outra não fosse até que ambas pudessem ir. Em vez disso, disse: — Gareth está liberando você do juramento?
Desta vez a risada de Min foi curta, quase uma tosse.
— Até parece. Ele diz que vai me cobrar isso mais cedo ou mais tarde. Siuan é a única que realmente quer manter, sabe a Luz por quê. — Uma leve tensão em seu rosto fez Elayne pensar que havia alguma visão envolvida, mas ela não perguntou. Min nunca falava a respeito de suas visões, a não ser que envolvesse diretamente a pessoa.
A jovem tinha uma habilidade conhecida por poucas em Salidar. Elayne e Nynaeve, Siuan e Leane, só. Birgitte não sabia, mas, por outro lado, Min não sabia a respeito de Birgitte. Ou Moghedien. Tantos segredos. Mas o de Min era só dela. A jovem às vezes via imagens ou auras ao redor dos outros, e às vezes sabia o que significavam. Quando sabia, estava sempre certa — por exemplo, se dizia que um homem e uma mulher iriam se casar, então cedo ou tarde eles se casavam, mesmo que os dois claramente se odiassem no momento. Leane chamava isso de “ler o Padrão”, mas não tinha nada a ver com o Poder. A maioria das pessoas só exibia imagens de vez em quando, mas Aes Sedai e Guardiões, sempre. As fugas de Min para aquele lugar eram uma forma de escapar dessa torrente de informações.
— Você pode levar uma carta a Rand para mim?
— Claro. — A mulher aquiesceu tão depressa, a expressão tão sincera, que Elayne corou e prosseguiu depressa. Não sabia se teria concordado caso fosse a situação inversa. — Você não pode deixar que ele saiba das suas visões, Min. Em relação à gente. — Uma coisa que a jovem vira a respeito de Rand era que três mulheres se apaixonariam perdidamente por ele e se uniriam a ele para sempre, e que uma dessas mulheres seria ela própria. A segunda ficou claro que seria Elayne. — Se ele souber de alguma coisa sobre a visão, pode decidir que não é o que queremos, apenas um capricho do Padrão ou do fato de ele ser ta’veren. Rand poderia decidir agir com nobreza e nos salvar, impedindo que qualquer uma de nós se aproxime dele.
— Talvez — concordou Min, meio em dúvida. — Os homens são estranhos. É mais provável que, caso ele perceba que nós duas vamos sair correndo quando ele estalar os dedos, faça exatamente isso. Rand não vai conseguir se conter. Já vi homens fazendo isso. Acho que tem a ver com o cabelo que cresce no queixo deles. — A jovem tinha uma expressão tão pensativa que Elayne não soube dizer se era piada ou não. Min parecia saber muito sobre os homens. A jovem trabalhara basicamente em estábulos, pois gostava de cavalos, mas chegou a mencionar ter servido mesas em uma taverna. — De todo modo, não vou contar. Você e eu vamos dividi-lo feito uma torta. Talvez deixemos a terceira ficar com alguma migalha, quando ela aparecer.
— O que é que vamos fazer, Min?
Elayne não pretendia dizer aquilo, decerto não em tom quase de choramingo. Parte dela queria declarar que não tinha a menor dúvida de que ela nunca iria correndo quando ele estalasse o dedo e outra parte desejava que ele estalasse. Parte queria dizer que não dividiria Rand de forma alguma, com ninguém, nem mesmo com uma amiga, as visões de Min que fossem para o Poço da Perdição. Mas a outra parte desejava dar um cascudo em Rand por fazer isso com ela e Min. Era tudo tão infantil que sentia vontade de enterrar a cabeça, mas era incapaz de separar a raiva dos outros sentimentos. Acalmando a voz, respondeu à própria pergunta antes que Min o fizesse:
— O que vamos fazer é sentar aqui um pouco e conversar. — Dito e feito, escolheu um cantinho particularmente abundante de folhas mortas. Uma árvore formava um ótimo encosto. — Não só sobre Rand. Vou sentir a sua falta, Min. É tão bom ter uma amiga em quem posso confiar.
Min sentou-se de pernas cruzadas ao lado dela e começou, distraída, a catar seixos e atirá-los no córrego.
— Nynaeve é sua amiga. Você confia nela. E Birgitte sem dúvida parece uma amiga: você passa até mais tempo com ela do que com Nynaeve. — Um leve franzido enrugou sua testa. — Ela acredita mesmo que é a Birgitte das lendas? Quer dizer, todas as histórias mencionam o arco e a trança, ainda que o dela não seja de prata. E não acredito que ela tenha nascido com esse nome.
— Ela nasceu com o nome — respondeu Elayne, receosa. Era verdade, de certo modo. Era melhor mudar o rumo da conversa. — Nynaeve ainda não decidiu se sou uma amiga ou alguém que ela precisa intimidar para fazer o que ela considera correto. E passa mais tempo do que eu se lembrando de que sou filha da Rainha a quem ela serve. Às vezes acho que ela usa esse fato contra mim. Você nunca faz isso.
— Talvez eu não fique tão impressionada. — Min exibia um sorriso largo, mas soava séria. — Eu nasci nas Montanhas da Névoa, Elayne, nas minas. O poder da sua mãe é bem enfraquecido lá para as bandas do oeste. — O sorriso desapareceu de seu rosto. — Me desculpe.
Sufocando um lampejo de indignação — Min era tão súdita do Trono do Leão quanto Nynaeve! —, Elayne deixou a cabeça pender para trás e encostar na árvore.
— Vamos falar de coisas alegres.
O sol vertia por sobre os galhos das árvores acima delas; o céu era uma folha azul límpida, sem um traço sequer de nuvem no horizonte. Por impulso, ela se abriu para saidar e deixou-se preencher, como se todo o prazer da vida no mundo tivesse sido destilado e cada gota em suas veias tivesse sido substituída pela essência. Se conseguisse formar pelo menos uma nuvenzinha, seria um sinal de que tudo daria certo. A mãe estaria viva. Rand a amaria. E Moghedien… dariam um jeito nela. Arranjariam uma solução. Urdiu uma tênue teia de Ar e Água pelo céu, o mais distante que pôde, buscando umidade para uma nuvem. Se ao menos conseguisse puxá-la com força suficiente… a doçura logo se transformou quase em dor, o sinal de perigo — se recorresse a um tanto mais de Poder, poderia acabar estancando a si mesma. Só uma nuvenzinha.
— Coisas alegres? — indagou Min. — Bom, eu sei que você não quer falar sobre Rand, mas, além nós duas, ele ainda é a coisa mais importante no mundo, no momento. E a mais alegre. Os Abandonados caem mortos quando ele aparece, e as nações fazem fila para se curvar perante ele. As Aes Sedai aqui estão prontas para apoiá-lo. Sei que estão, Elayne: precisam estar. Ora, daqui a pouco Elaida vai pôr a Torre nas mãos dele. A Última Batalha será moleza. Ele está vencendo, Elayne. Nós estamos vencendo.
A Aceita largou a Fonte e tombou para trás, encarando o céu vazio como se tornara seu humor. Não era preciso saber canalizar para ver a mão do Tenebroso em ação, e, se ele podia tocar o mundo dessa forma, se podia sequer tocar o mundo…
— Estamos mesmo? — indagou, porém baixo demais para que Min ouvisse.
A casa do solar ainda não estava terminada, os compridos painéis de madeira do salão principal continuavam opacos e sem cor, mas Faile ni Bashere t’Aybara ouvia as petições dos súditos todas as tardes, como era apropriado à mulher de um lorde. Ficava sentada em uma robusta cadeira de espaldar alto com entalhes de falcões, bem diante de uma lareira de pedras nuas — havia uma lareira gêmea no outro extremo do aposento. A cadeira vazia a seu lado, com entalhes de lobos e uma grande cabeça de lobo no topo, deveria estar ocupada por seu marido, Perrin t’Bashere Aybara, Perrin Olhos-Dourados, Lorde de Dois Rios.
Naturalmente, o solar não passava de uma casa de fazenda grande demais, e o salão se estendia por pouco mais de quinze passadas. Ah, como Perrin a olhara feio quando ela insistira que fosse tão grande… Ele ainda pensava em si mesmo como ferreiro, ou até ajudante de ferreiro. Além disso, na ocasião de seu nascimento, a mulher recebera o nome de Zarine, não Faile. Essas coisas não importavam. Zarine, nome de mulher lânguida que suspirava trêmula ao ouvir poemas compostos em homenagem a seu sorriso. Faile, o nome que escolhera quando fora jurada Caçadora da Trombeta de Valere, significava falcão na Língua Antiga. Ninguém que olhasse com atenção para seu rosto — com nariz acentuado, maçãs do rosto proeminentes e olhos escuros e oblíquos que lampejavam quando ela estava com raiva — poderia duvidar de qual dos dois nomes lhe era mais apropriado. Quanto ao restante, o que importava era a intenção. E o que era correto e apropriado.
Naquele momento, seus olhos lampejavam. Não tinha nada a ver com a teimosia de Perrin, e apenas um pouco com o calor fora de estação. Mesmo que, em verdade, ter que abanar inutilmente o leque de penas de faisão para tentar secar o suor do rosto não melhorasse em nada seu humor.
Àquela hora já avançada da tarde, restava pouca gente da multidão que fora vê-la julgar as contendas. A verdade é que o povo ia para ser ouvido por Perrin, mas ele ficava apavorado só de pensar em julgar pessoas com quem crescera. A não ser que Faile o encurralasse, fugia feito lobo na neblina quando chegava a hora das audiências diárias. Por sorte, o povo não se incomodava quando Lady Faile os ouvia, em vez de Lorde Perrin. Ou então poucos se incomodavam, de todo modo, e eram sábios o bastante para disfarçar.
— Vocês trouxeram o assunto a mim — declarou, em um tom inexpressivo.
As duas mulheres suadas diante dela se remexiam, desconfortáveis, e encaravam o chão de pedras polidas.
Sharmad Zeffar, de pele acobreada, cobrira as curvas generosas, mas pouco as ocultava. Usava um vestido domanês de gola alta bastante transparente, com as mangas e bainhas de seda dourada bem claras e puídas, ainda com manchinhas da viagem que pareciam impossíveis de limpar. De qualquer forma, seda era seda, algo raro de se encontrar na região. Os patrulheiros que rondavam as Montanhas da Névoa em busca de vestígios da invasão dos Trollocs no último verão encontravam poucas das criaturas bestiais — e nenhum Myrddraal, pela graça da Luz —, mas resgatavam refugiados quase todos os dias: dez aqui, vinte ali, cinco acolá. A maioria vinha da Planície de Almoth, mas um bom número era de Tarabon e, como Sharmad, de Arad Doman — terras abandonadas, arruinadas pela anarquia, além da guerra civil. Faile não queria nem pensar em quantos haviam morrido naquelas montanhas. Com a falta de estradas ou mesmo de trilhas, a viagem não era fácil, nem em épocas melhores, e os dias atuais estavam longe de ser a melhor época.
Rhea Avin não era refugiada, apesar de usar uma imitação de vestido taraboniano em lã de trama fina, com delicados pregueados cinza que moldavam e revelavam quase tanto quanto a vestimenta delgada de Sharmad. Os que sobreviviam à dura viagem traziam mais do que rumores preocupantes, habilidades nunca vistas em Dois Rios e braços para trabalhar nas fazendas despovoadas pelos Trollocs. Rhea era bonita, de rosto redondo e nascera a menos de duas milhas de onde ficava o solar. Usava os cabelos escuros em uma trança da grossura de um punho que descia até a cintura. Em Dois Rios, as moças só trançavam os cabelos quando o Círculo das Mulheres considerava que estavam em idade de se casar, fosse aos quinze anos ou aos trinta, embora poucas passassem dos vinte. Rhea era cerca de cinco anos mais velha que Faile e trançava os cabelos havia quatro anos, mas, naquele momento, parecia ainda usá-los soltos e ter acabado de reparar que a ideia esplêndida de outrora era de fato a coisa mais burra que poderia ter feito. Aliás, Sharmad parecia ainda mais envergonhada, pois tinha um ano ou dois a mais que Rhea. Para uma domanesa, deveria ser humilhante encontrar-se em tal situação. Faile queria estapear a cara das duas, mas uma lady não podia fazer tal coisa.
— Um homem — disse ela, no tom mais firme possível — não é um cavalo nem um pedaço de terra. Nenhuma de vocês pode tê-lo como propriedade. E vir aqui me perguntar qual das duas tem direito a ele… — Faile soltou um suspiro lento e profundo. — Se eu achasse que Wil al’Seen estivesse seduzindo as duas, poderia ter algo a dizer a respeito. — Wil tinha um fraco pelas mulheres, e elas, por ele, com suas panturrilhas bem torneadas. Mas o sujeito nunca fazia promessas. Sharmad parecia prestes a desabar. Afinal, as domanesas é que tinham reputação de levar os homens na lábia, não o contrário. — Sendo assim, meu julgamento é o seguinte: vocês duas irão até a Sabedoria para explicar o assunto a ela, não deixem nenhum detalhe de fora. Daise vai cuidar disso. Espero que antes do cair da noite tenha notícias de que já estiveram com ela.
As duas se encolheram. Daise Congar, a Sabedoria de Campo de Emond, não toleraria esse tipo de bobagem. Faria até muito mais do que apenas não tolerar. Contudo, as duas se curvaram em mesuras, murmurando “sim, milady” em um uníssono desesperado. Se já não estivessem, dentro em breve se arrependeriam amargamente por fazerem Daise perder tempo com elas.
E eu, pensou Faile, com firmeza. Todos sabiam que era raro Perrin comparecer às audiências, ou as duas jamais teriam trazido um “problema” tão idiota. Se ele estivesse ali, ocupando seu lugar, as mulheres teriam saído de fininho em vez de revelarem aquilo. Faile desejou que o calor tivesse deixado Daise bem irritadiça. Era pena que não havia como fazê-la dar uma lição em Perrin também.
Cenn Buie ocupou o lugar das mulheres quase antes que as duas saíssem do caminho, arrastando os pés. Apesar de se apoiar bastante em um cajado quase tão velho quanto ele próprio, o homem conseguiu se curvar em uma mesura floreada — então estragou o movimento correndo os dedos ossudos pelos cabelos ralos e finos. Como de costume, parecia ter dormido com o casaco marrom grosseiro.
— Que a Luz brilhe sobre a senhora, Lady Faile, e sobre seu honrado marido, Lorde Perrin. — As palavras grandiosas soavam estranhas naquela voz esganiçada. — Permita que eu acrescente meus votos de contínua felicidade a todos do Conselho. Sua beleza e inteligência iluminam a vida de todos nós, bem como a justiça em seus pronunciamentos.
Faile tamborilou os dedos no braço da cadeira antes que pudesse se deter. Elogios e floreios, em vez dos resmungos azedos de sempre. A lembrança, com o devido respeito, de que ele ocupava uma cadeira do Conselho da Aldeia de Campo de Emond e era um homem de influência. E aquele cajado para suscitar compaixão… O telhador era ágil como qualquer um com metade da sua idade.
— O que o senhor me traz hoje, Mestre Buie?
Cenn se endireitou, sem se lembrar de escorar na bengala. E sem se lembrar de eliminar o tom mordaz da voz.
— São todos esses forasteiros chegando aos montes, trazendo uma porção de coisa que a gente não quer por aqui. — O homem parecia ter esquecido que ela também era forasteira. A maior parte do povo de Dois Rios esquecera. — Costumes estranhos, milady. Roupas indecentes. As mulheres vão vir falar sobre as vestimentas dessas domanesas atiradas, isso se já não tiverem vindo. — De fato, algumas já tinham reclamado, embora uma centelha nos olhos de Cenn revelasse que ela se arrependeria caso cedesse às demandas. — Estranhos roubando comida de nossas bocas, tomando nossos negócios. Aquele rapaz taraboniano e suas telhas idiotas, por exemplo. Ocupando mãos que poderiam estar fazendo algum trabalho útil. Ele não se importa com o povo de Dois Rios. Ora, ele…
Abanando-se, Faile parou de escutar, mas teve o cuidado de dar impressão de que prestava muita atenção — uma habilidade que o pai lhe ensinara, necessária em momentos como esse. Claro. As telhas de Mestre Hornval concorreriam com os telhados de palha de Cenn.
Nem todos se sentiam como Cenn em relação aos recém-chegados. Haral Luhhan, o ferreiro de Campo de Emond, fizera uma parceria com um cuteleiro domanês e um polidor de metais da Planície de Almoth, e Mestre Aydaer contratara três homens e duas mulheres que entendiam de marcenaria, escultura e até de douradura — embora decerto não houvesse ouro para tanto. As cadeiras dela e de Perrin eram trabalho desse grupo, tão caprichadas quanto Faile encontrara em outras cortes. Aliás, o próprio Cenn contratara cerca de meia dúzia de ajudantes, nem todos de Dois Rios, pois muitos telhados tinham pegado fogo no ataque dos Trollocs, e novas casas eram erguidas para todos os lados. Perrin não tinha o direito de fazê-la ouvir toda aquela bobagem sozinha.
O povo de Dois Rios podia até tê-lo proclamado lorde — o que era o certo a se fazer, depois que Perrin os levou à vitória sobre os Trollocs —, e ele podia até estar começando a perceber que não seria capaz de mudar esse fato — como decerto deveria ter tentado assim que começaram a se curvar em reverências e chamá-lo de Lorde Perrin, a despeito de ele pedir que não o fizessem —, mas ainda assim se recusava a aceitar as pompas que vinham com o título de lorde, tudo o que um povo esperava de seus lordes e ladies. Pior ainda: se recusava a cumprir os deveres de lorde. Faile sabia muito bem o que devia ser feito, já que era a filha mais velha que restara de Davram t’Ghaline Bashere, Lorde de Bashere, Tyr e Sidona, Guardião da Fronteira da Praga, Defensor da Terra do Coração, Marechal-General da Rainha Tenobia de Saldaea. Era verdade que fugira para se tornar Caçadora da Trombeta — e aberto mão disso por um marido, o que às vezes ainda a surpreendia —, mas ainda se lembrava. Perrin escutava quando ela tentava explicar, até assentia nos momentos oportunos, mas obrigá-lo a de fato fazer qualquer coisa era como obrigar um cavalo a dançar a sa’sara.
Cenn enfim parou de balbuciar, finalmente lembrando-se de engolir a injúria que fervilhava entre seus dentes.
— Perrin e eu decidimos usar palha — comentou Faile, muito calma. Enquanto Cenn ainda assentia, satisfeito, acrescentou: — E o senhor ainda não terminou o trabalho. — O velho levou um susto. — Parece que aceitou fazer mais telhados do que é capaz de dar conta, Mestre Buie. Se não terminar o nosso logo, temo que precisaremos chamar o Mestre Hornval para colocar suas telhas. — Cenn contraiu os lábios, quieto. Se Faile pusesse telhas na mansão, outros fariam o mesmo. — Aprecio seu discurso, mas tenho certeza de que o senhor prefere terminar meu telhado do que perder tempo com conversa mole, apesar de agradável.
De lábios comprimidos, Cenn a encarou por um instante, furioso, depois curvou-se em uma mesura modesta. Murmurou algo ininteligível, exceto por um “milady” abafado no final, e saiu pisando duro pelo chão liso, segurando o cajado. As coisas que o povo inventava para tomar o tempo dela. Perrin teria de fazer sua parte, nem que ela tivesse de trazê-lo amarrado pelos braços e pernas.
As demais queixas não foram tão exasperantes. Uma mulher outrora corpulenta, usando um vestido de retalhos de flores bordadas que caía no corpo feito um saco, vinda da distante Ponta de Toman, além da Planície de Almoth, queria negociar ervas e medicamentos. O grandalhão Jon Ayellin esfregando a careca, e o magricela Thad Torfinn, puxando as lapelas do casaco, ambos em uma disputa pelas fronteiras de suas terras. Dois mineiros domaneses de pele escura e barba bem rente, ambos em coletes de couro compridos, que acreditavam ter visto sinais de ouro e prata no caminho para as montanhas. E de ferro, embora o interesse fosse menor. E, por fim, uma taraboniana magra e musculosa com o rosto fino coberto por um véu transparente e os cabelos claros presos em uma infinidade de trancinhas alegando ter trabalhado como tecelã e saber fazer tapetes no tear.
Faile encaminhou a mulher interessada em ervas ao Círculo das Mulheres local — se Espara Soman tivesse talento para a coisa, as mulheres encontrariam um lugar para ela sob a supervisão de uma das Sabedorias da região. Com tanta gente nova chegando, muitos em péssimas condições por conta da viagem, todas as Sabedorias de Dois Rios passaram a ter uma ou duas aprendizes — e estavam sempre à procura de mais. Talvez não fosse exatamente o que a mulher queria, mas era onde teria de começar. Bastaram algumas perguntas para deixar claro que nem Thad nem Jon de fato se lembravam de onde ficava a fronteira — ao que parecia, a disputa começara antes mesmo de Faile nascer —, então ela os orientou a tirarem uma média da diferença entre o limite que cada um julgava ser o certo e dividir as terras nesse ponto, a mesma decisão que os dois acreditavam que teria sido a do Conselho da Aldeia, motivo pelo qual haviam mantido a contenda entre si por tanto tempo.
Aos outros, concedeu a permissão que buscavam. Em verdade, ninguém precisava de permissão, mas era melhor que soubessem desde o início quem detinha a autoridade. Em troca de seu consentimento e prata suficiente para comprar provisões, Faile convenceu os dois domaneses a darem a Perrin um décimo do que encontrassem, bem como a revelar a localização do ferro encontrado no caminho. Perrin não gostaria, mas em Dois Rios não havia qualquer coisa que se assemelhasse a impostos, e era de se esperar que um lorde fizesse e fornecesse coisas que requeriam dinheiro. E ferro seria tão útil quanto ouro. Quanto a Liale Mosrara, a empreitada da taraboniana não duraria muito se ela fosse menos habilidosa do que dizia. No entanto, se fosse tão boa quanto se proclamava… três tecelãs já garantiam que os mercadores encontrariam mais do que apenas lã quando descessem de Baerlon no ano seguinte, e carpetes decentes seriam mais um produto para trazer dinheiro. Liale prometeu que os primeiros e melhores trabalhos de seu tear iriam para a mansão, e Faile aceitou o presente com um gracioso meneio de cabeça. Poderia dar mais se e quando os carpetes aparecessem. O chão estava mesmo precisando de alguma cobertura. No geral, todos pareciam bastante satisfeitos. Até Jon e Thad.
Enquanto a taraboniana se afastava, cheia de mesuras, Faile se levantou, feliz em ter terminado, mas parou ao ver quatro mulheres adentrarem por uma das portas que flanqueavam a lareira mais distante, todas suando em vestidos escuros de lã pesada de Dois Rios. Daise Congar, mais alta e larga que a maioria dos homens, destacava-se das outras Sabedorias, projetando-se para a frente para tomar a liderança nas cercanias de sua própria aldeia. Edelle Gaelin, de Colina da Vigília, magra e de tranças grisalhas, mantinha as costas retas e a expressão dura para deixar claro que considerava que deveria ocupar o lugar de Daise, se não por qualquer outra razão, em virtude da idade e do longo tempo no ofício. Elwinn Taron, Sabedoria de Trilha de Deven, era a mais baixa: uma mulher redonda e com um agradável sorriso maternal, que ela exibia mesmo quando estava obrigando os outros a fazer o que não queriam. A última, Milla al’Azar, de Barca do Taren, vinha na retaguarda. Era a mais jovem, quase com idade para ser filha de Edelle, e sempre parecia insegura perto das outras.
Faile continuou de pé, abanando-se devagar. Desejava, de coração, que Perrin estivesse ali. De verdade. Aquelas mulheres tinham tanta autoridade na aldeia quanto o prefeito — às vezes até mais, sob alguns aspectos —, e era preciso muito cuidado ao lidar com elas, dedicando-lhes a dignidade e o respeito devidos. O que dificultava as coisas. Perto de Perrin, todas pareciam garotinhas tímidas, ávidas por agradar, mas com ela… fazia séculos que Dois Rios não tinha nobres; havia sete gerações que não se via sequer um representante da Rainha em Caemlyn. Todos ainda estavam aprendendo a se comportar diante de um lorde e uma lady, inclusive aquelas quatro. Às vezes esqueciam que estavam diante de Lady Faile, viam apenas uma jovem mulher cujo casamento Daise presidira poucos meses antes. Às vezes enchiam-na de reverências e de “sim, claro, milady”, mas bem no meio da fala diziam exatamente o que ela devia fazer a respeito de alguma questão sem notar a menor incongruência. Você não vai mais deixar isso na minha mão, Perrin.
As mulheres curvaram-se em mesuras, com graus variados de habilidade, e disseram “Que a Luz brilhe sobre a senhora, milady”, umas por cima das outras.
Cortesias findadas, Daise começou a falar antes mesmo de retornar a coluna à posição ereta.
— Mais três garotos fugiram, milady. — As palavras estavam no meio do caminho entre o respeito e o tom de “agora escute aqui, mocinha” que ela às vezes usava. — Dav Ayellin, Ewin Finngar e Elam Dowtry. Fugiram para ver o mundo, por conta das histórias de Lorde Perrin sobre as coisas lá fora.
Faile piscou, surpresa. Aqueles três não eram garotos. Dav e Elam eram mais velhos que Perrin, e Ewin não era muito mais novo do que ela própria. E as histórias de Perrin, que ele contava rara e relutantemente, não já não eram a única forma pela qual a juventude de Dois Rios ficava sabendo a respeito do mundo lá fora.
— Posso pedir a Perrin para falar com vocês, se desejarem.
As quatro se remexeram, inquietas, Daise procurando por ele ansiosa, Edelle e Milla alisando as saias sem nem perceber, Elwinn puxando a trança por cima do ombro e ajeitando-a com cuidado, também de modo inconsciente. De súbito, notaram o que estavam fazendo e congelaram, sem olhar umas para as outras. Nem para ela. A única vantagem de Faile era que aquelas mulheres sabiam o efeito que seu marido exercia sobre elas. Tantas vezes vira uma ou outra recuperar a compostura depois de se encontrar com Perrin, jurando não deixar que aquilo acontecesse outra vez; tantas vezes vira a determinação delas sair voando pela janela só de olharem para seu marido. Nenhuma sabia ao certo se preferia tratar com Perrin ou com ela.
— Isso não será necessário — respondeu Edelle, depois de um instante. — A fuga dos garotos é um aborrecimento, mas nada mais do que isso. — Seu tom se tornou ainda menos respeitoso que o “milady” de Daise.
A roliça Elwinn acrescentou um sorriso próprio de mãe para filha.
— Já que estamos aqui, querida, acho que vale a pena mencionar outra coisinha. Água. Veja bem, algumas pessoas estão preocupadas.
— Já faz meses que não chove — completou Edelle, e Daise assentiu.
Desta vez, Faile piscou de propósito. As mulheres eram inteligentes demais para achar que Perrin poderia fazer qualquer coisa a respeito disso.
— Os córregos ainda estão fluindo, e Perrin ordenou que mais poços sejam cavados. — Na verdade apenas tinha sugerido, mas felizmente dava no mesmo, no fim das contas. — E os canais de irrigação da Floresta das Águas estarão terminados muito antes do período de plantio. — Aquilo era obra dela: metade dos campos em Saldaea eram irrigados, mas ali ninguém ouvira falar nessa técnica. — De todo modo, mais cedo ou mais tarde as chuvas terão que cair. Os canais são só por garantia.
Daise assentiu outra vez, sem muita confiança, bem como Elwinn e Edelle. Mas todas sabiam daquilo tão bem quanto ela.
— Não é só a chuva — murmurou Milla. — Não exatamente, de todo modo. Não é natural. Veja, nenhuma de nós consegue escutar o vento. — Ela se encolheu diante das carrancas repentinas das outras. Ficou claro que estava falando demais e revelando segredos. Supostamente todas as Sabedorias eram capazes de prever o tempo escutando o vento. Pelo menos, todas afirmavam ser capazes. Mas a mulher prosseguiu, obstinada. — Bom, não conseguimos! Em vez disso, olhamos para as nuvens, avaliamos o comportamento dos pássaros, das formigas e das lagartas, e… — Ela respirou fundo e se endireitou, ainda evitando os olhares das outras Sabedorias.
Faile ponderou sobre como aquela mulher conseguia lidar com o Círculo das Mulheres de Barca do Taren, ou ainda com o Conselho da Aldeia. Claro, todas as pessoas eram tão inexperientes nessas posições quanto Milla — a aldeia fora totalmente despovoada com os ataques dos Trollocs, e todo mundo ali era novo.
— Isso não é natural, milady. As primeiras neves deviam ter caído semanas atrás, mas estamos em clima de pleno verão. Não estamos preocupadas, milady, estamos apavoradas! Se ninguém mais quiser admitir, eu admito. Passo quase todas as noites acordada. Faz um mês que não prego o olho, e… — A voz de Milla foi morrendo, e seu rosto enrubesceu quando percebeu que talvez tivesse ido longe demais. As Sabedorias tinham que manter o controle a todo momento, não sair por aí dizendo que estavam apavoradas.
Os olhos das outras iam de Milla para Faile. Não diziam palavra, e suas feições inexpressivas eram dignas de Aes Sedai.
Faile finalmente compreendia. Milla dissera a mais pura verdade. O clima não era natural — era absolutamente o contrário disso. Ela mesma com frequência passava a noite sem dormir, rezando para que chovesse — ou melhor ainda, que nevasse —, tentando não pensar no que espreitava por detrás do calor e da seca. Ainda assim, o papel de uma Sabedoria era tranquilizar o povo. A quem recorreriam quando precisasse ser tranquilizada?
Aquelas mulheres poderiam não saber o que estavam fazendo, mas tinham ido ao lugar certo. Parte do acordo entre nobres e plebeus, internalizado em Faile desde o nascimento, era que os nobres forneciam segurança e proteção. E fornecer segurança também significava lembrar o povo que os tempos difíceis não duravam para sempre. Se hoje estava ruim, amanhã seria melhor — se não amanhã, depois de amanhã. Ela própria desejava ter certeza disso, mas aprendera a ceder a própria força a todos os que se encontravam em posição inferior, ainda que não lhe restasse força alguma para si. Apreendera a mitigar os medos do povo, e não infectá-los com seu próprio.
— Perrin já me falava sobre o povo dele antes mesmo de eu pôr os pés aqui — comentou. Seu marido não era homem de se gabar, mas as informações acabavam escapando. — Quando o granizo acaba com suas colheitas, quando o inverno mata metade do rebanho de ovelhas, vocês se enchem de determinação e seguem em frente. Quando os Trollocs assolaram Dois Rios, vocês os enfrentaram e, assim que acabaram com eles, começaram a reconstruir tudo sem nem pestanejar. — Faile não teria acreditado se não tivesse visto com os próprios olhos, não se tratando de um povo do sul. Aquela gente teria se saído muito bem em Saldaea, onde as incursões de Trollocs eram encaradas com naturalidade, pelo menos nos trechos mais ao norte. — Não posso dizer que o tempo amanhã estará ideal. Posso afirmar que Perrin e eu faremos o que for preciso, tudo o que for possível. E não preciso dizer que vocês enfrentarão o que cada dia trouxer, seja o que for, e que vão se preparar para enfrentar o dia seguinte. É esse o tipo de gente que Dois Rios produz. É o que vocês são.
Aquelas eram mulheres inteligentes. Se ainda não tinham admitido para si próprias o motivo da visita, teriam de fazê-lo depois da resposta de Faile. Se fossem menos inteligentes, poderiam ter se ofendido. Mas mesmo as palavras que aquelas Sabedorias diziam a si mesmas só surtiam o efeito desejado quando vinham de outra pessoa. Claro, isso em si já era constrangedor. As mulheres ficaram bastante ruborizadas, cada uma de um tom de vermelho, desejando silenciosamente estar bem longe dali.
— Bem, é claro — respondeu Daise. Com os punhos robustos plantados nos quadris largos, a mulher encarou as outras Sabedorias, desafiando-as a dizerem o contrário. — Eu falei a mesma coisa, não falei? A garota é sensata. Falei o mesmo logo que ela chegou aqui. Essa garota tem a cabeça no lugar, eu disse.
Edelle fungou com desdém.
— E por acaso alguém falou que ela não tem, Daise? Eu não ouvi ninguém dizer isso. Ela tem, mesmo. — Para Faile, a mulher acrescentou: — Você tem mesmo a cabeça no lugar.
Milla meneou a cabeça em reverência.
— Obrigada, Lady Faile. Sei que eu já disse o mesmo a cinquenta pessoas, mas, vindo da senhora, de alguma forma… — Um pigarreio alto de Daise a interrompeu bem no meio da frase. Aquilo estava indo longe demais. O rosto de Milla ficou mais vermelho.
— Excelente trabalho de costura, milady. — Elwinn inclinou-se para a frente e tocou a saia de montaria preferida de Faile. — Mas sei de uma costureira taraboniana lá em Trilha de Deven que pode fazer uma ainda melhor para a senhora. Se me permite o comentário. Dei uma palavrinha com a mulher, e agora ela só faz vestidos decentes, exceto para as mulheres casadas. — O sorriso maternal surgiu outra vez em seu rosto, ao mesmo tempo duro e indulgente. — Ou as que estão sendo cortejadas. Ah, ela faz umas peças bonitas. Ora, aposto que consideraria um prazer trabalhar com seu tom de pele e sua cintura.
Antes que a outra terminasse, Daise foi abrindo um sorriso complacente.
— Therille Marza, bem aqui em Campo de Emond, já está fazendo meia dúzia de vestidos para Lady Faile. E o traje de gala mais bonito que já vi.
Elwinn se endireitou, Edelle franziu os lábios e até Milla ficou pensativa.
Para Faile, a audiência estava encerrada. A costureira domanesa requeria pulso firme e vigilância constante para que não vestisse Faile para a corte de Bandar Eban. O traje de gala fora ideia de Daise, uma surpresa. E mesmo que fosse ao estilo de Saldaea, em vez de Arad Doman, Faile não sabia onde poderia usá-lo. Levaria um tempo até Dois Rios começar a organizar bailes ou desfiles. Se dependesse das Sabedorias, logo todas estariam competindo para ver qual das aldeias a vestiria.
Ofereceu chá às mulheres, acrescentando um comentário displicente de que poderiam pensar em uma forma de encorajar o povo em relação ao clima. A fala logo surtiu o efeito desejado, e as mulheres saíram quase tropeçando umas nas outras, lamentando os deveres que as impediam de ficar mais.
Faile observou-as partirem. Milla na retaguarda, como de costume, feito uma criança correndo atrás das irmãs mais velhas. Talvez fosse possível trocar algumas palavras discretas com algumas integrantes do Círculo das Mulheres de Barca do Taren. Cada aldeia precisava de um prefeito e uma Sabedoria firmes para defender os interesses do povo. Palavras discretas e cuidadosas. Quando Perrin descobrira que Faile andara conversando com os homens de Barca do Taren antes das eleições para prefeito…. Ora, se havia um sujeito inteligente e entusiasmado com a presença dela e de Perrin, por que os eleitores não poderiam saber que ela e Perrin retribuíam aquele apoio? Mas quando ele descobrira… Perrin era um homem gentil, raramente se irritava, mas Faile se trancara no quarto dos dois só por garantia, até que ele se acalmasse. O que só aconteceu depois da promessa de ela não “interferir” mais em nenhuma eleição para prefeito, abertamente ou às escondidas. O que fora muito injusto da parte dele. E muito inconveniente. Mas Perrin não mencionara as eleições do Círculo das Mulheres. Bem, o que os olhos dele não viam poderia lhe fazer muito bem. E também a Barca do Taren.
Pensar em Perrin fez Faile relembrar a promessa que fizera a si mesma. O leque de penas abanou mais depressa. Aquele não fora o dia das piores bobagens, nem o pior momento com as Sabedorias — ninguém perguntara quando Lorde Perrin teria um herdeiro, graças à Luz! —, mas talvez o calor impiedoso tivesse sido a gota d’água. Perrin cumpriria sua obrigação, ou…
Um trovão ressoou pela mansão, e relâmpagos iluminaram as janelas. Faile encheu-se de esperança. Se a chuva viesse…
Correu sem fazer barulho com os pés calçados nas sandálias, procurando pelo marido. Queria compartilhar a chuva com ele. E ainda pretendia dizer algumas palavrinhas duras. Mais do que algumas, se preciso.
Perrin estava onde ela tinha imaginado: bem lá em cima, no terceiro andar, no alpendre frontal — um homem de cabelos cacheados vestido em um casaco marrom liso, com ombros e braços robustos. Tinha as costas largas viradas para ela e se apoiava em uma das colunas de sustentação da cobertura. Encarava o chão de um dos lados do solar, não o céu. Faile parou à porta.
Outro trovão ressoou, e um raio azul rasgou o céu. Um raio sem trovão em um céu sem nuvens. Não era prenúncio de chuva. Nada de chuva para aliviar o calor. Gotículas de suor brotavam em seu rosto, mas ela tremia.
— Acabou? — perguntou Perrin, e Faile se sobressaltou.
O marido não levantara a cabeça. Às vezes era difícil lembrar-se de como sua audição era sensível. Ou ele poderia ter sentido o cheiro de Faile — torceu para que fosse o perfume, não o suor.
— Achei que você estaria com Gwil ou Hal.
Aquele era um dos maiores defeitos de Perrin. Faile tentava treinar serviçais, mas ele os considerava companhia adequada para tomar uma caneca de cerveja e dar umas risadas. Pelo menos não ficava atrás de qualquer rabo de saia, como tantos homens. Nunca sequer percebera que Calle Coplin começara a trabalhar na casa deles com o intuito de fazer mais do que arrumar a cama de Lorde Perrin. E nem mesmo notara quando Faile pôs Calle para fora com um punhado de gravetos.
Ao aproximar-se do marido, viu para o que ele estava olhando. Dois homens despidos até a cintura praticavam esgrima com espadas de madeira, mais abaixo. Tam al’Thor era robusto e grisalho, e Aram, magro e jovem. Aram estava aprendendo depressa. Muito depressa. Tam já fora soldado, além de mestre espadachim, mas Aram pareceria estar dando trabalho.
Sem nem pensar, ela baixou os olhos para as tendas agrupadas em um campo cercado de pedras a meia milha na direção da Floresta do Oeste. O restante dos latoeiros estava acampado entre carroções — ainda não acabados — que pareciam casinhas sobre rodas. Naturalmente, já não reconheciam a presença de Aram desde que ele empunhara a espada. Os Tuatha’an não praticavam violência, por qualquer motivo que fosse. Faile se perguntou se iriam embora quando os carroções incendiados pelos Trollocs fossem substituídos, conforme o planejado. Não somavam mais de cem, mesmo depois de reunidos todos os que estavam escondidos na mata. Decerto iriam, deixando Aram para trás, como ele próprio escolhera. Nunca ouvira falar de algum Tuatha’an fixando moradia em qualquer lugar que fosse.
Por outro lado, o povo de Dois Rios costumava dizer que, por ali, nada nunca mudava, ainda que muita coisa tivesse mudado desde os Trollocs. Campo de Emond, a algumas centenas de passadas da mansão, aumentara em tamanho, e sua população já reconstruíra todas as casas incendiadas, além de começar a erguer novas moradias. Algumas até eram de tijolos, outra novidade. E algumas tinham telhados de telha. Na velocidade com que as novas habitações estavam sendo erigidas, a mansão logo estaria dentro da aldeia. Muito se falava a respeito de um muro, caso os Trollocs retornassem. Mudanças. Um punhado de crianças corria pelas ruas atrás do gigantesco Loial. Poucos meses antes, a visão do Ogier, da altura de um homem e meio, com as orelhas peludas e o nariz tão largo que quase ocupava o rosto inteiro, deixara todas as crianças embasbacadas, e as mães, desesperadas para protegê-las. Mas as mães já haviam passado a mandar seus filhos para sessões de leitura com o Ogier. Os estrangeiros que circulavam entre os habitantes de Campo de Emond, em seus casacos e vestidos de cortes exóticos, destacavam-se quase tanto quanto Loial, mas ninguém lhes dispensava mais que uma olhadela, e o mesmo acontecia com os três Aiel da aldeia — sujeitos estranhos, longilíneos, todos vestidos em tons de marrom e cinza. Até duas semanas antes, ainda havia duas Aes Sedai por lá, que também já provocavam apenas mesuras e cumprimentos respeitosos. Mudanças. Os dois mastros erguidos não muito longe do rio Fonte de Vinho, no Campo, eram visíveis por sobre os telhados das casas, um ostentando a silhueta vermelha da cabeça de lobo que se tornara símbolo de Perrin, o outro, a águia carmesim símbolo de Manetheren, que desaparecera durante as Guerras dos Trollocs, cerca de dois mil anos antes, mas aquela terra fizera parte da nação, e Dois Rios hasteava sua bandeira quase por aclamação. Mudanças — e eles não faziam ideia de como eram grandes, de como eram inexoráveis. Mas Perrin os apoiaria, não importava o que viesse pela frente. Com a ajuda de Faile, ele os apoiaria.
— Eu e Gwil caçávamos coelhos juntos — comentou Perrin. — Ele é só alguns anos mais velho, e às vezes me levava para caçar.
Faile precisou de um momento para se lembrar do que ele estava falando.
— Gwil está tentando aprender a ser lacaio. Você não o ajuda muito quando fica chamando o rapaz para fumar cachimbo e conversar sobre cavalos nos estábulos. — Ela inspirou lenta e profundamente. A tarefa não seria fácil. — Você tem um dever com essas pessoas, Perrin. Por mais difícil que seja, você precisa cumprir seu dever.
— Eu sei — respondeu ele, baixinho. — Consigo senti-lo me puxando.
A voz dele estava tão estranha que Faile estendeu a mão e deu um puxão em sua barba curta, para que ele a encarasse. Os olhos dourados, estranhos e misteriosos como nunca, tinham um ar triste.
— Como assim? Você pode até ter uma certa afeição por Gwil, mas ele…
— É o Rand, Faile. Ele precisa de mim.
O nó em seu estômago, que ela andara tentando ignorar, se apertou ainda mais. Faile convencera a si mesma de que esse perigo fora embora com as Aes Sedai. Bobagem. Ela era casada com um ta’veren, um homem destinado a desviar as vidas dos que o rodeavam conforme o Padrão desejava, e crescera com dois outros ta’veren, um deles o próprio Dragão Renascido. Era uma parte de Perrin que Faile era obrigada a dividir. Não gostava de ter que dividir nem um fio de cabelo, mas aquilo não tinha jeito.
— E o que você vai fazer?
— Vou atrás dele. — Perrin desviou o olhar por um instante, e os olhos de Faile acompanharam os seus. Recostados à parede estavam um pesado martelo de ferreiro e um machado com uma lâmina afiada em formato de meia-lua, com um cabo de meia passada de comprimento. — Eu não estava… — Sua voz era quase um sussurro. — Não estava conseguindo encontrar uma forma de contar isso a você. Vou hoje à noite, quando todos estiverem dormindo. Acho que não tenho muito tempo, e a viagem pode ser longa. Mestre al’Thor e Mestre Cauthon vão ajudar você com os prefeitos, se for preciso. Eu já falei com eles. — Perrin tentou suavizar a voz, uma tentativa lamentável. — De qualquer modo, você não deve ter problemas com as Sabedorias. Engraçado… quando eu era garoto, as Sabedorias sempre pareciam tão assustadoras, mas na verdade são bem tranquilas, basta ser firme.
Faile comprimiu os lábios. Então ele tinha falado com Tam al’Thor e Abell Cauthon, mas não com ela? E com as Sabedorias! Só queria que ele trocasse de lugar com ela por um dia, para ver como as Sabedorias eram tranquilas.
— Não tem como a gente partir assim tão rápido. Precisaremos de tempo para organizar uma comitiva decente.
Perrin estreitou os olhos.
— A gente? Você não vai! Vai ser… — Ele tossiu, então prosseguiu em um tom mais moderado. — Vai ser melhor se um de nós ficar aqui. Quando o lorde viaja, a lady precisa ficar para cuidar das coisas. Faz sentido. Chegam mais refugiados a cada dia. Tem um monte de problemas para resolver. Se você também for, a situação por aqui vai ficar pior do que com a invasão dos Trollocs.
Ele realmente acreditava que ela não repararia que ele tinha se corrigido no meio da frase? Perrin estava prestes a dizer que seria perigoso. Como será que essa mania dele de querer protegê-la dos perigos a fazia se derreter por dentro e ao mesmo tempo a deixava tão irritada?
— Nós vamos fazer o que você achar melhor — respondeu a jovem, em um tom brando, e Perrin piscou, desconfiado, então coçou a barba e assentiu.
Só restava fazê-lo enxergar o que realmente era melhor. Pelo menos ele não declarara logo de início que ela não podia ir. Quando Perrin fincava a pata, era mais fácil arredar um celeiro de grãos, mas, tomando o devido cuidado, era possível evitar uma situação dessas. Na maioria das vezes.
Faile o abraçou de repente e enterrou o rosto em seu peito largo. As mãos fortes de Perrin acariciaram seus cabelos com suavidade — ele decerto pensava que Faile estava preocupada com sua partida iminente. Bem, de certa forma, ela estava. Só que não era por ele estar partindo sem ela. Perrin ainda não aprendera o que significava ter uma esposa de Saldaea. Os dois estavam tão longe de Rand al’Thor… Por que é que o Dragão Renascido precisava de Perrin justo naquele momento, e com tanta força que seu marido podia sentir a centenas de léguas de distância? Por que havia tão pouco tempo? Por quê? A camisa de Perrin estava colada ao corpo suado, e o calor anormal também fazia Faile transpirar, mas ela tremia.
Com uma das mãos no punho da espada, Gawyn Trakand usava a mão livre para jogar uma pedrinha para o alto e pegá-la em seguida enquanto circulava mais uma vez ao redor de seus homens, conferindo as posições nos entornos da colina encimada de árvores. Um vento quente e seco levantava a terra pela pastagem marrom cheia de ondulações e fazia drapejar o manto verde e simples pendurado às suas costas. Não se via nada além de grama morta, moitas isoladas e arbustos mirrados. Teria de cobrir muitas frentes com os homens que comandava, caso uma luta fosse travada ali. Ele os reunira em grupos de cinco espadachins a pé, com arqueiros cinquenta passadas atrás, colina acima. Outros cinquenta homens aguardavam com lanças e cavalos a postos, no cume, próximos ao acampamento, prontos para avançar para onde fosse necessário. Gawyn torcia para que não fosse preciso.
No início, havia menos rapazes da Jovem Guarda, mas sua reputação atraiu recrutas. O aumento dos números seria de grande ajuda, e nenhum recruta tinha permissão para sair de Tar Valon antes de estar à altura de certos padrões. Não que ele esperasse que fosse haver luta naquele dia, não mais do que em qualquer outro, a questão é que aprendera que a hora da batalha muitas vezes vinha quando menos se esperava. Só as Aes Sedai esperariam até o último minuto para revelar a um homem que algo tão importante estava para acontecer.
— Tudo certo? — perguntou, parando junto a um grupo de espadachins. Apesar do calor, alguns usavam os mantos verdes, exibindo símbolo de Gawyn no peito, o javali branco em disparada.
Jisao Hamora era o mais jovem, ainda com sorriso de garoto, mas também o único dos cinco com uma pequena torre prateada na gola, enfeite que o marcava como veterano na batalha da Torre Branca. Foi ele quem respondeu.
— Tudo certo, milorde.
A Jovem Guarda fazia jus ao nome. O próprio Gawyn, com pouco mais de vinte anos, estava entre os mais velhos. Era regra não aceitar ninguém que já tivesse feito parte de algum exército, empunhado armas para um lorde ou lady ou mesmo trabalhado como guarda de mercadores. Os primeiros integrantes haviam chegado à Torre ainda meninos ou jovens para serem treinados pelos Guardiões, os mais exímios espadachins e combatentes do mundo, e continuavam parte da tradição, embora os Guardiões não os treinassem mais. A juventude não era uma falha. Apenas uma semana antes, o grupo conduzira uma pequena cerimônia para os primeiros pelos de bigode que Benji Dalfor raspara, e em seu rosto havia uma cicatriz que ganhara na batalha da Torre. As Aes Sedai estavam ocupadas demais para Curar nos dias seguintes à deposição de Siuan Sanche. A mulher talvez ainda fosse Amyrlin, caso a Jovem Guarda não tivesse enfrentado e vencido muitos de seus antigos instrutores nos corredores da Torre.
— Isso tem algum propósito, milorde? — perguntou Hal Moir. O sujeito era dois anos mais velho que Jisao e, como muitos que não ostentavam a torre de prata, lamentava-se por não ter estado presente no conflito. Ele logo amadureceria. — Não vejo o menor sinal de Aiel.
— Ah, não vê? — Sem qualquer indicativo, Gawyn arremessou a pedra com toda a força no único arbusto que havia por perto, uma moita irregular. O único som que se ouviu foi o farfalhar das folhas mortas, mas o arbusto se remexeu um tantinho mais do que o esperado, como se um homem escondido ali tivesse sido atingido em um ponto sensível. Os mais novos exclamaram, mas Jisao apenas afrouxou a espada na bainha. — Um Aiel, Hal, é capaz de se esconder até em um buraco no chão onde você não teria nem tropeçado. — Não que Gawyn soubesse sobre os Aiel muito além do que havia nos livros, mas lera cada volume que encontrara na biblioteca da Torre Branca, todos escritos pelos homens que de fato haviam enfrentado Aiel. Lera todos os livros que encontrara com relatos de soldados entendidos no assunto. Um homem precisava estar preparado para o futuro, e, ao que parecia, o futuro do mundo era a guerra. — Mas, se aprouver à Luz, não haverá luta hoje.
— Milorde! — gritou uma voz do alto da colina, quando o sentinela avistou o que ele acabara de ver: três mulheres emergindo de uma moitinha algumas centenas de passadas a oeste, vindo em direção à colina. Oeste, que surpresa. Mas os Aiel gostavam de surpresas.
Lera a respeito das mulheres Aiel que lutavam ao lado dos homens, porém aquelas não tinham a menor condição de lutar: usavam volumosas saias escuras e blusas brancas. Apesar do calor, tinham xales enrolados nos ombros. Por outro lado, como haviam chegado àquela moita sem serem notadas?
— Mantenham os olhos atentos, e não nelas — mandou, desobedecendo a própria ordem e encarando com interesse as três Sábias, emissárias dos Aiel Shaido. Ali, não poderiam ser outra coisa.
As mulheres avançavam, imponentes, nem parecendo estar se aproximando de um grupo de homens armados. Os cabelos iam até a cintura — Gawyn lera que os Aiel usavam cabelos curtos — e estavam presos por lenços dobrados. Usavam tantos braceletes e colares compridos de ouro, prata e marfim que o brilho as teria denunciado a uma milha de distância.
Empertigadas e com o semblante orgulhoso, as três passaram pelos espadachins a passos firmes, sem olhá-los, e começaram a subir a colina. A líder era uma loura cuja blusa solta revelava a pele consideravelmente bronzeada sob o decote aberto. As outras duas eram grisalhas, de rostos bronzeados. A loura deveria ter menos da metade da idade das outras.
— Não seria má ideia chamar essa aí para uma dança — comentou um dos rapazes, admirado, depois que as mulheres passaram. Era pelo menos dez anos mais jovem do que a loura.
— Eu não faria isso se fosse você, Arwin — retrucou Gawyn, em um tom seco. — Pode ser que haja um mal-entendido. — Lera que os Aiel chamavam a batalha de “dança”. — Além do mais, ela comeria o seu fígado no jantar. — Avistara de relance os olhos verde-claros da mulher, e nunca vira olhar mais duro.
Gawyn ficou olhando as Sábias até chegarem ao topo da colina, onde meia dúzia de Aes Sedai aguardava com seus Guardiões. As que os tinham: duas eram da Ajah Vermelha, portanto não tinham Guardiões. Quando as Aiel desapareceram no interior de uma das compridas tendas brancas, com os cinco Guardiões montando guarda em volta, ele retomou a ronda da colina.
A Jovem Guarda estava alerta desde que se espalhara a notícia da chegada dos Aiel, o que desagradara Gawyn. Deveriam estar alertas assim desde antes. Até a maioria dos que não exibiam o símbolo da torre prateada haviam sido vistos lutando nos arredores de Tar Valon. Eamon Valda, o Senhor Capitão dos Mantos-brancos em comando, arrastara quase todos os seus homens para o oeste mais de um mês antes, mas o grupinho deixado para trás tentou se juntar aos bandidos e capangas que Valda reunira. Pelo menos esses a Jovem Guarda conseguira afugentar. Gawyn queria poder acreditar que também tinham afugentado Valda — a Torre decerto mantivera seus próprios soldados bem longe das escaramuças, apesar de a única razão para a presença dos Mantos-brancos tivesse sido tentar causar problemas à Torre —, mas suspeitava de que o Senhor Capitão tivesse suas próprias razões para bater em retirada. Provavelmente recebera ordens de Pedron Niall, e Gawyn daria tudo para saber quais eram. Luz, como odiava não saber. Era como tatear no escuro.
A verdade era que estava irritado. Admitia. Não somente por conta dos Aiel, mas por só ter sido informado sobre essa reunião durante a manhã daquele mesmo dia. E também não havia sido informado sobre aonde estavam indo até ser chamado para uma conversa em particular com Coiren Sedai, a irmã Cinza que liderava as Aes Sedai. Elaida sempre fora reticente e arrogante quando conselheira de sua mãe em Caemlyn, mas depois de elevada ao Trono de Amyrlin, a nova Elaida fazia a antiga parecer aberta e afetuosa. Sem dúvida o pressionara para que ele organizasse aquela escolta com o intuito de afastá-lo de Tar Valon.
A Jovem Guarda aderira ao lado de Elaida durante a luta — a antiga Amyrlin fora destituída do Cajado e da Estola pelo Salão, e a tentativa subsequente de libertá-la havia sido pura e simplesmente uma rebelião contra a lei —, mas Gawyn já tinha suas dúvidas em relação a todas as Aes Sedai muito antes de ouvir a leitura das acusações contra Siuan Sanche. De tão frequentes que eram, ele já nem prestava mais atenção nas afirmações de que elas manipulavam os tronos feito marionetes, mas foi só então que viu os cordéis sendo puxados. Viu as consequências, ao menos, e foi sua irmã Elayne quem dançou: saiu dançando para bem longe de seus olhos, dançou tanto que, até onde ele sabia, cessou até de existir. Ela e a outra. Lutara para manter Siuan presa, depois virou as costas e a deixou fugir. Se Elaida algum dia descobrisse isso, nem mesmo a coroa de sua mãe poderia salvar sua vida.
Ainda assim, Gawyn escolhera ficar porque sua mãe sempre apoiara a Torre, porque sua irmã queria ser Aes Sedai. E porque havia outra mulher que também queria aquele destino. Egwene al’Vere. Não tinha sequer o direito de pensar nela, mas abandonar a Torre seria o mesmo que a abandonar. Como eram frívolos os motivos por que um homem escolhia o próprio destino. No entanto, saber que eram frívolos não mudava nada.
Encarava o gramado ressequido, fustigado pelo vento, enquanto avançava a passos largos de uma posição a outra. Lá estava ele, esperando que os Aiel não decidissem atacar, apesar — ou por causa — da conversa que as Sábias dos Shaido estavam travando com Coiren e as outras. Suspeitava de que houvesse Aiel o suficiente para aniquilá-lo, por ali, mesmo com a ajuda das Aes Sedai. Estava a caminho de Cairhien e não sabia o que sentia a respeito. Coiren o fizera jurar que manteria a missão em segredo, e, mesmo assim, parecia temerosa de suas palavras. Era para estar. Era sempre bom examinar com muito cuidado as palavras de uma Aes Sedai — aquelas mulheres não podiam mentir, mas maleavam a verdade feito massa de pão —, porém nem assim ele encontrou significados obscuros. As seis Aes Sedai pediriam ao Dragão Renascido que as acompanhasse até a Torre, junto com a Jovem Guarda como escolta de honra liderada pelo filho da Rainha de Andor. Só poderia haver uma razão, tão chocante para Coiren que a Cinza só conseguira fazer vagas alusões a ela. Gawyn também ficara chocado. Elaida pretendia anunciar ao mundo que a Torre Branca apoiava o Dragão Renascido.
Era quase inacreditável. Elaida fora uma Vermelha antes de se tornar Amyrlin. As Vermelhas odiavam a mera ideia de um homem capaz de canalizar. Na verdade, elas em geral não pensavam muito nos homens. Mesmo assim, a queda da outrora invencível Pedra de Tear, cumprindo a profecia, confirmava que Rand al’Thor era o Dragão Renascido, e até Elaida dizia que a Última Batalha estava próxima. Gawyn não conseguia associar o fazendeiro assustado e abatido que encontrara no Palácio Real em Caemlyn ao homem dos boatos que corriam do Rio Erinin até Tar Valon. Dizia-se que ele enforcara Grão-lordes tairenos e permitira que os Aiel saqueassem a Pedra. Rand decerto trouxera os Aiel ao longo da Espinha do Mundo para assolar Cairhien pela segunda vez desde a Ruptura. Talvez fosse a loucura. Gawyn tinha gostado de Rand al’Thor e lamentava o que o homem havia se tornado.
Quando retornou ao grupo de Jisao, havia mais alguém à vista: um mascate com um chapéu molengo se aproximava pelo oeste, conduzindo uma mula de carga alta e magrela. O sujeito seguiu direto para a colina: avistara o grupo.
Jisao se remexeu, mas ficou imóvel quando Gawyn tocou seu braço. Este sabia o que o rapaz mais jovem estava pensando, mas, se os Aiel decidissem matar o tal sujeito, não haveria o que pudessem fazer. Coiren não ficaria nem um pouco contente se ele desse início a uma batalha com o povo com quem ela estava negociando.
O mascate prosseguiu, bamboleante, até o arbusto onde Gawyn atirara a pedra. A mula começou a abocanhar a grama marrom sem muito critério enquanto o homem tirava o chapéu, ensaiava uma mesura dirigida a todos e começava a secar o rosto grisalho com um lencinho encardido.
— Que a Luz brilhe sobre os senhores, milordes. Os senhores estão muito bem instalados para viajantes nesses tempos escassos, mas, se houver qualquer coisinha de que precisem, o velho Mil Tesen com certeza traz em suas trouxas. E ninguém faz preço melhor em dez milhas, milordes.
Gawyn duvidava de que houvesse uma fazenda sequer em um raio de dez milhas.
— Tempos escassos, de fato, Mestre Tesen. O senhor não tem medo dos Aiel?
— Aiel, milorde? Eles estão todos lá para baixo, em Cairhien. O velho Mil fareja os Aiel, ah se não. Na verdade, queria até que tivesse uns por aqui. É bom fazer negócio com os Aiel. Eles carregam um monte de ouro. De Cairhien. E não incomodam os mascates. Todo mundo sabe disso.
Gawyn absteve-se de perguntar por que o homem não estava rumando para o sul, se os Aiel em Cairhien rendiam tão bons negócios.
— Que notícias traz do mundo, Mestre Tesen? O senhor, vindo do sul, deve saber o que ainda não chegou até nós, no norte.
— Ah, muita coisa lá para o sul, milorde. Os senhores ouviram falar de Cairhien? Daquele sujeito que se diz Dragão e tudo o mais? — Gawyn assentiu, e o mascate prosseguiu. — Bom, ele tomou Andor. Quase tudo, pelo menos. A rainha morreu. Tem gente dizendo que ele vai dominar o mundo inteiro antes de…
O sujeito soltou um ganido abafado e parou de falar antes que Gawyn pudesse perceber que o agarrara pelo colarinho.
— A Rainha Morgase morreu? Responda, homem! Depressa!
Tesen revirou os olhos em busca de ajuda, mas respondeu, e depressa:
— É o que dizem por aí, milorde. O velho Mil não sabe, mas acha que sim. Todo mundo está dizendo, milorde. Todo mundo diz que foi obra desse Dragão. Milorde? Cuidado com o pescoço do velho Mil, milorde! Milorde!
Gawyn soltou as mãos com um movimento brusco, como se tivesse tocado em brasa. Queimava por dentro. Era outro pescoço que queria agarrar.
— A Filha-herdeira. — Sua voz parecia muito distante. — Alguma notícia de Elayne, a Filha-herdeira?
Tesen deu um longo passo atrás assim que se viu livre.
— Não que eu saiba, milorde. Uns dizem que ela também morreu. Alguns dizem que foi obra dele, mas não sei direito.
Gawyn assentiu, hesitante. Seus pensamentos pareciam vir subindo do fundo de um poço. Meu sangue deve ser derramado antes do dela, minha vida deve ser entregue antes da dela.
— Obrigado, Mestre Tesen. Eu… — Meu sangue deve ser derramado antes do dela… fora o juramento que fizera quando mal tinha tamanho para olhar por cima da borda do berço de Elayne. — O senhor pode fazer negócios com… alguns dos meus homens podem precisar… — Gareth Bryne tivera que explicar o significado daquelas palavras, mas, mesmo naquela época, Gawyn já sabia que teria de honrar o juramento, mesmo que fracassasse em tudo o mais na vida. Jisao e os outros o encaravam, preocupados. — Cuidem do mascate — disse a Jisao, um pouco rude, e deu meia volta.
Sua mãe estava morta, e Elayne também. Era só um boato, mas às vezes os boatos que corriam na boca do povo tinham um quê de verdade. Gawyn deu meia dúzia de passos até o acampamento das Aes Sedai antes de se dar conta do que fazia. Suas mãos doíam. Teve de encará-las para perceber que a câimbra que sentia era causada pela força com que apertara o punho da espada e teve de se obrigar a soltá-lo. Coiren e as outras pretendiam levar Rand al’Thor a Tar Valon, mas se a mãe dele estivesse morta… Elayne. Se as duas estivessem mortas, queria ver se o Dragão Renascido sobreviveria a uma espada cravada no coração!
Ajeitando o xale de franjas vermelhas, Katerine Alruddin levantou-se das almofadas da tenda onde estava sentada com as outras mulheres. Quase bufou quando Coiren, roliça e pomposa, entoou:
— Tal como foi acordado, assim será feito. — Que absurdo! Era uma reunião com selvagens, não um tratado entre a Torre e um governante, como as palavras sugeriam.
As Aiel não esboçavam outra reação, nenhuma expressão diferente de quando tinham chegado. Era um tanto surpreendente: reis e rainhas sempre traíam seus sentimentos mais íntimos quando encarados por duas ou três Aes Sedai, quem dirá meia dúzia, então esses selvagens deveriam estar tremendo visivelmente. Talvez fosse melhor dizer que não esboçaram quase nenhuma reação: a líder — que se chamava Sevanna, mas apresentava-se com o nome seguido por alguma bobagem sobre “ramos”, “Aiel Shaido” e “sábia” — declarou:
— Está acordado, contanto que eu veja a cara dele. — A mulher era sisuda e usava a blusa com o cordão desamarrado para atrair os olhares dos homens. O fato de os Aiel terem escolhido aquela mulher para liderá-la era uma medida de como eram brutos. — Quero vê-lo, e quero que ele me veja quando for derrotado. Só assim essa sua Torre será aliada dos Shaido.
O toque de ansiedade na voz da Aiel fez Katerine suprimir um sorriso. Sábia? Aquela Sevanna era uma imbecil, isso sim. A Torre Branca não tinha aliados: havia os que serviam aos seus desígnios de bom grado e os que serviam de mau grado, nada mais.
Um leve franzido nos cantos da boca de Coiren denunciava sua irritação. A Cinza era boa negociadora, mas gostava das coisas em perfeita ordem, de que cada passo fosse dado exatamente como planejado.
— O seu serviço sem dúvida merece o preço que você pede.
Uma das Aiel grisalhas — Tarva, ou algo assim — estreitou os olhos, mas Sevanna assentiu, ouvindo o que Coiren queria que ela ouvisse.
A Cinza se levantou para escoltar as Aiel até o pé da colina, acompanhada de Erian, uma Verde, de Nesune, uma Marrom, e dos cinco Guardiões que somavam no total. Katerine avançou até a orla das árvores para observar. Na chegada, as Aiel tinham recebido permissão para subir sozinhas, como as suplicantes que eram, mas na volta recebiam todas as honrarias possíveis, para que acreditassem ser realmente amigas e aliadas. Katerine se perguntou se aquelas mulheres eram civilizadas o bastante para perceber as sutilezas.
Gawyn estava lá embaixo, sentado em uma pedra, encarando o gramado. O que aquele jovem pensaria se descobrisse que ele e seus garotos só estavam ali para permanecerem afastados de Tar Valon? Nem Elaida nem o Salão gostavam de ter à volta um grupinho de lobos que se recusavam a ser encoleirados. Talvez fosse possível persuadir os Shaido a eliminar o problema. Elaida sugerira a ideia. Dessa forma, a morte do rapaz não faria sua mãe se voltar contra a Torre.
— Se olhar por mais tempo para esse garoto, Katerine, vou começar a achar que você estaria melhor como Verde.
A Vermelha deixou entrever um breve lampejo de raiva e inclinou a cabeça respeitosamente.
— Eu estava só especulando sobre os pensamentos dele, Galina Sedai.
Era a demonstração máxima de respeito adequada a um lugar público como aquele, talvez até um tantinho a mais. Galina Casban aparentava no máximo quarenta anos, mas a mulher de rosto redondo tinha pelo menos o dobro da idade real de Katerine e fora líder da Ajah Vermelha por dezoito anos. Naturalmente, o fato não era conhecimento comum entre as irmãs de outras cores — tais coisas diziam respeito apenas à Ajah. Galina sequer integrava o grupo de Votantes das Vermelhas no Salão da Torre, embora, pelas suspeitas de Katerine, as líderes da maioria das outras Ajahs integrassem. Elaida a teria nomeado líder da expedição em vez da presunçosa Coiren, mas a própria Galina apontara que uma Vermelha poderia despertar as suspeitas de Rand al’Thor. O Trono de Amyrlin deveria ser de todas as Ajahs e de nenhuma, renunciando à sua antiga lealdade, ainda assim, se Elaida prestava deferência a alguém — o que era discutível —, essa pessoa era Galina.
— Será que ele virá por vontade própria, como imagina Coiren? — indagou Katerine.
— Talvez — respondeu Galina, em um tom seco. — A honra que esta delegação dispensa a ele deveria ser suficiente para fazer um rei carregar o próprio trono até Tar Valon.
Katerine não se deu ao trabalho de assentir.
— Essa tal Sevanna vai matá-lo, se tiver a chance.
— Então ela não pode ter chance alguma. — A voz de Galina era fria, e a boca carnuda parecia rígida. — O Trono de Amyrlin não ficará satisfeito em ver seus planos interrompidos. E eu e você passaremos dias gritando no escuro, antes de morrer.
Endireitando o xale nos ombros, pensativa, Katerine estremeceu, pensativa. O ar estava empoeirado, era melhor levar o manto leve. O que as mataria não seria a raiva de Elaida, ainda que a fúria da Amyrlin pudesse ser terrível. Katerine era Aes Sedai havia dezessete anos, mas até a manhã da partida de Tar Valon não sabia que compartilhava com Galina mais do que a Ajah Vermelha. Integrava a Ajah Negra havia doze anos sem saber que Galina também fazia o mesmo, e havia muito mais tempo. Por necessidade, as irmãs Negras mantinham suas identidades em segredo, inclusive umas das outras. Os raros encontros ocorriam entre rostos encobertos e vozes disfarçadas. Antes de Galina, Katerine conhecera apenas três que seria capaz de reconhecer. As ordens eram deixadas em seu travesseiro ou nos bolsos do manto, escritas com uma tinta que desaparecia caso o papel fosse tocado por outra mão que não a sua. Havia um local secreto para entregar mensagens, com ordens expressas de não tentar ver quem vinha apanhá-las. Jamais desobedecera. Poderia haver irmãs Negras entre as que seguiriam no dia seguinte, mas ela não tinha como saber.
— Por quê? — perguntou.
As ordens de poupar o Dragão Renascido não faziam sentido, mesmo que ele fosse entregue nas mãos de Elaida.
— Perguntar é perigoso para alguém que jurou obedecer sem questionar.
Katerine estremeceu outra vez e quase não conseguiu conter uma mesura.
— Sim, Galina Sedai.
Mas não conseguia impedir a mente de repetir a pergunta. Por quê?
— Elas não demonstram respeito nem honra — resmungou Therava. — Nos deixam entrar em seu acampamento como se fôssemos cães desdentados, depois nos levam embora sob escolta, feito suspeitas de ladroagem.
Sevanna não olhava em volta. Não olharia até estar outra vez entre as árvores, em segurança. As Aes Sedai estariam atentas a sinais de nervosismo.
— Elas concordaram, Therava — respondeu. — Por ora, isso basta.
Por ora. Um dia, todas aquelas terras seriam saqueadas pelos Shaido. Incluindo a Torre Branca.
— Isso tudo está muito mal engendrado — interveio a terceira mulher, com a voz rígida. — As Sábias evitam as Aes Sedai, sempre foi assim. Talvez não haja problemas para você, Sevanna. Como viúva de Couladin e de Suladric, você fala como chefe de clã até mandarmos outro homem a Rhuidean. Mas o restante de nós não deveria tomar parte disso.
Sevanna mal conseguia se forçar a continuar avançando. Desaine fora contra sua elevação a Sábia, bradando em alto e bom som que ela não passara por nenhum aprendizado nem fora a Rhuidean uma única vez, clamando que seu posto como chefe de clã a tornava inapta. Além do mais, como viúva de não apenas um, mas dois chefes já mortos, talvez ela trouxesse mau agouro. Felizmente, um bom número das Sábias Shaido dera ouvidos a Sevanna, não a Desaine. Porém, infelizmente, havia gente demais dando ouvidos a Desaine para que fosse seguro fazê-la desaparecer. As Sábias supostamente eram invioláveis — até circulavam livres entre os Shaido e os imbecis traidores, lá em Cairhien —, mas Sevanna encontraria um jeito.
Como se infectada pelas dúvidas de Desaine, Therava começou a resmungar, em parte para si mesma:
— Mal engendrado é ficar contra as Aes Sedai. Nós as servíamos antes da Ruptura e falhamos. É por isso que fomos enviados à Terra da Trindade. Se falharmos outra vez, seremos destruídos.
Era nisso que todos acreditavam: era parte das histórias antigas, quase parte dos costumes. Sevanna não tinha tanta certeza. Aquelas Aes Sedai pareciam fracas e tolas aos seus olhos, viajando sob a escolta de umas poucas centenas de homens por terras onde os verdadeiros Aiel, os Shaido, poderiam atacá-los com milhares.
— Vejo o raiar de um novo dia — retrucou, ríspida, repetindo parte de um de seus discursos às Sábias. — Não estamos mais atados à Terra da Trindade. Qualquer olho pode ver que o que foi já mudou. Temos de mudar, ou acabaremos como se nunca tivéssemos sido. — Nunca revelara quanto pretendia mudar, claro. Se conseguisse o que queria, as Sábias dos Shaido jamais enviariam um homem a Rhuidean.
— Dia novo ou antigo — resmungou Desaine —, o que é que vamos fazer com Rand al’Thor se conseguirmos tomá-lo das Aes Sedai? É melhor, e mais fácil, cravar uma faca em suas costelas durante a escolta delas para o norte.
Sevanna não respondeu. Ela não sabia o que responder. Não ainda. Só tinha a certeza de que, quando o chamado Car’a’carn, o chefe dos chefes de todos os Aiel, estivesse acorrentado diante de sua tenda feito um cão raivoso, aquela terra de fato pertenceria aos Shaido. E a ela. Tinha essa certeza antes mesmo de aquele estranho dar um jeito de encontrá-la nas montanhas que os aguacentos chamavam de Adaga do Fratricida. O sujeito lhe entregara um pequeno cubo feito de alguma pedra dura, com entalhes intrincados formando desenhos estranhos, e lhe dissera o que fazer com aquilo quando al’Thor caísse em suas mãos. Precisaria da ajuda de uma Sábia capaz de canalizar. Carregava o objeto no bolso do cinto o tempo todo, mas ainda não decidira o que fazer com aquilo. Apesar disso, ainda não contara a ninguém sobre o aguacento ou o cubo. Seguiu em frente de cabeça erguida, avançando sob do sol escaldante em um céu de outono.
O jardim do palácio poderia ter um resquício de frescor se houvesse qualquer árvore, mas a única sombra vinha das topiarias exóticas, em formatos de cavalos cavalgando, ursos acrobatas e coisas do tipo. Jardineiros em camisas de manga corriam apressados com baldes de água debaixo do sol escaldante da tarde, tentando salvar suas criações. Tinham desistido das flores, limpando todos os canteiros e padronizando-os com gramados também decadentes.
— Uma pena que o calor esteja tão forte — comentou Ailron. Ele puxou um lenço de renda da manga rendada do casaco de seda amarela e deu tapinhas delicados no rosto, depois jogou o lenço de lado. Um serviçal de uniforme vermelho e dourado logo apanhou o lenço do chão de cascalhos e desapareceu de volta no cenário. Outro homem uniformizado depositou um lenço limpo na mão do Rei, para que este o enfiasse na manga. Ailron não agradeceu, claro, sequer pareceu notar. — Esses camaradas em geral conseguem preservar tudo vivo até a primavera, mas talvez eu tenha algumas perdas neste inverno, já que está parecendo que não teremos inverno nenhum. As plantas toleram melhor o frio do que a estiagem. Você não acha que estão ótimas, minha querida?
Ailron, Ungido pela Luz, Rei e Defensor de Amadícia, Guardião do Portão Sul, não era tão bonito quanto diziam os rumores, porém logo que o conhecera, anos antes, Morgase suspeitara de que ele próprio talvez fosse a fonte de tais rumores. A cabeleira escura era farta e ondulada — e, mesmo assim, as entradas na testa já eram perceptíveis. O nariz era um pouco comprido demais, as orelhas um tantinho grandes. Todo o rosto sugeria uma vaga brandura. Um dia ela teria de perguntar: esse Portão Sul dava para onde?
Abanando o leque de marfim entalhado, ela examinou uma das… composições dos jardineiros. Pareciam três mulheres nuas imensas em uma luta desesperada contra serpentes gigantes.
— São mesmo extraordinárias — respondeu. Uma pedinte dizia o que era necessário.
— Sim. Sim, não são? Ah, parece que os assuntos de Estado me chamam. Assuntos urgentes, eu receio. — Uma dúzia de homens, de casacos tão coloridos quanto as flores que já não cresciam naquele jardim, tinham despontado na escadinha de mármore no extremo oposto da calçada e aguardavam diante de uma dezena de colunas caneluradas que não serviam para sustentar coisa alguma. — Até a noite, minha querida. Conversaremos mais sobre os seus terríveis problemas e o que posso fazer a respeito.
Ele curvou-se diante da mão dela, parando a um passo de beijá-la, e Morgase respondeu com uma mesura suave, murmurando as frivolidades costumeiras. O homem foi embora depressa, seguido por todos, exceto um, do grupinho de serviçais que o acompanhava por toda parte.
Quando se viu sozinha, Morgase abanou o leque com mais força do que podia na presença daquele homem — Ailron fingia não ser afetado pelo calor, mesmo com o rosto empapado de suor — e seguiu de volta para seus aposentos. Seus por resignação mais que concordância, assim como o vestido azul-claro que tivera que aceitar como presente. Insistira na gola alta, apesar do calor: tinha uma opinião muito firme a respeito de decotes baixos.
O serviçal que ficara seguia atrás dela, a curta distância. E Tallanvor, claro, seguindo-a feito uma sombra, ainda insistindo em usar o grosseiro casaco verde que vestira na viagem até lá, de espada na cintura como se esperasse que ela fosse ser atacada no Palácio de Seranda, a menos de duas milhas de Amador. Morgase tentava ignorar o rapaz alto, mas, como de costume, ele se recusava a ser ignorado.
— Deveríamos ter ido para Ghealdan, Morgase. Para Jehannah.
Adiara certas coisas por tempo demais. Suas saias farfalharam quando ela deu meia-volta para confrontá-lo, e seus olhos se inflamaram.
— Na jornada, certas discrições se faziam necessárias, mas as pessoas à nossa volta sabem quem eu sou. Lembre-se disso você também e demonstre o devido respeito pela sua Rainha. De joelhos!
Para seu espanto, ele não se moveu.
— Você é a minha Rainha, Morgase? — Pelo menos Tallanvor teve a decência de baixar a voz para que o serviçal não ouvisse e espalhasse a fofoca, mas seus olhos… Morgase por pouco não recuou ao ver o desejo nítido contido neles. E a raiva. — Não vou deixá-la à própria sorte, Morgase, mas você deixou muita coisa para trás ao largar Andor nas mãos de Gaebril. Quando resolver isso, vou me ajoelhar aos seus pés, e pode até mandarem cortar minha cabeça, se for sua vontade, mas até lá… Deveríamos ter ido para Ghealdan.
Aquele jovem tolo se mostrava disposto a morrer lutando contra o usurpador mesmo depois de Morgase perceber que nenhuma Casa em Andor a apoiaria, e dia após dia, semana após semana desde que ela concluíra que sua única escolha era procurar ajuda no exterior, ele vinha ficando cada vez mais insolente e insubordinado. Poderia pedir a cabeça de Tallanvor a Ailron e recebê-la sem qualquer questionamento. No entanto, a ausência de questionamentos não significava ausência de pensamentos. Ela realmente era apenas uma suplicante ali e não podia se dar ao luxo de pedir um favor que não fosse absolutamente necessário. Além do mais, não estaria ali sem Tallanvor. Seria prisioneira — pior que prisioneira — de Lorde Gaebril. Eram os únicos motivos pelos quais a cabeça de Tallanvor continuaria em seu pescoço.
Seu exército guardava as portas ornamentadas de seus aposentos. Basel Gill era um homem de bochechas rosadas, vaidoso, que usava os cabelos grisalhos penteados para trás para disfarçar a careca parcial. Seu colete de couro, cerzido com discos de aço, apertava com dificuldade a barriga, e ele levava uma espada que permanecera intocada por vinte anos até prendê-la no cinto para seguir sua rainha. Lamgwin era durão e corpulento, mas seus olhos de pálpebras pesadas lhe conferiam um aspecto sonolento. Ele também portava uma espada, mas as cicatrizes em seu rosto e no nariz, quebrado mais de uma vez, eram sinal de que estava mais acostumado a usar os punhos, ou um porrete. Um estalajadeiro e um brigão de rua. Fora Tallanvor, esse era o único exército de que dispunha até então para resgatar Andor e seu trono das mãos de Gaebril.
Os homens se curvaram em mesuras desajeitadas, mas ela passou direto por entre os dois e bateu a porta na cara de Tallanvor.
— O mundo — declarou, em um rosnado — seria muito melhor sem os homens.
— E mais vazio, sem dúvida — completou a antiga ama de Morgase, na antessala, sentada em sua cadeira ao lado de uma janela coberta com cortinas de veludo. O coque grisalho de Lini se balançava de um lado a outro enquanto ela mantinha a cabeça inclinada por sobre o aro de bordado. Uma mulher muito magra, mas nem de longe tão frágil quanto aparentava. — Imagino que Ailron esteja igualmente pouco acessível hoje? Ou foi Tallanvor, minha criança? Você precisa aprender a não deixar os homens estragarem o seu humor. Essa irritação deixa seu rosto todo manchado.
Lini ainda não admitia que não era mais ama, apesar de já ter sido ama da filha de Morgase.
— Ailron foi fantástico — respondeu Morgase, com prudência. A terceira mulher no recinto fungou alto. Estivera ajoelhada, apanhando roupas de cama dobradas de dentro de um baú, e Morgase teve que fazer um esforço para não olhar feito para ela. Breane era… companheira de Lamgwin. A baixinha bronzeada de sol estava sempre atrás dele, mas era cairhiena e deixava bem claro que Morgase não era sua rainha. — Mais um ou dois dias — prosseguiu —, e acho que consigo que ele se comprometa. Hoje ele finalmente admitiu que preciso de soldados de fora para recuperar Caemlyn. Quando Gaebril for expulso de lá, os nobres virão outra vez a mim.
Esperava que sim: estava em Amadícia por ter se deixado cegar por Gaebril, por ter destratado até seus amigos mais antigos entre as Casas só para seguir ordens dele.
— “Um cavalo lento nem sempre chega ao fim da viagem” — citou Lini, ainda concentrada no bordado. Gostava muito de ditados antigos, e Morgase suspeitava de que ela inventasse alguns conforme a demanda.
— Este vai — insistiu. Tallanvor estava errado em relação a Ghealdan: segundo Ailron, a nação estava à beira da anarquia por conta do Profeta a respeito de quem todos os serviçais andavam cochichando, o sujeito que pregava o Renascimento do Dragão. — Gostaria de um pouco de ponche, Breane. — A mulher só a encarou, e ela acrescentou: — Por gentileza.
Ainda assim, o copo foi servido com uma cara emburrada.
A mistura de vinho e sucos de frutas estava gelada e refrescante naquele calor, e Morgase apreciou o toque do cálice de prata contra a própria testa. Ailron mandara trazer neve e gelo das Montanhas da Névoa, embora fosse necessário um fluxo quase incessante de carroções a fim de prover o suficiente para o palácio.
Lini também apanhou um cálice.
— Quanto a Tallanvor — começou, depois de um golinho.
— Deixe quieto, Lini! — vociferou Morgase.
— E daí que ele é mais novo? — começou Breane. Também servira ponche para si. Tamanha afronta! A função dela era de serviçal, fosse lá o que tivesse sido em Cairhien. — Se quer o homem, agarre-o de uma vez. Lamgwin diz que o sujeito está jurado a você, e já vi o jeito como ele a olha. — Ela soltou uma risada rouca. — Duvido que recuse. — Os cairhienos eram nojentos, mas pelo menos a maioria encobria os costumes libertinos apropriadamente.
Morgase estava prestes a expulsar a mulher do quarto quando ouviu uma batida na porta. Sem aguardar permissão, um homem de cabelos brancos, todo magro e musculoso, adentrou o recinto. Seu manto branco como a neve trazia o brasão de um sol dourado e flamejante no peitoral. Torcera para conseguir evitar os Mantos-brancos até selar um acordo sólido com Ailron. O vinho fresco de súbito congelou seus ossos. Onde estavam Tallanvor e os outros? Como tinham permitido que o homem adentrasse seus aposentos daquele jeito?
Com os olhos escuros cravados nela, o sujeito dispensou uma mesura ínfima. Tinha o rosto envelhecido e a pele repuxada, mas era fraco como um martelo sem dono.
— Morgase de Andor? — perguntou, com a voz firme e profunda. — Sou Pedron Niall. — Não era um Manto-branco qualquer, mas o Senhor Capitão Comandante dos Filhos da Luz em pessoa. — Não tema. Não vim para prender a senhora.
Morgase se aprumou.
— Me prender? Sob que acusação? Eu não sei canalizar.
Assim que as palavras saíram de sua boca, ela quase estalou a língua, de tão exasperada. Não deveria ter mencionado a canalização. O fato de ter se colocado na defensiva era prova de como estava nervosa. O que dissera era verdade, pelo menos em grande medida. Cinquenta tentativas de sentir a Fonte Verdadeira resultaram em apenas um sucesso, e precisara de mais vinte tentativas de se abrir a saidar até conseguir um único fiozinho. Uma irmã Marrom chamada Verin lhe dissera que havia pouquíssima necessidade de ela permanecer na Torre até aprender a manejar a habilidade ínfima com segurança. Mesmo assim, naturalmente, a Torre a fez ficar. Mas até aquela capacidade de canalizar diminuta era proibida em Amadícia, sujeita a pena de morte. O anel da Grande Serpente em sua mão, joia que tanto fascinara Ailron, agora reluzia de tão quente.
— Mas foi treinada na Torre — murmurou Niall. — Isso também é proibido. Porém, como eu disse, não vim para prendê-la, mas para ajudá-la. Dispense suas mulheres para podermos conversar. — Ele ficou à vontade, ocupando uma poltrona alta acolchoada e dobrando o manto no encosto. — Mas, antes que elas saiam, vou querer um pouco desse ponche. — Para desgosto de Morgase, Breane imediatamente levou um cálice ao homem, mantendo os olhos baixos e o rosto inexpressivo feito uma tábua.
Ela se esforçou para recobrar o controle.
— Elas ficam, Mestre Niall. — Não daria ao homem a satisfação de chamá-lo pelo título. A desfeita não parecia intimidá-lo. — O que aconteceu com os meus homens ali fora? Não vou deixar passar se estiverem feridos. E o que o faz pensar que eu preciso da sua ajuda?
— Seus homens não estão feridos — respondeu Niall, desdenhoso, ainda bebendo. — Acha que Ailron vai dar o que a senhora precisa? A senhora é uma bela mulher, Morgase, e Ailron aprecia as damas de cabelos da cor do sol. A cada dia, vai se aproximar mais desse acordo que a senhora busca, mas sem nunca fechá-lo, até a senhora concluir que, talvez, com… algum sacrifício, ele acabe cedendo. Mas isso não vai acontecer, não importa o que dê a ele. A turba desse suposto Profeta está devastando o norte de Amadícia. A oeste está Tarabon, com uma guerra civil de muitos lados, mercenários jurados ao tal Dragão Renascido e rumores de Aes Sedai e do próprio falso Dragão apavorando Ailron. Fornecer soldados à senhora? Se ele conseguisse dez homens para cada um que tem de prontidão agora, ou até para cada dois, venderia a própria alma. Mas eu posso enviar cinco mil Filhos montados a Caemlyn, com a senhora no comando. Basta pedir.
Dizer que Morgase estava atônita teria sido pouco. Ela foi até uma cadeira oposta ao sujeito, mantendo a imponência apropriada, e sentou-se antes que as pernas cedessem.
— Por que o senhor iria querer me ajudar a expulsar Gaebril? — inquiriu. O sujeito obviamente sabia de tudo, sem dúvida possuía espiões entre os serviçais de Ailron. — Nunca dei aos Mantos-brancos a liberdade que desejavam em Andor.
Dessa vez, Niall fez uma careta. Os Mantos-brancos não gostavam dessa alcunha.
— Gaebril? Seu amante está morto, Morgase. O falso Dragão Rand al’Thor somou Caemlyn às suas conquistas.
Lini emitiu um gemido fraco, como se tivesse se furado, mas o homem manteve os olhos em Morgase.
A rainha, por sua vez, precisou agarrar o braço da cadeira para não apertar a mão no estômago. Se a outra mão não tivesse apoiado o cálice no braço da cadeira, ela teria derrubado ponche no carpete. Gaebril, morto? O sujeito tirara vantagem dela, fizera dela sua amante, usurpara sua autoridade, oprimira a nação em seu nome e, por fim, nomeara a si mesmo Rei de Andor, que nunca tivera um rei. Como, depois de tudo isso, ela poderia lamentar por jamais poder sentir suas mãos outra vez? Era loucura. Se não soubesse que era impossível, pensaria que ele tinha dado um jeito de usar o Poder Único nela.
Mas al’Thor estava de posse de Caemlyn? Isso podia mudar tudo. Ela o encontrara uma vez, um jovem camponês assustado, vindo do oeste, tentando de tudo para dispensar o respeito adequado à sua rainha. Mas era um jovem portando a espada de um mestre, com a marca da garça. E Elaida o tratara com cautela.
— Por que o chama de falso Dragão, Niall? — Se o sujeito pretendia chamá-la pelo nome, poderia passar até mesmo sem a alcunha de “mestre” destinada aos camponeses. — A Pedra de Tear caiu, como afirmavam as Profecias do Dragão. Os próprios Grão-senhores de Tear o proclamaram Dragão Renascido.
Niall estampava um sorriso debochado.
— Em todos os lugares onde ele apareceu havia Aes Sedai. Elas canalizam para ele, pode apostar. O garoto é só uma marionete da Torre. Tenho amigos em muitos lugares — eram espiões, a bem da verdade —, e eles me informaram que há provas de que a Torre fez a mesma armação com Logain, o último falso Dragão. Talvez ele tenha ficado muito cheio de si, e as Aes Sedai tenham precisado dar um fim nele.
— Não há prova disso. — Morgase ficou satisfeita com a firmeza da própria voz. Ouvira os rumores sobre Logain a caminho de Amador. Mas eram só rumores.
O homem deu de ombros.
— Acredite no que quiser, mas eu prefiro a verdade a fantasias bobas. Será que o verdadeiro Dragão Renascido faria o que ele fez? Os Grão-senhores o proclamaram, não foi o que a senhora disse? Quantos ele enforcou antes de os outros se curvarem? Ele deixou os Aiel saquearem a Pedra e toda a Cairhien. Afirma que Cairhien deve ter um novo governante, nomeado por ele, mas o único poder de verdade por lá é ele mesmo. E, além do mais, diz que haverá um novo governante em Caemlyn. A senhora está morta, sabia disso? Acho que estão falando em Lady Dyelin. Ele se sentou no Trono do Leão e realizou audiências, mas imagino que o assento seja muito pequeno, por ser destinado a mulheres. Ele o ergueu como troféu de sua conquista no Grande Salão do seu Palácio Real e o substituiu por um trono próprio. Mas nem tudo foram flores para ele, claro. Algumas Casas andorianas acham que ele matou a senhora. Agora que a senhora está morta, começou a despertar compaixão. Só que ele controla tudo em Andor com punhos de ferro, com uma horda de Aiel e um exército de rufiões das Terras da Fronteira recrutados pela própria Torre. Mas, se a senhora está pensando que ele vai recebê-la de volta em Caemlyn e lhe devolver o trono…
Niall foi baixando a voz, mas a torrente de palavras atingira Morgase feito pedras. Dyelin só seria a próxima na sucessão se Elayne morresse sem ter filhos. Ah, Luz, Elayne! Será que ela ainda estava segura na Torre? Era estranho pensar na antipatia que nutrira pelas Aes Sedai — em grande parte por terem perdido Elayne durante um tempo — e que ela exigira o retorno da filha, sendo que ninguém exigia nada da Torre, porém agora esperava que estivessem mantendo sua filha na rédea curta. Lembrou-se de uma carta enviada por Elayne depois de retornar a Tar Valon. Teria havido outras? Muitos acontecimentos do período em que Gaebril a mantivera cativa eram vagos. Sem dúvida Elayne estava segura. Ela também deveria estar preocupada com Gawyn e Galad — sabia lá a Luz onde os dois estavam —, mas Elayne era sua herdeira. A paz em Andor dependia de uma sucessão tranquila.
Precisava pensar bem no assunto. Tudo fazia sentido, mas as mentiras bem engendradas sempre faziam sentido, e aquele homem era um mestre nessa arte. Precisava de fatos. Não era surpresa que Andor acreditasse em sua morte: tivera de sair do próprio reino às escondidas, para evitar Gaebril e os que poderiam entregá-la a ele ou fazê-la pagar pelas injustiças que ele cometera. Se disso restasse alguma compaixão, poderia aproveitá-la quando se reerguesse dos mortos. Fatos.
— Precisarei de tempo para pensar — declarou.
— Mas é claro. — Niall levantou-se devagar. A própria Morgase teria se levantado, para que ele não ficasse mais alto, mas não sabia se as pernas aguentariam. — Volto daqui a um ou dois dias. Enquanto isso, quero garantir sua segurança. Ailron está tão ocupado com os próprios problemas que não há como afirmar quem poderia entrar sorrateiro, talvez com más intenções. Tomei a liberdade de postar alguns dos Filhos de vigia aqui. Com o consentimento de Ailron.
Morgase sempre ouvira dizer que os Mantos-brancos eram o verdadeiro poder em Amadícia e tinha certeza de que acabara de comprovar isso.
Niall foi um tantinho mais formal na partida do que na chegada, fazendo uma mesura que serviria a um de seus iguais. De um jeito ou de outro, deixava entrever que ela não tinha escolha.
Morgase se levantou assim que o sujeito foi embora, mas Breane disparou em direção às portas ainda mais depressa. Porém, antes que as duas conseguissem dar três passos, uma das portas se abriu, e Tallanvor e os outros dois irromperam no aposento.
— Morgase — chamou ele, em um arquejo, tentando sorvê-la com os olhos. — Achei que…
— Achou? — indagou a rainha, com desdém. Era demais! Ele não aprendia. — É assim que você me protege? Um garoto faria melhor! Pensando bem, isso foi mesmo obra de um garoto.
Tallanvor sustentou aquele olhar abrasador por mais um instante, então deu meia-volta e saiu, abrindo caminho por Basel e Lamgwin.
O estalajadeiro permaneceu parado, apertando as mãos nervosamente.
— Eram pelo menos trinta, minha Rainha. Tallanvor teria lutado… Ele tentou gritar, avisar a senhora, mas deram nele com o cabo de uma espada. O mais velho disse que não pretendiam machucar a senhora, mas que queriam tratar unicamente com a senhora, e se fosse necessário nos matar… — Olhou para Lini, depois Breane, que estudava Lamgwin de cima a baixo em busca de ferimentos. O sujeito também parecia bastante preocupado com a esposa. — Minha Rainha, se eu imaginasse que seríamos de alguma serventia… eu sinto muito. Decepcionei a senhora.
— “O remédio que cura é sempre amargo” — murmurou Lini. — Ainda mais para uma criança com ataques de birra.
Pelo menos desta vez a mulher não usara um tom que todo o cômodo fosse capaz de ouvir. E estava certa. Morgase sabia bem disso. Menos em relação ao ataque, claro. Basel, de tão arrasado, já parecia a ponto de aceitar de bom grado a decapitação.
— O senhor não me decepcionou, Mestre Gill. Pode ser que um dia eu venha a pedir que o senhor morra por mim, mas só quando sua morte resultar em um bem maior. Niall só queria conversar. — Basel se aprumou no mesmo instante, mas Morgase sentiu o peso do olhar de Lini sobre si. Muito amargo. — O senhor peça a Tallanvor que venha aqui. Eu… quero me desculpar pelas palavras impetuosas.
— A melhor maneira de se desculpar com um homem — interveio Breane — é levá-lo para um canto isolado do jardim.
Morgase teve um estalo. Antes de se dar conta do que fazia, já tinha arremessado o cálice na mulher, espalhando ponche pelo carpete.
— Saia daqui! — ganiu. — Todos vocês, saiam! O senhor pode levar o meu pedido de desculpas a Tallanvor, Mestre Gill.
Breane limpou o ponche do vestido com toda a calma, depois andou devagar até Lamgwin e deu o braço a ele. Basel saiu quase tropeçando ao tentar conduzi-los para fora.
Para surpresa de Morgase, Lini também saiu. Não era de seu feitio, o mais provável era que a antiga ama ficasse e lhe passasse o velho sermão, como se Morgase ainda tivesse dez anos. Não sabia por que aguentava aquilo. No entanto, quase pediu que a mulher ficasse. Mas logo todos saíram, a porta foi fechada… e ela tinha questões mais importantes com que se preocupar do que os sentimentos feridos de Lini.
Andou em círculos pelo carpete, tentando pensar. Ailron exigiria concessões nos negócios — e talvez o “sacrifício” de Niall — pela ajuda. Estava disposta a fazer as concessões, mas temia que Niall estivesse certo em relação à quantidade de soldados que o outro dispensaria. De certa forma, seria mais fácil ceder às demandas do Senhor Capitão Comandante. O homem decerto pediria livre acesso a Andor a todos os Mantos-brancos. E autonomia para eliminar os Amigos das Trevas que encontrassem em cada desvão, para incitar motins contra mulheres desamparadas acusadas de serem Aes Sedai, para matar as verdadeiras Aes Sedai. Niall poderia até exigir uma lei contra a canalização, contra a ida de mulheres à Torre Branca.
Seria possível — ainda que difícil e sangrento — expulsar os Mantos-brancos quando eles já tivessem estabelecidos, mas havia mesmo a necessidade de abrir as portas para eles, para começo de conversa? Rand al’Thor era o Dragão Renascido, tinha certeza disso, independentemente do que Niall dissesse. Tinha quase certeza. Porém, pelo que sabia, governar nações não era parte das Profecias do Dragão. Dragão Renascido ou falso Dragão, ele não poderia ter posse de Andor. Mas como ela poderia saber?
Um tímido roçar na porta a trouxe de volta a si.
— Entre — declarou, com rispidez.
A porta se abriu lentamente, e entrou um jovem de sorriso largo, vestido em um uniforme vermelho e dourado e trazendo uma bandeja com uma jarra de prata cheia de ponche gelado, já com gotículas formadas pela umidade. Estava esperando Tallanvor. Lamgwin montava guarda sozinho no corredor, pelo que ela podia ver. Ou pelo menos descansava, recostado na parede feito um segurança de taverna. Ela gesticulou, indicando ao jovem onde deixar a bandeja.
Irritada — Tallanvor deveria ter vindo, ah se deveria! —, voltou a andar em círculos. Basel e Lamgwin podiam partir para a aldeia mais próxima em busca de boatos, mas seriam apenas boatos, e talvez plantados por Niall. O mesmo valia para os serviçais do palácio.
— Minha Rainha. Posso falar, minha Rainha?
Morgase se virou, estupefata. O sotaque era de Andor. O jovem estava ajoelhado, o sorriso largo oscilando entre a dúvida e a arrogância. Talvez tivesse sido belo, mas o nariz quebrado fora mal corrigido. Em Lamgwin o traço parecia rústico, ainda que grosseiro, já naquele camarada… parecia que o sujeito tinha tropeçado e caído de cara no chão.
— Quem é você? — inquiriu. — Como entrou aqui?
— Sou Paitr Conel, minha Rainha. Venho de Mercado de Sheran. Em Andor — acrescentou, como se ela pudesse não se dar conta disso.
Impaciente, Morgase fez um gesto para que o rapaz prosseguisse.
— Vim para Amador com meu tio, Jen — explicou o recém-chegado. Ele é mercador em Quatro Reis, e veio atrás de tinturas tarabonianas. Elas estão caras, com todos esses problemas em Tarabon, mas ele achou que pudesse encontrar um preço melhor… — Morgase estreitou os lábios, e o sujeito logo continuou: — Ouvimos falar da senhora, minha Rainha, que a senhora estava aqui no palácio. E tem essa lei aqui de Amadícia, e com a senhora tendo sido treinada na Torre Branca e tudo o mais… Pensamos que poderíamos ajudar… — O rapaz engoliu em seco e concluiu, com uma vozinha fraca: — Ajudar a senhora a fugir.
— E vocês estão preparados para me ajudar… a fugir?
Não era o melhor plano, mas ela poderia cavalgar rumo ao norte até Ghealdan. Tallanvor ficaria exultante. Não, não ficaria, e isso seria pior.
Paitr, porém, balançou a cabeça cheio de pesar.
— Tio Jen tinha um plano, mas agora há Mantos-brancos em todo o palácio. Eu não sabia o que fazer além de vir falar com a senhora, que foi o que ele mandou. Tio Jen vai pensar em outra coisa, minha Rainha. Ele é esperto.
— Eu tenho certeza disso — murmurou Morgase. Então a ideia de ir a Ghealdan voltou a esmaecer. — Há quanto tempo você saiu de Andor? Um mês? Dois? — O rapaz aquiesceu. — Então não sabe o que está acontecendo em Caemlyn. — Ela deu um suspiro.
O jovem lambeu os lábios.
— Eu… estamos hospedados em Amador, com um homem que tem pombos. Um mercador. Ele recebe mensagens de todos os cantos. De Caemlyn também. Mas só ouço más notícias, minha Rainha. Pode levar um dia ou dois, mas o tio vai achar outra saída. Só queria que a senhora soubesse que tem ajuda por perto.
Bem, as coisas seriam desse jeito, afinal. Uma disputa entre Pedron Niall e esse tal de Jen, tio de Paitr. Desejou não ter tanta certeza quanto em quem apostar.
— Enquanto isso, pode me contar quanto as coisas estão ruins em Caemlyn.
— Minha Rainha, eu fui mandado aqui apenas para informar a senhora a respeito da ajuda. Meu tio vai ficar brabo se eu ficar…
— Eu sou a sua Rainha, Paitr — retrucou Morgase, com firmeza —, e também do seu tio Jen. Ele não vai se incomodar se você responder às minhas perguntas. — Paitr parecia prestes a sair em disparada, mas ela se acomodou em uma cadeira e se preparou para esgravatar a verdade.
Pedron Niall sentia-se bastante satisfeito ao descer de sua montaria no pátio principal da Fortaleza da Luz e jogar as rédeas para um cavalariço. Morgase estava sob controle, e ele não precisara mentir nenhuma vez. Não gostava de mentir. Criara sua própria interpretação dos acontecimentos, mas tinha certeza de tudo. Rand al’Thor era um falso Dragão, um instrumento da Torre. O mundo estava cheio de idiotas incapazes de pensar. A Última Batalha não seria um duelo titânico entre o Tenebroso e um Dragão Renascido, um homem comum. O Criador abandonara a humanidade à própria sorte havia muito tempo. Não… quando Tarmon Gai’don chegasse, seria como nas Guerras dos Trollocs, mais de dois mil anos antes, quando hordas de Trollocs e outras Crias da Sombra emergiram da Grande Praga, arruinaram as Terras da Fronteira e quase afogaram toda a humanidade em um mar de sangue. Não pretendia deixar a humanidade enfrentar isso cindida e despreparada.
Uma onda de mesuras de Filhos vestidos em mantos brancos o acompanhou pelos corredores de paredes de pedra da Fortaleza ao longo de todo o trajeto até sua sala de audiências particular. Na antessala, Balwer, o secretário de rosto rígido, pôs-se de pé de um salto e começou a enumerar os papéis que aguardavam a assinatura do Senhor Capitão, mas Niall focou a atenção no homem alto que se levantava, sossegado, de uma das cadeiras encostadas na parede — tinha um cajado carmesim de pastor por trás do sol dourado no manto e três nós dourados de graduação abaixo do bordado.
Jaichim Carridin, Inquisidor da Mão da Luz, tinha o aspecto severo de sempre, porém com mais cabelos grisalhos nas têmporas do que da última vez que Niall o vira. Os olhos escuros e fundos guardavam um toque de preocupação, e não era de se admirar. As duas últimas missões que lhe foram outorgadas terminaram em desastres, o que era nada auspicioso para um homem com aspirações de tornar-se Grão-inquisidor, talvez até Senhor Capitão Comandante.
Niall largou o manto com Balwer e fez um gesto para que Carridin o acompanhasse até a sala de audiências propriamente dita, onde as paredes de madeira escura exibiam estandartes de batalha capturados de antigos inimigos como troféus, e o chão era adornado por um sol imenso feito com uma quantidade de ouro capaz de embasbacar a maioria dos homens. No mais, era um aposento simples e estoico, reflexo do próprio Niall. O Senhor Capitão Comandante sentou-se em uma cadeira de espaldar alto bem trabalhada, mas sem ornamentos. As duas compridas lareiras idênticas, uma em cada extremo do aposento, jaziam frias e limpas naquela época do ano em que deveriam abrigar fogueiras. Prova suficiente de que a Última Batalha estava próxima. Carridin dispensou uma mesura profunda e ajoelhou-se sobre o raio de sol, já gasto por tantos séculos de receber pés e joelhos.
— Você se perguntou por que mandei buscá-lo, Carridin?
Depois dos acontecimentos na Planície de Almoth e Falme, depois de Tanchico, não haveria como recriminar o homem se ele estivesse pensando que seria preso. Porém, se suspeitava da possibilidade, não deixava entrever na voz. Como de costume, não se absteve de mostrar que sabia mais do que qualquer um. Decerto mais do que deveria.
— As Aes Sedai em Altara, meu Senhor Capitão Comandante. A chance de eliminar metade das bruxas de Tar Valon, bem aqui em nossa porta.
Um exagero. Havia um terço delas em Salidar, se tanto, porém não mais do que isso.
— E por acaso se perguntou em voz alta, com seus amigos?
Niall duvidava de que Carridin tivesse algum amigo, mas havia uns sujeitos com quem ele bebia. Com quem se embebedava, nos últimos tempos. O homem era dotado de algumas habilidades, no entanto. Habilidades úteis.
— Não, meu Senhor Capitão Comandante. Eu não cairia em tamanha esparrela.
— Bom — respondeu Niall. — Porque você não vai chegar nem perto dessa Salidar, e nem qualquer outro Filho.
Não soube dizer se foi um lampejo de alívio que o rosto de Carridin estampou por uns instantes. Se foi, era um comportamento destoante: o homem jamais demonstrara falta de coragem. E alívio, sem dúvida, não era a reação mais adequada.
— Mas elas estão ali pedindo para ser atacadas. Essa é a prova de que os boatos são verdadeiros, de que a Torre está dividida. Conseguiremos destruir esse bando sem que as outras ergam a mão. A Torre vai se enfraquecer a ponto de sucumbir.
— Acha mesmo? — perguntou Niall, secamente. Entrelaçou os dedos diante do corpo e manteve o tom de voz suave. Os Questionadores… a Mão desprezava essa alcunha, mas até ele a empregava. Os Questionadores nunca viam o que não estivesse bem diante do próprio nariz. — Nem a Torre pode apoiar abertamente esse falso Dragão al’Thor. E se ele se rebelar, como Logain? Agora… um grupo de insurgentes? Elas sim podem apoiá-lo, e haja o que houver a Torre Branca não sujará as saias. — Tinha certeza de que era isso que estava acontecendo. Caso não fosse, havia meios de usar qualquer desunião real para enfraquecer mais a Torre. Ainda assim, acreditava estar certo. — Em todo caso, o que o mundo vê é o que importa. Não deixarei que vejam apenas uma luta entre os Filhos e a Torre. — Precisava que o mundo enxergasse a verdadeira face da Torre: um antro de Amigas das Trevas se metendo com forças que deveriam se manter intocadas pela humanidade, as responsáveis pela Ruptura do Mundo. — Esta é uma luta do mundo contra o falso Dragão al’Thor.
— Então, se não vou para Altara, meu Senhor Capitão Comandante, que ordens tem para mim?
Niall jogou a cabeça para trás com um suspiro. Sentia um cansaço súbito. Sentia todo o peso de sua idade, e ainda mais.
— Ah, Carridin, você vai para Altara.
Niall conhecia o nome e o rosto de Rand al’Thor desde pouco depois da suposta invasão marítima de Falme, uma conspiração das Aes Sedai que custara mil homens aos Filhos e espalhara o caos e os Devotos do Dragão por Tarabon e Arad Doman. Na época, ficara sabendo quem era al’Thor e acreditara poder usá-lo para forçar a união das nações. Depois de unidas, com o Falso Dragão sob sua liderança, teria sido possível eliminar al’Thor e preparar-se para as hordas de Trollocs. Enviara emissários a cada governante de cada terra para alertá-los do perigo. Mas al’Thor conseguia ser ainda mais ligeiro do que ele imaginara, ainda era difícil acreditar. A ideia era deixar o leão raivoso rugindo pelas ruas por tempo o bastante para assustar todos, mas o leão se agigantara e ficara mais veloz do que um raio.
No entanto, nem tudo estava perdido, precisava sempre se lembrar disso. Mais de mil anos antes, Guaire Amalasan se declarara Dragão Renascido, um falso Dragão capaz de canalizar. Amalasan conquistara mais terras do que al’Thor possuía no momento, até que um jovem rei de nome Artur Paendrag Tanreall enfrentou-o em uma batalha e deu início à escalada de seu próprio império. Niall não se considerava um novo Artur Asa-de-gavião, mas era o que o mundo dispunha. E, enquanto estivesse vivo, não desistiria.
Já iniciara o contra-ataque à crescente força de al’Thor. Além dos emissários aos governantes, enviara homens a Tarabon e Arad Doman. Poucos, mas com a missão de encontrar as pessoas certas e sussurrar em seus ouvidos que todos os seus problemas eram culpa dos Devotos do Dragão, os tolos e Amigos das Trevas que haviam declarado apoio a al’Thor. E da Torre Branca. Já chegavam bastantes rumores de Tarabon a respeito do envolvimento de Aes Sedai na briga, rumores que serviam de preparação para a verdade. Era hora de dar o próximo passo naquele novo plano, para indicar que lado escolher aos que se mantinham em cima do muro. Tempo. Tinha tão pouco tempo. Mesmo assim, era impossível não sorrir. Certos homens, já mortos, um dia haviam declarado: “Quando Niall abre um sorriso, está mirando sua jugular.”
— Altara e Murandy estão prestes a ser assolados por uma praga de Devotos do Dragão — disse a Carridin.
O aposento parecia o salão de estar de um palácio — teto abobadado em reboco trabalhado, carpetes com tramas delicadas no piso de azulejos brancos, painéis com entalhes elaborados nas paredes —, embora estivesse longe de ser um palácio. Na verdade, estava longe de qualquer lugar capaz de ser compreendido pela mente humana. O vestido de seda bronze de Mesaana farfalhava enquanto ela circundava uma mesa marchetada de lápis-lazúli, entretida na montagem de uma complexa torre de dominós de marfim, na qual cada nível era maior que o inferior. Orgulhava-se de realizar o feito unicamente com seus conhecimentos de tensão e alavancagem, sem usar um fio sequer de Poder. A torre já tinha nove andares.
A verdade era que, mais do que entretida, Mesaana estava evitando conversar com sua companhia. Semirhage costurava, sentada em uma cadeira de espaldar alto revestida em tapeçaria vermelha, os dedos compridos e magros trabalhando com destreza os pontos minúsculos do padrão intrincado de flores diminutas. Era sempre surpreendente lembrar que a outra mulher apreciava uma atividade tão… comum. O vestido preto criava um forte contraste com a cadeira. Nem Demandred tinha a ousadia de insinuar a Semirhage que ela só usava preto com tanta frequência porque Lanfear usava branco.
Pela milésima vez, Mesaana tentou analisar a razão do desconforto que sentia perto da outra. Conhecia as próprias forças e fraquezas, tanto em relação ao Poder Único quanto em outros aspectos. Igualava-se a Semirhage na maioria dos pontos, e, nos que não se igualava, tinha outras forças para contrapor às fraquezas da mulher de preto. Não era isso. Semirhage se deleitava com a crueldade, tinha prazer em causar sofrimento, mas decerto não era essa a questão. Mesaana sabia ser cruel quando necessário, além de não se importar com o que Semirhage fazia com os outros. Tinha de haver uma razão, mas não conseguia descobrir qual.
Irritada, posicionou outra peça de dominó, e a torre desmoronou com um estrondo, despejando os quadradinhos de marfim pelo chão. Estalando a língua, Mesaana deu as costas para a mesa e cruzou os braços.
— Onde está Demandred? Faz dezessete dias que ele foi para Shayol Ghul, mas esperou até agora para nos informar de uma mensagem e ainda por cima não apareceu. — Durante aquele período, ela mesma fora duas vezes ao Poço da Perdição e fizera aquela caminhada inquietante, com os dentes de pedra a lhe roçar os cabelos. E só encontrou um Myrddraal estranho, alto demais e que se recusava a falar. Encontrara a Fenda lá, claro, mas o Grande Senhor não respondera. Não permaneceu por muito tempo nenhuma das vezes. Sempre acreditara ser imune ao medo, pelo menos ao suscitado pelo olhar de um Meio-homem, mas, nas duas vezes, o olhar sem olhos do Myrddraal a mandara embora a passos ligeiros, e apenas seu forte autocontrole evitou que saísse em disparada. Se a canalização naquele local não fosse uma via de morte certa, teria destruído o Meio-homem ou Viajado para fora do Poço. — Onde é que ele está?
Semirhage desviou a atenção da costura, erguendo sem piscar os olhos escuros cravados no rosto escuro e plácido, então deixou o trabalho de lado e levantou-se com graça.
— Ele vai chegar quando chegar — respondeu, calma. Era sempre calma e sempre graciosa. — Se não quiser esperar, vá embora.
Sem perceber, Mesaana ergueu-se um tantinho nas pontas dos pés, mas ainda assim precisou olhar para cima. Semirhage era mais alta que a maioria dos homens, mas tinha proporções tão perfeitas que só se podia notar sua altura quando a mulher se erguia, encarando os outros de cima.
— Embora? Eu vou embora. E ele pode…
Não houve qualquer aviso, naturalmente. Nunca havia aviso quando um homem canalizava. Uma linha brilhante e vertical surgiu no ar, depois se expandiu e girou para o lado, formando um portão com largura suficiente para permitir a entrada de Demandred. Ao chegar, ele dispensou a cada mulher uma pequena mesura. Trajava vestes cinza-escuro, com uma renda clara no pescoço. Demandred tinha facilidade para acompanhar a moda e os tecidos daquela Era.
Seu perfil de nariz aquilino era bastante bonito, embora não fosse propriamente o tipo que fazia disparar o coração de uma mulher. De certa forma, “quase” e “não propriamente” eram palavras que haviam permeado a vida de Demandred. O Abandonado tivera a infelicidade de nascer no dia seguinte a Lews Therin Telamon, que se tornaria o Dragão, enquanto Barid Bel Medar, seu nome da época, passaria anos quase conseguindo realizar os feitos de Lews Therin, mas sem propriamente conquistar a mesma fama. Se Lews Therin não existisse, Barid teria sido o homem mais aclamado de sua Era. Será que estaria ali naquele momento, caso tivesse sido conclamado líder no lugar daquele homem, que ele considerava intelectualmente inferior, além de um idiota demasiado cauteloso e provido de muita sorte? Bem, isso era especulação, embora Mesaana já tivesse especulado antes. Não, o importante era que Demandred desprezava o Dragão e, depois que o Dragão Renascera, esse desprezo fora transferido para o novo Dragão.
— Por quê…?
Demandred ergueu uma das mãos.
— Vamos aguardar a presença de todos, Mesaana, para eu não ter que me repetir.
Mesaana sentiu uma pontada minúscula de saidar um instante antes de surgir uma linha cintilante que se abriu em um portão. Graendal adentrou, pela primeira vez sem a companhia de seus serviçais seminus, e deixou a passagem desaparecer tão depressa como a de Demandred. Era uma mulher curvilínea, com cabelo louro-acobreado e cheio de cachos. E de fato conseguira dar um jeito de encontrar estraite para o vestido de gola alta. E embora fosse de gola alta, a roupa refletia seu humor: o tecido era uma bruma diáfana. Às vezes, Mesaana se perguntava se Graendal pensava em qualquer coisa além de seus prazeres sensuais.
— Fiquei imaginando se estariam aqui — comentou a recém-chegada, em um tom jovial. — Vocês três têm andado tão misteriosos.
A mulher soltou uma risada alegre, meio boba. Não… julgar Graendal pela aparência seria um erro terrível. Quase todos que a tomaram por idiota tinham morrido havia muito, vítimas da mulher a quem trataram com desdém.
— Sammael vem? — perguntou Demandred.
Indiferente, Graendal abanou uma das mãos, que ostentava um anel.
— Ah, ele não confia em você. Acho que já não confia nem em si mesmo. — O estraite escureceu, tornando-se uma bruma menos reveladora. — Ele está liderando exércitos em Illian, lamentando não ser capaz de armá-los com lanças de choque. Quando não é isso, fica procurando algum angreal ou sa’angreal que possa ser usado. Algo com uma força decente, claro.
Todos os olhos se voltaram para Mesaana, que respirou fundo. Qualquer um deles teria dado… bem, quase tudo por um angreal ou sa’angreal útil. Todos tinham mais força do que aquelas crianças mal treinadas que se diziam as Aes Sedai daqueles tempos. Ainda assim, um elo com um número suficiente de crianças mal treinadas poderia destruí-los. Exceto, claro, pelo fato de que elas não sabiam mais como fazer isso, e nem mesmo possuíam recursos para tanto. Era necessária a presença de um homem para mais de treze mulheres se unirem, e de mais de um homem caso o número total de pessoas ultrapassasse vinte e sete. A verdade era que aquelas garotas — até as mais velhas pareciam garotas para Mesaana, que vivera mais de trezentos anos, sem contar o tempo que passara presa na Fenda, e era considerada recém-chegada à meia-idade — não representavam perigo real, mas isso não diminuía o desejo dos presentes por um angreal, ou, melhor ainda, por um sa’angreal, mais poderoso. Com esses objetos remanescentes de seu próprio tempo, eles seriam capazes de canalizar uma quantidade de Poder que os transformaria em cinzas caso tentassem sem ajuda. Qualquer um arriscaria muita coisa por uma recompensa dessas, porém nem tudo. Não sem uma necessidade real. Mas a falta de necessidade real não aplacava o desejo.
Na mesma hora, Mesaana assumiu um tom de bronca.
— A Torre Branca agora tem guardas e vigias em suas câmaras blindadas, do lado de dentro e de fora, e ainda por cima contam tudo quatro vezes por dia. A Grande Posse da Pedra de Tear também está sob proteção, com uma trama hedionda que me prenderia com toda força se eu tentasse passar por ela ou desatá-la. Acho que só pode ser desatada por quem atou, e, até isso acontecer, aquilo ali é uma armadilha para qualquer mulher capaz de canalizar.
— Um monte de entulhos inúteis, todos empoeirados, pelo que ouvi falar — retrucou Demandred, com desprezo. — Os tairenos reuniram tudo de que tivessem a menor suspeita de ligação com o Poder.
Mesaana suspeitava de que o homem não falava apenas baseado em rumores. Assim como desconfiava que a Grande Posse também estivesse protegida com uma armadilha contra homens. Do contrário, Demandred já teria capturado seu sa’angreal e partido atrás de Rand al’Thor.
— Não há dúvida de que existem alguns em Cairhien e Rhuidean. Mas, mesmo que você não dê de cara com al’Thor, as duas cidades estão abarrotadas de mulheres capazes de canalizar.
— Garotas ignorantes. — Graendal fungou com desdém.
— Existe alguma diferença — retrucou Semirhage, com frieza — entre morrer nas mãos de uma cozinheira, com uma faca cravada nas costas, ou de perder um duelo sha’je em Qal?
Mesaana aquiesceu.
— Então só sobra o que quer que esteja soterrado em antigas ruínas ou esquecido em algum sótão. Se querem contar com a sorte de encontrar alguma coisa, vão em frente. Eu não vou. A não ser que alguém saiba a localização de uma caixa de estase? — Havia certa aspereza na pergunta. Era possível que as caixas de estase tivessem sobrevivido à Ruptura do Mundo, mas, depois de todos os abalos, decerto estariam no fundo de algum oceano ou nas profundezas das montanhas. Restava muito pouco do mundo que tinham conhecido, além de alguns nomes e lendas.
O sorriso de Graendal era só doçura.
— Sempre achei que você devia ser professora. Ah. Desculpe. Esqueci.
O rosto de Mesaana assumiu uma expressão sombria. Sua trajetória até o Grande Senhor começara quando, todos aqueles anos antes, lhe fora negado um lugar em Collam Daan. Haviam-na declarado inadequada para a pesquisa, porém disseram que ainda poderia ensinar. Bem, e ela ensinara — até que descobriu como dar uma lição nos que a haviam desprezado!
— Ainda estou esperando para ouvir o que o Grande Senhor disse — murmurou Semirhage.
— Sim. Vamos matar al’Thor? — Mesaana percebeu que agarrava a saia com as duas mãos, então a soltou. Estranho. Nunca se deixava provocar. — Se tudo correr bem, em dois meses, no máximo três, ele estará em um lugar onde eu possa alcançá-lo sem problemas, além de indefeso.
— Onde é que você pode alcançá-lo sem problemas? — Graendal arqueou uma sobrancelha, intrigada. — Onde foi que você montou o seu covil? Pouco importa. Por mais simples que seja esse plano, é tão bom quanto os que eu tenho ouvido.
Demandred continuou em silêncio, analisando-as. Não, não analisava Graendal, e sim ela e Semirhage. E, quando enfim falou, meio que para si mesmo, dirigiu-se às duas.
— Quando penso em onde vocês duas se meteram, eu me pergunto… quanto será que o Grande Senhor sabe, e há quanto tempo? Quantos dos acontecimentos ocorreram por desígnio dele, todo esse tempo? — Não havia resposta. Por fim, ele completou: — Vocês querem saber o que o Grande Senhor me falou? Pois bem. Mas fica entre nós, e bem guardado. Já que Sammael escolheu se afastar, não vai saber de nada. Nem os outros, vivos ou mortos. A primeira parte da mensagem do Grande Senhor foi simples: “Deixe o Senhor do Caos reinar.” São as palavras exatas. — Os cantos de sua boca se contorceram no mais próximo de um sorriso que Mesaana já vira em seu rosto. Então, ele contou o resto.
Mesaana percebeu que tremia, mas não soube se de empolgação ou de medo. O plano poderia funcionar: eles poderiam ganhar tudo. Mas precisariam de sorte, e ela não gostava de apostas. Demandred é que era o jogador. Mas ele tinha razão a respeito de uma coisa: Lews Therin cunhara a própria sorte com a mesma imperiosidade que se cunha uma moeda. Ao que parecia, Rand al’Thor vinha fazendo o mesmo.
A menos… a menos que o Grande Senhor tivesse um plano maior do que o que fora revelado. E essa possibilidade a assustava mais do que qualquer outra.
O espelho de moldura dourada refletia o salão, as paredes repletas de mosaicos perturbadores, mobília dourada e carpetes refinados, além dos outros espelhos e das tapeçarias. Um salão de um palácio, mas sem janelas — nem portas. O espelho refletia uma mulher de vestido vermelho-sangue, bem escuro, andando de um lado a outro, o belo rosto contorcido em um misto de ira e incredulidade. Principalmente incredulidade. Refletia também o rosto dele, que lhe era muitíssimo mais interessante do que a mulher. Não conseguiu resistir a tocar o próprio nariz, boca e bochechas para certificar-se de que eram reais. Não era jovem, porém era mais jovem do que da primeira vez em que despertara do longo sono, com os infinitos pesadelos. Um rosto comum, e ele sempre odiara ser comum. Sentiu na garganta o princípio de uma gargalhada, uma risadinha, e a abafou. Não estava louco. Apesar de tudo, não estava.
Um nome lhe fora concedido durante o segundo sono, de longe muito mais terrível, antes que ele acordasse naquele rosto e corpo. Osan’gar. Um nome dado por uma voz que ele conhecia e não ousava desobedecer. Seu antigo nome, concedido com escárnio e adotado com orgulho, deixara de existir. A voz de seu mestre assim declarara, e assim foi. A mulher era Aran’gar. E já não era mais quem tinha sido.
Escolhas interessantes, esses nomes. Osan’gar e aran’gar: as adagas das mãos esquerda e direita em uma forma de duelo bastante popular durante um breve período logo no princípio daquele longo processo, desde o dia da criação da Fenda até o verdadeiro início da Guerra do Poder. Suas lembranças eram meio turvas — muito fora perdido no longo sono, assim como no curto —, mas disso ele recordava. A luta só fora popular por um breve período porque quase sempre culminava na morte dos dois duelistas. As lâminas das adagas eram revestidas com um veneno de efeito lento.
Algo formou um borrão no espelho, e ele se virou, mas não muito depressa. Tinha de se lembrar de quem era e se certificar de que os outros se lembrassem. Ainda não havia porta, mas um Myrddraal passara a dividir o recinto com ele. Nada daquilo era estranho no lugar onde estava, apesar de o Myrddraal ser mais alto que todos os que Osan’gar já vira.
Ele se demorou um pouco, deixando que o Meio-homem esperasse para ter sua presença reconhecida. Antes que pudesse abrir a boca, Aran’gar bradou:
— Por que fizeram isso comigo? Por que me colocaram neste corpo? Por quê? — A última pergunta saiu quase como um ganido.
Osan’gar pensou ter visto os lábios sem sangue do Myrddraal se contorcerem em um sorriso — algo impossível, ali ou em qualquer outro lugar. Até os Trollocs tinham senso de humor, ainda que vil e violento, mas não os Myrddraal.
— Vocês dois receberam o melhor que pudemos arranjar nas Terras da Fronteira. — Sua voz era um sibilo traiçoeiro em um relvado seco. — É um corpo excelente, forte e saudável. E melhor do que a outra opção.
As duas afirmações eram verdadeiras. Era um corpo excelente, adequado a uma dançarina daien dos tempos passados: bem-desenhado e longilíneo, com um rosto oval cor de marfim que combinava muito bem e olhos verdes, emoldurado por cabelos negros e brilhantes. E qualquer coisa era melhor do que a outra opção.
Talvez Aran’gar não fosse da mesma opinião. A ira manchava seu belo rosto. Acabaria se descontrolando. Osan’gar sabia: isso sempre fora um problema de Aran’gar. Lanfear, em contraste, sempre parecia cautelosa. Tentou tocar saidin. Canalizar ali seria perigoso, porém menos do que deixar que Aran’gar cometesse alguma estupidez. Se abriu para saidin… e nada encontrou. Não tinha sido blindado — teria sentido isso, e saberia como contornar a situação ou romper a blindagem, se não fosse muito forte. Parecia que tinha sido apartado. O choque o deixou petrificado.
O que não aconteceu com Aran’gar, que talvez tivesse feito a mesma descoberta, mas tivera uma reação diferente. Com um guincho alto, feito um gato, partiu para cima do Myrddraal, as mãos em garra.
Um ataque inútil, sem dúvida. O Myrddraal sequer se moveu. Em um movimento displicente, a criatura agarrou a mulher pela garganta, estendeu os braços e a suspendeu até os pés saírem do chão. O guincho tornou-se um murmúrio, e Aran’gar agarrou o punho do Meio-homem com ambas as mãos. Sustentando o corpo da mulher dependurado, ele voltou o olhar sem olhos para Osan’gar.
— Você não foi apartado, mas só vai canalizar quando receber permissão. E nunca vai me atacar. Eu sou Shaidar Haran.
Osan’gar tentou engolir em seco, mas sua boca parecia um deserto. Não era possível que a criatura tivesse alguma coisa a ver com o que fora feito a ele. Myrddraal tinham certos poderes, mas nada desse tipo. Ainda assim, o Meio-homem sabia. Nunca gostara dos Myrddraal. Havia ajudado na criação dos Trollocs, combinando raças humanas e animais — e se orgulhava disso, das habilidades necessárias, da dificuldade envolvida —, mas aquelas crias acidentais o deixavam incomodado, para dizer o mínimo.
Shaidar Haran voltou a atenção ao corpo que se contorcia, preso por seu punho. O belo rosto começava a ficar roxo, mas os pés continuavam se sacudindo, sem forças.
— Você vai se adaptar. O corpo se curva à alma, mas a mente se curva ao corpo. Já está se adaptando. Daqui a pouco vai parecer que nunca esteve em outra carne. Ou pode se recusar… Então outro tomará o seu lugar, e você será entregue… aos meus irmãos. E ainda com o bloqueio. — Os lábios finos se contorceram outra vez. — Eles estão sentindo falta de um pouco de diversão aqui nas Terras da Fronteira.
— Ela não consegue falar — interveio Osan’gar. — Você vai matá-la! Não sabe quem somos? Ponha-a no chão, Meio-homem! Obedeça!
Aquela coisa tinha que ser obrigada a obedecer a um Escolhido. No entanto, o Myrddraal continuou impassível, analisando o rosto escurecido de Aran’gar por um longo instante antes de pousá-la de volta no chão e abrir o punho.
— Eu obedeço ao Grande Senhor. A ninguém mais. — Aran’gar ficou ali, cambaleante, tossindo e engolindo o ar. Se ele retirasse a mão, a mulher cairia. — Vai se submeter à vontade do Grande Senhor? — A voz rascante não fez uma exigência, apenas uma pergunta superficial.
— Eu… eu vou — conseguiu responder a mulher, rouca, e Shaidar Haran a soltou.
Aran’gar cambaleou, massageando a garganta, e Osan’gar fez menção de ajudá-la, mas antes que a tocasse ela o ameaçou com um olhar cortante e o punho cerrado. Ele recusou de mãos erguidas. Não precisava dessa inimizade. Mas era mesmo um belo corpo, além de uma piada maravilhosa. Sempre se orgulhara do próprio senso de humor, mas aquilo era muito superior.
— Vocês não se sentem gratos? — questionou o Myrddraal. — Estavam mortos, agora estão vivos. Pensem em Rahvin, cuja alma já não tem salvação, já não pertence ao tempo. Vocês têm mais uma chance de servir ao Grande Senhor e se absolver de seus erros.
Osan’gar se apressou em assegurar à criatura de que era grato, que não desejava nada além de servir e ganhar absolvição. Rahvin estava morto? O que acontecera? Não importava: um Escolhido a menos era uma chance a mais de conquistar o verdadeiro poder quando o Grande Senhor fosse libertado. Era desgastante se humilhar diante de um ser que ele próprio criara, exatamente como os Trollocs, mas se recordava muito bem da morte. E rastejaria até diante de um verme para evitá-la outra vez. Aran’gar respondeu com a mesma rapidez, pelo que ele pôde perceber, apesar da raiva no olhar. Decerto também se lembrava.
— Então está na hora de vocês partirem outra vez para o mundo a serviço do Grande Senhor — declarou Shaidar Haran. — Ninguém além de mim e do Grande Senhor sabe que vocês estão vivos. Se forem bem-sucedidos, viverão para sempre e ocuparão um lugar acima de todos os outros. Se falharem… Mas vocês não vão falhar, não é mesmo?
O Meio-homem sorriu. Era como ver a morte sorrindo.