— Você precisa me ajudar a colocar algum juízo na cabeça delas — disse Mat sem tirar o cachimbo da boca. — Está ouvindo, Thom?
Os dois estavam sentados em barriletes tombados na sombra pífia de uma casa de dois andares, fumando seus cachimbos, e o menestrel velho e magrelo parecia mais interessado em examinar a carta que Rand lhe enviara. Àquela altura, já a enfiara no bolso do manto com o selo em cera azul ainda intacto. O zum-zum-zum de vozes e o rangido de eixos vindos da rua no final da viela pareciam distantes. O suor pingava do rosto de ambos. Naquele momento, ao menos uma coisa já estava resolvida. Mat saíra da Pequena Torre para descobrir que um grupo de Aes Sedai havia arrastado Aviendha para algum lugar. Ela não esfaquearia ninguém tão cedo.
Thom tirou o cachimbo da boca. Tinha uma piteira bem comprida, com folhas de carvalho e nozes entalhadas.
— Uma vez eu tentei resgatar uma mulher, Mat. Laritha era um botão de rosa e casada com um brutamontes de olhar furioso que confeccionava botas numa aldeia onde fiz uma parada por alguns dias durante minhas viagens. Um brutamontes. Gritava com ela caso o jantar não estivesse pronto na hora e a ameaçava com um chicote se a visse trocar mais que duas palavras com qualquer homem.
— Thom, onde é que no Poço da Perdição isso tem alguma coisa a ver com aquelas mulheres passarem a ter algum juízo?
— Apenas me ouça, garoto. O modo como ele tratava a mulher era de conhecimento geral na aldeia, mas foi a própria Laritha que me contou, se lamuriando o tempo todo sobre como gostaria que alguém a resgatasse. Eu tinha ouro na minha bolsa e uma bela carruagem, com condutor e serviçal. Eu era jovem e bonitão. — Thom esfregou o bigode branco e suspirou. Era difícil acreditar que aquele rosto envelhecido já havia sido bonito. Mat piscou. Uma carruagem? Desde quando um menestrel tinha carruagem? — A situação daquela mulher partiu o meu coração, Mat. E não vou negar que o rosto dela também me conquistou. Como eu disse, eu era jovem, achei que estava apaixonado, como um herói saído das histórias. Então um dia, sentado debaixo de uma macieira que estava florando, bem longe da casa do fabricante de botas, me ofereci para levá-la embora. Eu daria uma criada e uma casa só para ela, e a cortejaria com músicas e versos. Quando ela finalmente entendeu, me deu um chute tão forte no joelho que passei um mês inteiro mancando, além de ter me batido com o banco.
— Parece que todas elas gostam de dar chutes — resmungou Mat, ajustando seu peso em cima do barrilete. — Suponho que ela não tenha acreditado em você, e quem pode culpá-la?
— Ah, ela acreditou. E se sentiu ultrajada por eu ter achado que algum dia ela abandonaria o amado marido dela. Palavra dela: amado. Ela saiu correndo de volta para ele o mais rápido que os pés dela aguentavam, e só me restou escolher entre matá-lo ou pular para dentro da minha carruagem. Tive que deixar para trás quase tudo o que eu tinha. Creio que ela ainda esteja vivendo com ele exatamente como antes: segurando os cordames da bolsa bem apertado em sua mão e dando com a vassoura na cabeça dele toda vez que ele vai à estalagem para tomar uma cerveja. De mesmo jeito que ela sempre fez, como eu descobri depois de algumas discretas investigações. — Ele meteu o cachimbo de volta entre os dentes como se tivesse chegado a uma conclusão.
Mat coçou a cabeça.
— Não entendi o que uma coisa tem a ver com a outra.
— Você não deveria pensar que conhece a história toda quando só ouviu uma parte. Por exemplo, você sabia que Elayne e Nynaeve vão partir para Ebou Dar daqui um ou dois dias? E que Juilin e eu devemos ir junto?
— Ebou…! — Mat quase não conseguiu pegar o cachimbo antes que ele caísse nas ervas daninhas mortas que recobriam a viela. Nalesean contara algumas histórias sobre uma visita a Ebou Dar, e mesmo Mat sabendo que ele exagerava quando se tratava de mulheres que conhecera e brigas em que se metera, o lugar parecia difícil. Então elas achavam que conseguiriam levar Elayne embora na calada da noite, é? — Thom, você precisa me ajudar…
— O quê? — interrompeu Thom. — A salvá-las do artesão de botas? — Soprou uma serpentina de fumaça azul. — Não vou fazer isso, garoto. Você ainda não sabe a história toda. Como você se sente com relação a Egwene e Nynaeve? Pensando melhor, considere só Egwene.
Mat franziu a testa, imaginando se o homem pensava que conseguiria confundi-lo ao ficar andando em círculos.
— Eu gosto de Egwene. Eu… Que a Luz me queime, Thom, ela é a Egwene. Só isso já diz tudo. Por isso é que eu estou tentando salvar o pescoço daquela idiota.
— Salvá-la do artesão de botas dela, você quer dizer — murmurou Thom, mas Mat continuou.
— O pescoço dela e o de Elayne também. Até o de Nynaeve, se eu mesmo resistir à tentação de estrangulá-la com as minhas próprias mãos. Luz! Eu só quero ajudá-las. Além disso, Rand vai quebrar o meu pescoço se eu deixar alguma coisa acontecer com Elayne.
— Você já pensou em ajudá-las a fazer o que elas querem, em vez do que você quer? Se eu pudesse fazer as coisas do meu jeito, já estaria com Elayne num cavalo a caminho de Andor. Ela precisa fazer outras coisas primeiro, precisa, eu acho, então eu fico correndo por aí atrás dela, preocupado dia e noite se alguém vai conseguir matá-la sem que eu possa fazer nada para evitar. Ela só vai para Caemlyn quando estiver pronta. — Cheio de complacência, Thom tragou o cachimbo, mas sua voz soou levemente cortante no final, como se não gostasse tanto das suas palavras quanto fingia gostar.
— A impressão que eu tenho é de que elas querem entregar a cabeça delas para Elaida. — Quer dizer que Thom estaria com aquela jovenzinha tola em cima de um cavalo, não é? Um menestrel levando a Filha-herdeira na marra para ser coroada! Realmente Thom se tinha em alta conta.
— Você não é bobo, Mat — disse Thom, calmo. — Você sabe muito bem. Egwene… É difícil ver aquela criança como Amyrlin… — Mat soltou um grunhido amargo, concordando. Thom nem lhe deu atenção. — … mas creio que ela tenha estômago para isso. Ainda é muito cedo para dizer se algumas coisas são só coincidência, mas estou começando a acreditar que ela também pode ter o cérebro. A questão é: será que ela é forte o bastante? Se lhe faltar isso, elas vão comê-la viva, estômago, cérebro e tudo.
— Quem? Elaida?
— Ah, ela. Se tiver a chance. Essa aí tem força de sobra. Mas as Aes Sedai daqui mal veem Egwene como Aes Sedai. Como Amyrlin, talvez, mas não como Aes Sedai, mesmo que isso seja difícil de se acreditar. — Thom balançou a cabeça. — Eu não entendo, mas é verdade. O mesmo vale para Elayne e Nynaeve. Elas tentam manter isso só entre elas, mas nem as Aes Sedai disfarçam tanto quanto acreditam, se você olhar bem e prestar atenção. — O homem tornou a puxar a carta e só ficou virando-a nas mãos para um lado e para o outro, sem olhar. — Egwene está caminhando na beira de um precipício, Mat, e três facções aqui em Salidar… até onde sei são três… podem empurrá-la lá de cima se ela der um único passo em falso. Elayne vai junto se isso acontecer, e Nynaeve também. Ou talvez elas empurrem primeiro as duas para que Egwene seja arrastada junta.
— Só aqui em Salidar — repetiu Mat, sem emoção. Thom assentiu com a cabeça calmamente, e Mat não conseguiu evitar que sua voz subisse de tom. — E você quer que eu as deixe aqui?
— Quero que pare de pensar que você vai obrigá-las a fazer o que for. Elas já decidiram o que vão fazer, e você não tem como mudar isso. Mas talvez, e só talvez, você possa me ajudar a mantê-las vivas.
Mat se levantou rapidamente. A imagem de uma mulher com uma faca enterrada entre os seios lhe viera à mente, e não se tratava de uma das lembranças emprestadas. Ele chutou o barrilete em que estivera sentado e o fez sair rolando viela abaixo. Ajudar um menestrel a mantê-las vivas? Uma lembrança tênue ressurgiu, algo com relação a Basel Gill, um estalajadeiro de Caemlyn, falando alguma coisa a respeito de Thom, mas foi como se Mat tentasse agarrar fumaça, e o pensamento se dissipou.
— De quem é a carta, Thom? De alguma outra mulher que você resgatou? Ou você a deixou num lugar onde ela poderia acabar decapitada?
— Deixei — respondeu Thom, tranquilo. Levantou-se e se afastou sem dizer mais nenhuma palavra.
Mat fez menção de detê-lo e chegou até a abrir a boca. Só não conseguia pensar no que dizer. Velho maluco! Não, não era maluco. Egwene era teimosa como uma mula, e Nynaeve a fazia parecer dócil. Pior, ambas subiriam numa árvore para enxergar melhor um relâmpago. Quanto a Elayne, as mulheres nobres nunca tinham bom senso suficiente para sair da chuva. E depois ficavam indignadas quando se molhavam.
Dando tapinhas para esvaziar o cachimbo, Mat apagou as brasas com os calcanhares antes que as ervas daninhas secas pudessem pegar fogo, então apanhou o chapéu no chão e saiu mancando pela rua. Precisava obter informações de uma fonte melhor que um menestrel que tinha delírios de grandeza por ter passado tempo demais com aquela Filha-herdeira de nariz em pé. À sua esquerda, ao longe, Mat viu Nynaeve saindo da Pequena Torre e disparou atrás dela, serpenteando por entre carroças puxadas por bois ou cavalos. Talvez ela pudesse ajudá-lo a entender melhor. Se quisesse. Sentiu uma pontada no quadril. Que me queime, ela me deve algumas respostas.
Foi quando Nynaeve o avistou e ficou visivelmente tensa. Por um momento, observou-o se aproximar e então, de maneira abrupta, apressou-se na direção contrária, numa clara tentativa de evitá-lo. Ela olhou por cima do ombro duas vezes antes de as pessoas e as carroças a encobrirem.
Mat parou, com a expressão carrancuda, e puxou o chapéu para baixo. Primeiro, a mulher lhe dera um pontapé sem motivo e agora se recusava a falar com ele. Estavam querendo deixá-lo abalado, ela e Egwene, até que Mat saísse correndo sempre que elas lhe apontassem o dedo. Bem, elas escolheram o homem errado para esse joguinho, e que a Luz queime seus couros!
Vanin e os demais estavam do lado de fora de um estábulo, junto de uma construção de pedra que, no passado, com certeza fora uma estalagem. Àquela altura, Aes Sedai entravam e saíam do local. Pips e o restante dos cavalos estavam amarrados a um poste, e Vanin e os dois batedores que haviam sido capturados estavam agachados junto da parede. Não havia dois homens mais diferentes entre si do que Marr e Ladwin; um alto, magrelo e de rosto duro, o outro baixo, troncudo e de aspecto pacato, mas ambos pareciam absolutamente envergonhados quando Mat apareceu. Nenhum dos dois havia se recuperado de como a captura dele tinha sido fácil. Rijos, os dois homens do esquadrão estavam de pé e ainda seguravam os estandartes bem justos junto às hastes, como se ainda houvesse sentido naquilo. Pareciam mais do que só um pouco apreensivos. Uma batalha era uma coisa, todas aquelas Aes Sedai eram outra bem diferente. Numa batalha, um homem tinha chances de vencer. Havia dois Guardiões de olho neles. Não abertamente. Estavam do outro lado do pátio do estábulo, mas não teriam optado por ficar ali, de pé no sol a pino, só para conversar.
Mat alisou o focinho de Pips e, em seguida, instantes depois, começou a examinar os olhos do cavalo. Um sujeito de colete de couro saiu do estábulo e seguiu rua acima empurrando um carrinho de mão cheio de esterco. Vanin se aproximou para observar o olho de Pips. Sem olhar para ele, Mat disse:
— Você consegue ir até o Bando?
— Talvez. — Vanin franziu o cenho e levantou a pálpebra de Pips. — Com um pouco de sorte, talvez. Mas odeio ter que abandonar o meu cavalo.
Mat assentiu, observando o olho mais de perto.
— Avise a Talmanes que eu disse para ele ficar onde está. Pode ser que eu fique aqui alguns dias, e não quero nenhuma maldita tentativa de resgate. Tente voltar para cá. Sem ser visto, se possível.
Vanin cuspiu na poeira debaixo de Pips.
— Um homem que se mistura com Aes Sedai põe uma rédea em si mesmo e uma sela em suas costas. Vou voltar assim que puder. — Balançando a cabeça, ele se misturou à multidão, um gorducho desalinhado e de andar bamboleante que ninguém suspeitaria de que fosse capaz de ser furtivo.
Um dos homens do esquadrão pigarreou com hesitação e deu um passo em direção a Mat.
— Milorde, está tudo…? Foi isso que você planejou, não foi, milorde?
— Tudo dentro do plano, Verdin — respondeu Mat, dando tapinhas em Pips. Ele fora enfiado de cabeça numa saca, e com os barbantes bem amarrados. Havia prometido a Rand que levaria Elayne em segurança a Caemlyn e não podia ir embora sem ela. E também não podia dar no pé e deixar Egwene com o pescoço estirado no cepo. Podia ser que… Luz, como aquilo o irritava! Mas podia ser que ele tivesse de seguir o conselho de Thom. Tentar manter a maldita cabeça daquelas malditas mulheres sobre seus malditos ombros dando um jeito de ajudá-las a fazer aquele plano completamente maluco dar certo. E, de quebra, tentava manter o próprio pescoço intacto. Sem falar em deixar Aviendha bem longe da goela de Elayne. Bem, pelo menos ele poderia estar por perto para levá-las embora quando tudo desse errado. Belo consolo. — Está tudo indo às mil maravilhas.
Elayne esperara encontrar Aviendha na sala de espera ou talvez no lado de fora, mas não precisou investigar muito para descobrir por que a Aiel não estava nem num lugar nem noutro. Havia dois assuntos nas conversas entre as outras Aes Sedai, e todas elas estavam falando, os papéis importantes abandonados sobre as mesas. A maioria das línguas se ocupava com Mat. Até as serviçais e noviças que passavam às pressas pela sala de espera faziam pausas na realização das suas incumbências para trocar uma ou outra palavra a respeito dele. Ele era ta’veren. Era seguro permitir que um ta’veren permanecesse em Salidar? Ele havia estado mesmo na Torre e simplesmente teve permissão para ir embora? Era verdade que comandava um exército de Devotos do Dragão? Será que ele seria preso pelas atrocidades das quais elas tinham ouvido falar? Era verdade que ele era da mesma aldeia que o Dragão Renascido e a Amyrlin? Havia boatos de dois ta’veren ligados ao Dragão Renascido. Quem seria o segundo e onde ele poderia ser encontrado? Talvez Mat Cauthon soubesse. Parecia haver tantas opiniões quanto pessoas para dá-las.
Havia duas perguntas que Elayne esperava ouvir e que não ouviu: o que Mat queria em Salidar e como Rand soubera para onde mandá-lo? Ninguém as fez, mas, num canto, uma Aes Sedai mexia de repente no xale como se estivesse com frio e se sobressaltava quando alguém falava com ela, e, no outro, uma serviçal parada no meio do aposento olhava para o nada antes de recobrar a consciência com uma sacudidela, ou uma noviça disparava olhares apavorados para as irmãs. Mat não era exatamente um gato à solta entre os pombos, mas chegava perto. O simples fato de Rand saber onde elas estavam parecia o suficiente para causar calafrios.
Aviendha gerava menos comentários, mas as irmãs não tinham como evitar falar sobre ela, e não só para mudar de assunto. Não era todo dia que uma bravia simplesmente aparecia por conta própria, em especial com aquela força notável e, ainda por cima, sendo uma Aiel. Esse último aspecto causava verdadeiro fascínio em todas as irmãs. Nenhuma Aiel jamais treinara na Torre, e poucas Aes Sedai já haviam adentrado o Deserto Aiel.
Bastou uma única pergunta para ela descobrir onde estavam mantendo-a presa. Não oficialmente presa, mas Elayne sabia como as Aes Sedai podiam ser quando queriam que uma mulher se tornasse noviça.
— Ao cair da noite, ela já vai estar de branco — afirmou Akarrin de modo confiante. A Marrom esbelta assentia para dar ênfase a quase todas as palavras. As duas irmãs que a acompanhavam aquiesceram com a mesma certeza.
Resmungando sozinha, Elayne saiu apressada para a rua. À sua frente, conseguia avistar Nynaeve quase trotando e olhando por cima do ombro com tanta frequência que acabava esbarrando nas pessoas. Sem se importar em ter companhia, Elayne cogitou alcançá-la, mas não estava disposta a correr naquele calor, com ou sem a concentração que a impedia de suar, e aquela parecia ser a única alternativa. Ainda assim, ela acabou suspendendo um pouco as saias e apertou o passo.
Antes que tivesse percorrido cinquenta passadas, sentiu Birgitte se aproximando e virou-se para vê-la correndo rua abaixo. Areina estava com ela, mas parou não muito longe e cruzou os braços fazendo cara feia. A mulher era intratável, e com certeza não mudara de opinião só porque Elayne passara a ser de fato uma Aes Sedai.
— Achei que você deveria saber — disse Birgitte, em voz baixa. — Acabei de saber que, quando formos partir para Ebou Dar, Vandene e Adeleas vão junto.
— Entendi — murmurou Elayne. Podia ser que a dupla, por algum motivo, fosse se juntar a Merilille, embora já houvesse três Aes Sedai na corte de Tylin, ou talvez tivessem uma missão específica em Ebou Dar. Elayne não acreditava em nenhuma das duas hipóteses. Areina já tinha feito seus julgamentos, e o Salão também: Elayne e Nynaeve teriam duas Aes Sedai de verdade como babás. — Ela já entendeu bem que ela não vai.
Birgitte espiou na direção para onde Elayne estava olhando, para Areina, e deu de ombros.
— Ela sabe, e não está nem um pouco contente com isso. Da minha parte, não vejo a hora de ir.
Elayne hesitou por um breve momento. Tinha prometido que guardaria segredos, o que não gostava de fazer, mas não que pararia de tentar convencer a outra mulher de que não havia necessidade.
— Birgitte, a Egwene…
— Não!
— Por que não? — Não fazia muito tempo que Elayne tinha Birgitte como Guardiã quando decidira que, assim que estabelecesse um elo com Rand, daria um jeito de obrigá-lo a prometer que ele a obedeceria, ao menos nas coisas importantes. Nos últimos dias, ela se contentaria com uma outra promessa: ele teria que responder às perguntas dela. Birgitte respondia quando queria, fazia-se de desentendida quando tinha vontade e às vezes só exibia uma expressão teimosa, como era o caso naquele momento. — Me diga por que não e, se a justificativa for boa, eu nunca mais pergunto de novo.
De início, Birgitte apenas encarou-a com raiva, mas, em seguida, pegou Elayne pelo braço e quase a arrastou até a entrada de uma viela. Nenhum transeunte deu mais que uma única olhadela para as duas, e Areina permaneceu onde estava, ainda que com uma expressão mais irritada do que antes, mas Birgitte, mesmo assim, olhou com cuidado para os lados e falou sussurrando:
— Sempre que a Roda girou e lançou para fora, eu nasci, vivi e morri sem saber que estava presa à Roda. Eu só ficava sabendo disso nos intervalos, em Tel’aran’rhiod. Algumas vezes, eu me tornei conhecida, e até famosa, mas era como qualquer outra pessoa, e não alguém que saiu de uma lenda. Desta vez, eu fui arrancada, não lançada. É a primeira vez em carne e osso que eu sei quem sou. Pela primeira vez, outras pessoas também podem saber. Thom e Juilin sabem. Não falam nada, mas eu tenho certeza. Eles não olham para mim como as outras pessoas me olham. Se eu dissesse que iria escalar uma montanha de vidro e matar um gigante só com as mãos, eles só perguntariam se eu iria precisar de alguma ajuda para encontrar o caminho, e não esperariam que eu precisasse.
— Eu não estou entendendo — disse Elayne devagar e Birgitte suspirou, baixando a cabeça.
— Não sei se estou à altura disso tudo. Em outras vidas, eu fiz o que tinha de fazer, o que parecia certo, o bastante para Maerion, Joana ou qualquer mulher. Agora, eu sou a Birgitte das histórias. Todos que sabem disso vão ter expectativas. Me sinto como uma dançarina com tanga de pena chegando num conclave tovano.
Elayne nem perguntou. Quando Birgitte mencionava coisas de vidas passadas, as explicações costumavam gerar mais confusão que a pura ignorância.
— Isso é bobagem — opinou ela com firmeza, pegando a outra mulher pelo braço. — Eu sei, e eu com certeza não espero que você saia matando gigantes. Egwene também não. E ela já sabe.
— Enquanto eu não admitir — resmungou Birgitte — é como se ela não soubesse. Nem tenha o trabalho de dizer que isso também é bobagem. Eu sei que é, e isso não muda nada.
— E o que você me diz do seguinte: ela é a Amyrlin e você é uma Guardiã. Ela merece a sua confiança, Birgitte. Ela precisa dela.
— Você já terminou o que tinha para fazer com ela? — quis saber Areina, a uma passada de distância. — Se você está indo embora e vai me abandonar, o mínimo que pode fazer é me ajudar com o arco, como disse que faria.
— Eu vou pensar — disse Birgitte, com tranquilidade, para Elayne. Virando-se para Areina, ela pegou a mulher pela trança junto à base da nuca. — Nós vamos conversar sobre o arco, sim — confirmou, puxando-a rua acima —, mas, primeiro, vamos falar sobre boas maneiras.
Balançando a cabeça, Elayne de repente se lembrou de Aviendha e saiu às pressas. A casa não ficava muito longe.
Ela levou um momento para reconhecer Aviendha. Estava acostumada a vê-la de cadin’sor, com seu cabelo avermelhado cortado bem curto, não de saia, blusa e xale, com o cabelo abaixo dos ombros e preso atrás da cabeça por um lenço dobrado. À primeira vista, não parecia estar em nenhuma dificuldade. Sentada meio sem jeito numa cadeira — os Aiel não estavam habituados a cadeiras —, dava a impressão de estar bebericando chá em absoluta paz com outras cinco irmãs que formavam um círculo na sala de estar. Casas que abrigavam Aes Sedai tinham essas coisas, apesar de Elayne e Nynaeve ainda estarem em seu quartinho apertado. Numa segunda análise, Aviendha lançava olhares assustados para as Aes Sedai por cima da borda da xícara de chá. Não houve tempo para uma terceira análise. Ao ver Elayne, Aviendha se pôs de pé instintivamente e deixou a xícara cair no chão limpo. Exceto na Pedra de Tear, Elayne tinha visto poucos Aiel, mas sabia que eles escondiam suas emoções, coisa que Aviendha fazia muito bem. Só que, dessa vez, sua expressão era sofrida.
— Me desculpem — disse Elayne para todas as presentes em um tom suave —, mas eu preciso tirá-la da conversa com vocês por alguns momentos. Talvez vocês possam falar com ela mais tarde.
A hesitação de várias irmãs beirou os protestos, embora não devesse ter havido nenhuma. Era bem claro que ela era, de longe, a mais forte do aposento, tirando Aviendha, e nenhuma daquelas Aes Sedai era Votante ou fazia parte do conselho de Sheriam. Elayne ficou muito feliz por Myrelle não estar lá, já que a mulher morava na casa. Ela optara pela Verde, fora aceita, e só então descobriu que Myrelle era a líder da Ajah Verde em Salidar. Myrelle, que não fazia nem quinze anos que era Aes Sedai. Com base em coisas que já haviam sido ditas, Elayne sabia que existiam Verdes em Salidar que já usavam o xale havia ao menos cinquenta anos, embora nenhuma delas exibisse um único fio grisalho. Se Myrelle estivesse presente, toda a força de Elayne não teria valido de nada caso a líder da sua Ajah quisesse manter Aviendha ali. Como não era o caso, apenas Shana, uma Branca dos olhos saltados que Elayne achava parecida com um peixe, não fez mais que abrir a boca um pouco mais e depois tornar a fechá-la, ainda que de forma bem contrariada, após Elayne ter erguido uma das sobrancelhas.
As cinco mais que comprimiram os lábios, mas Elayne ignorou a tensão.
— Obrigada — agradeceu, com um sorriso sem vontade.
Aviendha jogou uma trouxa escura nas costas, mas só deixou de hesitar quando Elayne de fato pediu para ela ir. Já na rua, Elayne disse:
— Peço desculpas por elas. Vou tomar cuidado para que não se repita. — Ela devia ser capaz de proteger Aviendha, tinha certeza. Ou Egwene seria, por certo. — Infelizmente não há muitos lugares para se conversar a sós. Meu quarto é bem quente a esta hora do dia. Poderíamos tentar encontrar uma sombra, ou tomar um chá, caso elas ainda não tenham entupido você.
— No seu quarto. — Ela não chegou a ser exatamente rude, mas estava claro que Aviendha não queria conversar, ainda não. De repente, ela disparou na direção de uma carroça com lenha que passava e apanhou um dos galhos que seriam partidos em gravetos, maior que seu braço e mais grosso que seu polegar. A Aiel voltou para perto de Elayne e começou a descascá-lo com a faca do seu cinto. A lâmina afiada raspava os galhinhos menores feito uma navalha. A expressão não era mais sofrida. Ela parecia determinada.
Elayne observou-a de soslaio enquanto as duas caminhavam. Não pensava que Aviendha pretendia lhe fazer qualquer mal, a despeito do que dissera aquele ogro chamado Mat Cauthon. E então… Ela sabia um pouco sobre ji’e’toh. Aviendha lhe explicara alguns pontos quando elas estiveram juntas na Pedra. Talvez Rand tivesse dito ou feito algo. Talvez aquele labirinto desconcertante de honras e obrigações exigisse que Aviendha… Não parecia possível. Mas talvez…
Quando chegaram ao quarto, Elayne decidiu tocar primeiro no assunto. Cara a cara com a outra mulher — e, muito deliberadamente, sem abraçar saidar —, ela falou:
— Mat diz que você veio até aqui para me matar.
Aviendha ficou sem reação.
— Aguacentos sempre invertem tudo — afirmou, surpresa. Ela deixou o graveto no pé da cama de Nynaeve e depositou a faca ao lado com todo o cuidado. — Minha quase-irmã Egwene me pediu para vigiar Rand al’Thor para você, o que eu prometi que faria. — A trouxa e o xale foram parar no chão junto da porta. — Tenho toh para com ela, mas maior ainda para com você. — Ela desamarrou a blusa, puxou-a por sobre a cabeça, depois baixou a anágua até a cintura. — Eu amo Rand al’Thor, e certa vez me permiti me deitar com ele. Tenho toh, e peço a você que me ajude a cumpri-la. — Virando-se de costas, ficou de joelhos no pequeno espaço que ainda restava. — Você pode usar o graveto ou a faca como quiser. A toh é minha, mas a escolha é sua. — Aviendha ergueu o queixo e esticou o pescoço. Seus olhos se fecharam. — O que você escolher, eu aceito.
Elayne pensou que seus joelhos fossem ceder. Min dissera que a terceira mulher seria perigosa, mas Aviendha? Espere! Ela disse que… Com Rand! Sua mão se contraiu em direção à faca em cima da cama, e ela tratou de cruzar os braços, prendendo as mãos junto do corpo.
— Levante-se. E vista a sua blusa. Eu não vou bater em você… — Talvez só algumas vezes? Ela retesou os braços para manter as mãos onde estavam. — E com certeza não vou encostar naquela faca. Por favor, tire isso daqui. — Elayne até a teria entregado para a outra mulher, mas não estava certa de que era seguro tocar em uma arma naquele momento. — Você não tem toh para comigo. — Acreditava que a frase fosse aquela. — Eu amo Rand, mas não me importo se você o amar também. — A mentira lhe queimou a língua. Aviendha havia mesmo se deitado com ele?
Girando de um lado para o outro ainda de joelhos, Aviendha franziu o cenho.
— Não tenho certeza se entendi. Você está propondo dividi-lo comigo? Elayne, nós somos amigas, eu acho, mas, se vamos ser esposas-irmãs, devemos ser como irmãs-primeiras. Vai levar tempo para saber se podemos ser.
Ao perceber que sua boca estava escancarada, Elayne fechou-a.
— Suponho que sim — ponderou com a voz fraca. Min vivia dizendo que elas iriam dividi-lo, mas com certeza não daquele jeito! Só pensar naquilo já era indecente! — É um pouco mais complicado do que você sabe. Tem uma outra mulher que também o ama.
Aviendha ficou de pé tão rápido que simplesmente pareceu estar num lugar e, logo depois, no outro.
— Qual é o nome dela? — Seus olhos verdes ardiam, e a tal faca estava em sua mão.
Elayne quase gargalhou. Uma hora, fala de dividir, na outra, fica tão violenta quanto… quanto… Tão violenta quanto eu, concluiu, não muito contente com o pensamento. Aquilo poderia teria sido pior, bem pior. Poderia ter sido Berelain. Já que teria de ser alguém, melhor que fosse Aviendha. E é melhor eu aceitar, em vez de ficar chutando as minhas saias como se fosse uma criancinha. Ela se sentou na cama e entrelaçou as mãos no colo.
— Trate de embainhar isso e se sente aqui, Aviendha. E, por favor, vista a sua blusa. Tenho uma porção de coisas para falar com você. Tem uma mulher, uma amiga minha, minha quase-irmã, chamada Min…
Aviendha chegou a se vestir, mas se passou um tempo considerável até que ela se sentasse, e outro ainda mais considerável até que Elayne conseguisse convencê-la de que elas não deveriam se juntar para matar Min. Ao menos com isso Aviendha concordou. Relutante, ela disse:
— Eu preciso conhecê-la. Não vou dividi-lo com uma mulher que eu não consiga amar como uma irmã-primeira. — E tudo isso com um olhar inquisitivo para Elayne, que suspirou.
Aviendha consideraria dividi-lo com ela. Min estava preparada para dividi-lo com ela. Seria ela a única normal das três? Com base no mapa sob o colchão, Min deveria estar em Caemlyn em pouco tempo, ou talvez já estivesse. Elayne não sabia o que queria que acontecesse lá, apenas que Min usasse suas visões para ajudá-lo. O que significava que Min tinha que permanecer perto dele. Enquanto Elayne ia para Ebou Dar.
— Existe alguma coisa simples na vida, Aviendha?
— Não quando envolve homens.
Elayne não sabia qual a surpresa maior: a gargalhada dela ou a de Aviendha.