Lews Therin estava lá — Rand tinha certeza —, mas em sua mente não havia nenhum sussurro que não fosse dele próprio. No restante do dia, chegou a tentar pensar em outras coisas, por mais inúteis que fossem. Berelain quase perdeu as estribeiras com o tanto de vezes que ele apareceu do nada para perguntar sobre algum assunto que ela era perfeitamente capaz de resolver sozinha. Rand não tinha certeza, mas achava que a mulher começara a evitá-lo. Até Rhuarc começou a se mostrar incomodado depois da décima vez que Rand o encurralou querendo falar sobre os Shaido — os Shaido estavam imóveis, e Rhuarc só via duas saídas: deixá-los em paz na Adaga do Fratricida ou expulsá-los à força. Herid Fel tinha saído sem destino, o que Idrien logo apontou que ele fazia com frequência, ocasiões em que nunca era encontrado em lugar nenhum — quando Fel se perdia em pensamentos, às vezes também se perdia pela cidade. Rand acabou gritando com a diretora. Fel não era culpa dela, muito menos sua responsabilidade, mas Rand a deixou pálida e trêmula. Seu humor oscilava feito uma rajada de trovões varrendo o horizonte. E também gritou com Meilan e Maringil até os dois começarem a tremer nas bases e se retirarem, pálidos, além de reduzir Colavaere a lágrimas e ter chegado a pôr Anaiyella para correr, as saias erguidas até os joelhos. Inclusive, quando Amys e Sorilea foram perguntar o que ele tinha conversado com as Aes Sedai, gritou com as duas também — pela cara que Sorilea fez enquanto as suas Sábias iam embora, suspeitou de que fosse a primeira vez que alguém erguia a voz para ela na vida. Estava incomodado por saber — sem sombra de dúvida — que Lews Therin estava ali, que era mais do que uma voz, era um homem escondido dentro de sua cabeça.
Quando a noite caiu, quase teve medo de adormecer, medo de Lews Therin assumir o controle enquanto ele dormia. Quando enfim conseguiu dormir, não parou de se remexer e resmungar em meio a sonhos turbulentos. O primeiro raio de luz que entrou pelas janelas já o acordou — estava de olhos ardidos, embolado em meio aos lençóis molhados de suor, com as pernas doloridas e um gosto de cavalo morto havia seis dias na boca. Todos os sonhos que recordava eram ele correndo de algo que não conseguia ver. Levantou-se da imensa cama de dossel e foi até o lavatório coberto de douraduras. O céu lá fora ainda estava ficando cinza, então os gai’shain que trariam a água fresca ainda não tinham aparecido. Bem, a água da noite anterior bastaria.
Estava quase terminando de se barbear quando parou, a lâmina apoiada na bochecha, encarando o próprio reflexo no espelho da parede. Fugindo. Nos sonhos, tivera certeza de que estava correndo para fugir dos Abandonados, ou do Tenebroso, ou de Tarmon Gai’don — talvez até de Lews Therin. Estava tão cheio de si… claro que o Dragão Renascido sonharia que era perseguido pelo Tenebroso. Apesar de sempre protestar que ainda era Rand al’Thor, parecia ser tão fácil para ele se esquecer quanto para qualquer outro. Na verdade, Rand al’Thor tinha fugido de Elayne, de seu medo de amar Elayne, assim como fugira do medo de amar Aviendha.
O espelho se espatifou, os estilhaços caíram no lavatório de porcelana. Os pedaços que sobraram na moldura refletiam uma imagem fragmentada de seu rosto.
Rand soltou saidin, enxaguou com cuidado os últimos resquícios de espuma do rosto e se demorou em guardar a lâmina de barbear. Nada mais de correr. Faria o que tinha de fazer, mas sem correr.
Quando saiu, duas Donzelas aguardavam no corredor. Harilin, uma ruiva magricela mais ou menos de sua idade, saiu correndo em busca das outras assim que o viu. Chiarid, uma loura de olhar alegre com idade para ser sua mãe, o acompanhou pelos corredores — os poucos serviçais que circulavam ficaram surpresos em vê-lo tão cedo. Chiarid sempre gostava de fazer piada à custa de Rand quando estavam sozinhos — algumas ele até entendia. A mulher o via como um irmão mais novo que precisava de uns freios para não se envaidecer demais. Naquela manhã, percebendo seu humor, ela ficou calada. Até olhou feio para a espada, mas apenas uma vez.
Nandera e as outras Donzelas os alcançaram antes que chegassem à metade do caminho até o aposento reservado às Viagens. Elas também logo perceberam seu silêncio taciturno, assim como os homens de Mayene e os Olhos Negros que vigiavam a porta de entalhes quadrados. Rand estava começando a achar que conseguiria sair de Cairhien sem que ninguém dissesse uma palavra quando uma jovem usando o vermelho e azul característico dos serviçais de Berelain se aproximou, afobada, e curvou-se em uma mesura profunda justo no instante em que ele abriu o portão.
— A Primeira lhe enviou isso — anunciou a jovem, ofegante, estendendo uma carta com um selo grande e verde. Ela parecia ter corrido até ali. — É do Povo do Mar, milorde Dragão.
Rand enfiou a carta no bolso do casaco e deu um passo à frente, adentrando o portão, ignorando a pergunta da jovem sobre que resposta mandar. Queria um pouco de silêncio. Passou o polegar pelo entalhe do Cetro do Dragão. Seria firme e forte, nada mais de ficar se lamentando.
O ambiente escuro do Grande Salão de Caemlyn trouxe Alanna de volta. Ainda era noite, mas ela estava acordada — Rand sabia disso, assim como sabia que ela estivera chorando, assim como soube que as lágrimas cessaram apenas instantes depois de ele fechar o portão atrás da última Donzela. Ainda restava um emaranhado de emoções caóticas e indecifráveis no fundo da mente, mas tinha certeza de que a Verde sabia que ele voltara. Alanna e seu elo sem dúvida tinham contribuído para sua fuga, mas ele agora aceitava o elo, por mais que não gostasse. Esse pensamento quase o fez soltar uma risadinha amarga. Melhor aceitar, já que não havia o que fazer. Alanna atara nele um fio — Luz, que não passasse disso —, então supostamente só teria problemas se a deixasse se aproximar o bastante para transformar o fio em uma correia. Desejou que Thom Merrilin estivesse ali. Thom devia saber tudo sobre Guardiões e elos; ele sabia sobre as coisas mais surpreendentes. Bom, encontraria o menestrel quando encontrasse Elayne. Era isso.
Saidin se abriu em um globo de luz; Fogo e Ar iluminando a saída do salão do trono. Muito acima, as antigas rainhas, cobertas pela escuridão, não o incomodavam nem um pouco. Eram apenas imagens em vidro colorido.
O mesmo não se podia dizer de Aviendha. Quando chegaram aos seus aposentos, Nandera dispensou todas as Donzelas menos Jalani, e as duas entraram com ele para vistoriar os quartos enquanto ele usava o Poder para acender as lâmpadas e largava o Cetro do Dragão em uma mesinha de mármore marchetada, embora com muito menos douraduras do que teria uma equivalente no Palácio do Sol. Toda a mobília ali seguia esse estilo, com menos ouro e mais entalhes, em geral de leões ou rosas. Um imenso carpete vermelho cobria o chão, bordado com rosas de fios de ouro.
Se não estivesse cheio de saidin, provavelmente não teria ouvido as passadas suaves das Donzelas. Mas Aviendha surgiu antes mesmo que as duas cruzassem a antessala, embora o barulho não passasse de um farfalhar. A jovem saiu pisando duro do dormitório ainda escuro, os cabelos desgrenhados e a faca de cintura na mão. Completamente nua. Quando o viu, a ruiva enrijeceu feito um poste e entrou de volta quase correndo. Notou um leve brilho passar pelas frestas da porta — uma lâmpada acesa. Nandera soltou uma risadinha baixa e trocou olhares divertidos com Jalani.
— Nunca vou entender os Aiel — resmungou Rand, largando a Fonte. — A questão não era as Donzelas considerarem a situação engraçada, fazia tempo que desistira de compreender o humor Aiel. O problema era Aviendha, que achava muito engraçado se despir na frente dele antes de dormir, mas parecia uma gata escaldada quando revelava sequer um pedacinho de tornozelo sem querer. E claro que ele é que levava a culpa por ter visto.
Nandera deu mais uma risadinha.
— Não são os Aiel que você não entende, e sim as mulheres. Homem nenhum jamais conseguiu compreender as mulheres.
— Por outro lado, os homens são muito simples — observou Jalani.
Rand a encarou, o rosto ainda redondo feito o de uma criança, e ela corou de leve. Nandera parecia prestes a irromper em uma gargalhada.
Morte, sussurrou Lews Therin.
Rand se esqueceu de tudo em volta. Morte? Como assim?
A morte vem.
Que tipo de morte?, inquiriu Rand. Do que você está falando?
Quem é você? Onde estou?
Rand sentiu como se um punho apertasse sua garganta. Tivera tanta certeza, mas… Bem, era a primeira vez que Lews Therin deixava tão evidente que estava falando com ele. Eu sou Rand al’Thor. Você está dentro da minha cabeça.
Dentro…? Não! Eu sou eu mesmo! Eu sou Lews Therin Telamon! Eu sou eeeeeuuuuu!
O grito foi sumindo ao longe.
Volte aqui!, gritou Rand. Que morte? Responda, que o queime!
Silêncio. Ele se remexeu, inquieto. Saber era uma coisa, mas ter aquele homem morto dentro dele falando de morte… aquilo o fazia se sentir impuro, era como um leve toque da mácula de saidin.
Sentiu um toque no braço e quase voltou a agarrar a Fonte antes de perceber que era Aviendha. Considerando o tempo que se passara, a ruiva devia ter enfiado as roupas às pressas, mas parecia ter levado uma hora arrumando cada fio de cabelo. Diziam que os Aiel não demonstravam qualquer emoção, mas a verdade era que eles apenas eram mais reservados. Para quem sabia o que procurar, seus rostos revelavam tanto quanto o de qualquer povo. Aviendha parecia dividida entre a preocupação e a raiva.
— Você está bem? — perguntou ela.
— Estava só pensando — respondeu Rand.
Não deixava de ser verdade. Responda, Lews Therin! Volte aqui e me responda! Como ele podia ter pensado que gostaria de um pouco de silêncio?
Infelizmente, Aviendha acreditou no que ele disse. Como não havia nada com que se preocupar… ela apoiou as mãos cerradas na cintura. Ah, eis uma coisa que ele compreendia muito bem sobre as mulheres, fossem Aiel ou de Dois Rios ou de qualquer lugar: mãos cerradas em punhos na cintura eram sinônimo de problemas. Nem precisava ter se dado ao trabalho de acender as lamparinas, pois os olhos da ruiva, em brasas, já teriam bastado para iluminar a sala.
— Você saiu sem mim de novo. Prometi às Sábias que ficaria perto de você até chegar a hora de eu ir embora, mas você faz pouco caso da minha promessa. E isso faz com que você tenha toh para comigo, Rand al’Thor. Nandera, de agora em diante quero saber aonde ele vai e quando. E Rand não tem permissão de sair sem mim, já que tenho o dever de ficar junto dele.
Nandera não hesitou um instante sequer antes de assentir.
— Será como deseja, Aviendha.
Rand se virou, olhando para as duas.
— Ora, podem parar com essa história! Ninguém será informado das minhas idas e vindas, a não ser que eu mande.
— Eu dei minha palavra, Rand al’Thor — retrucou Nandera, impassível, encarando-o. Seus olhos demonstravam que a mulher não tinha a menor intenção de voltar atrás.
— E eu dou a minha — completou Jalani, com a mesma firmeza.
Rand abriu a boca, então fechou. Maldito ji’e’toh. Claro que seria inútil lembrar a elas que era o Car’a’carn. Aviendha pareceu um pouco surpresa por ele ter protestado — ao que parecia, já considerava o assunto resolvido. Rand se remexeu, incomodado, mas não por causa da jovem ruiva. Ainda sentia aquela impureza, agora mais forte. Talvez Lews Therin tivesse voltado. Rand o chamou em pensamento, mas não houve resposta.
Ouviram uma batidinha à porta e a Senhora Harfor entrou quase um segundo depois, fazendo a profunda reverência costumeira. A aparência impecável da Criada-chefe não dava sinais do horário cedo demais, claro — independentemente da hora do dia, Reene Harfor sempre parecia ter acabado de se vestir.
— Algumas pessoas vieram para a cidade, milorde Dragão, e Lorde Bashere achou que o senhor deveria ser informado o quanto antes. Lady Aemlyn e Lorde Culhan chegaram ontem ao meio-dia e estão hospedados com Lorde Pelivar. Lady Arathelle chegou uma hora mais tarde, com uma grande comitiva. Lorde Barel, Lorde Macharan, Lady Sergase e Lady Negara não vieram juntos, mas chegaram todos agora à noite, cada um com apenas alguns serviçais. Ninguém veio prestar seus respeitos ao Palácio. — A última frase saiu no mesmo tom impassível que não deixava transparecer sua opinião a respeito disso.
— Isso é uma boa notícia — respondeu Rand. E era, não importava que os nobres tivessem prestado seus respeitos ou não. Aemlyn e o marido, Culhan, eram quase tão poderosos quanto Pelivar, e Arathelle era a mais influente de todos, exceto por Dyelin e Luan. Os outros eram de Casas menores, e apenas Barel era um Grão-Trono de sua casa, mas os nobres que tinham se oposto a “Gaebril” estavam começando a se unir. Bem, claro que só seria uma boa notícia se encontrasse Elayne antes que o grupo decidisse tomar Caemlyn.
A Senhora Harfor o encarou por um instante, então lhe entregou uma carta com um selo azul.
— Isto foi entregue ontem à noite, bem tarde, milorde Dragão. Veio com um cavalariço. Um rapazote todo sujo. A Mestra das Ondas do Povo do Mar veio para a audiência e não ficou muito feliz ao descobrir que o Dragão não estaria aqui para recebê-la. — Desta vez, o tom de reprovação estava evidente, embora não desse para saber se era em relação à Mestra das Ondas, a Rand ter perdido a audiência ou à falta de higiene do mensageiro da carta.
Ele suspirou. Tinha se esquecido do Povo do Mar ali em Caemlyn. Bem, serviu para lembrá-lo da mensagem que Berelain repassara em Cairhien. Rand pegou a carta e notou que tanto o selo verde quanto o azul tinham o mesmo padrão, embora não fosse possível distinguir o que era. A imagem gravada consistia em duas coisas que pareciam vasos achatados com uma linha ornamentada correndo de um a outro. As duas cartas estavam endereçadas ao “Coramoor”, fosse quem ou o que isso fosse. Supunha que fosse um título para ele próprio. Talvez fosse como o Povo do Mar chamava o Dragão Renascido.
Rompeu o selo azul primeiro. Não havia saudação, a mensagem era completamente distinta de qualquer outra coisa que Rand já vira endereçada ao Dragão Renascido.
Querendo a Luz, talvez o senhor algum dia retorne a Caemlyn. Como viajei de muito longe para vê-lo, talvez encontre tempo para recebê-lo quando retornar.
Ao que parecia, a Senhora Harfor tinha razão: a Mestra das Ondas não estava nada satisfeita. O selo verde não guardava mensagem muito melhor.
Se aprouver à Luz, eu o receberei no convés do Borbotão assim que lhe for conveniente.
— Alguma notícia ruim? — perguntou Aviendha.
— Eu não sei. Acho que não.
Ainda de cenho franzido para as cartas, Rand mal notou quando a Senhora Harfor recebeu uma mulher de uniforme vermelho e branco, com quem trocou algumas palavras sussurradas. Nenhuma daquelas mulheres do Povo do Mar parecia alguém que ele desejasse encontrar. Já lera todas as traduções das Profecias do Dragão que encontrara, e, embora as mais claras quase sempre fossem muito nebulosas, não se lembrava de nada que mencionasse os Atha’an Miere. Talvez fossem um povo intocado por ele ou Tarmon Gai’don, já que viviam em navios no mar e em ilhas longínquas. Devia um pedido de desculpas àquela Zaida, mas talvez pudesse enrolá-la mandando Bashere em seu lugar — ele tinha títulos suficientes para saciar a vaidade de qualquer um.
A serviçal recém-chegada se atirou de joelhos diante dele, a cabeça coberta de branco abaixada, as mãos erguidas bem alto para oferecer uma terceira carta, essa em um pergaminho grosso. Rand hesitou, encarando a postura subserviente da mulher. Nem em Tear vira uma criada tão servil, quem dirá em Andor. A Senhora Harfor franzia o cenho e balançava a cabeça em desaprovação. A mulher de joelhos falou, ainda de cabeça baixa.
— Isto chegou para milorde Dragão.
— Sulin? — perguntou, surpreso. — O que você está fazendo? O que está fazendo nesse… vestido?
Sulin ergueu a cabeça. Estava com uma aparência terrível, feito um lobo que se esforçava ao máximo para fingir que era uma corça.
— É o que usam as mulheres que servem e obedecem em troca de moedas. — Ela balançou levemente as mãos erguidas, que ainda sustentavam a carta. — Fui ordenada a lhe informar que isso acabou de chegar para milorde Dragão, por… um cavaleiro que foi embora assim que me entregou.
A Criada-chefe estalou a língua, irritada.
— Quero uma resposta direta — retrucou ele, agarrando o pergaminho selado das mãos da mulher. Ela se levantou de um salto assim que o papel foi arrancado de suas mãos. — Volte aqui, Sulin. Sulin, eu quero uma resposta!
Mas Sulin correu até as portas, rápida como se ainda usasse o cadin’sor, e saiu sem responder.
Por algum motivo, a Senhora Harfor olhou feio para Nandera.
— Eu avisei que isso não iria funcionar. E avisei às duas que, enquanto ela usar o uniforme do Palácio, espero que ela honre o Palácio, não importa se é uma Aiel ou a Rainha de Saldaea. — Com uma mesura, ela murmurou um “milorde Dragão” apressado para Rand e saiu pisando duro, resmungando sozinha sobre os Aiel loucos.
Rand estava muito de acordo. Ele encarou primeiro Nandera, depois Aviendha e por fim Jalani. Nenhuma das três parecia nem um pouco surpresa. Nenhuma parecia ter presenciado nada fora do comum.
— Querem me dizer o que está acontecendo, pela Luz? Aquela era Sulin!
— Primeiro — começou Nandera —, Sulin e eu fomos até as cozinhas. Ela achou que esfregar panelas ou coisa assim seria adequado. Mas um sujeito lá disse que já tinha todos os ajudantes de que precisava. Ele parecia pensar que Sulin arrumaria briga com os outros. Não era um sujeito muito alto — observou, indicando um ponto logo abaixo do queixo de Rand —, mas era grandalhão, e acho que teria nos convidado para dançar as lanças se não tivéssemos ido embora de uma vez. Então fomos até essa mulher, Reene Harfor, já que ela parece ser a senhora deste teto. — Nandera não conseguiu conter uma leve careta de desprezo. Para um Aiel, não havia necessidade do posto de Criada-chefe: ou a mulher era senhora do teto ou não era. — Bem, a mulher não entendeu, mas pelo menos concordou. Quase achei que Sulin fosse mudar de ideia quando percebeu que Reene Harfor iria querer que ela usasse um vestido, mas claro que isso não aconteceu. Sulin é muito mais corajosa que eu. Preferia ser feita gai’shain por um Seia Doon.
— Eu preferia passar um ano inteiro levando surras diárias do irmão-primeiro do meu pior inimigo na frente da minha mãe — intrometeu-se Jalani, enfática.
Nandera estreitou os olhos em desaprovação e chegou a flexionar os dedos, mas, em vez de usar a linguagem de sinais, disse, em alto e bom som:
— Você exagera como uma Shaido, garota.
Se Jalani fosse um pouco mais velha, aqueles três insultos muito calculados poderiam ter causado problema, mas ela apenas fechou os olhos com força para não ter que olhar para as pessoas que tinham presenciado a sua humilhação.
Rand passou a mão nos cabelos.
— Reene não entendeu? Eu também não, Nandera. Por que é que ela está fazendo isso? Sulin abriu mão da lança? Se ela tiver se casado com um andoriano… — Coisas mais estranhas já tinham acontecido. — Olha, se for o caso, eu dou a ela ouro suficiente para comprar uma fazenda ou seja lá o que quiserem. Sulin não precisa virar serviçal.
Jalani arregalou os olhos, e as três mulheres o encararam como se ele fosse o louco.
— Sulin está pagando a sua toh, Rand al’Thor — respondeu Aviendha com firmeza. Ela estava muito ereta, e seus olhos o encaravam diretamente, em uma ótima imitação de Amys. Só que a cada dia a postura era menos imitação e mais ela própria. — Isso não lhe diz respeito.
Jalani meneou a cabeça, concordando. Nandera só ficou ali, parada, absorta, examinando a lança.
— Sulin é problema meu, sim — retrucou ele. — Se algo acontecer a ela…
Ele então se lembrou da conversa que entreouvira antes de ir a Shadar Logoth. Nandera acusara Sulin de falar com algumas gai’shain como se fossem Far Dareis Mai, e Sulin respondera que discutiriam aquilo depois. Não vira Sulin desde que voltaram de Shadar Logoth, mas tinha presumido que a mulher só estava irritada com ele e que deixara as outras na função de vigiá-lo. Ah, devia ter percebido. Ficar perto de um Aiel por muito tempo ensinava bastante de ji’e’toh, e as Donzelas eram as mais rígidas no assunto, exceto talvez pelos Cães de Pedra e os Olhos Negros. Além disso, ainda tinha as lições de Aviendha, em suas tentativas de transformá-lo em um Aiel.
A situação era simples, ou tão simples quanto tudo o mais no ji’e’toh. Se não estivesse tão preocupado com outras coisas, teria entendido desde o princípio. Não era crime lembrar diariamente um gai’shain de sua vida antes do branco, mesmo que se tratasse de uma senhora do teto — isso provocaria uma profunda vergonha, mas era permitido e por vezes até encorajado. No entanto, quando se tratava dos integrantes de nove das treze sociedades, trazer essa lembrança à tona era uma desonra profunda, exceto sob um punhado de circunstâncias das quais não se recordava. As Far Dareis Mai sem dúvida estavam entre essas sociedades. Era uma das poucas formas de incorrer em toh para com um gai’shain, mas era considerada a obrigação mais dura a se pagar. Ao que parecia, Sulin optara por restaurar sua toh aceitando uma vergonha ainda maior — ao menos aos olhos dos Aiel — do que a que causara. A toh era dela, então ela escolhia como pagá-la e quanto tempo ficaria fazendo algo que desprezava. Afinal, quem melhor do que ela própria para definir o valor de sua honra ou a profundidade de sua obrigação? Ainda assim, Sulin só fizera o que fizera porque ele não lhe dera tempo suficiente.
— A culpa é minha — declarou Rand.
Foi a coisa errada a dizer. Jalani o encarou, surpresa. Aviendha corou, envergonhada — ela com frequência enfatizava que não havia desculpas em relação ao ji’e’toh; se salvar o próprio filho ocasionasse uma obrigação para com um inimigo de sangue, era preciso pagar o preço sem titubear.
O olhar que Nandera lançou a Aviendha ia muito além do desprezo.
— Se você parasse de suspirar pelos cantos pelas sobrancelhas dele, essas suas lições seriam melhores.
Aviendha corou, indignada. Nandera se virou para Jalani e fez algum comentário na linguagem de sinais, e a Donzela mais jovem gargalhou, o que deixou o rosto de Aviendha ainda mais vermelho, dessa vez de pura vergonha. Parte de Rand esperava que a mulher fosse chamar as outras duas para dançar as lanças — bem, não exatamente isso, já que Aviendha lhe ensinara que nem as Sábias e nem suas aprendizes faziam esse tipo de coisa. Mas não se surpreenderia se ela desse um tapa nas orelhas de Nandera.
Rand se pronunciou, querendo evitar qualquer das possibilidades.
— Como fui o responsável por Sulin ter feito o que fez, não tenho toh para com ela?
Bem, com aquilo concluiu que de fato poderia fazer um papel de idiota ainda maior do que com o comentário anterior. O rosto de Aviendha ficou ainda mais vermelho, sabia a Luz como, e Jalani encarou o tapete a seus pés, de repente muito interessada nos desenhos de rosas. Até Nandera parecia um tanto constrangida com sua ignorância. Ele sabia que era possível alguém ser informado de que tinha toh ou mesmo ser lembrado do caso, embora isso fosse uma espécie de insulto, mas ter que perguntar significava que a pessoa não sabia. Bem, ele sabia. Poderia começar ordenando que Sulin largasse aquele trabalho ridículo de serviçal, deixar que ela pusesse outra vez o cadin’sor, e… e impedi-la de cumprir sua toh. Qualquer coisa que fizesse para suavizar o fardo de Sulin seria uma interferência na honra dela. A toh era de Sulin, então a escolha também era dela. Havia algum detalhe, mas não conseguia entender o que seria. Talvez pudesse perguntar a Aviendha. Bem, faria isso mais tarde, quando ela não fosse morrer de constrangimento. Os rostos das três deixavam claro que ele já a envergonhava mais do que o suficiente com aquela conversa. Luz, que confusão!
Enquanto pensava em uma possível saída, percebeu que ainda segurava a carta que Sulin trouxera. Ele a enfiou no bolso e desafivelou o cinturão, que largou sobre o Cetro do Dragão, então pegou o pergaminho de volta. Quem lhe enviaria uma mensagem por um cavaleiro que nem sequer fizera uma pausa para tomar café da manhã? Não havia nada escrito do lado de fora, nenhum nome. Apenas o mensageiro, agora desaparecido, poderia ter dito para quem era endereçada a mensagem. O selo era outro brasão que ele não reconhecia, alguma flor prensada sobre uma cera roxa. O pergaminho era pesado, do tipo mais caro que havia. O conteúdo, escrito em uma caligrafia fina e floreada, trouxe um sorriso pensativo a seu rosto.
Primo,
Vivemos tempos delicados, mas senti que deveria escrever para assegurá-lo de minha boa vontade e expressar minha esperança de, em troca, também ter sua simpatia. Não tema, eu o reconheço e legitimo. No entanto, há alguns que não veriam com bons olhos alguém que se aproximasse de você diretamente, sem primeiro passar por eles. A única coisa que quero de você é que guarde minhas confidências nas chamas de seu coração.
— Que sorriso é esse? — perguntou Aviendha, curiosa, espiando a carta. Ainda havia um toque de raiva nas marcas ao redor de sua boca, um resquício da irritação pela vergonha que ele a fizera passar.
— É bom receber notícias de alguém tão transparente — respondeu.
O Jogo das Casas era simples se comparado ao ji’e’toh. O nome já dizia muito sobre o remetente, mas, se o pergaminho caísse em mãos erradas, pareceria apenas um bilhete para um amigo ou talvez uma resposta calorosa a algum favor que lhe fora pedido. Alliandre Maritha Kigarin, Abençoada pela Luz, Rainha de Ghealdan, jamais trataria alguém que nunca vira com tanta intimidade, ainda mais o Dragão Renascido. Era óbvia sua preocupação com os Mantos-brancos em Amadícia, assim como com o Profeta Masema. Teria que fazer alguma coisa a respeito de Masema. Alliandre fora muito cautelosa, sem arriscar pôr mais que o necessário no papel. E o lembrara de queimar a carta depois de ler — nas chamas de seu coração. Ainda assim, era a primeira vez que um governante o reconhecia sem que ele segurasse a espada no pescoço de sua nação. Pois bem, se ao menos ele conseguisse encontrar Elayne e lhe devolver Andor antes que tivesse outra batalha para enfrentar naquelas terras…
A porta se abriu bem devagar, e Rand ergueu os olhos para a sala. Não reparou em nada relevante, então se voltou outra vez para a carta, ponderando se assimilara toda a mensagem. Enquanto lia, teve que esfregar o nariz, incomodado. Lews Therin e aquela história de morte. Não conseguia se livrar daquela sensação de imundície.
— Jalani e eu vamos assumir nossas posições lá fora — anunciou Nandera.
Rand assentiu, absorto, contemplando a carta. Tinha certeza de que Thom encontraria seis coisas que ele deixara escapar, e só em uma primeira leitura.
Aviendha tocou seu braço, mas afastou a mão com um sobressalto.
— Rand al’Thor, precisamos conversar.
De súbito, tudo fez sentido. Ele vira a porta se abrindo. Não estava com aquele incômodo no nariz porque sentia cheiro de imundície, não porque se sentia maculado. Na verdade, não era bem um cheiro. Deixando cair a carta, empurrou Aviendha com tanta força que ela perdeu o equilíbrio, soltando um grito assustado — ao menos estava longe dele, longe do perigo. O tempo pareceu desacelerar. Rand agarrou saidin enquanto dava meia-volta.
Nandera e Jalani também se viraram para ver o que fizera Aviendha gritar. Rand teve que olhar com muita atenção para conseguir ver o homem alto de casaco cinza que nenhuma Donzela vira passar. O homem tinha os olhos escuros e sem vida fixos em Rand. Mesmo sabendo que o intruso estava diante de si, Rand se sentiu tentado a desviar os olhos do Homem Cinza — era isso que ele era, um dos assassinos da Sombra. A carta ainda pousava no chão quando o Homem Cinza percebeu que Rand o avistara. O grito de Aviendha ainda ecoava, ela havia acabado de cair com força no chão. Uma faca surgiu na mão do Homem Cinza, que manteve a lâmina abaixada e avançou. Quase com descaso, Rand o envolveu em espirais de Ar — uma barra de fogo incandescente e grossa feito um braço passou zunindo por cima de seu ombro e abriu um buraco bem no meio do peito do Homem Cinza, um buraco do tamanho de um punho. O assassino morreu sem nem reagir. A cabeça desabou para o lado — seus olhos, tão mortos quanto antes, ainda encaravam Rand.
Depois de morto, o poder misterioso que tornava o Homem Cinza tão difícil de notar já não fazia efeito. Depois de morto, o sujeito ficou tão visível quanto qualquer outra pessoa. Aviendha, ainda no chão, mas já começando a se levantar, soltou uma exclamação de surpresa, e Rand sentiu os arrepios que indicavam que ela abraçara saidar. Nandera subiu o véu, deixando escapar um grunhido surpreso, e Jalani começou a erguer o dela.
Rand deixou o corpo desabar, mas continuou agarrado a saidin quando se virou para Taim, parado na porta.
— Por que o matou? — perguntou para o recém-chegado. O Vazio era responsável apenas por parte da frieza em sua voz. — Eu o tinha capturado. Ele poderia ter dito alguma coisa, talvez até revelasse quem o enviou. Aliás, o que você está fazendo aqui no meu quarto, entrando desse jeito?
Taim avançou até ele em um passo muito calmo, bem à vontade. Usava um casaco preto com dragões entrelaçados ao redor das mangas vermelhas e azuis. Aviendha se levantou depressa, empunhando a faca de cintura. Apesar de estar abraçada a saidar, o brilho em seus olhos deixava claro que ela estava tão inclinada a cravar a lâmina em Taim quanto a embainhá-la de volta. Nandera e Jalani continuavam veladas e estavam a postos, as lanças em riste. Taim as ignorou. Rand sentiu quando o outro homem largou o Poder. Nem ao menos parecia preocupado com o fato de Rand ainda estar preenchido por saidin. Quando encarou o Homem Cinza morto, aquele quase sorriso tão peculiar contorceu seus lábios.
— Coisas hediondas, esses Sem-alma. — Qualquer outra pessoa teria se arrepiado com a visão, mas não Taim. — Abri um portão para a sua varanda porque achei que você iria querer saber imediatamente.
— Alguém andou aprendendo depressa demais? — interrompeu Rand, e Taim abriu outra vez aquele meio sorriso.
— Não, não é um dos Abandonados disfarçado. A não ser que tenha conseguido se disfarçar de um garoto de pouco menos de vinte anos. O rapaz se chama Jahar Narishma, ele tem a centelha, mas ainda não a manifesta. A habilidade tende a se manifestar mais tarde nos homens do que nas mulheres. Você deveria visitar a escola. Vai ficar surpreso com as mudanças.
Rand não duvidava. Jahar Narishma não era nem de longe um nome andoriano. Pelo que sabia, as Viagens não impunham limites, e parecia que Taim se arriscara a ir bem longe no recrutamento. Rand não disse nada, só encarou o corpo estirado no tapete.
Taim fechou a cara, mas não perdeu a compostura, apenas pareceu irritado.
— Pode acreditar, eu também queria que esse aí ainda estivesse vivo. Vi o Homem Cinza e agi sem pensar, já que a última coisa que quero é você morto. Você prendeu o assassino no instante em que canalizei, mas foi tarde demais para frear o golpe.
Tenho que matá-lo, murmurou Lews Therin, e o Poder explodiu dentro de Rand. Paralisado, lutou para afastar saidin — foi uma luta difícil. Lews Therin tentava se agarrar à Fonte, tentava canalizar. Por fim, o Poder Único se esvaiu aos poucos, feito água escoando de um balde furado.
Por quê?, inquiriu Rand. Por que quer ele morto? Não houve resposta, apenas, ao longe, uma risada louca e um choro angustiado.
Aviendha o encarava, o rosto cheio de preocupação. Ela largara a faca, mas Rand ainda sentia aquele formigamento que lhe indicava que ela continuava em contato com saidar. As duas Donzelas tinham baixado os véus depois de se certificarem de que a chegada de Taim não era um ataque. Mesmo atentas a Taim e ao ambiente em volta, elas trocaram um olhar constrangido — só restava saber o motivo do constrangimento.
Rand sentou-se em uma cadeira ao lado da mesa onde estava a espada, apoiada no Cetro do Dragão. A luta durara apenas alguns instantes, mas sentia os joelhos fracos. Lews Therin quase assumira o controle, quase agarrara saidin. Antes, na escola, ele foi capaz de fingir para si mesmo que não tinha notado, mas não conseguiria desta vez.
Se Taim percebeu alguma coisa, não deixou transparecer. O homem se inclinou para apanhar a carta e deu uma olhadela antes de entregá-la a Rand, curvando-se na mais ínfima das mesuras.
Rand enfiou o pergaminho no bolso. Nada abalava Taim, nada perturbava seu equilíbrio. Por que Lews Therin o queria morto?
— Considerando como você estava querendo ir atrás das Aes Sedai, estou surpreso por ainda não ter ouvido uma sugestão de atacar Sammael. Eu, você e mais alguns alunos mais fortes atacando-o lá em Illian, chegando de surpresa por um portão. Você sabe que o Homem Cinza só pode ter vindo de Sammael.
— Talvez — respondeu Taim, sem rodeios, examinando o corpo no chão. — Eu daria tudo para ter certeza. — Ele soava completamente sincero. — Quanto a Illian, duvido que seja simples como acabar com algumas Aes Sedai. Fico pensando no que eu faria, se estivesse no lugar de Sammael. Já teria envolvido Illian em um selo de proteção que me apontasse qualquer homem que sequer pensasse em canalizar e reduziria até o chão ao redor dele a cinzas sem nem dar tempo de o coitado piscar.
Rand também já pensara nisso. Ninguém defendia um lugar melhor que Sammael. Talvez a questão fosse apenas a loucura de Lews Therin. Talvez também a inveja. Rand tentou dizer a si mesmo que não estava evitando a escola porque era ele o invejoso, mas sempre sentia uma pontada estranha quando estava perto de Taim.
— Você já contou a novidade. Sugiro que vá cuidar do treinamento desse tal Jahar Narishma. Treine-o bem. Pode ser que a habilidade dele seja necessária muito em breve.
Os olhos escuros de Taim cintilaram por um breve instante, então ele baixou a cabeça em uma leve mesura. Sem mais uma palavra, o homem agarrou saidin e abriu um portão ali mesmo. Rand se obrigou a ficar sentado, sem canalizar, até Taim ir embora; o portão se afinando até virar uma linha fulgurante. Não podia se arriscar em mais uma luta contra Lews Therin, não considerando a chance de perder e começar a lutar contra Taim. Por que Lews Therin queria aquele homem morto? Luz, Lews parecia querer todos mortos, incluindo a si mesmo.
Tinha sido uma manhã agitada, sobretudo considerando que o céu ainda estava começando a clarear. Bem, houvera mais notícias boas do que ruins. Ele encarou o Homem Cinza estendido no tapete. A ferida decerto fora cauterizada no instante em que se abrira, mas a Senhora Harfor faria questão de avisá-lo se houvesse qualquer manchinha no tecido — ah, com certeza ele ficaria sabendo, mesmo que ela não pronunciasse uma palavra a respeito. Quanto à Mestra das Ondas do Povo do Mar… Bem, a mulher podia ir se afogar na própria petulância, no que lhe dizia respeito. Já tinha muito com que lidar sem mais uma mulher melindrosa.
Nandera e Jalani ainda remexiam os pés perto da porta. Deveriam ter ido ocupar seus postos do lado de fora da porta assim que Taim partiu.
— Se as duas ainda estão chateadas por conta do Homem Cinza, podem esquecer o assunto. Só uma idiota esperaria notar um Sem-alma sem ser por puro acaso, e nenhuma de vocês é idiota.
— Não é isso — retrucou Nandera, rígida.
Jalani cerrara o maxilar com tanta força que era evidente que estava se esforçando para segurar a língua.
Então Rand compreendeu. As duas não achavam que deveriam ter percebido o Homem Cinza, mas mesmo assim sentiam a vergonha de não terem conseguido notar o ataque. Além da vergonha, havia o medo da humilhação ainda por vir caso a notícia de seu “fracasso” se espalhasse.
— Não quero que ninguém saiba que Taim esteve aqui, nem o que ele disse. O povo já fica ansioso demais por saber que a escola fica aqui perto da cidade, as pessoas não precisam do medo de achar que Taim ou um dos alunos pode aparecer de repente. Acho que o melhor é não falarmos sobre nada do que aconteceu hoje de manhã. Não temos como esconder um corpo, mas quero que as duas jurem que vão apenas dizer que um homem tentou me matar e morreu por conta disso. É tudo o que eu pretendo revelar, e não quero que me pintem como um mentiroso.
A gratidão em seus rostos foi surpreendente.
— Eu tenho toh — murmuraram, quase ao mesmo tempo.
Rand pigarreou de repente. Não fora essa sua intenção, mas pelo menos as tranquilizara. Foi então que teve uma ideia para lidar com Sulin. A mulher não iria gostar, mas ainda estaria cumprindo sua toh — talvez ainda mais por não gostar. E aliviaria sua consciência, pelo menos um pouco, além de pagar parte de sua toh para com ela.
— Agora voltem para seus postos, ou então vou começar a achar que vocês é que querem ficar suspirando pelas minhas sobrancelhas. — Nandera não tinha dito isso? Dado a entender que Aviendha estava fascinada por suas sobrancelhas? — Andem. E mandem alguém para recolher esse sujeito daqui. — As duas saíram sorridentes, conversando na linguagem de sinais. Ele ficou ali, parado, então segurou Aviendha pelo braço. — Você disse que precisamos conversar. Vamos ficar no quarto até este aposento estar limpo.
Se houvesse alguma mancha, talvez Rand pudesse canalizar para limpá-la.
Aviendha se desvencilhou com um puxão.
— Não! Lá, não! — Ela respirou fundo e moderou o tom, mas ainda parecia desconfiada e um tanto irritada. — Por que não podemos conversar aqui?
Não havia motivo além do homem morto no chão, o que para ela parecia não fazer diferença. Aviendha o empurrou de volta para a cadeira, quase com violência, então o encarou e respirou fundo antes de falar.
— O ji’e’toh é a base da sociedade Aiel, é o que somos. Hoje de manhã você me envergonhou até os ossos.
Com os braços cruzados e encarando-o de frente, a ruiva lhe passou um sermão sobre sua ignorância e a importância de encobri-la até que ela conseguisse retificar a questão, depois explicou que a toh precisava ser satisfeita a qualquer custo. Ah, nessa parte ela gastou tempo.
Rand sabia que não era esse o assunto que a ruiva tivera em mente quando o chamou para conversar, mas estava gostando de analisar aqueles olhos — gostando mais do que deveria. Apreciando. Pouco a pouco, foi contendo o prazer de olhar nos olhos de Aviendha, então esmagou a satisfação até restar apenas um desejo abafado.
Achou que disfarçara os sentimentos, mas decerto algo mudara em sua expressão. A voz de Aviendha foi morrendo, e ela ficou ali, encarando-o, a respiração alta e entrecortada. Então desviou os olhos com um esforço visível.
— Pelo menos agora você entendeu — murmurou ela. — Tenho que… preciso… contanto que você entenda.
Ela ergueu as saias e saiu em disparada. Contornou o corpo como se não passasse de um arbusto em seu caminho.
Rand foi deixado para trás, naquela sala que por algum motivo lhe pareceu mais escura, sozinho com o corpo de um homem morto. Aquilo caía bem até demais. Quando os gai’shain chegaram para recolher o corpo, encontraram Rand rindo baixinho.
Padan Fain estava sentado com os pés apoiados em uma banqueta almofadada, observando a beleza da luz do sol nascente refletindo na lâmina curva da adaga que ele girava em suas mãos. Não era suficiente ter a arma presa ao cinto; de tempos em tempos ele simplesmente precisava tocá-la. O enorme rubi no punhal reluzia com uma malevolência intensa. A adaga era parte dele — ou ele era parte da adaga. A arma era parte de Aridhol, que os homens chamavam de Shadar Logoth. Por outro lado, ele também era parte de Aridhol — ou Aridhol era parte dele. Estava louco e sabia bem disso, mas não se importava, já que estava louco. A luz do sol refletia no aço, aço mais letal do que qualquer lâmina de Thakan’dar.
Um farfalhar chamou sua atenção e ele olhou para o Myrddraal do outro lado do cômodo, sentado, aguardando que ele terminasse. A criatura não tentou encará-lo — já fazia um bom tempo que Fain o fizera parar de tentar.
Ele tentou retornar à contemplação da lâmina, tentou voltar a apreciar a beleza perfeita da morte perfeita, a beleza do que Aridhol já fora e do que voltaria a ser, mas o Myrddraal quebrara sua concentração. Estragara tudo. Quase se levantou e matou a criatura. Os Meio-homens levavam muito tempo para morrer. Quanto tempo aquele levaria, se Fain usasse a adaga? Parecendo sentir seus pensamentos, a criatura se remexeu outra vez. Não, melhor não, ela ainda podia ser útil.
De todo modo, era difícil permanecer concentrado por muito tempo em uma coisa só. Exceto em Rand al’Thor, claro. Sentia o garoto, podia apontar para a direção em que ele estava, até estimar a distância. Al’Thor o puxava, puxava até doer. Algo mudara nos últimos tempos, a mudança chegara de repente, quase como se alguém tivesse se apossado de parte de al’Thor e, no processo, tivesse tomado uma parte que o próprio Fain possuía. Não era problema. O garoto era dele.
Desejou poder sentir a dor de al’Thor — não conseguia acreditar que não tivesse ao menos lhe causado alguma dor. Por enquanto tinham sido apenas agulhadas, no máximo, mas uma quantidade suficiente de agulhadas acabaria por esgotá-lo. Os Mantos-brancos estavam firmes na oposição ao Dragão Renascido. Fain contorceu os lábios em um riso desdenhoso. Pouco provável que Niall algum dia apoiasse al’Thor mais do que Elaida o teria apoiado, mas era melhor não tomar nada como certo, quando se tratava daquele garoto maldito. Bem, já conseguira resolver a situação daqueles dois com o que trazia de Aridhol — talvez até conseguisse confiar nas próprias mães de novo, mas nunca confiariam em al’Thor.
A porta se abriu de repente, e o jovem Perwyn Belman irrompeu no recinto, seguido pela mãe. Nan Belman era uma mulher vistosa, embora agora fosse raro para Fain notar se uma mulher era ou não vistosa. Nan era uma Amiga das Trevas e achava que seus juramentos eram apenas minimamente perversos até Padan Fain bater à sua porta. Nan achava que ele também era Amigo das Trevas, alguém importante nos conselhos. Claro que Fain estava longe disso — estaria morto assim que um dos Escolhidos pusesse as mãos nele. O pensamento suscitou uma risadinha.
Tanto Perwyn quanto a mãe se intimidaram com a visão do Myrddraal, claro, mas o garoto se recompôs primeiro, alcançando Fain enquanto a mulher ainda tentava recuperar o fôlego.
— Mestre Mordeth, Mestre Mordeth — chamou o garoto de casaco vermelho e branco, em uma voz esganiçada, trocando o peso de um pé para o outro nervosamente —, trago a notícia que o senhor queria.
Mordeth. Então tinha usado esse nome? Às vezes, Fain não conseguia lembrar o nome que usara em determinada situação, não conseguia saber qual nome era o dele. Abriu um sorriso afetuoso, embainhando a adaga por baixo do casaco.
— E que notícia seria essa, meu jovem?
— Alguém tentou matar o Dragão Renascido hoje de manhã. Um homem. O sujeito morreu, mas passou pelos Aiel e conseguiu entrar nos aposentos do Lorde Dragão.
Fain sentiu o sorriso virar um rosnado. Alguém tentara matar al’Thor? Al’Thor era dele! O garoto morreria pelas suas mãos, e de ninguém mais! Mas… O assassino passara pelos Aiel e entrara nos aposentos de al’Thor?
— Um Homem Cinza! — Não reconheceu o som rouco como sua própria voz. Homens Cinza eram coisa dos Escolhidos. Será que nunca se livraria da interferência deles?
Toda aquela ira precisava ser extravasada ou ele iria explodir. Em um gesto quase displicente, roçou a mão no rosto do garoto, que arregalou os olhos e começou a tremer — tremia tão intensamente que rangia os dentes.
Fain não entendia muito bem aqueles truques que conseguia fazer. Talvez fosse um toque do Tenebroso, talvez de Aridhol. Começara lá, depois que deixara de ser apenas Padan Fain. Só sabia que agora conseguia fazer certas coisas, bastava tocar o alvo.
Nan desabou de joelhos ao lado da cadeira dele, agarrando seu casaco.
— Piedade, Mestre Mordeth — implorou, ofegante. — Por favor, tenha piedade. Ele é só uma criança. Uma criança!
Fain a encarou, durante um instante, curioso, inclinando a cabeça. Era mesmo uma mulher muito bonita. Plantou o pé no peito dela e a empurrou para longe, querendo espaço para se levantar. O Myrddraal, que assistia à cena furtivamente, virou a cabeça depressa quando viu que ele notara. Ah, o Meio-homem se lembrava muito bem de seus… truques.
Fain andou de um lado a outro. Precisava se mexer. Al’Thor tinha que cair por suas mãos. Suas! Não dos Escolhidos. Como conseguiria feri-lo outra vez, apunhalá-lo bem no coração? Bem, havia aquelas garotas abestalhadas lá no Sabujo de Culain. Mas se al’Thor não saíra do lugar quando Dois Rios foi atacada, de que se importaria se Fain incendiasse a estalagem com aquelas garotinhas atrevidas dentro? Ah, o que ele tinha para usar? Só restavam alguns dos homens que tirara dos Filhos da Luz. A verdade é que aquilo fora apenas um teste — ah, o homem que conseguisse matar al’Thor naquela brincadeira teria implorado a ele para ser esfolado vivo! Ainda assim, a empreitada lhe custara alguns números. Só tinha o Myrddraal, um punhado de Trollocs escondidos fora da cidade, uns poucos Amigos das Trevas reunidos em Caemlyn e a caminho de Tar Valon. Sentia al’Thor puxando, arrastando-o. Havia uma mudança interessante em relação aos Amigos das Trevas. Em teoria, não deveria haver nada que os distinguisse de qualquer outra pessoa, mas Fain descobrira que podia identificá-los apenas com um olhar, mesmo que a pessoa tivesse pensado apenas em prestar o juramento à Sombra. Era como se tivessem uma marca na testa.
Não! Tinha que se concentrar. Concentrar! Clarear as ideias. Seus olhos caíram sobre a mulher, no chão, gemendo e afagando o filho. O garoto ainda balbuciava, e ela falava com ele baixinho, como se isso fosse ajudar. Fain não fazia ideia de como parar um de seus truques depois que já começara. Depois que a coisa toda acabasse, o garoto sobreviveria, embora não ileso. Fain não se dedicara ao golpe de coração. Tinha que clarear as ideias. Pensar em outra coisa. Uma bela mulher. Quanto tempo fazia desde que possuíra uma mulher?
Sorrindo, Fain a tomou pelo braço. Precisava afastá-la daquele garoto tolo.
— Venha comigo. — Sua voz estava diferente, mais grandiosa, sem o sotaque de Lugard. Mas ele não percebeu. Nunca percebia. — Tenho certeza de que você, pelo menos, sabe demonstrar o respeito apropriado. Se me deixar satisfeito, nenhum mal lhe acontecerá.
Por que ela resistia? Fain sabia que estava sendo charmoso. Ora, teria que machucá-la. Era tudo culpa de al’Thor.