Durante a caminhada de volta para o acampamento das Sábias, Egwene tentava se recompor, mas era como se seus pés sequer tocassem o chão. Ela sabia que não era o caso, já que cada passo contribuía para as ondas de poeira varridas pelas lufadas de vento quente. Tossindo, ela desejou que as Sábias também usassem véus. Um xale enrolado na cabeça não produzia o mesmo resultado e ela se sentia como uma tenda de vapor ambulante. Ainda assim, a sensação era de que caminhava nas nuvens. O cérebro parecia girar, e não era por conta do calor.
Primeiro achou que Gawyn não fosse encontrá-la, mas ela o viu assim que começou a caminhar pela multidão. Os dois acabaram passando a manhã inteira de mãos dadas na sala privada da estalagem O Homem Comprido, conversando enquanto tomavam chá. Egwene foi completamente descarada e o beijou logo que a porta se fechou, sem nem dar a Gawyn tempo de tomar a iniciativa, e chegou até a se sentar no colo dele, embora não por muito tempo. Aquilo a fez se lembrar dos sonhos de Gawyn, e ela considerou voltar a visitá-lo enquanto dormiam, fantasiando coisas que nenhuma mulher decente deveria sequer cogitar! Ao menos não uma mulher solteira. Com a reprimenda mental, ela se levantara de um pulo, feito corça assustada, o que acabou por assustá-lo também.
Olhou em volta, ansiosa. As tendas ainda estavam a meia milha de distância, e não havia vivalma por perto. Mesmo se houvesse alguém, não teria notado como ela corara. Reparando que sorria feito uma idiota por trás do xale, Egwene tratou de ficar séria. Luz, precisava se controlar. Tinha que esquecer a sensação dos braços fortes de Gawyn e se lembrar de por que tinham passado tanto tempo no salão da estalagem.
Enquanto abria caminho pela multidão, deu uma olhada ao redor, em busca de Gawyn, tentando — sem sucesso — parecer despreocupada. Afinal, não queria que ele pensasse que estava desesperada para vê-lo. De repente, um homem se inclinou para perto dela e sussurrou:
— Me siga até O Homem Comprido.
Egwene deu um pulo — não conseguiu evitar. Levou um momento para reconhecer Gawyn, que usava um casaco marrom simples com uma fina sobrecapa pendendo às costas, o capuz puxado quase escondendo o rosto. Não era o único de capa nos arredores — todos os não Aiel que iam para além das muralhas da cidade sempre as usavam —, mas poucos mantinham o capuz levantado naquele calor infernal.
Ela agarrou a manga dele com força quando Gawyn tentou ir andando na frente.
— O que o faz pensar que vou seguir você até uma estalagem, Gawyn Trakand? — perguntou, estreitando os olhos. Ainda assim, manteve a voz baixa. Não havia por que atrair olhares. — A gente ia caminhar. Se você está achando que…
Gawyn fez uma careta e se apressou a responder, aos sussurros:
— As mulheres com quem vim para cá estão atrás de uma pessoa. Uma mulher com a sua descrição. Elas não falam muito perto de mim, mas escutei aqui e ali. Venha comigo.
Sem nem olhar para trás, ele saiu a passos largos, e Egwene não teve opção senão segui-lo, mesmo com o estômago se revirando.
As lembranças devolveram firmeza a seus pés. O chão, assado pelo sol, estava tão quente que ela sentia o calor através da sola das botas macias — um calor quase tão intenso quanto o dos paralelepípedos da cidade. Egwene não conseguia parar de pensar no encontro enquanto se arrastava em meio à poeira. Gawyn não sabia muito mais do que lhe contara naquele primeiro momento e argumentou que poderiam não estar atrás dela em especial, bastava que Egwene tomasse cuidado ao canalizar e que tentasse o máximo possível ficar fora de vista. O problema era que nem mesmo ele parecia muito convencido daquilo que dizia, ainda mais depois de ter tentado disfarçar as roupas de guardião. Egwene evitou mencionar o que ele vestia, pois Gawyn já parecia preocupadíssimo com os problemas que ela teria se aquelas Aes Sedai a encontrassem, ou se o seguissem e chegassem até ela, embora tenha deixado bem claro que não estava disposto a parar com aqueles encontros furtivos, mesmo que a sugestão tivesse partido dele próprio. Aliás, Gawyn estava convencido de que Egwene precisava encontrar um jeito de voltar às escondidas para Tar Valon e se restabelecer na Torre — isso ou fazer logo as pazes com Coiren e as outras e voltar com elas. Luz, Egwene devia ter se irritado por ele achar que sabia o que seria melhor para seu futuro mais do ela própria. Ainda assim, por algum motivo, pensar naquilo só a fazia querer abrir um sorriso indulgente — mesmo agora. Por algum motivo misterioso, seu cérebro parecia parar de funcionar quando o assunto era Gawyn. Sem falar que o rapaz parecia surgir em sua mente o tempo inteiro, mesmo quando ela estava pensando em outras coisas.
Egwene mordeu o lábio inferior e se concentrou no verdadeiro problema: as Aes Sedai da Torre. Se ao menos conseguisse dar um jeito de interrogar Gawyn… Não seria traição fazer só algumas perguntinhas, saber quais eram as Ajahs, para onde iam ou… Não! A promessa que fizera fora para si mesma, mas quebrá-la traria desonra a ele. Nada de perguntas. Só o que Gawyn contasse espontaneamente.
E não importava o que ele dissesse, não havia motivo nenhum para acreditar que aquelas mulheres estavam atrás de Egwene al’Vere — mas também precisava admitir, mesmo relutante, que não havia motivos para pensar que não estavam atrás dela, apenas suposições e esperanças. Mesmo que uma agente da Torre não reconhecesse Egwene al’Vere nos trajes de uma Sábia, isso não significava que a agente nunca tivesse escutado seu nome ou ouvido falar de Egwene Sedai da Ajah Verde. Ela fez careta. Dali em diante, precisaria tomar muito cuidado quando fosse à cidade. Mais cuidado do que já estava pensando em tomar.
Chegou na área das tendas. O acampamento se espalhava por várias milhas, cobrindo as colinas a leste da cidade, arborizadas ou não. Aiel se moviam por entre as tendas baixas, mas havia poucos gai’shain por perto. E não se via nenhuma Sábia. Egwene quebrara uma promessa que fizera a elas — a Amys, na verdade, mas que se estendia para todas. O argumento da necessidade que tivera de quebrar a promessa parecia um junco cada vez mais fino para sustentar a mentira.
— Venha se juntar a nós, Egwene — chamou uma voz feminina.
A não ser que estivesse cercada de garotas muito jovens, Egwene não era difícil de identificar entre os Aiel, mesmo com a cabeça coberta. Surandha, aprendiz de Sorilea, enfiara a cabeça de cabelos louro-escuros para fora de uma das tendas e acenava para ela.
— As Sábias se reuniram de novo entre as tendas, todas elas, e disseram que temos o dia só para nós. O dia todo.
Aquele era um luxo raro, que Egwene não deixaria passar.
Lá dentro, encontrou algumas mulheres deitadas, esparramadas sobre almofadas, lendo à luz de lamparinas a óleo — a tenda ficava fechada para bloquear a poeira, o que também deixava o interior escuro — e outras sentadas costurando, tricotando ou bordando. Duas brincavam com barbantes, em um jogo complexo de cama de gato. A tenda estava tomada por um murmúrio baixo de conversas casuais, e várias das presentes trocavam sorrisos. Nem todas eram aprendizes, havia visitas: duas mães e diversas irmãs-primeiras. As aprendizes mais velhas usavam tantas joias quanto as Sábias, e todas estavam com as blusas desamarradas e os xales enrolados na cintura, embora o calor retido na tenda não parecesse incomodá-las.
Um gai’shain ia de um lado ao outro oferecendo chá. Algo no modo como ele se movia indicava que se tratava de um artesão, não de um algai’d’siswai. Tinha o rosto duro dos Aiel, ainda que parecesse um pouco mais delicado em comparação, e manter o comportamento dócil não parecia demandar tanto esforço dele. O sujeito usava uma daquelas bandanas vermelhas que o identificavam como siswai’aman. Nenhuma das mulheres parecia se incomodar com aquilo, mesmo que os gai’shain supostamente só devessem usar branco.
Egwene amarrou o xale na cintura e aceitou, agradecida, um pouco de água para lavar as mãos e o rosto, então desfez alguns dos laços da blusa e foi ocupar uma almofada vermelha com borlados entre Surandha e Estair, a aprendiz ruiva de Aeron.
— Por que as Sábias se reuniram? Alguém sabe o motivo?
Mesmo tendo perguntado aquilo, seu pensamento não estava nas Sábias — pensava em como não tinha a menor intenção de evitar a cidade. Concordara em visitar a estalagem do Homem Comprido a cada manhã, no caso de Gawyn estar lá, mesmo que o sorriso afetado da estalajadeira roliça tivesse feito suas bochechas arderem — só a Luz sabia o que a mulher devia pensar dela! Ainda assim, estava certo de que não tentaria mais ouvir as conversas na mansão de Lady Arilyn. Depois de se despedir de Gawyn, fora ver a casa — chegara quase perto o bastante para sentir que a canalização prosseguia lá dentro, mas acabou indo embora depois de uma espiadela da esquina. Só de chegar perto, era tomada pela desconfortável sensação de que Nesune apareceria de repente atrás dela.
— Suas irmãs, é claro — retrucou Surandha, com uma risada. — O que mais deixaria as Sábias aos pinotes, como se tivessem sentado em espinhos de segade?
Surandha tinha belas feições fortes, além de grandes olhos azuis, e a risada só a deixava mais bonita. Era cerca de cinco anos mais velha que Egwene e conseguia canalizar com tanta força quanto muitas das Aes Sedai. A jovem aguardava, ansiosa, o chamado para ser dona do próprio forte. Claro que, enquanto isso, ainda pulava só de Sorilea pensar em mandá-la pular.
— Deveríamos mandar Sorilea ir falar com elas — sugeriu Egwene, aceitando uma xícara de chá de listras verdes que o gai’shain lhe ofereceu.
Gawyn havia comentado que a Jovem Guarda estava ocupando todos os quartos que as Aes Sedai tinham deixado livres, e mesmo assim parte deles teve que se hospedar nos estábulos — com isso, o rapaz deixara escapar que não havia mais espaço nem para uma copeira e que as Aes Sedai não pareciam preparar mais quartos. Uma boa notícia.
— Sorilea conseguiria fazer até mesmo Aes Sedai se sentarem direito — acrescentou Surandha, jogando a cabeça para trás de tanto rir.
A risada de Estair foi mais tímida e um pouco escandalizada. A jovem esbelta de olhos cinza e sérios costumava se comportar sempre como se houvesse uma Sábia de olho. Egwene ficava muito impressionada em pensar como Sorilea tinha uma aprendiz tão alegre e divertida, enquanto Aeron, uma mulher agradável e sorridente que nunca usava palavras ríspidas, tinha uma aprendiz que parecia caçar regras para obedecer.
— Acredito que seja por causa do Car’a’carn — ponderou Estair, completamente séria.
— Por quê? — perguntou Egwene, sem muita atenção.
Teria mesmo que evitar a cidade. A não ser pelos encontros com Gawyn, claro — por mais constrangedor que fosse ter que admitir, não abdicaria de encontrá-lo por nada menos que a certeza de que Nesune a aguardava na sala privativa do Homem Comprido. O que significava que voltaria a caminhar ao redor das muralhas da cidade para se exercitar, no meio de toda a poeira do vento. Aquela manhã fora uma exceção, mas não daria nenhuma desculpa às Sábias para postergar seu retorno a Tel’aran’rhiod. Naquela noite, as mulheres se encontrariam sozinhas com as Aes Sedai de Salidar, mas, dali a sete noites, Egwene estaria com elas.
— O que ele fez agora? — indagou para as outras duas.
— Você não ficou sabendo? — perguntou Surandha.
Dali a dois ou três dias, poderia ir atrás de Nynaeve e Elayne, ou falar com elas em seus sonhos — tentar falar, ao menos. Nunca dava para ter certeza de que a pessoa sabia que aquilo era mais que um sonho, a menos que também estivesse habituada a se comunicar daquela forma, o que Nynaeve e Elayne decerto não estavam. Egwene só conversara com elas nos sonhos uma única vez. Em todo caso, pensar em se encontrar com elas ainda a deixava um tanto desconfortável, e tivera mais um quase pesadelo meio nebuloso a respeito. Quando uma das duas falava, tropeçava e caía de cara no chão, deixava cair uma xícara ou um prato ou derrubava um vaso — sempre algum objeto que se estilhaçava com o impacto. Desde que interpretara o sonho sobre Gawyn se tornar seu Guardião, vinha fazendo o mesmo esforço com todos os outros sonhos que tinha. Claro que ainda não conseguira nenhuma interpretação sensata, mas tinha certeza de que aquele sonho em especial guardava algum significado. Talvez fosse melhor esperar o encontro seguinte para falar com uma das duas. Além disso, poderia acabar trombando de novo com os sonhos de Gawyn, ser atraída para eles. Suas bochechas coravam só de pensar.
— O Car’a’carn voltou — anunciou Estair. — Ele vai se encontrar com suas irmãs hoje à tarde.
Gawyn e os sonhos desapareceram da mente, e Egwene franziu o cenho para a xícara de chá. Duas visitas em dez dias. Era atípico dele voltar em tão pouco tempo. Por que teria vindo? Será que soubera das Aes Sedai enviadas da Torre? Como? Além disso, só a presença dele já provocava a pergunta de sempre: como ele faz aquilo?
— Como ele faz o quê? — indagou Estair.
Egwene piscou, sobressaltada, reparando que falara em voz alta.
— Como ele consegue me deixar com esse nó no estômago?
Surandha balançou a cabeça em comiseração, mas também sorriu:
— Ele é homem, Egwene.
— Ele é o Car’a’carn — ressaltou Estair, com muita ênfase e mais que um toque de reverência. Egwene não ficaria surpresa se ela passasse a usar aquela faixa idiota enrolada na cabeça.
Surandha logo confrontou Estair, querendo saber como a outra mulher conseguiria lidar com um chefe de forte ou, pior ainda, um chefe de clã ou de ramo, se não entendia que nenhum homem deixava de ser homem só porque era um líder. Estair retrucou, enfática, que o caso do Car’a’carn era diferente. Mera, uma das mais velhas na tenda, que viera para visitar a filha, inclinou-se na direção das três e disse que lidar com qualquer chefe, fosse de forte, de ramo, de clã ou o próprio Car’a’carn, era o mesmo que lidar com um marido. O comentário suscitou uma gargalhada de Baerin, também ali para visitar a filha, que completou dizendo que aquela era uma boa maneira de fazer uma senhora do teto depositar sua faca aos pés dela — uma declaração de rixa. Baerin tinha sido Donzela antes de se casar, mas qualquer um poderia declarar uma rixa contra qualquer Aiel que não fosse uma Sábia ou um ferreiro. Não importava: antes mesmo que Mera terminasse seu primeiro comentário, todas as presentes — exceto os gai’shain, claro — já tinham se metido na conversa, massacrando a pobre Estair. O Car’a’carn era um chefe entre os chefes e nada mais, isso era certo. A conversa prosseguiu em uma discussão sobre se era melhor abordar um chefe diretamente ou por meio de sua senhora do teto.
Egwene não prestou muita atenção ao falatório. Claro que Rand não cometeria nenhuma tolice. Seu amigo se mostrara relutante em relação à carta de Elaida, mas, ainda assim, acreditara na sinceridade da mensagem de Alviarin — que, além de ser mais cordial, era absolutamente lisonjeira. Rand achava que tinha encontrado amigas e até mesmo seguidoras na Torre. Egwene duvidava muito. Com ou sem os Três Juramentos, estava convencida de que Elaida e Alviarin tinham mancomunado para escrever aquela segunda carta, mesmo com toda aquela besteirada de “servir sua glória”. Tudo não passava de uma artimanha para levá-lo até a Torre.
Encarando as próprias mãos, arrependida, Egwene suspirou e largou o chá. A xícara foi recolhida antes mesmo que pudesse afastar as mãos.
— Preciso ir — anunciou para as duas outras aprendizes. — Acabei de me lembrar que ainda preciso resolver um assunto.
Surandha e Estair falaram que queriam ir junto — na verdade, estavam prestes a se levantar e ir com ela, pois os Aiel nunca falavam da boca para fora —, mas algo no debate lhes chamou a atenção, e elas não discutiram quando Egwene insistiu que ficassem. Enrolando o xale de volta na cabeça e deixando as vozes cada vez mais elevadas para trás — Mera ia dizendo a Estair, sem um pingo de hesitação, que jovem até poderia se tornar uma Sábia, algum dia, mas que até lá ainda tinha muito o que aprender com uma mulher que dera conta de um marido e criara três filhas e dois filhos sem nenhuma esposa-irmã para ajudar —, Egwene saiu para a poeira e o vento.
Já na cidade, tentou se esgueirar pelas ruas cheias sem parecer muito furtiva, tentou ficar atenta aos arredores enquanto aparentava olhar apenas para o caminho que seguia. As chances de trombar com Nesune eram pequenas, mas… À frente, duas mulheres com vestidos muito sóbrios e aventais engomados deram um passo para o lado, desviando uma da outra. Por azar, ambas escolheram o mesmo lado e acabaram ficando cara a cara. Depois de murmurarem desculpas, deram mais um passo para o lado — o mesmo lado. Mais desculpas e, como se dançassem, foram outra vez mais um passo para o mesmo lado. Quando Egwene as ultrapassou, as duas ainda estavam andando de um lado para o outro em perfeita sincronia, os rostos já corando, as desculpas sendo engolidas por trás dos lábios comprimidos. Egwene não fazia ideia de quanto tempo aquilo ainda poderia durar, mas serviu para lembrá-la de que Rand estava na cidade. Luz, quando ele estava por perto, não seria nem um pouco absurdo se acabasse de cara com as seis Aes Sedai da Torre justo no instante em que uma lufada de vento arrancasse seu xale da cabeça e três pessoas gritassem seu nome e a chamassem de Aes Sedai. Com ele por perto, não acharia absurdo nem se desse de cara com Elaida.
Avançou, apressada, cada vez mais preocupada com a possibilidade de sofrer a influência de ta’veren de Rand, o olhar cada vez mais irritado. Por sorte, uma Aiel irritada de rosto coberto — aquelas pessoas ao menos sabiam da diferença entre um xale e um véu? — fazia todos saírem do caminho, o que lhe permitia acelerar o passo até quase correr. Ainda assim, ela não respirou tranquila até se enfiar no Palácio do Sol, entrando por uma portinha de empregados que ficava nos fundos.
Um forte cheiro de comida no fogo pairava no corredor estreito, e mulheres e homens de libré andavam às pressas de um lado a outro. Foi recebida pelos olhares atônitos de alguns serviçais descansando sem o casaco e algumas criadas que se abanavam com o avental. Provavelmente não era comum ver ninguém além dos serviçais tão perto das cozinhas, muito menos uma Aiel. Todos pareciam esperar que ela fosse tirar uma lança de debaixo das saias.
Egwene apontou para um homenzinho rechonchudo que enxugava o pescoço com um lenço.
— Sabe onde está Rand al’Thor?
O sujeito levou um susto, voltando os olhos para os colegas, que já se afastavam. Ele batia os pés, ansioso, doido para ir atrás dos outros.
— O Lorde Dragão, é… Senhora? Nos aposentos dele? É o que eu acho, ao menos. — Ele começou a se virar de lado, curvando-se em uma mesura. — Se a Senhora… é… se milady me permitir, preciso voltar para o…
— Você vai me levar até lá — interrompeu Egwene, a voz firme. Dessa vez, não ficaria perambulando à toa.
Voltando os olhos uma última vez em busca dos amigos desaparecidos, o sujeito suprimiu um suspiro, lançou um rápido olhar assustado para ver se não a havia ofendido e disparou atrás do casaco. O homem sabia se orientar muito bem naquele emaranhado de corredores palacianos, andando rápido e fazendo uma mesura a cada curva. Quando, com uma última reverência, o sujeito enfim apontou para as portas altas decoradas com sóis nascentes dourados e vigiadas por uma Donzela e um Aiel, Egwene sentiu uma pontada de desdém e o dispensou. Não conseguia entender por que sentira aquilo quando o sujeito estava apenas fazendo o que era pago para fazer.
Quando ela se aproximou, o Aiel se levantou. Era um sujeito de meia-idade e muito alto, com um tórax e ombros que lembravam os de um touro e olhos cinzentos e frios. Egwene não o conhecia, e o Aiel parecia prestes a mandá-la embora. Por sorte, ela conhecia a Donzela.
— Deixe-a passar, Marie — disse Somara, abrindo um sorriso. — Esta é a aprendiz de Amys, e também de Bair e Melaine. A única aprendiz que eu conheço que serve a três Sábias. E, pela cara dela, foi enviada às pressas com palavras bem contundentes para Rand al’Thor.
— Às pressas? — O gracejo de Marie não suavizou a dureza de seu rosto ou de seus olhos. — Parece mais que veio se arrastando.
Ele retomou a posição de guarda.
Egwene não precisou perguntar o que ele queria dizer. Desenterrou um lenço do fundo da bolsa do cinto e esfregou o rosto. Ninguém era levado a sério sujo daquele jeito, e Rand precisava ouvi-la com atenção.
— São mesmo palavras importantes, Somara. Espero que ele esteja sozinho. As Aes Sedai ainda não vieram?
O lenço voltou cinza, e ela o devolveu à bolsa com um suspiro.
Somara balançou a cabeça.
— Ainda falta um bom tempo para elas chegarem. Você vai pedir para ele tomar cuidado? Não tenho intenção de desrespeitar suas irmãs, mas ele se joga sem pensar onde vai cair. É muito cabeça-dura.
— Vou pedir, sim.
Egwene não conseguiu suprimir um sorrisinho. Já ouvira Somara falar daquele jeito, com o tom orgulhoso e exasperado que uma mãe teria ao falar de um filho excessivamente aventureiro de dez anos de idade — e ouvira o mesmo tom sendo usado por outras Donzelas. Só podia ser alguma brincadeira Aiel. Bem, mesmo que não entendesse do que se tratava, apoiava qualquer comportamento que evitasse que Rand acabasse muito cheio de si.
— Também vou mandar ele lavar as orelhas. — Somara até assentiu, antes de se conter e voltar à expressão séria. Egwene respirou fundo. — Somara, minhas irmãs não podem saber que estou aqui. — Marie, que examinava cada serviçal que cruzava o corredor, a encarou com curiosidade. Egwene precisava tomar cuidado. — Nós não somos muito próximas, Somara. Na verdade, dá para dizer que sempre fomos o mais distantes possível, em se tratando de irmãs.
— Não há rixa pior que as rixas entre irmãs-primeiras — afirmou Somara, assentindo. — Entre. Não direi nada a elas sobre você. E se a língua de Marie ficar muito agitada, dou um nó nela.
Marie apenas abriu um leve sorriso, sem nem olhar para Somara — a mulher batia abaixo de seu ombro e devia ter metade de seu peso.
As Donzelas sempre a mandavam entrar sem ser anunciada, o que já causara alguns constrangimentos, mas dessa vez ela não encontrou Rand tomando banho. Só de olhar, dava para notar que aqueles eram os antigos aposentos reais, e a antessala estava mais para uma miniatura de sala do trono — ou melhor, miniatura se comparada à verdadeira. As únicas curvas na decoração eram os raios ondulosos de um sol dourado, cada um de uma braçada de largura, gravados no piso de pedra polido. Espelhos altos em molduras de ouro austeras enfileiravam-se nas paredes sob largas faixas retas com douraduras, e a enorme cornija da lareira era toda de triângulos dourados que se sobrepunham feito escamas. Poltronas cobertas de douraduras estavam dispostas de cada lado do sol nascente, em duas fileiras tão rígidas quanto os espaldares altos, uma perfeitamente de frente para a outra. Rand estava sentado em uma poltrona com o dobro de douraduras e o espaldar duas vezes mais alto que as outras apoiada sobre um pequeno estrado também incrustrado de douraduras. O jovem trajava um casaco de seda vermelho com bordados de ouro, ostentando uma careta de preocupação enquanto segurava aquela lança Seanchan entalhada apoiada no cotovelo. Parecia um rei — um rei prestes a cometer um assassinato.
Egwene apoiou os punhos cerrados na cintura.
— Somara disse que você devia ir lavar estas orelhas agora mesmo, meu jovem — ralhou, fazendo-o erguer a cabeça.
A surpresa e o leve ultraje duraram apenas um instante. Abrindo um sorriso, Rand se levantou e largou a ponta de lança no assento da cadeira.
— Luz, o que você andou fazendo? — perguntou ele, atravessando o aposento, agarrando-a pelos ombros e virando-a de frente para o espelho mais próximo.
Egwene fez uma careta involuntária. Que visão. A poeira que atravessara o xale — poeira não: já virara lama, com todo aquele suor — desenhava linhas em suas bochechas e espirais nos pontos de sua testa que esfregara com o lenço antes.
— Vou mandar Somara providenciar um pouco de água — afirmou ele, seco. — Talvez ela ache que é para as minhas orelhas.
Ah, aquele sorriso insuportável!
— Não precisa — respondeu Egwene, com o máximo de dignidade que conseguiu reunir. Não iria simplesmente se lavar com ele ali, assistindo. Puxou o lenço encardido da bolsa e tentou dar um jeito nas piores partes. — Daqui a pouco você vai se encontrar com Coiren e as outras. Não preciso avisar que elas são perigosas, preciso?
— Acho que você acabou de avisar. Bem, nem todas elas virão. Eu disse que não receberia mais que três, então apenas três foram enviadas. — Pelo espelho, Egwene notou a cabeça dele se inclinando, como se estivesse ouvindo alguma coisa. Rand assentiu, a voz baixando até não passar de um murmúrio: — É, consigo dar conta de três, se não forem muito fortes. — De repente, ele pareceu notar que era observado. — Claro que, se alguma delas for Moghedien de peruca, ou Semirhage disfarçada, vou acabar encrencado.
— Rand, você precisa levar isso a sério. — O lenço não estava ajudando muito. Com toda a relutância do mundo, cuspiu no tecido para ver se melhorava. Não havia maneira digna de cuspir em um lenço. — Eu sei o quanto você é forte, mas elas são Aes Sedai. Você não pode se comportar como se fossem apenas camponesas. Mesmo que ache que Alviarin vai se ajoelhar aos seus pés, junto com todas as amigas que trouxer, essas mulheres foram enviadas por Elaida. Você não pode acreditar que virão com qualquer intenção além de atar uma coleira em seu pescoço. Serei franca e direta: você deveria mandar todas embora.
— E confiar nas suas amigas escondidas? — indagou ele, a voz suave. Suave demais.
Egwene concluiu que não havia como dar jeito no rosto. Devia ter deixado Rand mandar trazer água. Bem, não tinha mais como pedir, não depois de ter recusado.
— Você sabe que não pode confiar em Elaida — advertiu, hesitante, virando-se para ele. Lembrando-se do desfecho da última conversa, não queria nem mencionar as Aes Sedai de Salidar. — Você sabe.
— Eu não confio em nenhuma Aes Sedai. Elas… — Ele hesitou, como se fosse usar alguma palavra… Egwene não fazia ideia de qual poderia ser. — Elas tentarão me usar, e eu tentarei usar cada uma delas. Uma bela troca, não acha?
Se Egwene algum dia tivesse considerado a possibilidade de deixá-lo chegar perto das Aes Sedai de Salidar, teria desistido ao ver o olhar de Rand — era tão duro e gélido que ela ficou arrepiada.
Talvez, se ele ficasse zangado o bastante, se trocasse farpas com Coiren até obrigar a missão diplomática a voltar para a Torre de mãos abanando…
— Se você acha uma bela troca, então suponho que seja. Você é o Dragão Renascido, afinal. Bem, já que pretende continuar com isso, então é melhor fazer as coisas direito. Só não se esqueça de que são Aes Sedai. Até um rei trata as mulheres da Torre com respeito, mesmo quando não concorda com o que dizem. E até um Rei iria correndo a Tar Valon, se fosse convocado. Até os Grão-senhores tairenos iriam, até Pedron Niall. — Ah, o tonto voltou a sorrir; ou pelo menos exibiu os dentes, já que o restante do rosto estava tão inexpressivo quanto uma pedra de rio. — Espero que esteja prestando atenção, estou tentando ajudar. — Bem, e estava. Só não do jeito que ele pensava. — Se quer usar essas mulheres, não pode deixá-las feito gatas arrepiadas. Elas não ficarão mais impressionadas do que eu com você, Dragão Renascido, mesmo com esses casacos enfeitados, esse trono e esse cetro idiota. — Egwene olhou com desprezo para a ponta de lança borlada. Luz, aquele troço lhe causava arrepios! — As Aes Sedai não cairão de joelhos quando chegarem, e você não vai morrer por isso. Também não vai morrer se demonstrar alguma cortesia. Curve esse seu pescoço teimoso. Não é humilhação agir com a deferência apropriada, mostrar um pouco de humildade.
— A deferência apropriada — repetiu ele, pensativo. Suspirando, Rand balançou a cabeça com pesar e passou a mão no cabelo. — Bem, suponho que eu não possa falar com uma Aes Sedai como falo com um lorde qualquer que vem tramando contra mim. É um bom conselho, Egwene. Vou tentar. Serei humilde feito um rato.
Tentando não parecer espantada, Egwene disfarçou os olhos arregalados esfregando o rosto com o lenço. Não podia afirmar com certeza se os olhos estavam a ponto de saltar das órbitas, mas achou que deviam. A vida inteira, sempre que apontava que era melhor ir pela direita, Rand levantava o queixo e insistia na esquerda! Por que ele teve de escolher justo aquele momento para ouvi-la?
Havia algo de bom no jeito como as coisas estavam? Ao menos não faria mal a ele demonstrar algum respeito. Mesmo que elas estivessem do lado de Elaida, a ideia de alguém se mostrar impertinente com qualquer Aes Sedai de fato a aborrecia. Só que ela queria que ele fosse impertinente, tão arrogante quanto jamais havia sido. Não havia razão para tentar desfazer aquilo, não havia como. Ele não era obtuso. Apenas irritante.
— Foi só para isso que você veio? — indagou Rand.
Não podia ir embora, não ainda. Talvez tivesse uma chance de consertar as coisas, ou pelo menos de ter certeza de que Rand não era cabeça oca a ponto de concordar em ir para Tar Valon.
— Sabia que tem uma Senhora das Ondas do Povo do Mar num navio lá no rio, o Borbotão? — Era uma mudança brusca, mas para um assunto tão bom quanto qualquer outro. — Ela veio ver você, e ouvi dizer que a mulher já está ficando impaciente.
Ficara sabendo por Gawyn. Erian fora remando até o navio para descobrir o que o Povo do Mar estava fazendo tão dentro do continente, mas não recebeu permissão para embarcar. A mulher voltara em tal estado de espírito que, se não fosse Aes Sedai, diriam que estava prestes a explodir de ódio. Egwene tinha mais do que suspeitas de por que aquela gente estava ali, mas não as revelaria para Rand. Seria bom para ele finalmente se encontrar com alguém sem a expectativa de que a outra pessoa fosse se curvar a seus pés.
— Ao que parece, os Atha’an Miere estão por toda parte. — Rand se sentou em uma das cadeiras. Por algum motivo, parecia de bom humor. Egwene podia jurar que não tinha nada a ver com o Povo do Mar. — Berelain disse que tenho que me encontrar com essa Harine din Togara Dois Ventos, mas, se a mulher tiver metade do gênio que Berelain relatou, então pode esperar. Já tenho que lidar com uma boa quota de mulheres zangadas, por enquanto.
Aquilo era quase uma abertura, mas não era o suficiente.
— Não consigo entender por quê. Você é tão cativante. — Egwene se arrependeu assim que falou. Aquelas palavras só reforçavam o que não queria que ele fizesse.
Rand franziu o cenho — não pareceu nem ter ouvido o comentário ácido.
— Egwene, sei que você não gosta de Berelain, mas a questão não vai muito além disso, não é? Quer dizer, você é tão boa em se passar por Aiel que dá para imaginá-la se oferecendo para dançar as lanças com ela. Berelain estava incomodada com alguma coisa, parecia desconfortável, mas não queria dizer o que era.
Bem, talvez tivesse encontrado um homem que lhe tivesse dito não. Bastaria isso para deixar a Primeira de Mayene tremendo nas bases.
— Não troquei nem dez palavras com ela desde que saímos da Pedra de Tear, e não nos falamos muito mais que isso por lá. Rand, você não acha que…
Uma das portas se abriu só o suficiente para deixar entrar Somara, que a fechou depressa atrás de si.
— Car’a’carn, as Aes Sedai estão aqui.
Rand virou a cabeça para a porta, o rosto duro feito pedra.
— Elas só deveriam chegar daqui a…! Ah, estão pensando que vão me pegar de guarda baixa, é? Elas precisam aprender quem é que dita as regras por aqui.
Egwene não se importaria nem se as mulheres da Torre estivessem tentando flagrar Rand só com as roupas de baixo. Berelain desapareceu da sua mente. Somara gesticulou, discretamente, parecendo expressar sua pena de Egwene. Bem, também não se importava com aquilo. Se pedisse, sabia que Rand poderia evitar que as mulheres a levassem. Só teria que ficar perto dele dali em diante, para que as mulheres não a atacassem e a blindassem assim que botasse a cara na rua, levando-a embora às pressas. Bastava pedir e se colocar sob a proteção dele. A diferença era minúscula entre isso ou ser arrastada de volta para a Torre dentro de uma saca — tão tênue que lhe fez doer o estômago. Primeiro porque jamais se tornaria Aes Sedai se ficasse se escondendo atrás dele, segundo porque a ideia de ficar escondida atrás de quem quer que fosse a irritava demais. Só que as enviadas da Torre estavam bem ali, do outro lado da porta, e ela em menos de uma hora poderia acabar metida na tal saca, ou coisa parecida. Respirar fundo e bem devagar não surtiu nenhum efeito para acalmar seus nervos, tão à flor da pele.
— Rand, tem alguma outra saída? Se não tiver, vou me esconder em um dos outros quartos. Elas não podem saber que estou aqui. Rand? Rand! Está me ouvindo?
Rand respondeu, mas não estava falando com ela.
— Ah, você está aí! — sussurrou, rouco. — É coincidência demais você pensar nisso justo agora. — Ele encarava o nada com um olhar de fúria, talvez de medo. — Que o queime, me responda! Eu sei que você está aí!
Sem conseguir se conter, Egwene umedeceu os lábios. Somara o encarava com o que só poderia ser descrito como preocupação maternal — e Rand nem notava o gracejo da Aiel —, mas Egwene sentia o estômago se retorcer. Ele não podia ter enlouquecido tão rápido. Não podia. Ainda assim, parecia que Rand ouvira alguma voz oculta, momentos antes. Talvez tivesse falado com a tal voz.
Não se lembrava de ter se aproximado tanto dele, mas logo estava com a mão firme contra a testa de Rand. Nynaeve sempre dizia para primeiro verificar se havia febre, mas não fazia ideia se isso adiantaria, àquela altura… Se ao menos ela soubesse mais do que o básico sobre Cura. Bem, também não adiantaria nada. Não se ele estivesse…
— Rand…? Você está bem?
Ele se recompôs, afastou o rosto da mão dela e a encarou com desconfiança. No momento seguinte, já estava de pé, segurando-a pelo braço, praticamente arrastando-a pela sala — ia tão depressa que Egwene quase tropeçou nas próprias saias enquanto tentava acompanhá-lo.
— Fique ali parada — ordenou, ríspido, deixando-a plantada ao lado do estrado, então se afastou um pouco.
Esfregando o braço com vigor suficiente para que Rand não deixasse de reparar, Egwene fez menção de ir atrás dele. Os homens não tinham noção de como eram fortes. Nem mesmo Gawyn, embora, no caso dele, ela não se importasse muito.
— O que você pensa que…?
— Não se mexa! — Então, contrariado, acrescentou: — Ah, que o queime, parece que ondula quando você se mexe. Vou prender no chão, mas mesmo assim é melhor não ficar se mexendo muito. Não sei de que tamanho consigo fazer, e agora não é hora de descobrir.
Somara ficou boquiaberta — deu para ver, mesmo ela tendo fechado a boca logo em seguida.
Prender o que no chão? Do que ele estava falando…? A compreensão se abateu sobre ela, tão de repente que esqueceu de se perguntar quem seria esse “ele”. Rand tecera uma trama de saidin em torno dela. Egwene arregalou os olhos. Estava ofegante, respirando rápido demais, mas não conseguia parar. Será que a trama estava muito perto? Cada fiapo de razão lhe dizia que a mácula não poderia escorrer das tramas que ele fizesse — Rand já a tocara com saidin, em outra ocasião. Ainda assim, pensar naquilo só fez piorar as coisas. Instintivamente, encolheu os ombros e segurou as saias à frente do corpo, as mãos bem juntas.
— O que…? O que você fez? — Ficou orgulhosa por ter mantido a voz firme. Podia até estar um pouquinho instável, mas nada perto da lamúria que queria deixar escapar.
— Olhe naquele espelho — retrucou ele, rindo. Rindo!
Ela obedeceu, meio a contragosto… e ficou sem fôlego. Ali, no espelho prateado, estava a cadeira dourada sobre o estrado. O reflexo também mostrava parte do aposento. Mas não havia nenhuma imagem dela.
— Eu estou… invisível — sussurrou.
Certa vez, Moiraine escondera todos eles por trás de uma cortina de saidar. Mas como Rand aprendera aquilo?
— Muito melhor do que se esconder debaixo da minha cama — comentou, dirigindo-se ao ar, os olhos fixos em um ponto um palmo à direita da cabeça dela. Como se Egwene sequer tivesse cogitado essa possibilidade! — Quero que você veja como sei ser respeitoso. Além do quê — ele assumiu um tom mais sério —, talvez você perceba algo que eu deixe passar. E talvez até esteja disposta a me contar o quê, mais tarde. — Com uma risada alta e curta, Rand subiu no estrado, pegou a ponta de lança borlada e se sentou. — Mande elas entrarem, Somara. Permita que a missão diplomática da Torre Branca fale com o Dragão Renascido.
O sorriso retorcido no rosto dele deixou Egwene quase tão desconfortável quanto a proximidade da urdidura de saidin. Quão perto estava aquele troço maldito?
Somara saiu da sala, e as portas se abriram de novo momentos depois.
Uma mulher de vestido azul-escuro, muito imponente e rechonchuda, que só podia ser Coiren, vinha à frente. A seu lado, porém uma passada atrás, vinha Nesune, usando uma lã simples marrom, junto de uma Aes Sedai de cabelos negros como penas de corvo trajando seda verde — era muito bonita, de rosto redondo, com lábios fartos e chamativos. Egwene desejou que as Aes Sedai sempre usassem as cores das suas Ajahs — as Brancas usavam sempre que podiam. Não sabia a Ajah daquela terceira mulher, mas não acreditava fosse uma Verde — não com o olhar firme que ela lançou a Rand no instante em que pôs os pés no aposento. Uma serenidade fria quase mascarava o desprezo em seus olhos — e talvez mascarasse, para alguém que não estivesse acostumado a lidar com Aes Sedai. Será que Rand tinha percebido? Talvez não, já que parecia concentrado em Coiren, cujo rosto era completamente indecifrável. Nesune, claro, estava atenta a tudo, os olhos de pássaro disparando para um lado e para o outro.
Egwene ficou muito grata pelo manto de invisibilidade que ele tecera. Deu batidinhas no rosto com o lenço, que ainda tinha nas mãos, então ficou paralisada. Rand disse que prenderia a trama no chão. Teria mesmo prendido? Luz, pelo pouco que sabia, poderia muito bem estar completamente exposta. Mas então o olhar de Nesune passou por ela sem nenhuma pausa. O suor escorria pelo rosto. Pingava. Que a Luz queimasse Rand! Ficaria perfeitamente feliz escondida debaixo da cama dele.
Atrás das Aes Sedai veio mais uma dúzia de mulheres com roupas simples e sobrecapas ásperas de linho pendendo das costas. A maioria era bem troncuda, mas parecia penar com o peso de dois baús nada pequenos, as alças de latão polido trabalhadas com a Chama de Tar Valon. As serviçais depositaram os baús no chão com suspiros de alívio bem audíveis, alongando os braços e as costas discretamente enquanto as portas se fechavam. Coiren e as outras Aes Sedai mergulharam em mesuras na mais perfeita sincronia, ainda que não muito profundas.
Rand se levantou antes mesmo que as três Aes Sedai endireitassem as costas. O brilho de saidar cercava as três — tinham se unido. Egwene tentou se lembrar do que vira, de como aquilo era feito. Apesar do brilho intenso, nada abalou a calma em seus rostos quando Rand passou direto, indo até as serviçais, analisando cada um de seus rostos.
O que ele estava…? Ah, claro. Estava querendo se certificar de que nenhuma tinha o rosto de idade indefinida de uma Aes Sedai. Egwene balançou a cabeça, então voltou a ficar imóvel. Rand era um tolo se achava que aquilo bastava. Quase todas as servas pareciam já ter certa idade — não eram velhas, mas já tinham a marca da passagem dos anos —, só que duas eram jovens o bastante para terem sido elevadas havia pouco tempo. Nenhuma era — Egwene só conseguia sentir a capacidade de canalização das três Aes Sedai, e estava perto o bastante para ter sentido, caso houvesse a fagulha em alguma das outras mulheres. Ainda assim, Rand não podia afirmar só de olhar se aquelas mulheres eram ou não capazes de manejar o Poder.
Rand estendeu a mão e ergueu o queixo de uma jovem robusta, encarando-a com um sorriso.
— Não tenha medo — disse ele, baixinho. A mulher cambaleou como se estivesse prestes a desmaiar. Com um suspiro, Rand deu meia-volta. Nem olhou para as Aes Sedai quando passou por elas.
— Vocês não vão canalizar perto de mim — advertiu, firme. — Soltem.
Nesune pareceu pensativa por uma fração de segundo, mas as outras duas permaneceram completamente serenas enquanto ele voltava a se sentar e esfregava o braço. Egwene estivera presente quando ele desenvolveu aquela comichão. Rand acrescentou, com uma voz mais firme:
— Eu disse que vocês não vão canalizar perto de mim. Não vão nem abraçar saidar.
Houve um longo momento de hesitação, e Egwene rezou em silêncio. O que Rand faria se as mulheres continuassem abraçando a Fonte? Tentaria cortar a conexão? Interromper o acesso a saidar depois que a mulher já o abraçara era bem mais difícil do que criar uma barreira antes de acontecer. Não sabia nem se ele conseguiria lidar com três mulheres ao mesmo tempo, ainda por cima unidas. E pior — o que elas fariam se Rand tentasse alguma coisa? O brilho esvaneceu, e Egwene conseguiu — por pouco — suprimir um enorme suspiro de alívio. Aquela trama que ele fizera a tornava invisível, mas obviamente não isolava o som.
— Bem melhor. — Rand abriu um sorriso caloroso voltado para as três, mas o calor não chegou aos seus olhos. — Vamos começar de novo. Vocês são convidadas de honra e acabaram de entrar aqui neste exato momento.
Elas entenderam, claro. Rand não estava apenas supondo que as três estavam canalizando — ele sabia. Coiren se enrijeceu de leve, e a mulher de cabelos escuros como um corvo arregalou os olhos. Nesune apenas assentiu para si mesma, acrescentando aquilo às anotações mentais. Egwene torcia para que ele tomasse cuidado — Nesune não deixaria passar nada.
Com esforço visível, Coiren tratou de se acalmar, alisou o vestido e quase ajustou um xale que nem ao menos estava usando.
— Eu tenho a honra — anunciou, com uma voz límpida — de ser Coiren Saeldain Aes Sedai, Embaixadora da Torre Branca e emissária de Elaida do Avriny a’Roihan, a Vigia dos Selos, a Chama de Tar Valon, o Trono de Amyrlin.
Com apresentações um pouco menos floreadas, ainda que com as honrarias completas de Aes Sedai, ela anunciou as outras duas. A mulher de olhar firme e cabelos negros era Galina Casban.
— Eu sou Rand al’Thor.
A simplicidade assinalava um contraste nítido. Corina não mencionara o título de Dragão Renascido e ele também não, mas aquela omissão pareceu fazer o título ressoar de leve pela sala.
Coiren respirou fundo, inclinando a cabeça como se ouvisse o tal sussurro.
— Trazemos um nobre convite ao Dragão Renascido. O Trono de Amyrlin tem plena consciência de que os sinais foram dados e as profecias foram cumpridas, de que… — A mulher, sempre com uma voz alta e límpida, chegou rápido demais ao ponto, dizendo que Rand deveria acompanhá-las, “com a honra e o respeito merecidos”, até a Torre Branca, e que, caso ele aceitasse o convite, Elaida oferecia a proteção da Torre e todo o peso de sua autoridade e influência por trás do título de Amyrlin. Seguiu-se mais uma boa dose de discursos floreados antes que ela terminasse com um: — … e, como símbolo de boa vontade, o Trono de Amyrlin envia este humilde presente.
Coiren se virou para os baús e ergueu as mãos. Então ficou parada, abrindo uma leve careta de irritação. Precisou gesticular duas vezes até que as serviçais compreendessem o que ela queria e puxassem as alças de latão para abrir as tampas dos baús. Ao que parecia, a mulher tivera intenção de abrir as tampas usando saidar. Os baús estavam completamente cheios de sacas de couro. Depois de um outro gesto, mais firme, as serviçais começaram a desamarrá-las.
Egwene conteve um suspiro. Não era de se surpreender que aquelas mulheres tivessem precisado de tanto esforço para carregar os baús! As sacas abertas tiveram seu conteúdo derramado: moedas de ouro de todos os tamanhos, anéis reluzentes, colares cintilantes e gemas soltas. Mesmo se as sacas logo abaixo da primeira camada contivessem apenas entulho, tratava-se de uma fortuna.
Reclinando-se na poltrona em forma de trono, Rand examinava os baús com um princípio de sorriso. As Aes Sedai o analisavam, os rostos cobertos com suas máscaras de autocontrole, mas Egwene achou ver um quê de complacência nos olhos de Coiren e um leve desdém nos lábios carnudos de Galina. Mas Nesune… Nesune representava o verdadeiro perigo.
As tampas se fecharam de repente, sem que ninguém as tocasse. As serviçais deram um pinote para trás, sem sequer abafarem os gritinhos de susto. As Aes Sedai se enrijeceram, e Egwene rezava com a mesma intensidade com que o suor escorria do corpo. Claro que queria um Rand arrogante e um tanto insolente, mas apenas o bastante para deixar as três irritadas, não a ponto de elas decidirem tentar amansá-lo ali mesmo.
Foi então que lhe ocorreu que, até o momento, Rand não mostrara nada daquele lado “humilde feito um rato”. Ah, ele nunca sequer tivera a intenção de mostrar humildade, apenas zombara dela! Se não estivesse tão aterrorizada, iria até ele e lhe daria uma bela bofetada na orelha.
— É bastante ouro — afirmou Rand. Parecia tranquilo, o sorriso enchendo o rosto todo. — Eu sempre encontro utilidade para ouro. — Egwene apenas piscou, surpresa. Rand soava quase ganancioso!
Coiren respondeu com um sorriso, uma imagem perfeita de arrogância ponderada.
— O Trono de Amyrlin é de extrema generosidade, claro. Quando você chegar à Torre Branca…
— Quando eu chegar à Torre — interrompeu Rand, como se pensasse alto. — Sim, mal posso esperar pelo dia em que entrarei na Torre. — Ele se inclinou um pouco para a frente, apoiando o cotovelo no joelho, o Cetro do Dragão dependurado para além das pernas. — Mas, entendam, não posso ir imediatamente. Primeiro tenho compromissos por aqui, além de em Andor e em outros lugares.
Coiren comprimiu os lábios apenas por uma fração de segundo. Ainda assim, sua voz se manteve tranquila e firme como sempre.
— Com certeza não fazemos nenhuma objeção a descansar alguns dias por aqui antes de iniciarmos a jornada de volta a Tar Valon. Enquanto isso, permita-me sugerir que uma de nós fique disponível para aconselhá-lo em caso de necessidade. Ouvimos falar, claro, do triste destino de Moiraine. Não posso me oferecer, mas Nesune e Galina estão à disposição.
Rand analisou a dupla, franzindo o cenho, e Egwene prendeu a respiração. Ele mais uma vez parecia estar ouvindo alguma voz — ou tentando ouvir. Nesune o encarava com a mesma atenção com que ele a analisava. Galina alisou as saias por reflexo, sem nem reparar no que seus dedos faziam.
— Não — respondeu, por fim, recostando-se de volta e repousando os cotovelos nos braços da poltrona. Com aquilo, Rand a fazia parecer ainda mais um trono. — Não é muito seguro. Eu não gostaria que uma de vocês, por acidente, acabasse com uma lança atravessada entre as costelas. — Coiren abriu a boca para protestar, mas ele continuou falando. — Para sua própria segurança, nenhuma de vocês deve ficar a menos de uma milha de mim sem minha permissão. Aliás, o melhor é também manterem essa distância do Palácio, a não ser que eu permita. Vocês serão informadas quando eu estiver pronto para acompanhar a comitiva de volta a Tar Valon. Eu prometo. — Rand se levantou de repente. De cima do estrado, ficava alto o bastante para que as Aes Sedai precisassem levantar o pescoço, e as três deixaram muito claro que desgostavam daquilo tanto quanto das restrições impostas. Três rostos entalhados em pedra ergueram os olhos para fitá-lo. — Agora vou deixar que voltem ao seu descanso. Quanto mais rápido eu conseguir resolver certas questões, mais rápido poderei ir para a Torre. Mandarei avisar quando pudermos nos encontrar outra vez.
As três não ficaram nada satisfeitas com aquela dispensa tão súbita, muito menos com o fato de terem sido dispensadas. Eram as Aes Sedai que definiam quando uma audiência se encerrava. Ainda assim, havia pouco que pudessem fazer além de reverências mínimas, a contrariedade quase esfacelando a famosa calma das mulheres da Torre.
Quando davam meia-volta para ir embora, Rand se pronunciou mais uma vez, em um tom casual:
— Esqueci de perguntar: como está Alviarin?
— Está bem. — Galina passou alguns instantes boquiaberta, os olhos arregalados. Parecia surpresa por ter respondido.
Coiren hesitou, prestes a usar aquela abertura para falar mais, porém Rand já dava sinais de impaciência, quase batendo os pés no chão. Quando as mulheres saíram, ele desceu do tablado ainda carregando a ponta de lança, os olhos fixos nas portas que se fecharam atrás delas.
Egwene não perdeu tempo, foi logo avançando para cima dele.
— Que jogo é este que você está jogando, Rand al’Thor? — Já avançara quase cinco passos quando um vislumbre de seu reflexo nos espelhos a fez perceber que atravessara a tessitura de saidin. Pelo menos não reparara quando foi tocada por aquelas tramas cheias de mácula. — Pois bem?
— Ela é uma das mulheres de Alviarin — comentou ele, em tom pensativo. — Galina. Ela é uma das amigas de Alviarin. Posso até apostar.
Egwene parou diante dele e fungou com desdém.
— Você perderia sua moeda e ainda acabaria com um ancinho no próprio pé. Se Galina não é Vermelha, nunca vi uma Vermelha na vida.
— Só porque ela não gosta de mim? — Rand a encarava, e Egwene quase desejou que ele desviasse os olhos. — Porque ela tem medo de mim? — Ele não franziu a testa nem olhou feio para ela. Nem ao menos a encarava com dureza. Ainda assim, seus olhos pareciam saber coisas que ela desconhecia. Egwene odiou aquela sensação. O sorriso de Rand surgiu tão de repente que ela teve que piscar. — Egwene, espera que eu acredite que você consegue identificar a Ajah de uma mulher só de olhar para o rosto dela?
— Não, mas…
— Seja como for, até as Vermelhas podem acabar me seguindo. Elas conhecem as Profecias tão bem quanto qualquer um. “A torre imaculada se divide e se ajoelha perante o símbolo esquecido.” Foram escritas antes de existir uma Torre Branca, mas o que mais poderia ser essa “torre imaculada”? E o símbolo esquecido? É meu estandarte, Egwene, com o antigo símbolo Aes Sedai.
— Que o queime, Rand al’Thor! — O xingamento que escapou de seus lábios soava mais estranho do que Egwene esperava. Não estava acostumada a dizer aquele tipo de coisa. — Que a Luz o queime! Você não pode estar pensando em ir mesmo com elas. Não pode!
Rand abriu um sorriso divertido. Divertido!
— Ora, eu não fiz o que você queria? Fiz o que você me disse para fazer e o que você queria.
Ela comprimiu os lábios, indignada. Já era ruim que ele soubesse que seus planos tinham falhado, mas era uma verdadeira grosseria jogar na cara dela daquele jeito.
— Rand, por favor, me escute. Elaida…
— A questão é como fazer você voltar para as tendas sem elas descobrirem sua presença. Acho que elas têm olhos-e-ouvidos no Palácio.
— Rand, você precisa…
— Que tal escapulir dentro de um daqueles cestos grandes da lavanderia? Posso mandar duas Donzelas carregarem.
Egwene quase gritou de frustração. Rand estava tão ansioso para se ver livre dela quanto das Aes Sedai.
— Pode deixar que meus próprios pés já são o bastante, obrigada. — Um cesto de lavanderia, ora essa! — Se me dissesse como faz para vir de Caemlyn para cá na hora que quiser, eu não precisaria me preocupar. — Ela não entendia por que era tão difícil perguntar a ele. — Sei que você não tem como me ensinar, mas, se me dissesse como faz, talvez eu pudesse dar um jeito de imitar o truque usando saidar.
Em vez de zombar dela, o que Egwene já praticamente esperava que acontecesse, Rand segurou as pontas de seu xale com ambas as mãos.
— Tem o Padrão — começou ele. — Aqui é Caemlyn — um dos dedos da mão esquerda se ergueu, elevando o tecido de lã —, e aqui é Cairhien. — Um dedo da outra mão se ergueu do outro lado, então ele uniu as pontas dos dois dedos. — Eu dobro o Padrão, então faço um buraco de um ponto ao outro. Não sei o que é que escavo para abrir esse buraco, mas não há espaço entre uma ponta e a outra. — Ele deixou o xale cair. — Isso ajuda?
Egwene mordeu o lábio e encarou o xale de cenho franzido, amargurada. Não ajudava em nada. Ficava enjoada só de pensar em abrir um buraco no Padrão. Tivera a esperança de que fosse ser como algo que ela descobrira em relação a Tel’aran’rhiod — não que pretendesse usar sua descoberta, claro, mas tivera todo aquele tempo nas mãos, e as Sábias não paravam de resmungar a respeito das perguntas das Aes Sedai sobre como entrar lá em carne e osso. Egwene achava que a solução seria criar uma semelhança — esse parecia o único meio de descrever o que precisava ser feito — entre o mundo real e seu reflexo no Mundo dos Sonhos. O que criaria um lugar onde seria possível simplesmente passar de um mundo para o outro. Se a Viagem de Rand tivesse uma relação mínima com isso, Egwene estaria disposta a tentar. Mas aquilo… Saidar sempre obedecia aos desejos de quem canalizava, bastava se ter consciência de que o Poder era muito mais forte que qualquer pessoa e precisava ser conduzido com delicadeza. Tentar forçar algo errado poderia resultar em morte, ou a pessoa acabaria exaurida antes mesmo de conseguir gritar.
— Rand, tem certeza de que não existe um meio de tornar as coisas mais iguais… ou… — Não sabia explicar. Em todo caso, ele balançou a cabeça antes mesmo que ela começasse a diminuir a voz em busca das palavras certas.
— Me parece muito que essa sua ideia mudaria a tessitura do Padrão. Acho que eu acabaria destruído se tentasse. Eu só faço um buraco — completou, cutucando-a para demonstrar.
Bem, não havia sentido em tentar aprender aquilo. Egwene ajeitou o xale, irritada.
— Rand, e quanto ao Povo do Mar? Não sei nada sobre eles além do que li. — Na verdade sabia, mas não contaria a ele. — Mas deve ser um assunto importante para eles virem tão longe só para falar com você.
— Luz — murmurou Rand, distraído —, você pula de um assunto a outro feito uma gota d’água na frigideira quente. Vou receber o Povo do Mar quando tiver tempo. — Ele esfregou a testa, e seus olhos pareciam não ver. Então piscou, e já a encarava de novo. — Pretende ficar aqui até elas voltarem?
Ao que parecia, Rand queria mesmo se ver livre dela.
Egwene parou diante da porta, antes de sair, mas Rand já começara a andar de um lado a outro pela sala, as mãos entrelaçadas às costas, falando sozinho. Falava bem baixo, mas ela conseguiu entender uma parte:
— Que o queime, onde você está se escondendo? Sei que está aí!
Arrepiada, Egwene saiu. Se Rand estivesse mesmo enlouquecendo, não havia o que fazer. Bem, haveria de ser o que a Roda tecesse, e teriam que lidar com a tessitura que viesse.
Egwene se obrigou a se acalmar quando notou que estava atenta aos serviçais que passavam de um lado a outro do corredor, perguntando-se quais seriam agentes das Aes Sedai. Haveria de ser o que a Roda tecesse. Cumprimentando Somara com um meneio de cabeça, ela endireitou os ombros e fez um esforço enorme para não sair correndo até a entrada de serviço mais próxima.
Não havia muita conversa no interior da melhor carruagem de Arilyn, que partia do Palácio do Sol seguida pelo carroção que antes levara os baús, mas que agora transportava apenas as serviçais e o condutor. Nesune, que passara um tempo tamborilando sobre as costuras do banco de couro, começou a bater os dedos contra os lábios, pensativa. Que jovem interessante. Um objeto de estudo fascinante. Seu pé encostou em uma das caixas para catalogação de espécimes sob o assento — Nesune nunca ia a lugar algum sem seus compartimentos apropriados para catalogar os novos espécimes que encontrasse. Era de se pensar que o mundo inteiro já tivesse sido catalogado, mas, desde que partiram de Tar Valon, ela já armazenara cinquenta plantas, o dobro de insetos, a pele e os ossos de uma raposa, três tipos de cotovias e nada menos que cinco espécies de esquilos terrestres que tinha certeza de que ainda não estavam em nenhum registro.
— Eu não sabia que você e Alviarin eram amigas — comentou Coiren, depois de um tempo.
Galina fungou com desdém.
— Não é preciso ser amiga dela para saber que ela estava bem quando partimos.
Nesune se perguntou se Galina sabia que estava fazendo um beicinho de irritação. Bem, talvez fosse apenas o formato natural da boca… ora, a pessoa precisava aprender a lidar com o próprio rosto.
— Acha que ele sabia mesmo? — prosseguiu Galina. — Que ele sabia que estávamos… não é possível. Devia ser um palpite.
Nesune quase se aprumou, atenta, mas não parou de tamborilar os lábios. Era um esforço óbvio para mudar de assunto, assim como um sinal de que Galina estava nervosa. O silêncio persistira por todo aquele tempo porque ninguém queria tocar no nome de al’Thor. Ao mesmo tempo, parecia não haver nenhum outro assunto possível. Por que Galina não queria falar sobre Alviarin? As duas decerto não eram amigas; era raro uma Vermelha ter amizade com alguém de outra Ajah. Nesune registrou a dúvida em seu arquivo mental.
— Se era só um palpite, ele poderia fazer fortuna nas apostas das feiras. — Coiren não era boba. Era explosiva até além da conta, mas não era nada boba. — Não importa o quanto essa ideia pareça ridícula, temos que presumir que ele pode sentir saidar numa mulher.
— Isso pode ser um desastre — resmungou Galina. — Não, não é possível. Só pode ter sido um palpite. Qualquer homem capaz de canalizar presumiria que estávamos abraçadas a saidar.
Nesune realmente se irritava com aquele beicinho; se irritava com aquela expedição toda. Estaria mais do que feliz em fazer parte da empreitada se tivessem lhe pedido para ir, mas Jesse Bilal não pedira, apenas a colocara no cavalo quase à força. Não importava como eram as coisas nas outras Ajahs, ninguém esperava que a líder do conselho das Marrons agisse daquela forma. E o pior de tudo era que suas acompanhantes estavam tão concentradas no jovem al’Thor que pareciam ter ficado cegas para qualquer outra coisa.
— O que acharam da irmã presente naquela audiência? — indagou, pensando alto.
Talvez não fosse uma irmã — sempre encontrava três Aiel quando ia à Biblioteca Real, e duas delas eram capazes de canalizar. Ainda assim, queria ver as reações das outras. Não estava desapontada — ou melhor, estava. Coiren apenas se endireitou, mas Galina a encarou, chocada. Nesune fez um esforço enorme para conter um suspiro. As duas realmente eram cegas. Tinham ficado a poucas passadas de uma mulher capaz de canalizar, mas não a sentiram só porque não podiam enxergá-la.
— Não sei como ela se escondeu — prosseguiu —, mas vai ser interessante descobrir.
Só podia ter sido obra dele, já que as três teriam notado qualquer tessitura de saidar. As outras não perguntaram se ela tinha certeza, pois sabiam que ela sempre deixava claro quando estava apenas conjecturando.
— É uma confirmação de que Moiraine está viva — declarou Galina, recostando-se no assento da carruagem com um sorriso sombrio. — Minha sugestão é mandar Beldeine atrás dela. Aí nós a pegamos e a deixamos amarrada no porão. Isso vai manter a mulher longe de al’Thor, pelo menos. E podemos arrastar Moiraine de volta para Tar Valon junto com o garoto. Duvido de que ele vá perceber, basta ofuscar sua vista com bastante ouro.
Coiren balançou a cabeça com vigor, em uma negativa enfática.
— Não temos nenhuma confirmação a mais do que já tínhamos, não de Moiraine. Pode ser essa Verde misteriosa. Quanto a essa ideia de descobrir quem quer que seja, eu concordo. Mas precisamos pensar bem antes de agir. Não vou arriscar todo o nosso plano, feito com tanto cuidado. Temos que nos manter cientes de que al’Thor tem uma ligação com essa irmã, quem quer que ela seja, e que ele pode ter pedido mais tempo apenas como uma estratégia. Por sorte, temos tempo.
Galina assentiu, ainda que relutante — a mulher se casaria e iria morar em uma fazenda antes de arriscar os planos.
Nesune se permitiu um suspiro tímido. Além daquela pompa toda, o outro único verdadeiro defeito de Coiren era sua mania de afirmar o óbvio. A mulher de fato tinha a cabeça boa, quando a usava. E de fato tinham tempo. Seu pé encostou outra vez em uma das caixas de espécimes catalogados. Não importava como tudo transcorreria, o registro que pretendia escrever sobre al’Thor seria o ápice de sua vida.