CAPÍTULO 13 Sob a poeira

Nynaeve, enrolada em uma toalha esfarrapada de listras vermelhas e se perguntando se era melhor desfazer a trança, olhou irritada para o vestido e a roupa de baixo pendurados no encosto das cadeiras, pingando nas tábuas recém-varridas do chão. Sua outra opção de vestimenta era outra toalha velha, essa listrada de verde e branco e consideravelmente maior.

— Agora sabemos que choque não funciona — rosnou, para Theodrin, estremecendo. Sentia a mandíbula doer, e as bochechas ainda ardiam. Theodrin tinha reflexos rápidos e um braço forte. — Eu até conseguiria canalizar agora, mas, enquanto testávamos essa alternativa, saidar era a última coisa em que eu pensaria. — No momento em que fora encharcada, perdera o fôlego, os pensamentos fugiram e os instintos assumiram o comando.

— Bem, então canalize para secar suas coisas — resmungou Theodrin.

A dor na mandíbula de Nynaeve até diminuiu ao ver Theodrin examinar o próprio reflexo em um triângulo de espelho quebrado e levar a mão ao olho. A pele já estava meio inchada, e Nynaeve suspeitava que o hematoma ficaria espetacular. Seu braço não era tão fraco assim. E um hematoma era o mínimo que Theodrin merecia!

Talvez a domanesa pensasse a mesma coisa, já que disse, em um suspiro:

— Não vou tentar isso de novo. Mas ainda vou conseguir ensinar você a se render a saidar sem ter que ficar irritada a ponto de agarrar a Fonte com os dentes.

Olhando irritada para as roupas encharcadas, Nynaeve parou um instante para pensar. Nunca tinha feito nada parecido. Eram proibidas de realizar tarefas com o Poder, e com razão. Saidar era sedutora. Quanto mais a pessoa canalizava, mais queria canalizar — e, quanto mais a pessoa queria canalizar, maior o risco de que abraçasse Poder demais e acabasse estancada ou morta. A doçura da Fonte Verdadeira veio preenchê-la sem quaisquer impedimentos — se a manhã já não tivesse sido o suficiente, o balde de água de Theodrin garantira a irritação. Uma simples trama de Água absorveu toda a umidade de suas roupas e a fez escorrer pelo chão, formando uma poça que logo se espalhou e se juntou aos resquícios do balde.

— Não sou muito boa em me render — comentou.

A menos que não houvesse mais razão para lutar. Só um tolo insistiria quando não havia chance de vitória. Nynaeve não conseguia respirar debaixo d’água, não conseguia voar batendo os braços… e não conseguia canalizar se não estivesse irritada.

Theodrin, que olhava irritada para a poça, voltou-se para Nynaeve e plantou as mãos na cintura fina.

— Estou bem ciente disso — retrucou, com calma demais. — Por tudo o que aprendi, você não deveria sequer conseguir canalizar. Fui ensinada que é preciso estar calma para canalizar, estar internamente serena e tranquila, com a menta aberta e complacente. — O brilho tênue de saidar a rodeava, e fluxos de Água reuniram a pocinha em uma bola líquida, uma visão estranha apoiada no chão. — É preciso se entregar antes de guiar. Mas você, Nynaeve… por mais que tente se render, e olha que já a vi tentar, você persiste e se agarra com unhas e dentes, a não ser que esteja furiosa o bastante para esquecer a luta e se deixar levar. — Fluxos de Ar ergueram a bola oscilante. Por um instante, Nynaeve achou que a domanesa pretendia atirar a água nela, mas a esfera flutuou pelo recinto e saiu por uma das janelas abertas. Fez um estrondo ao cair, e um gato berrou, assustado e irritado. Talvez a proibição não se aplicasse a alguém do nível de Theodrin.

— Por que não deixamos por isso mesmo? — Nynaeve tentou soar otimista, mas achava que não tinha se saído muito bem. Queria poder canalizar quando bem entendesse. Mas, como dizia o ditado, “se desejos dessem asas, os porcos poderiam voar”. — Não faz sentido perder…

— Deixe ele assim — mandou Theodrin, quando Nynaeve começou a passar a trama de Água nos cabelos. — Solte saidar, deixe ele secar naturalmente. E vista suas roupas.

Nynaeve estreitou os olhos.

— Você tem outra surpresa me esperando, não tem?

— Não. Agora comece a preparar sua mente. Você é um botão de flor sentindo o calor da Fonte, pronto para se abrir. Saidar é o rio, você é a margem. O rio é mais poderoso que a margem, mas é ela que o contém e o conduz. Esvazie a mente e fique só com o botão. Não há nada em seus pensamentos além do botão. Você é o botão…

Enfiando a roupa de baixo pela cabeça, Nynaeve suspirou enquanto a voz de Theodrin prosseguia, hipnótica. Exercícios de noviça. Se funcionassem para ela, já teria conseguido canalizar por vontade própria muito tempo antes. Devia desistir logo daquilo e ir tratar de coisas que conseguiria resolver, como convencer Elayne a ir a Caemlyn. Mas queria que Theodrin conseguisse o que pretendia, mesmo que precisasse de dez baldes d’água. Aceitas não viravam as costas; Aceitas não desafiavam a autoridade. Odiava que os outros lhe dissessem o que não era capaz de fazer, mais ainda do que quando lhe diziam o que fazer.

Horas se passaram, e as duas ficaram ali, sentadas, uma de frente para a outra, diante de uma mesa que parecia saída de uma fazenda decrépita. Passaram horas repetindo os exercícios que as noviças também deviam estar fazendo naquele mesmo instante. O botão de flor e a margem do rio. A brisa de verão e o riacho murmurante. Nynaeve tentou ser uma semente de dente-de-leão flutuando ao vento, tentou ser a terra sorvendo a chuva da primavera, tentou ser uma raiz penetrando o solo bem lentamente. Tudo sem efeito — ou, pelo menos, sem o efeito que Theodrin queria. A domanesa chegara a sugerir que Nynaeve se imaginasse nos braços de um amante, o que acabou sendo um desastre, já que ela acabou pensando em Lan — como ele ousava sumir daquele jeito! —, mas a cada vez a frustração virava raiva, incendiando seu gênio feito brasa em palha seca, e punha saidar a seu alcance, Theodrin mandava que soltasse e recomeçasse, devagar e com calma. A domanesa se agarrava ao que queria com tanta intensidade que era enlouquecedor. Nynaeve achou que a mulher poderia ensinar as mulas a serem teimosas. E Theodrin nunca se frustrava, sua serenidade era quase uma arte. Nynaeve queria virar um balde de água fria na cabeça dela, para ver se ela ia gostar. Por outro lado, considerando a dor que sentia na mandíbula, talvez não fosse boa ideia.

Theodrin Curou o machucado antes de a aula acabar, que era até onde iam suas habilidades naquele Dom. Logo depois, Nynaeve retribuiu a Cura. O olho de Theodrin assumira um tom de roxo brilhante, e odiava não poder deixá-lo de lembrança para que a mulher tivesse um pouco mais de cuidado ao planejar as aulas seguintes. Mas a retribuição era apenas justa, e os arquejos e arrepios de Theodrin quando os fluxos de Espírito, Ar e Água percorreram seu corpo foram como uma retribuição pelos arquejos da própria Nynaeve, quando aquele balde foi jogado em cima dela. Claro que também estremecera na hora de ser Curada, mas não se podia ter tudo.

Lá fora, o sol já estava a meio caminho do horizonte a oeste. Na rua, uma onda de mesuras e reverências percorreu a multidão, que abria caminho para Tarna Feir. A representante da Torre ia deslizando com a elegância de uma rainha ao caminhar por um chiqueiro, o xale de franjas vermelhas enrolado nos braços, tão chamativo quanto um estandarte. Mesmo a cinquenta passadas de distância, a atitude era clara na maneira como mantinha a cabeça erguida e levantava as saias para não sujá-las de terra, ignorando até os que a cumprimentavam com mesuras quando ela passava. Houvera muito menos reverências e bem mais alvoroço e insultos no primeiro dia, mas uma Aes Sedai era uma Aes Sedai — ao menos para as irmãs em Salidar, que reforçaram essa lição com duras punições: duas Aceitas, cinco noviças e quase dez serviçais, homens e mulheres, passavam as horas de folga arrastando lixo da cozinha e dejetos de penico até as florestas, para serem enterrados.

Enquanto Nynaeve tentava escapulir antes que Tarna pudesse vê-la, seu estômago roncou tão alto que rendeu um olhar assustado de um sujeito carregando um cesto de nabos nas costas. Tinha perdido o café da manhã com as tentativas de Elayne de romper o selo de proteção e o almoço com os exercícios de Theodrin — e as aulas daquele dia ainda não tinham acabado: recebera instruções de Theodrin para que não dormisse à noite. O choque falhara, mas talvez a exaustão funcionasse. Qualquer bloqueio pode ser quebrado, dissera Theodrin, em um tom confiante e implacável, e eu vou quebrar o seu. Só precisa acontecer uma vez. Uma vez canalizando sem raiva, e saidar será sua.

Naquele momento, Nynaeve só queria comida. Os ajudantes já estavam quase terminando a limpeza das cozinhas, claro, mas o aroma de cozido de carneiro e porco assado aguçou seu nariz — ainda assim, Nynaeve teve que se contentar com duas maçãs horrorosas, um pedaço de queijo de cabra e um naco de pão. O dia não estava melhorando.

De volta ao quarto, encontrou Elayne esparramada na cama. A Filha-herdeira olhou-a sem nem erguer a cabeça, então voltou a encarar o teto rachado.

— Meu dia foi péssimo, Nynaeve — comentou, com um suspiro. — Escaralde insiste em aprender a fazer um ter’angreal, sendo que não tem força para isso. E Varilin fez alguma coisa… não sei o quê… e a pedra em que ela estava trabalhando virou uma bola de… bem, não era exatamente fogo… e bem nas mãos dela! Acho que teria morrido se Dagdara não estivesse conosco… Ninguém mais ali conseguiria Curá-la, e acho que não teria dado tempo de buscar outra pessoa. Daí fiquei pensando em Marigan… Mesmo que a gente não consiga aprender a detectar um homem canalizando, talvez dê para detectar o que ele já fez… Acho que me lembro de Moiraine insinuando que era possível. Acho que me lembro… de todo modo, eu estava distraída pensando nela quando alguém encostou no meu ombro, aí eu dei um berro, como se tivesse levado uma picada de agulha. Era só o coitado de um carroceiro querendo me perguntar sobre algum boato idiota, mas assustei tanto o homem que ele quase saiu correndo.

Ela enfim fez uma pausa para tomar fôlego, e Nynaeve abandonou a ideia de atirar o resto da última maçã em sua cabeça e aproveitou o silêncio para perguntar:

— Cadê a Marigan?

— Ela demorou bastante na arrumação, mas como já tinha terminado, eu a mandei voltar para o quarto. E ainda estou usando o bracelete. Está vendo? — Ela sacudiu o braço, depois o largou de volta no colchão, mas a torrente de palavras não desacelerou. — Ela não parava de choramingar daquele jeito horroroso sobre como deveríamos fugir para Caemlyn, e eu simplesmente não conseguia aguentar nem mais um minuto, não depois do dia que tive. A aula com as noviças foi um desastre. Sabe a Keatlin, aquela mulher terrível, a nariguda? Ela não parava de resmungar que se estivesse em casa não deixaria uma garota dar as ordens. Daí Faolain chegou batendo o pé, exigindo saber por que Nicola estava na aula. Como é que eu ia saber que Nicola devia estar cuidando de umas tarefas para ela? Depois Ibrella decidiu tentar fazer a maior chama que poderia e quase tocou fogo na sala inteira, e Faolain me passou um sermão na frente de todo mundo por não conseguir controlar a turma. E Nicola disse que ela

Nynaeve desistiu de tentar encontrar uma brecha para falar — talvez devesse ter atirado a maçã —, então simplesmente gritou:

— Eu concordo com a Moghedien!

O nome calou a boca de Elayne, que se sentou na cama, surpresa. Mesmo sabendo que estava dentro do quarto, Nynaeve não pôde deixar de olhar em volta para conferir se alguém a ouvira.

— Mas que tolice, Nynaeve.

Não dava para saber se a Filha-herdeira se referia à sua opinião ou a ela ter falado o nome da Abandonada em voz alta, e Nynaeve não pretendia perguntar. Ela se sentou na própria cama, de frente para Elayne, e ajeitou as saias.

— Não, não é. Qualquer dia desses, Jaril e Seve vão acabar contando que Marigan não é mãe deles, isso se já não tiverem contado. Você está preparada para responder às perguntas que virão depois? Eu, não. Qualquer dia desses, alguma Aes Sedai vai querer entender como é que eu consigo descobrir tanta coisa sem passar raiva do dia até a noite. A cada duas Aes Sedai com quem falo, uma menciona o assunto. E Dagdara anda me olhando de um jeito estranho. Além do mais, elas só vão ficar aqui, sentadas, mais nada. A não ser que decidam voltar para a Torre. Entrei escondida lá e escutei Tarna conversando com Sheriam…

— Você o quê?

— Eu entrei escondida e fiquei ouvindo — respondeu Nynaeve, muito calma. — A mensagem que mandaram para Elaida é de que precisam de mais tempo para considerar a proposta. O que, no mínimo, quer dizer que estão considerando esquecer essa história da Ajah Vermelha com Logain. Não sei como teriam coragem de deixar isso de lado, mas aposto que estão considerando. Se ficarmos por muito mais tempo aqui, podemos acabar entregues de presente a Elaida. Se formos agora, pelo menos poderemos dizer a Rand para ele não contar com o apoio de nenhuma Aes Sedai. Dizer para ele não confiar em nenhuma Aes Sedai.

Franzindo o cenho com toda a elegância, Elayne se sentou de pernas cruzadas.

— Se ainda estão considerando a proposta, então não se decidiram. Acho melhor ficarmos. Talvez a gente possa ajudá-las a tomar a decisão certa. Além do mais, você nunca vai conseguir romper esse seu bloqueio se formos embora. A não ser que pretenda convencer Theodrin a ir junto.

Nynaeve ignorou o comentário. Como se Theodrin tivesse feito muita diferença. Baldes de água. Nada de dormir à noite. O que viria depois? A mulher praticamente dissera que ia tentar o possível e o impossível até descobrir algo que funcionasse. Nynaeve achava que havia coisa demais entre o possível e o impossível.

— Ajudá-las a decidir? Elas não vão nos dar ouvidos. Até mesmo Siuan mal nos dá ouvidos. E isso porque ela tem o rabo preso com a gente, e nós com ela.

— Ainda acho melhor ficarmos aqui. Pelo menos até o Salão decidir alguma coisa. Então, se o pior acontecer, pelo menos teremos fatos para contar a Rand, e não suposições.

— E como é que vamos descobrir o que elas decidirem? Não dá para esperar que eu vá encontrar duas vezes a janela certa para espiar. Se esperarmos algum anúncio, pode ser que já tenham começado a nos vigiar. Ou a mim, pelo menos. Não tem uma só Aes Sedai que não saiba que eu e Rand somos de Campo de Emond.

— Siuan vai nos contar antes de qualquer anúncio — retrucou a garota tola, com toda a calma. — Você não acha que ela e Leane vão voltar mansinhas para Elaida, acha?

Havia esse detalhe. Elaida ia mandar arrancar a cabeça de Siuan e de Leane antes que elas pudessem sequer fazer uma mesura.

— Mas isso ainda não leva em conta o problema de Jaril e Seve — insistiu Nynaeve.

— Vamos pensar em alguma coisa. Não é como se fossem as primeiras crianças refugiadas cuidadas por alguém que não é parente. — Elayne decerto estava achando que o sorriso de covinhas que deu era reconfortante. — Só precisamos nos concentrar em arranjar uma solução. E temos no mínimo que esperar Thom voltar de Amadícia. Não posso deixá-lo para trás.

Nynaeve jogou as mãos para cima, frustrada. Se a aparência das pessoas refletisse a personalidade, Elayne seria uma mula esculpida em pedra. A garota tinha tomado Thom Merrilin como substituto do pai, que morrera quando ela ainda era pequena. E às vezes parecia pensar que o homem não conseguiria nem encontrar o caminho até a mesa de jantar se ela não o tomasse pela mão.

O único aviso foi a sensação de alguém abraçando saidar ali perto, então um fluxo de Ar fez a porta se abrir, e Tarna Feir adentrou o quarto. Nynaeve e Elayne se levantaram de um salto. Uma Aes Sedai era uma Aes Sedai, e em alguns casos bastara a palavra de Tarna para que a pessoa se juntasse aos demais ofensores enterrando lixo nas horas vagas.

A loura encarou as duas Aceitas com uma expressão arrogante no rosto que parecia feito de mármore branco.

— Pois bem. A Rainha de Andor e a bravia incapaz.

— Ainda não sou rainha, Aes Sedai — respondeu Elayne, com uma polidez fria. — Só quando for coroada no Grande Salão. E só se minha mãe estiver morta.

Tarna abriu um sorriso mais gélido do que uma tempestade de neve.

— É claro. Tentaram manter sua presença aqui em segredo, mas sempre há boatos e sussurros. — Ela olhou as camas estreitas e o banquinho bambo, as roupas penduradas nos grampos presos às paredes de gesso rachado. — Imaginei que teriam alojamento melhor, considerando todos os milagres por que são responsáveis. Se estivessem na Torre, onde é o seu lugar, não seria surpresa se as duas já estivessem prestes a ser testadas para o xale.

— Obrigada — respondeu Nynaeve, querendo mostrar que podia ser tão educada quanto Elayne. Tarna a encarou. Aqueles olhos azuis quase faziam sua expressão parecer calorosa. Então acrescentou, mais do que depressa: — Aes Sedai.

Tarna virou-se de volta para Elayne.

— Você tem um lugar especial no coração da Amyrlin, assim como Andor. Você não conseguiria nem acreditar na enormidade de recursos empregados nas buscas pelo seu paradeiro. Sei que ela ficaria muito feliz se você retornasse comigo a Tar Valon.

— Meu lugar é aqui, Aes Sedai. — A voz de Elayne ainda era agradável, mas a jovem mantinha o queixo erguido, em uma postura tão arrogante que competia com a de Tarna. — Retornarei à Torre junto com as outras irmãs.

— Entendo — respondeu a Vermelha, impassível. — Muito bem. Agora nos dê licença. Quero conversar a sós com a bravia.

Nynaeve e Elayne se entreolharam, mas não havia nada que a Filha-herdeira pudesse fazer além de se curvar em uma mesura e se retirar.

Quando a porta se fechou, a mudança na postura de Tarna foi surpreendente. A mulher se sentou na cama de Elayne e pôs as pernas para cima, cruzou os pés, recostou-se contra a cabeceira lascada e cruzou as mãos sobre a barriga. Seu rosto relaxou, e ela até sorriu.

— Você parece tensa. Não fique. Eu não mordo.

Nynaeve teria acreditado mais se os olhos da Aes Sedai também tivessem mudado junto com a postura. O sorriso não chegava aos olhos — pelo contrário, os olhos pareciam dez vezes mais duros, cem vezes mais gélidos, por causa do contraste. Nynaeve sentiu calafrios.

— Eu não estou tensa — retrucou, rígida, plantando os pés no chão para não os remexer.

— Ah. Então está ofendida? Por quê? Foi porque a chamei de “bravia”? Eu também sou bravia, sabe. Foi a própria Galina Casban que desfez meu bloqueio, com uma boa surra. Ela já sabia qual seria a minha Ajah muito antes que eu mesma soubesse e manifestou seu interesse por mim. Galina sempre faz isso com as que ela acredita que escolherão a Ajah Vermelha. — Tarna balançou a cabeça, rindo, os olhos ainda frios e cortantes. — Ah, as horas que passei gritando e chorando antes de conseguir encontrar saidar sem estar com os olhos bem fechados… não dá para urdir tramas sem enxergar os fluxos. Fiquei sabendo que Theodrin está usando métodos mais delicados com você.

Nynaeve remexeu os pés involuntariamente. Theodrin não tentaria uma coisa dessas! Tinha certeza disso. Retesar os joelhos não diminuía as reviravoltas em seu estômago. Então não deveria se sentir ofendida? Era para ignorar o “incapaz” também?

— Sobre o que queria falar comigo, Aes Sedai?

— A Amyrlin quer ver Elayne em segurança, mas, sob muitos aspectos, você é igualmente importante. Talvez até mais. O que você guarda na cabeça sobre Rand al’Thor pode ser inestimável. Isso e o que tem na cabeça de Egwene al’Vere. Sabe onde ela está?

Nynaeve queria secar o suor da testa, mas manteve as mãos firmes ao lado do corpo.

— Faz muito tempo que não vejo Egwene, Aes Sedai. — Fazia meses desde o último encontro das duas, em Tel’aran’rhiod. — Se me permite a pergunta, quais são as intenções da… — Ninguém ali em Salidar chamava Elaida de Amyrlin, mas ela supostamente devia respeito àquela Vermelha à sua frente. — … da Amyrlin em relação a Rand?

— Intenções, criança? Ele é o Dragão Renascido. A Amyrlin sabe disso e pretende dar a ele todas as honras merecidas. — A voz de Tarna ganhou um toque de intensidade. — Pense, criança. Este grupo daqui vai voltar assim que as irmãs perceberem as consequências de seus atos, mas cada dia que se passa pode fazer a diferença. Já faz três mil anos que a Torre Branca orienta os governantes — sem as Aes Sedai, teria havido mais guerras, e muito mais sangrentas. O mundo corre o risco de cair em desgraça se al’Thor não receber essa orientação. Só que, assim como não dá para urdir a trama sem ver os fluxos, não se pode orientar um completo desconhecido. O melhor para al’Thor seria que você voltasse comigo e repassasse tudo o que sabe sobre ele à Amyrlin. E que voltasse logo agora, não daqui a semanas ou meses. Isso também seria o melhor para você. Não dá para ser elevada a Aes Sedai aqui: o Bastão dos Juramentos está na Torre. A testagem só pode ser feita em Tar Valon.

O suor escorria, fazendo arder os olhos de Nynaeve, mas ela se recusava a piscar. Aquela mulher achava que podia suborná-la?

— A verdade é que nunca passei muito tempo com ele. Eu morava na aldeia, sabe, e ele morava numa fazenda mais afastada na Floresta do Oeste. Só me lembro de um garoto que se recusava a ouvir a voz da razão. Ele precisava ser obrigado a cumprir com suas obrigações, às vezes até arrastado. Isso quando garoto, é claro. Ele pode muito bem ter mudado. Claro que quase todos os homens não passam de garotos crescidos, mas ele pode ter mudado.

Tarna apenas a encarou por um longo instante — longo demais, sob aquela mirada gélida.

— Bom — disse a Vermelha, enfim, e levantou-se tão depressa que Nynaeve quase deu um passo para trás, mas não havia para onde recuar naquele quartinho minúsculo. O sorriso inquietante permanecia. — Foi um grupo estranho o que se reuniu aqui. Não vi nenhuma das duas, mas ouvi dizer que Siuan Sanche e Leane Sharif estão abrilhantando a cidade com sua presença. Não é o tipo de gente a quem uma mulher sábia gostaria de se associar. E talvez os outros também não sejam. Seria muito melhor para você se viesse comigo. Partirei pela manhã. Quero que me avise ainda hoje à noite se devo ou não esperar por você na estrada.

— Receio que não…

— Pense a respeito, criança. Essa pode ser a decisão mais importante da sua vida. Pense bem. — A máscara de cordialidade esvaneceu, e Tarna saiu do quarto.

Os joelhos de Nynaeve cederam, e ela despencou na cama. A mulher despertara tantas emoções que ela não fazia ideia de como lidar com tudo aquilo. Sentia a raiva e a inquietude se revolvendo dentro de si em um frenesi. Queria que a Vermelha tivesse algum meio de se comunicar com as Aes Sedai da Torre que estavam atrás de Rand. Ah, queria ser uma mosquinha para ouvir quando tentassem usar o que ela dissera a respeito dele. Aquelas mulheres tentavam suborná-la. Tentavam deixá-la com medo — e tinham sucesso, precisava admitir. Tarna tinha tanta certeza de que as Aes Sedai ali acabariam se ajoelhando aos pés de Elaida… A Vermelha decidira que a rendição era inevitável, era apenas uma questão de tempo. E será que a parte final havia sido uma alusão a Logain? Nynaeve suspeitava de que Tarna soubesse mais de Salidar do que o Salão ou Sheriam imaginavam. Talvez Elaida realmente tivesse defensoras ali na cidade.

Ficou esperando Elayne voltar, mas, depois de quase meia hora sem nem sinal da Filha-herdeira, saiu atrás da garota. A princípio apenas andou pelas ruas de terra batida, depois apertou o passo, parando aqui e ali para espiar a multidão de cabeças de cima de um carroção, escalando um barril virado para baixo ou uma plataforma de pedra. O sol já estava bem baixo, quase na linha das árvores, quando ela voltou para o quarto, resmungando sozinha. E deu de cara com Elayne, que também acabava de chegar.

— Onde você se meteu? Achei que Tarna tinha lhe amarrado em algum canto!

— Estava pegando isto aqui com Siuan.

Elayne abriu a mão. Na palma havia dois dos anéis de pedra retorcidos.

— Algum deles é o verdadeiro? Foi uma boa ir atrás deles, mas você deveria ter tentado pegar o verdadeiro.

— Nada me fez mudar de opinião, Nynaeve. Ainda acho melhor ficarmos.

— Mas Tarna…

— Só aumentou minhas certezas. Se formos embora, Sheriam e o Salão definitivamente vão escolher a Torre em vez de Rand. Sei disso. — Ela pôs as mãos nos ombros de Nynaeve, que se deixou conduzir até sentar-se na cama. Elayne ocupou a cama em frente e se inclinou para mais perto, enfatizando o que dizia: — Você se lembra do que me disse sobre usar a necessidade como guia para encontrar alguma coisa em Tel’aran’rhiod? A gente precisa é de um jeito de convencer o Salão a não ir até Elaida.

— Como? Que jeito? Se a história de Logain não basta…

— A gente vai saber quando encontrar — respondeu Elayne, com firmeza.

Nynaeve, absorta, passou os dedos pela trança grossa.

— E você vai aceitar ir embora se não encontrarmos nada? Não gosto da ideia de ficar aqui, sentada, até elas decidirem começar a nos vigiar.

— Vou aceitar ir embora, mas só se você concordar em ficar se encontrarmos alguma coisa útil. Nynaeve, por mais que eu queira vê-lo, somos mais úteis aqui.

Nynaeve hesitou, então concordou com um murmúrio. Parecia um acordo seguro. Como não tinham ideia do que procurar, ela achava que não havia a menor chance de encontrarem qualquer coisa de útil.

Se o dia já estava passando devagar antes daquilo, agora parecia se arrastar. As duas foram para a fila de uma das cozinhas pegar os pratos de presunto fatiado, nabos e ervilhas. O sol parecia parado havia horas bem no topo das árvores. Quase todos em Salidar se deitavam logo após o pôr do sol, mas sempre restavam umas poucas luzes saindo das janelas, sobretudo na Pequena Torre, onde o Salão oferecia jantares para Tarna. Uma melodia de harpas volta e meia escapava da antiga estalagem — as Aes Sedai tinham encontrado um harpista razoável entre os soldados, então mandaram o sujeito fazer a barba e se enfiar nas roupas chamativas dos músicos. As pessoas na rua circulavam a passos rápidos diante da estalagem, apenas olhando de soslaio para o interior ou fazendo tanto esforço para ignorar a movimentação lá dentro que chegavam a tremer com a tensão. Gareth Bryne, como sempre, era a exceção. Ele fez sua refeição sentado em um caixote de madeira no meio da rua, em um ponto em que seria visto por qualquer um do Salão que olhasse pela janela. Devagar, muito devagar, o sol foi deslizando por entre as árvores. A escuridão chegou de repente, sem o anúncio do crepúsculo, e as ruas logo ficaram desertas. A melodia do harpista voltou a escapar da estalagem. Gareth Bryne permaneceu sentado no caixote, na beira da luz que saía de uma das janelas do Salão em festa. Nynaeve balançou a cabeça — não sabia se o achava fantástico ou idiota. Um pouco de cada, talvez.

Só depois de estar na cama com o ter’angreal de pedra rajada preso ao cordão em seu pescoço, junto ao pesado anel de ouro de Lan, com a vela apagada, que ela se lembrou das instruções de Theodrin. Bem, tarde demais para aquilo. E, de todo modo, a domanesa não teria como saber se Nynaeve tinha ou não dormido. E onde estava Lan?

A respiração de Elayne foi ficando mais lenta. Nynaeve abraçou o travesseirinho com um breve suspiro, e…

… se viu ao pé da cama vazia, encarando uma Elayne enevoada sob a tênue luz da noite em Tel’aran’rhiod. Ninguém as via ali. Talvez Sheriam ou alguma Aes Sedai de seu círculo estivesse por perto, ou quem sabe Siuan ou Leane. Claro que ela e Elayne tinham o direito de visitar o Mundo dos Sonhos, mas não queriam ter que responder a perguntas sobre o que pretendiam fazer naquela noite. Elayne parecia ver aquilo como uma caçada — conscientemente ou não, se vestira como Birgitte: casaco verde e calças brancas. A jovem piscou para o arco de prata em suas mãos, e ele desapareceu junto com a aljava.

Nynaeve olhou para as próprias vestimentas e suspirou. Um vestido de baile de seda azul com flores douradas bordadas no decote baixo e em linhas trançadas ao longo da saia volumosa. Sentia que calçava sapatilhas de festa de veludo. Não importava muito o que a pessoa vestia em Tel’aran’rhiod, mas o que dera nela para sua mente escolher aquelas roupas?

— Você sabe que isso pode não dar certo, não sabe? — perguntou, mudando as roupas para o vestido de lã simples e os sapatos grossos típicos de Dois Rios. Elayne não tinha o direito de sorrir daquele jeito. Um arco de prata. Rá! — Precisamos ter pelo menos alguma ideia do que estamos procurando, precisamos de pelo menos uma leve noção do que queremos.

— Vai ter que dar certo, Nynaeve. Pelo que você disse, as Sábias ensinaram que quanto mais forte a necessidade, melhor, e precisamos mesmo encontrar alguma coisa, ou a ajuda que prometemos a Rand vai por água abaixo. Vai sobrar só o que Elaida estiver disposta a oferecer. Eu não vou permitir que isso aconteça, Nynaeve. Não vou.

— Abaixe esse nariz empinado. Eu também não vou permitir uma coisa dessas se puder fazer algo a respeito. É melhor a gente andar logo com isso.

Nynaeve deu a mão a Elayne e fechou os olhos. Concentrou-se na necessidade de algo que ajudasse. Esperava que uma parte de si tivesse alguma ideia do que seria isso. Talvez nada acontecesse. Algo que ajudasse. De repente, tudo pareceu derreter à sua volta, e ela sentiu Tel’aran’rhiod inclinar e arremeter.

Abriu os olhos de supetão. Inevitavelmente, cada passo baseado em sua necessidade era dado às cegas e, embora a aproximassem de seu objetivo, qualquer um desses passos poderia jogá-la em um poço de serpentes ou deixá-la cara a cara com um leão em plena caça, pronto para lhe arrancar a perna.

Não viu leões, mas o que viu era perturbador. O brilho do sol indicava que já era meio-dia, mas isso não a incomodou — o tempo ali transcorria de um jeito diferente. Ela e Elayne estavam de mãos dadas em uma rua de paralelepípedos, rodeadas por edifícios de tijolo e pedra — casas e lojas decoradas com sancas e frisos elaborados, os telhados de telha sustentando domos ornamentados, pontes de pedra ou madeira se elevando em arco sobre as ruas, às vezes até três ou quatro andares acima. Pilhas de lixo, roupas velhas e mobília quebrada se amontoavam pelos cantos das ruas, e ratos corriam em bandos, às vezes parando para bater os dentes, destemidos, em desafio. Algumas pessoas apareciam de repente, tremeluzindo, e logo sumiam, trazidas por seus sonhos às margens de Tel’aran’rhiod. Um homem despencou de uma das pontes, aos berros, mas esvaneceu antes de chegar ao chão de pedras. Uma mulher de vestido rasgado gritava enquanto corria em direção a elas, mas também sumiu depois de poucos passos. Gritos e berros truncados ecoavam pelas ruas, e às vezes se ouvia uma risada rouca e quase insana.

— Não estou gostando nada disso — comentou Elayne, preocupada.

Ao longe, uma coluna branca feito neve se assomava acima da cidade, muito mais alta do que as torres ao redor — algumas, inclusive, ligadas por pontes tão altas que faziam as grandes torres da área em que estavam parecerem baixas. As duas estavam em Tar Valon, na parte onde Nynaeve avistara Leane da última vez. A antiga Curadora não falara muito abertamente sobre o que andava fazendo — alegando, com um sorriso, que buscava uma forma de manter a aura de mistério e assombro das Aes Sedai.

— Não importa — declarou Nynaeve, corajosamente. — Ninguém aqui em Tar Valon sequer sabe sobre o Mundo dos Sonhos. Não vamos encontrar ninguém.

Nynaeve sentiu o estômago se revirar quando um homem apareceu de repente, com o rosto ensanguentado, cambaleando em direção a elas. O sujeito não tinha mãos, apenas cotocos esguichando sangue.

— Não foi isso o que eu quis dizer — resmungou Elayne.

— Vamos logo. — Nynaeve fechou os olhos, concentrando-se no que precisavam encontrar.

Tudo mudou.

Estavam na Torre, em um dos corredores circulares com paredes cobertas de tapeçarias. Uma garota gorducha em trajes de noviça brotou a menos de três passadas dali, arregalando os olhos ao vê-las.

— Por favor — choramingou a menina. — Por favor. — E desapareceu.

De repente, Elayne deu um grito:

— Egwene!

Nynaeve deu meia-volta, mas o corredor estava vazio.

— Eu vi a Egwene — insistiu Elayne. — Tenho certeza.

— Imagino que ela possa tocar Tel’aran’rhiod em um sonho comum, como qualquer outra pessoa — sugeriu Nynaeve. — Vamos continuar com o que viemos fazer.

Estava começando a sentir algo maior que desconforto. As duas deram as mãos outra vez. O que precisavam encontrar.

Tudo mudou.

Não era um depósito comum. As paredes estavam cobertas de prateleiras e havia duas fileiras curtas de estantes no meio do aposento, cheias de caixas de vários formatos e tamanhos muito bem guardadas, algumas de madeira lisa, outras com entalhes ou envernizadas. Continham coisas enroladas em pedaços de pano; às vezes pequenas imagens e estatuetas; figuras peculiares de vidro, metal, cristal, pedra ou porcelana esmaltada. Nynaeve não precisava nem olhar com mais atenção para saber que deviam ser objetos do Poder Único, muito provavelmente ter’angreal, talvez até alguns angreal e sa’angreal. Dentro da Torre, uma coleção de objetos tão díspares e guardada com tanto esmero e ordenação não podia ser de outra coisa.

— Acho que não faz muito sentido continuar explorando esse lugar — comentou Elayne, desanimada. — Não sei o que poderíamos conseguir aqui.

Nynaeve deu um leve puxão na trança. Se tivesse alguma coisa ali que pudessem usar — devia haver, a não ser que as Sábias tivessem mentido —, então devia ter um jeito de conseguir chegar a essa coisa no mundo desperto. No tempo que passou na Torre, os angreal e similares não eram tão bem guardados — em geral, eram vigiados apenas por um cadeado e uma noviça. A porta dali era de tábuas pesadas, trancada por um pesado cadeado de ferro preto. Sem dúvida estava trancado, mas ela o visualizou aberto e empurrou a porta.

O depósito se abria para um aposento da guarda. Uma das paredes estava coberta por camas estreitas empilhadas, enquanto a outra continha fileiras de estantes com velhas alabardas. Atrás de uma mesa maciça e surrada rodeada de banquetas ficava outra porta, reforçada com ripas de ferro, com uma pequena janela gradeada.

Assim que ela se virou de volta para Elayne, percebeu que a porta estava fechada outra vez.

— Se a gente não conseguir pegar o que precisa aqui, talvez dê para encontrar algo parecido em algum outro lugar. Quer dizer, talvez alguma outra coisa funcione. Pelo menos agora temos uma pista. Acho que essas coisas aqui são ter’angreal que ninguém descobriu como usar. Só por isso estariam guardados desse jeito. Pode ser que até mesmo canalizar perto deles seja perigoso.

Elayne a encarou com um olhar irônico antes de responder:

— Mas se tentarmos a busca pela necessidade outra vez, não vamos acabar voltando para cá? A não ser que… A não ser que as Sábias tenham lhe ensinado como eliminar um local da busca.

As Sábias não tinham ensinado, não estavam nem um pouco ávidas por compartilhar informação com ela. Mas tudo era possível naquele lugar, onde se podia abrir um cadeado só com a força do pensamento.

— Vamos fazer exatamente isso. Vamos nos concentrar em como o que queremos não está em Tar Valon. — Franzindo o cenho para as prateleiras, Nynaeve acrescentou: — E aposto que vai ser algum ter’angreal que ninguém sabe como usar. — Só não sabia como aquilo ia ajudar a convencer o Salão a apoiar Rand.

— Precisamos de um ter’angreal que não esteja em Tar Valon — disse Elayne, como se tentasse se convencer daquilo. — Muito bem. Vamos em frente.

Ela estendeu as mãos, e, depois de um instante, Nynaeve as segurou. Ainda não conseguia entender o que a possuíra para insistir em continuar a busca. Queria ir embora de Salidar, não encontrar um motivo para ficar. Mas se aquilo lhes trouxesse uma garantia de que as Aes Sedai de Salidar apoiariam Rand…

Pensou no que precisavam. De um ter’angreal. Que não estivesse em Tar Valon. Era disso que precisavam.

Tudo mudou.

Fosse lá onde estivessem, a cidade banhada pela luz da aurora com certeza não era Tar Valon. A menos de vinte passadas dali a rua larga e pavimentada transformava-se em uma ponte de pedras com estátuas nas duas extremidades, a base arqueada unindo as duas margens de pedra de um canal. A cinquenta passadas, no sentido oposto, havia outra ponte. Torres delgadas circundadas por varandas se elevavam por toda a parte, feito lanças cravadas em fatias de estruturas redondas e ornamentadas. Todas as construções eram brancas, com portas e janelas com formato de grandes arcos pontiagudos, às vezes duplos ou triplos. Os edifícios maiores ostentavam compridas varandas de ferro forjado pintadas de branco com vista para as ruas e os canais, mas com telas de ferro em desenhos intrincados encobrindo quaisquer ocupantes; no topo, domos brancos com faixas douradas ou escarlates se erguiam até formarem pontas agudas, tão altas quanto as torres.

Nynaeve se concentrou naquilo que precisavam.

Tudo mudou.

Poderia muito bem ser outra cidade. A rua era estreita e com pavimento irregular, os dois lados completamente cobertos de construções de cinco e seis andares com as paredes rebocadas de massa branca já descascando em vários pontos, deixando os tijolos à mostra. Não havia varandas. Moscas zumbiam pelo ar, e era difícil dizer se ainda era alvorada, com o chão tomado pelas sombras dos edifícios.

As duas se entreolharam. Parecia improvável encontrar um ter’angreal ali, mas já tinham ido longe demais para parar. Tinham que ir atrás do que precisavam.

Tudo mudou.

Nynaeve espirrou antes de conseguir abrir os olhos, então espirrou outra vez assim que os abriu. Cada vez que mexia os pés, subia uma nuvem de poeira. O depósito não era nada parecido com o da Torre. Um pequeno aposento lotado de baús, barris e engradados, empilhados de todas as maneiras possíveis, quase sem deixar espaço entre si, e tudo sob uma grossa camada de poeira. Nynaeve deu um espirro tão forte que achou que seus sapatos iam sair dos pés… e a poeira desapareceu. Toda. Elayne abriu um sorrisinho presunçoso. Nynaeve não disse uma palavra, apenas visualizou o recinto na cabeça, mas sem poeira. Devia ter pensado nisso.

Ela encarou o amontoado de tralhas e soltou um suspiro. O lugar não era maior que o quartinho onde seus corpos dormiam, em Salidar, mas vasculhar aquilo tudo…

— Vai levar semanas.

— Podemos tentar mais uma vez. Talvez isso nos mostre as coisas que precisamos examinar. — Elayne soava tão descrente quanto Nynaeve se sentia, mas era uma boa sugestão.

Nynaeve fechou os olhos, e mais uma vez… tudo mudou.

Quando ela abriu os olhos de novo, estava parada no fim da fileira de tralhas mais afastada da porta, encarando um alto baú quadrado de madeira que ia até sua cintura. As alças estavam enferrujadas, e o próprio baú parecia ter passado os últimos vinte anos sob golpes de martelos. Nynaeve não conseguia imaginar um local mais improvável para armazenar qualquer coisa de útil, ainda mais um ter’angreal. Mas viu Elayne ali, parada bem a seu lado, encarando o mesmo baú.

Nynaeve pôs a mão na tampa — aquelas dobradiças iam abrir sem que ela precisasse forçá-las — e a empurrou para cima. Não houve sequer um rangido. Lá dentro, duas espadas extremamente enferrujadas e uma placa peitoral com um buraco no meio e no mesmo tom amarronzado jaziam sobre o restante do conteúdo: um emaranhado de pacotes embrulhados em tecidos que pareciam ter sido reaproveitados a partir de roupas velhas e dos resquícios de alguma cozinha.

Elayne remexeu em um pequeno caldeirão com a alça quebrada.

— Não sei se levaríamos semanas, mas pelo menos o resto da noite.

— Quer tentar outra vez? — sugeriu Nynaeve. — Mal é que não faria.

Elayne deu de ombros. Olhos fechados. O que precisavam.

Nynaeve estendeu a mão e tocou um objeto redondo e rígido, enrolado em trapos podres. Quando abriu os olhos, viu a mão de Elayne próxima à sua. A Filha-herdeira sorria de orelha a orelha.

Não foi fácil tirar o embrulho do baú. Não era pequeno, e tiveram que revirar casacos esfarrapados, panelas amassadas e embrulhos que se desintegravam revelando estatuetas, animais entalhados e todo tipo de bobagem. Quando enfim desenterraram o embrulho, tiveram que erguê-lo juntas. Era um disco largo e achatado envolto em tecido velho. Quando afastaram os trapos que o cobriam, o objeto revelou-se uma tigela rasa de cristal espesso com mais de dois pés de diâmetro, o interior coberto de entalhes profundos que pareciam nuvens formando redemoinhos.

— Nynaeve — começou Elayne, hesitante —, acho que isso aqui é…

Nynaeve levou um susto e quase largou a tigela, que de repente assumiu um tom azul bem claro, e as nuvens entalhadas começaram a se mover devagar. Uma fração de segundo depois, o cristal estava transparente outra vez, e as nuvens entalhadas, paradas. Mas Nynaeve tinha certeza de que não eram as mesmas nuvens de antes.

— É, sim! — exclamou Elayne. — É um ter’angreal. E aposto o que você quiser que tem alguma relação com o clima. Mas não sou forte o suficiente para usá-lo sozinha.

Engolindo em seco, Nynaeve tentou fazer o coração parar de palpitar.

— Pare com isso! Você ainda não entendeu que pode acabar se estancando se mexer com um ter’angreal sem saber o que ele faz?

A tola teve a ousadia de parecer surpresa.

— Mas é isso o que viemos procurar, Nynaeve. Você acha que existe alguém que saiba mais sobre os ter’angreal do que eu?

Nynaeve fungou. Não era só porque Elayne estava certa que não merecera a advertência.

— Não estou dizendo que não seria maravilhoso se isso fizer alguma coisa com o clima, porque é. Só não vejo como isso pode ser o que a gente precisa. Esse negócio não vai fazer o Salão mudar de opinião em relação a Rand.

— O que você precisa nem sempre é o que você quer — respondeu Elayne. — Era o que Lini costumava dizer quando me proibia de cavalgar ou de subir em árvores, mas talvez também se aplique aqui.

Nynaeve fungou com desdém outra vez. Talvez até se aplicasse, mas naquele momento ela queria ter o que queria. Era pedir demais?

A tigela sumiu de suas mãos, e foi a vez de Elayne levar um susto, resmungando sobre nunca se acostumar com aquilo. O baú também se fechou.

— Nynaeve, quando eu canalizei dentro da tigela, senti… Olha, esse não é o único ter’angreal aqui. Acho que também tem algum angreal, talvez até um sa’angreal.

— Aqui? — perguntou Nynaeve, incrédula, encarando o quartinho atulhado. Mas, se havia um, por que não dois? Ou dez? Ou cem? — Luz, não canalize de novo! E se você sem querer fizer algum deles se manifestar? Você poderia acabar estanca…

— Eu sei o que estou fazendo, Nynaeve. De verdade, sei mesmo. Agora, o que nós temos que fazer é descobrir exatamente onde fica este quarto.

O que não foi tarefa fácil. Embora as dobradiças parecessem massas de ferrugem maciça, a porta não era um obstáculo — não em Tel’aran’rhiod. Os problemas vieram logo depois. O corredor estreito e escuro lá fora possuía apenas uma janela, na outra extremidade. Através dela, não se via nada além da parede branca caiada descascada do outro lado da rua. E também não adiantou descer os estreitos lances de escada de pedra. A rua lá fora poderia ter sido a primeira que tinham visto naquela área da cidade, fosse lá onde fosse — as construções eram todas tão parecidas que não serviam para se localizarem. As pequeninas lojinhas ao longo da rua não tinham placas, e só o que indicava as estalagens eram as portas pintadas de azul — o vermelho parecia indicar as tavernas.

Nynaeve avançou à procura de algum marco, qualquer coisa que pudesse indicar sua localização. Algo que informasse qual era aquela cidade. Cada rua onde entrava era igual à anterior, mas ela não demorou a encontrar uma ponte que, ao contrário das outras, era de pedra lisa e não tinha estátuas. Subindo até o centro da plataforma arqueada, viu apenas o canal, que nos dois sentidos se encontrava com outros, além de mais pontes e mais construções de massa branca flocada.

De súbito, ela percebeu que estava sozinha.

— Elayne — chamou.

Silêncio, exceto pelo eco de sua própria voz.

— Elayne? Elayne!

A loura apareceu de volta em um canto, perto da base da ponte.

— Aí está você! — exclamou a jovem. — Nossa, este lugar faz uma toca de coelho parecer bem planejada. Desviei os olhos por um segundo, e você sumiu. Encontrou alguma coisa?

— Nada. — Nynaeve olhou outra vez para o canal, antes de se juntar à amiga. — Nada útil.

— Pelo menos dá para ter certeza de onde estamos. Ebou Dar. Só pode ser. — O casaco curto e as calças largas de Elayne se transformaram em um vestido de seda verde com renda saindo pelas mangas, gola alta com bordados elaborados e um decote estreito, porém bastante profundo e revelador. — Não consigo pensar em nenhuma outra cidade com tantos canais além de Illian, e isso aqui com certeza não é Illian.

— Espero que não — retrucou Nynaeve, sem forças.

Nunca tinha lhe ocorrido que uma busca às cegas poderia levá-las ao covil de Sammael. Reparou que o próprio vestido também tinha mudado para uma seda azul-marinho mais adequada a viagens, completado com uma capa de linho. Fez a capa desaparecer, mas deixou o restante como estava.

— Você ia gostar de Ebou Dar, Nynaeve. As Mulheres Sábias de lá sabem mais de ervas do que ninguém. Conseguem curar de tudo. E é bom que consigam, mesmo, porque lá o povo duela como se trocasse de roupa, sejam nobres ou plebeus, homens ou mulheres. — Elayne deu uma risadinha. — Thom disse que aqui tinha leopardos, mas eles foram embora porque achavam o povo de Ebou Dar muito nervosinho.

— Muito interessante — respondeu Nynaeve —, mas de que me interessa se esse povo passa o dia se esbofeteando? Elayne, isso aqui foi tão útil quanto se tivéssemos deixado os anéis de lado e ido dormir. Eu não conseguiria voltar àquele quarto nem se fosse para receber o xale. Se pelo menos tivéssemos como fazer um mapa… — Ela fez uma careta. Era melhor pedir asas no mundo desperto: se pudessem sair de Tel’aran’rhiod com um mapa, poderiam sair com a tigela.

— Então teremos que ir procurar em Ebou Dar — declarou Elayne, com firmeza. — No mundo real. Pelo menos saberemos em que parte da cidade começar.

Nynaeve se animou. Ebou Dar ficava a apenas algumas milhas de Salidar, descendo o Rio Eldar.

— Parece uma ótima ideia. E vamos poder dar no pé antes que tudo desabe na nossa cabeça.

— Sério, Nynaeve? Você ainda acha que isso é o que importa?

— É uma das coisas que importam. Consegue pensar em alguma outra coisa para fazer aqui? — Elayne balançou a cabeça. — Então é melhor voltarmos. Quero dormir de verdade esta noite.

Não dava para saber quanto tempo passava no mundo desperto quando se estava em Tel’aran’rhiod — às vezes uma hora lá correspondia a uma hora no Mundo dos Sonhos, mas às vezes era um dia ou mais. Por sorte, a recíproca não parecia verdadeira, ou pelo menos não tanto, ou correriam o risco de morrer de fome durante o sono.

Nynaeve saiu do sonho…

… e abriu os olhos, encarando o travesseiro, tão empapado de suor quanto ela própria. Nenhuma brisa soprava pela janela aberta. O silêncio se abatera sobre Salidar, e o som mais alto eram os arrulhos agudos das garças. Ela se sentou, desatou o nó do cordão no pescoço e removeu o anel de pedra retorcido, pausando um instante para tocar o robusto anel de ouro de Lan. Elayne se remexeu, então se sentou, bocejando, e canalizou para acender um toco de vela.

— Acha que vai adiantar de alguma coisa? — perguntou Nynaeve, baixinho.

— Não sei. — Elayne se deteve para abafar um bocejo com o dorso da mão. Como ela conseguia ser bonita até bocejando, com os cabelos bagunçados e a bochecha com marcas do travesseiro? Era um mistério que as Aes Sedai deveriam investigar. — O que eu sei é que aquela tigela talvez possa fazer alguma coisa em relação ao clima. E sei que um esconderijo de ter’angreal e angreal precisa cair nas mãos certas. É nosso dever entregá-lo ao Salão. Ou pelo menos a Sheriam. E sei que, se isso não fizer com que elas apoiem Rand, vou continuar buscando até encontrar algo que faça. E sei que quero dormir. Podemos continuar esta conversa de manhã?

Sem esperar resposta, a Filha-herdeira apagou a vela, enroscou-se outra vez na cama e respirou fundo. As respirações lentas e intensas do sono começaram assim que ela encostou a cabeça no travesseiro.

Nynaeve se esticou outra vez, encarando o teto em meio à escuridão. Pelo menos em breve estariam a caminho de Ebou Dar. No dia seguinte, talvez. No máximo um ou dois dias depois, já que precisariam se aprontar para a jornada e parar algum barco de passagem. Pelo menos…

Ela de repente se lembrou de Theodrin. Se levassem dois dias para se aprontar, a domanesa iria querer duas sessões — isso era tão certo como um pato tinha penas. E a mulher esperava que Nynaeve não dormisse à noite. Bem, Theodrin não tinha como saber, mas…

Suspirando pesadamente, ela saiu da cama. Não havia muito espaço para caminhar, mas usou todo o espaço disponível, ficando mais irritada a cada minuto. Só queria ir embora. Já tinha dito que não possuía muito talento para a rendição, mas talvez estivesse se aprimorando na arte da fuga. Seria maravilhoso poder canalizar quando bem entendesse. Nynaeve nem percebeu as lágrimas que começaram a rolar por seu rosto.

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