Rand, muito satisfeito, baforava o cachimbo, sentado sem o casaco, apoiado em uma das colunas brancas e delgadas que rodeavam o pequeno pátio oval enquanto assistia à água que borrifava na fonte de mármore à frente, as gotas cintilando feito gemas à luz do sol. Como era de manhã, ainda havia uma sombra agradável naquele trecho do pátio. Até Lews Therin estava quieto.
— Tem certeza de que não vai reconsiderar a ida para Tear?
Sentado contra a coluna ao lado e também sem casaco, Perrin soprou dois anéis de fumaça e encheu outra vez o cachimbo, um trambolho muito ornamentado entalhado com cabeças de lobo.
— E as visões de Min?
Rand tentou fazer seu próprio anel de fumaça, mas se atrapalhou dando um grunhido amargo, o que resultou em uma mera baforada. Min não tinha o direito de mencionar aquilo onde Perrin poderia ouvir.
— Quer mesmo ficar amarrado no meu cinto, Perrin?
— O que eu quero não parece contar muito desde que conhecemos Moiraine, lá em Campo de Emond — retrucou o amigo, seco. Ele suspirou. — Você é quem é, Rand. Se você cair, tudo vem abaixo.
Ele se inclinou para a frente e franziu o cenho, encarando uma porta larga atrás das colunas, à esquerda dos dois.
Um longo instante depois, Rand ouviu passos naquela direção — passos pesados demais para serem de algum humano. A figura corpulenta que se agachou ao passar pela porta e veio caminhando a passos largos até o pátio tinha mais que o dobro da altura da serviçal que quase corria para acompanhar as pernas compridas do Ogier.
— Loial! — exclamou Rand, levantando-se de um pulo. Ele e Perrin chegaram ao Ogier ao mesmo tempo. O sorriso na boca larga de Loial quase dividia o enorme rosto em dois. O casaco comprido que chegava a cobrir o topo das botas de abas dobradas que iam até o joelho ainda estava empoeirado da viagem. Os bolsos enormes também estavam salientes, cheios de formas quadradas. Loial nunca ficava longe dos livros. — Tudo bem com você?
— Você parece cansado — comentou Perrin, conduzindo o Ogier até a fonte. — Sente-se aí na beirada.
Loial se deixou levar, mas as longas sobrancelhas que pendiam do rosto e as orelhas cheias de tufos tremeram, meio atrapalhadas, enquanto ele olhou de um para o outro. Sentado, era tão alto quanto Perrin de pé.
— Tudo bem? Cansado? — A sua voz era um estrondo. — Claro que estou bem. E, se estou cansado, é porque andei bastante. Preciso admitir que voltar a andar com meus próprios pés foi ótimo. Sempre dá para saber aonde nossos pés estão nos levando; com um cavalo, nunca dá para ter certeza. Bem, seja como for: meus pés são mais rápidos. — De repente, ele deixou escapar uma gargalhada ensurdecedora. — Ah, Perrin, você me deve uma coroa de ouro, Perrin. Você e seus dez dias! Aposto outra coroa que você não chegou aqui mais do que cinco dias antes de mim.
— Você vai ganhar a sua coroa — respondeu Perrin, com uma risada. Então, se virou para Rand: — Gaul o corrompeu. Loial agora joga dados e aposta em corridas de cavalo, mesmo mal conseguindo diferenciar um bicho do outro.
O comentário deixou as orelhas de Loial vibrando de indignação. Rand sorriu. Loial sempre vira os cavalos sob uma luz meio duvidosa — o que não era de se surpreender, já que tinha pernas mais compridas que as de qualquer equino.
— Tem certeza de que está tudo bem, Loial?
— Encontrou o pouso abandonado? — indagou Perrin, com o cachimbo na boca.
— Ficou lá por tempo o bastante?
— Do que vocês dois estão falando? — Loial franziu o cenho de um jeito que fazia as extremidades das sobrancelhas descerem até as bochechas. — Só queria voltar a ver um pouso, sentir um… Já estou pronto para mais dez anos.
— Não é o que a sua mãe diz — contestou Rand, sério.
Loial se levantou antes mesmo de Rand terminar a frase, olhando para todos os lados, as orelhas apontadas para trás, tremelicando.
— Minha mãe? Aqui? Ela está aqui?
— Não, não está — tranquilizou-o Perrin. As orelhas de Loial ficaram flácidas de alívio. — Mas parece que ela está em Dois Rios. Ou pelo menos estava, um mês atrás. Rand fez um truque dele para viajar por aí, levando sua mãe e o Ancião Haman… Qual é o problema?
Quando ouviu o nome do Ancião Haman, Loial, que já estava tornando a se sentar, ficou paralisado, os joelhos ainda meio dobrados. De olhos fechados, ele se abaixou o que restava até a beira da fonte, bem devagar.
— O Ancião Haman — murmurou, esfregando o rosto com a mão de dedos grossos. — O Ancião Haman e minha mãe… — Ele olhou para Perrin. Então para Rand. Baixou a voz, ou ao menos o fez para os padrões Ogier. Ainda soava como um zangão gigante zumbindo dentro de um garrafão quando perguntou, em um tom falsamente despreocupado: — Tinha mais alguém com eles?
— Sim, uma jovem Ogier chamada Erith — respondeu Rand. — Você… — Mas foi tudo o que ele conseguiu dizer.
Com um gemido, Loial se levantou de um salto. Os serviçais enfiaram as cabeças para dentro das portas e janelas, querendo descobrir a origem daquele barulho tão alto, mas desapareceram de volta quando viram Rand. Loial começou a andar de um lado a outro, as orelhas e sobrancelhas tão caídas que ele parecia estar derretendo.
— Uma esposa… — balbuciou. — Não pode ser outra coisa, não com mamãe e o Ancião Haman. Uma esposa! Sou jovem demais para me casar! — Rand escondeu um sorriso atrás de uma das mãos. Loial podia até ser jovem para um Ogier, mas isso significava que tinha pelo menos mais de noventa anos. — Ela vai me arrastar de volta para o Pouso Shangtai. Sei que não vai me deixar viajar com vocês, e ainda estou longe de juntar anotações suficientes para meu livro. Ah, Perrin, pode rir. Faile faz tudo o que você manda. — Perrin se engasgou com a fumaça do cachimbo e resfolegou até Rand dar um tapa em suas costas. — Mas é diferente com o meu povo — explicou Loial. — Não fazer o que a esposa manda é considerado rude, muito rude. Sei que ela vai me fazer trabalhar em algo mais seguro e respeitável, como cantar para as árvores ou… — Ele franziu o cenho e parou de andar. — Você disse Erith? — Rand assentiu. Perrin parecia estar recuperando o fôlego, mas encarava Loial com uma espécie de prazer malévolo. — Erith, filha de Iva, filha de Alar? — Rand assentiu outra vez, e Loial tornou a se sentar na fonte. — Mas eu a conheço. Você se lembra dela, Rand. Nós a conhecemos no Pouso Tsofu.
— Isso era o que eu estava tentando lhe dizer — respondeu Rand, com toda a paciência e uma boa dose de bom humor. — Foi aquela que falou que você era bonito. E que lhe deu uma flor, se me lembro bem.
— Ah, pode ter falado. — murmurou Loial, na defensiva. — Pode ter falado, mas não me lembro. — Mesmo alegando aquilo, a mão foi inconscientemente tatear um bolso do casaco cheio de livros, e Rand podia apostar que ele guardara a flor entre alguma daquelas páginas. O Ogier pigarreou, produzindo um estrondo profundo. — Erith é muito bonita. Nunca vi ninguém tão linda. E inteligente. Ela ficou escutando com toda a atenção quando expliquei a teoria de Serden. Serden, filho de Kolom, filho de Radlin… ele escreveu sua teoria há cerca de seiscentos anos. E, quando expliquei a teoria de como os Caminhos… — Ele parou de falar, como se tivesse acabado de notar os sorrisos largos dos dois. — Bem, ela ouviu. Com atenção. Estava muito interessada.
— Com certeza estava — concordou Rand, evasivo.
Aquela menção aos Caminhos o fez pensar: quase todos os Portais dos Caminhos ficavam perto de pousos, e se o que a mãe de Loial e o Ancião Haman diziam fosse verdade, Loial precisava estar em um pouso — bem, Rand não poderia levá-lo para dentro de um por meio de um portão, já que, assim como não se podia canalizar dentro de um pouso, também não dava para chegar lá canalizando.
— Escute, Loial. Quero colocar guardas em todos os Portais dos Caminhos. Para isso, preciso de alguém que possa encontrá-los, mas que também seja capaz de conversar com os Anciões e conseguir a permissão deles.
— Luz — grunhiu Perrin, desanimado. Deu tapinhas para esvaziar o cachimbo e, com o calcanhar da bota, amassou o resto de tabaco no paralelepípedo do pátio. — Luz! Você manda Mat ir atrás das Aes Sedai, quer me enfiar no meio de uma guerra de Sammael com algumas centenas de homens de Dois Rios, alguns inclusive conhecidos seus, e agora quer mandar Loial embora, sendo que ele acabou de chegar? Que o queime, Rand! Olhe só para ele! Loial precisa descansar. Tem alguém que você não vá usar? Não quer que Faile vá caçar Moghedien ou Semirhage? Luz!
A raiva brotou dentro de Rand, uma tempestade que o fez tremer. Aqueles olhos amarelos o encaravam, carrancudos, mas ele rebateu feito um trovão:
— Vou usar quem for preciso. Você mesmo falou: eu sou o que sou. E estou me usando, Perrin, porque é preciso. Estou me usando assim como vou usar qualquer um que for preciso. Não tenho mais escolha. Ninguém tem: nem eu, nem você, nem ninguém!
— Rand, Perrin — murmurou Loial, preocupado. — Fiquem calmos. Não briguem. Não quero vocês brigando. — A mão do tamanho de um pernil de porco deu um tapinha desajeitado no ombro de cada um. — Vocês dois deveriam ir descansar em um pouso. São lugares muito tranquilos, muito relaxantes.
Rand encarou Perrin, que o encarava de volta. Ainda sentia a raiva, os lampejos e relâmpagos numa tempestade que não se dissiparia. Ao longe, os resmungos de Lews Therin de vez em quando ribombavam.
— Me desculpem — pediu, baixinho.
Perrin gesticulou, talvez sinalizando que não havia nada pelo que se desculpar, talvez aceitando, mas não ofereceu um pedido de desculpas. Em vez disso, virou a cabeça de volta para as colunas, na direção da porta por onde Loial entrara. Mais uma vez passaram-se alguns momentos antes que Rand ouvisse alguém se aproximando.
Min adentrou o pátio em uma carreira desabalada. Ignorando Loial e Perrin, ela tomou Rand pelos braços.
— Elas estão vindo — ofegou. — Já estão a caminho.
— Calma, Min — falou Rand. — Acalme-se. Eu estava começando a achar que todas estavam de cama que nem… como foi que você disse que ela se chamava? Demira?
Na verdade, sentia um alívio considerável com a vinda das mulheres, embora os queixumes e as risadas de Lews Therin tivessem aumentado com a simples menção das Aes Sedai. Merana passara três dias indo ao castelo, tão regular quanto a arte dos melhores relojoeiros e sempre acompanhada de duas irmãs, mas as visitas tinham cessado cinco dias antes sem nenhuma explicação. Min não fazia ideia de por quê. Rand andara preocupado que elas tivessem se ofendido com suas ordens e planejassem ir embora.
Mas Min ainda o fitava, parecendo angustiada. Percebeu que ela estava tremendo.
— Me escute! São sete, não três, e não me mandaram vir pedir permissão ou informar você ou nada disso. Escapei de lá antes delas e vim a galope com Rosa. Elas querem entrar no Palácio antes que você perceba que estão aqui. Ouvi Merana falando com Demira quando não sabiam que eu estava por preto. Pretendem chegar ao Grande Salão primeiro, para que você tenha que ir ao encontro delas.
— Acha que pode ser a sua visão? — conjecturou, ainda calmo.
Min tinha dito que mulheres capazes de canalizar iam feri-lo. São sete!, sussurrou Lews Therin, rouco. Não! Não! Não! Rand o ignorou. Não havia muito mais que pudesse fazer.
— Não sei — respondeu Min, aflita. Rand ficou surpreso em perceber que o brilho em seus olhos escuros era resultado de lágrimas contidas. — Acha que eu não diria se soubesse? Só sei que elas estão vindo e que…
— E que não há nada a temer — interrompeu Rand, com firmeza.
As Aes Sedai deviam ter mesmo a assustado, para ela estar a ponto de chorar. Sete, gemeu Lews Therin. Não consigo enfrentar sete, não de uma vez. Sete, não. Rand pensou no angreal do homenzinho gordo, e a voz esmaeceu até os murmúrios, mas ainda parecia incomodada. Pelo menos Alanna não era uma delas. Rand podia senti-la a alguma distância, parada — ou pelo menos sem avançar em sua direção. Não tinha certeza se ousaria ficar cara a cara com ela outra vez.
— Mas também não temos tempo a perder — completou. — Jalani?
A jovem Donzela de bochechas rechonchudas surgiu tão de repente de trás de uma coluna que Loial ficou de orelha em pé. Min pareceu finalmente se dar conta da presença do Ogier e de Perrin. E também se assustou.
— Jalani, diga a Nandera que estou indo para o Grande Salão, onde espero as Aes Sedai daqui a pouco.
A mulher tentou manter uma expressão tranquila, mas o sorriso satisfeito fez suas bochechas parecerem ainda mais cheias.
— Beralna já foi informar Nandera, Car’a’carn.
Ao ouvir o título, as orelhas de Loial tremeluziram de surpresa.
— Então poderia ir dizer para Sulin me encontrar nos quartos de vestir atrás do Grande Salão e levar meu casaco? E o Cetro do Dragão.
Jalani abriu um largo sorriso.
— Sulin já saiu correndo com o vestido de aguacenta, indo mais rápido que uma égua de focinho cinza que se sentou em espinhos de segade.
— Nesse caso, pode levar meu cavalo para o Grande Salão.
A jovem Donzela ficou boquiaberta, ainda mais quando Perrin e Loial se curvaram de tanto rir.
Min socou suas costelas, fazendo-o soltar um grunhido.
— Isso não é motivo para brincadeiras, seu fazendeiro cabeça dura! Merana e as outras estavam se enrolando nos xales como se estivessem vestindo armaduras. Agora preste atenção: vou ficar de lado, atrás das colunas, de modo que você possa me ver e elas não. Aí, se eu vir alguma coisa, faço um sinal.
— Você vai ficar aqui com Perrin e Loial — retrucou ele. — Não sei que tipo de sinal você poderia fazer que eu entendesse, e se elas a virem, vão saber que você me avisou. — Min olhou feio para ele com as mãos nos quadris, aquela postura típica das mulheres irritadas. — Min?
Para sua surpresa, ela suspirou e respondeu:
— Está bem, Rand — disse, com voz mansa.
Vinda dela, aquela obediência o deixava tão desconfiado quanto se tivesse vindo de Elayne ou Aviendha, mas, se quisesse estar no Grande Salão antes de Merana, não tinha tempo de ficar conjecturando. Aquiescendo, esperou não aparentar toda a insegurança que sentia.
Enquanto se perguntava se não deveria ter pedido a Perrin e Loial que a mantivessem ali — Min teria adorado —, Rand foi depressa até os quartos de vestir atrás do Grande Salão, com Jalani em seus calcanhares, ainda resmungando querendo saber se o cavalo fora ou não brincadeira. Sulin já estava lá, estendendo um casaco vermelho com bordados em ouro e o Cetro do Dragão. A ponta de lança gerou um grunhido de aprovação, embora ela sem dúvida a teria achado mais aceitável sem as borlas verdes e brancas, com uma haste de tamanho apropriado e sem entalhes. Rand tateou para se assegurar que o angreal estava no bolso. Estava. Enfim respirou com mais tranquilidade, apesar de Lews Therin ainda ofegar de ansiedade.
Rand atravessou correndo o quarto de vestir com painéis de leões e adentrou o Grande Salão, só para descobrir que todos tinham sido tão rápidos quanto Sulin. Bael, de braços cruzados, se assomava ao lado do estrado do trono, e Melaine estava de pé no outro lado, ajustando o xale escuro com toda a calma. Agachadas sobre um dos joelhos e sob o olhar vigilante de Nandera, cem ou mais Donzelas no traje completo, com as lanças, os broquéis, arcos de chifre cobertos às costas e aljavas cheias nas cinturas, formavam filas a partir de todas as portas. Só os olhos despontavam acima dos véus negros. Jalani correu para se juntar a uma das filas. Por trás delas, mais Aiel atulhavam-se em meio às espessas colunas, tanto homens quanto Donzelas, apesar de nenhum parecer estar armado com mais que as facas de lâminas pesadas. Ainda assim, havia vários rostos soturnos — não deviam estar vendo com bons olhos a ideia de um confronto com as Aes Sedai, e não por medo do Poder. Não importava o que Melaine e as Sábias dissessem a respeito das mulheres da Torre, quase todos os Aiel ainda tinham o antigo fracasso de seu povo muito vivo na memória.
Bashere não estava presente, claro — ele e a esposa estavam em um dos campos de treinamento —, assim como nenhum dos nobres andorianos que andavam em grupos pelo Palácio. Rand tinha certeza de que Naean, Elenia, Lir e todo aquele pessoal tinham ficado a par daquela assembleia assim que os preparativos começaram — eles nunca perdiam uma audiência do trono, a menos que Rand os mandasse embora. Sua ausência só poderia indicar que, enquanto estavam a caminho do Grande Salão, também tinham descoberto o motivo. O que significava que as Aes Sedai já estavam no Palácio.
De fato, assim que Rand se sentou no Trono do Dragão com o Cetro em seus joelhos, a Senhora Harfor entrou às pressas, nervosa, o que era bastante incomum para ela. Encarando Rand e todos os Aiel com a mesma perplexidade, anunciou:
— Mandei serviçais para todos os lados atrás de você. Tem Aes Sedai… — Foi tudo o que ela conseguiu dizer antes que sete Aes Sedai surgissem diante das enormes portas duplas.
Rand sentiu Lews Therin tentando buscar saidin e tocar o angreal, mas assumiu o controle da situação, agarrando a torrente furiosa de fogo e gelo, imundície e doçura, com tanta força quanto segurava o pedaço de lança Seanchan.
Sete, balbuciou Lews Therin, sombrio. Eu mandei virem só três, e vieram sete. Preciso ser cauteloso. Sim. Cauteloso.
Quem mandou vir três foi eu, Lews Therin, retrucou Rand. Eu! Rand al’Thor! A voz ficou em silêncio, mas os resmungos distantes não tardaram a recomeçar.
Alternando o olhar entre Rand e as sete mulheres nos xales com franjas, a Senhora Harfor pareceu decidir que ali no meio não era lugar para se estar. As Aes Sedai receberam a primeira reverência, e Rand ficou com a segunda, então, em uma excelente demonstração de calma, a mulher caminhou até uma das laterais da porta. Porém, quando as Aes Sedai entraram e se alinharam uma ao lado da outra, a Senhora Harfor acabou deslizando para fora com um leve quê de pressa.
Em cada uma das suas três visitas, Merana trouxera Aes Sedai diferentes, e Rand reconheceu todas — menos uma —, de Faeldrin Harella, na extrema direita, com o cabelo escuro preso em uma profusão de trancinhas finas trabalhadas com contas de cores brilhantes, à robusta Valinde Nathenos, na extrema esquerda, usando o xale de franjas brancas e o vestido também branco. Todas usavam as cores das suas Ajahs. Rand sabia quem devia ser a única que não reconheceu: a mulher bela e graciosa de pele morena e vestido de seda bronze só podia ser Demira Eriff, a irmã Marrom que Min dissera estar de cama. Mas ela estava de pé bem no centro da fila, um passo à frente das outras, enquanto Merana se punha entre Faeldrin e a rechonchuda Rafela Cindal, com seu rosto redondo, que parecia ainda mais séria do que durante o encontro em que viera com Merana, seis dias antes. Todas pareciam muito sérias.
Elas hesitaram um momento e o encararam, impassíveis, ignorando os Aiel. Então deslizaram para a frente, primeiro Demira, depois Seonid e Rafela, então Merana e Masuri — uma ponta de flecha apontada diretamente para Rand. Não precisou do formigamento na pele para saber que tinham abraçado saidar. A cada passo, elas pareciam mais altas.
Então elas acham que vão me impressionar com o Espelho de Brumas? A risada incrédula de Lews Therin foi se dissipando até minguar em risinhos ensandecidos. Rand não precisava de explicação: já vira Moiraine fazer algo parecido, e Asmodean também chamara aquilo de Espelho de Brumas — assim como de Ilusão.
Melaine mexeu no xale, irritada, e fungou alto com desdém, mas Bael parecia prestes a enfrentar sozinho uma investida de centenas. Pela sua expressão, não pretendia recuar, mas também não esperava nenhum resultado positivo. Aliás, algumas Donzelas se agitaram, até que Nandera as olhou feio por cima do véu. Isso não fez cessar o discreto ruído de pés Aiel se movendo inquietos em meio às colunas.
Demira Eriff começou a falar, e ficou bem claro que aquilo também envolvia canalização. Ela não gritou, mas sua voz preencheu o Grande Salão, parecendo vir de todos os lados.
— Dadas as circunstâncias, chegamos ao consenso de que eu deveria falar por todas. Hoje não viemos com a intenção de lhe fazer mal algum, mas as restrições que aceitamos antes para que você se sentisse seguro agora serão refutadas. Você obviamente não aprendeu a ter o devido respeito pelas Aes Sedai, mas agora precisa aprender. Daqui em diante, passaremos a ir e vir conforme nossa vontade, mas ainda o manteremos informado com certa antecedência, se nos aprouver, quando quisermos falar com você. Os vigias Aiel posicionados em volta de nossa estalagem serão removidos, e ninguém deve nos vigiar nem seguir. Qualquer futuro insulto à nossa dignidade será punido, embora devemos considerar aqueles a quem devemos punir como crianças, sendo você o responsável pela dor que sofrerem. É assim que deve ser; é assim que será. Saiba que somos Aes Sedai.
Quando aquela longa ponta de flecha parou diante do trono, Rand notou que Melaine o encarava de cenho franzido, sem dúvida se perguntando se ele estaria impressionado. E, se não tivesse alguma noção do que estava acontecendo, ele com certeza estaria, e mesmo assim não podia afirmar com certeza que não estava um pouco impressionado, no fim das contas. As sete Aes Sedai pareciam duas vezes mais altas que Loial, talvez até mais, as cabeças a quase meio caminho do teto abobadado, com suas janelas de vitrais coloridos. Fria e impassível, Demira o encarava como se pensasse se o agarrava ou não com uma das mãos, que parecia grande o bastante.
Rand se forçou a continuar reclinado, em uma postura muito tranquila e casual, estreitando os lábios ao perceber que aquilo lhe demandava certo esforço, ainda que nada tão grande. Lews Therin ainda se mantinha distante, mas gritava algo sobre não esperar, sobre atacar ali mesmo. Demira enfatizara algumas palavras, como se ele devesse compreender seu significado. Dadas quais circunstâncias? Elas tinham aceitado as restrições antes, por que aquilo de repente virara uma falta de respeito? Por que as Aes Sedai tinham decidido de uma hora para a outra que, em vez de precisar fazer com que ele se sentisse seguro, podiam ameaçá-lo?
— As emissárias da Torre em Cairhien aceitam essas mesmas restrições e não parecem ofendidas. — Bem, pelo menos não muito. — E, em vez de ameaças vagas, me oferecem presentes.
— Não somos elas. Elas não estão aqui. Nós não vamos comprá-lo.
O desdém na voz de Demira foi como um tapa. As articulações dos dedos de Rand doíam pela força com que ele agarrava o Cetro do Dragão. A raiva que sentia era um eco da de Lews Therin, e ele de repente notou que o homem voltava a tentar agarrar a Fonte.
Que o queime!, pensou Rand. Pensou em criar uma blindagem sobre elas, mas Lews Therin se pronunciou, ofegante e quase em pânico.
Não há força o bastante. Mesmo com o angreal, talvez não haja força o bastante. Não para deter sete delas. Seu tolo! Você esperou tempo demais! É perigoso demais!
Criar uma blindagem de fato exigia uma boa dose de força. Com o angreal, Rand estava convencido de que conseguiria lidar com as sete, mesmo já abraçadas a saidar. Mas se ao menos uma delas conseguisse quebrar a blindagem… Ou mais de uma. Queria impressioná-las com sua força, não oferecer uma chance de superá-lo. Bem, havia outra maneira: tecendo Espírito, Fogo e Terra com todo o cuidado, investiu quase como se fosse de fato criar uma barreira.
O Espelho de Brumas das Aes Sedai se estilhaçou. De repente, tudo o que havia diante dele eram sete mulheres normais e estupefatas. Mas o choque logo se dissipou por detrás da fachada de tranquilidade Aes Sedai.
— Você ouviu nossas exigências — afirmou Demira, com a voz normal, mas ainda impositiva, como se nada tivesse acontecido. — Esperamos que sejam cumpridas.
Rand as encarou, surpreso. O que precisava fazer para mostrar que não seria intimidado? Saidin rugia dentro dele, uma fúria em ebulição. Não ousava soltá-lo. Lews Therin gritava feito um maníaco, tentando se agarrar à Fonte, tirá-la de suas mãos. Rand fazia de tudo para continuar firme. Então se levantou, bem devagar. Com a altura adicional do estrado, erguia-se acima delas. Sete rostos de Aes Sedai inabaláveis levantaram os olhos para ele.
— As restrições estão mantidas — avisou, tranquilo. — E tenho mais outra exigência: de agora em diante eu é que espero ver o respeito que mereço. Eu sou o Dragão Renascido. Estão dispensadas. Esta audiência acabou.
Durante o tempo de quase dez batidas do coração, as mulheres permaneceram ali, sem nem piscar, como se quisessem demonstrar que não dariam um único passo para lhe obedecer. Então Demira assentiu, em um movimento minúsculo, e se virou. Quando passou por Seonid e Rafela, as duas a seguiram, e as outras também, uma de cada vez, todas deslizando suavemente e sem pressa, percorrendo os ladrilhos vermelhos e brancos até saírem do Grande Salão.
Rand desceu do estrado enquanto as mulheres ainda desapareciam corredor adentro.
— O Car’a’carn lidou bem com elas — opinou Melaine, alto o bastante para ser ouvida de todos os cantos. — É preciso ser duro com as Aes Sedai para elas aprenderem o que é honra, mesmo que isso as faça chorar.
Bael não conseguia esconder o desconforto por ouvir falarem daquele jeito sobre Aes Sedai.
— Será que também não é assim que se deve lidar com as Sábias? — indagou Rand, abrindo um sorriso.
Melaine baixou a voz e mexeu no xale, irritada.
— Não seja tolo, Rand al’Thor.
Bael deu uma risadinha, o que fez a esposa cravar os olhos nele. Bem, pelo menos Rand conseguira arrancar uma risada. Ainda assim, não achou muita graça na própria piada, e não só por causa da proteção do Vazio. Quase queria ter deixado Min comparecer. Havia muitas jogadas ocultas por ali, muito que ele não conseguia compreender, e temia que houvesse ainda outras que ele sequer percebia. O que aquelas mulheres queriam de verdade?
Min fechou a pequena porta do quarto de vestir, recostou-se em um painel de parede escuro com um leão entalhado e respirou bem fundo. Faile fora buscar Perrin para tratar de alguma coisa, e apesar de Loial ter protestado, alegando que Rand queria que ela ficasse ali, o Ogier acabara sucumbindo a seu argumento de que Rand não tinha o direito de obrigá-la a fazer o que fosse. Era óbvio que, se Loial tivesse alguma noção do que ela pretendia fazer, talvez tivesse tentado segurá-la — com toda a gentileza, claro — e ficado no pátio lendo para ela.
A questão era que, mesmo tendo ouvido tudo, não vira muita coisa além das Aes Sedai se agigantando diante do trono e do estrado. Deviam estar canalizando, o que em geral obscurecia as imagens e auras, mas Min ficara tão pasma que sequer teria percebido se houvesse alguma imagem para ver. Quando enfim se recompôs, as Aes Sedai já estavam menores, e a voz de Demira não vinha mais de todas as direções.
Min começou a pensar, desesperada, mordiscando o lábio inferior. Até onde via, tinha dois problemas, e o primeiro era Rand e suas exigências de respeito, o que quer que ele quisesse dizer com aquilo. Se esperava que Merana fosse fazer mesuras até enterrar a cabeça no chão, teria que esperar sentado. Depois do que ele fizera, elas decerto estariam zangadas. Devia haver alguma maneira de pôr panos quentes, só precisava saber como. O segundo problema eram as Aes Sedai. Rand parecia achar que aquilo era alguma espécie de rompante que ele conseguiria aplacar caso se posicionasse com firmeza, mas Min não achava que as Aes Sedai tinham rompantes. E, se tivessem, estava convencida de que aquilo era mais sério. Ainda assim, só conseguiria descobrir do que se tratava de volta na estalagem.
Depois de pegar Rosa no estábulo, foi trotando com a égua baia de volta para a estalagem, onde a deixou com um cavalariço orelhudo, pedindo que o animal fosse esfregado e alimentado com um pouco de aveia. A égua galopara com presteza até o Palácio, então merecia uma recompensa por ter ajudado a frustrar o plano de Merana e das outras. Considerando a fúria gélida na voz de Rand, Min não sabia dizer o que teria acontecido caso ele acabasse descobrindo tarde demais, e de surpresa, que sete Aes Sedai o esperavam no Grande Salão.
O salão da estalagem parecia quase o mesmo de quando ela zanzara apressada pelas cozinhas, mais cedo. Havia Guardiões às mesas, alguns jogando dominó ou pedras, outros lançando dados. Quase como se fossem um, todos ergueram o olhar quando ela entrou; então, reconhecendo-a, retomaram o que estavam fazendo. A Senhora Cinchonine estava de pé diante da adega — nada de barris de cerveja e vinho empilhados ao longo da parede do salão, não naquela estalagem —, de braços cruzados e uma expressão amarga no rosto. Os Guardiões eram os únicos clientes e, via de regra, bebiam pouco e muito raramente. Uma boa quantidade de canecas e copos de estanho repousava sobre as mesas, mas, pelo que viu, estavam intocados. E também viu um homem que poderia estar disposto a lhe contar certas coisas.
Mahiro Shukosa estava sentado, sozinho, tentando decifrar alguns quebra-cabeças de taverna. As duas espadas que costumava usar às costas ainda estavam à mão, apoiadas na parede. Com os cabelos já meio grisalhos nas têmporas e um nariz nobre, Mahiro tinha uma beleza meio grosseira, e só uma mulher apaixonada diria que ele era bonito. Um lorde de Kandor, já tinha visitado as cortes de quase todas as terras e viajava sempre com uma pequena biblioteca. Mahiro ganhava e perdia jogatinas com o mesmo sorriso fácil, mas sabia recitar poesia e tocar harpa, além de dançar como um sonho. Em suma: exceto por ser Guardião de Rafela, era exatamente o tipo de homem de quem Min gostava antes de conhecer Rand — e ainda gostava, na verdade, quando conseguia olhar para quem fosse sem pensar em Rand. Para sua sorte — ou seu azar —, Mahiro a via de um jeito que Min suspeitava de que fosse peculiar de Kandor: uma espécie de irmã mais nova que, vez ou outra, precisava de alguém para conversar e lhe dar conselhos de forma a não acabar quebrando o pescoço enquanto fazia suas maluquices. Mahiro dizia que ela tinha pernas bonitas, mas que jamais pensaria em tocá-las e que quebraria o pescoço de quem pensasse em fazer isso sem a permissão dela.
Deslizando as intrincadas peças de ferro com toda a destreza de volta para os lugares, Mahiro deixou o quebra-cabeças na pilha dos que já solucionara e pegou um da outra pilha enquanto Min se sentava à sua frente.
— E aí, repolhinha — cumprimentou ele, abrindo um sorriso. — Vejo que voltou com o pescoço intacto, não foi sequestrada e ainda está solteira.
Algum dia ainda ia perguntar o que significava aquela frase que ele sempre repetia.
— Aconteceu alguma coisa depois que eu saí, Mahiro?
— Fora as irmãs voltando do Palácio parecendo uma tempestade nas montanhas?
Como era de se esperar, o quebra-cabeças foi solucionado como se ele tivesse canalizado.
— Por que ficaram tão irritadas?
— Imagino que tenha alguma coisa a ver com al’Thor. — O quebra-cabeças voltou à posição inicial com a mesma rapidez, então foi jogado na pilha de descartes. O seguinte da pilha de ainda não solucionados também passou direto para a segunda. — Já resolvi esse há uns anos — explicou.
— Mas como, Mahiro? O que aconteceu?
Os olhos escuros a encararam. Se os leopardos tivessem olhos quase negros, seriam como os de Mahiro.
— Min, um potro que enfia o focinho na toca errada pode acabar perdendo as orelhas.
Min se retraiu. Era verdade. Ah, as tolices que uma mulher fazia por amor…
— É o que eu quero evitar, Mahiro. Só estou aqui para levar mensagens entre Merana e o Palácio, mas sempre entro lá sem a menor ideia de em que estou me metendo. Não sei por que as irmãs pararam de encontrar com ele todos os dias, nem por que voltaram e nem por que várias foram lá hoje, em vez de apenas três. Se eu não souber, posso acabar sem mais que as orelhas. E Merana não vai contar, ela nunca me fala nada que não seja “vá lá e faça isso”. Só uma dica, Mahiro. Por favor.
O homem analisou o quebra-cabeças em suas mãos, mas Min soube que ele estava pensando em outra coisa só de ver que as peças interligadas se moveram entre seus dedos compridos, mas nada se soltou.
Uma movimentação nos fundos do salão chamou sua atenção, e Min começou a virar a cabeça — até que congelou. Duas Aes Sedai voltavam do banho, a julgar pelo aspecto de quem acabara de se lavar. Fazia meses que não via aquelas duas, desde que tinham deixado Salidar com base no palpite de Sheriam de que Rand estava em algum lugar do Deserto Aiel. Bera Harkin e Kiruna Nachiman tinham ido para o Deserto, não para Caemlyn.
Não fosse o rosto de idade indefinida, Bera pareceria uma mulher de fazendeiro qualquer, com seu cabelo castanho curto emoldurando o rosto quadrado. Mas, naquele momento, aquele rosto estava determinado e carrancudo. Kiruna, sempre elegante e muito escultural, parecia exatamente quem era: irmã do Rei de Arafel, uma lady poderosa por direito. Seus enormes olhos escuros reluziam como se ela estivesse prestes a ordenar uma execução com todo o prazer. Imagens e auras piscavam ao redor das duas, como sempre acontecia com Aes Sedai e Guardiões. Uma em especial chamou a atenção de Min, piscando em volta das duas mulheres ao mesmo tempo, tudo em um tom amarelo amarronzado somado a um púrpura intenso. As cores em si não significavam nada, mas aquela aura fez Min perder o fôlego.
A mesa não ficava longe do pé da escada, mas as duas nem olharam para Min quando se viraram para subir. Nenhuma nem mesmo olhara para ela com atenção, quando estavam em Salidar, e agora estavam absortas em sua própria conversa.
— Alanna já deveria ter botado ele em seu lugar faz tempo. — Kiruna falava baixo, mas a raiva em sua voz era quase explícita. — Era o que eu teria feito. Quando ela chegar, vou falar o que penso, e que o Tenebroso carregue a formalidade.
— Deveriam amarrar logo uma rédea nele — concordou Bera, em um tom neutro —, antes que ele possa fazer mais mal a Andor. — Ela era andoriana, afinal. — E quanto antes, melhor.
Conforme as duas foram subindo os degraus, Min percebeu o olhar de Mahiro fixo nela.
— Como elas vieram parar aqui? — perguntou, surpresa por como a voz parecia perfeitamente normal.
Com Kiruna e Bera, já eram treze. Treze Aes Sedai. E aquela aura.
— Elas seguiram as notícias de al’Thor. Estavam na metade do caminho para Cairhien quando ouviram que ele estava aqui. Eu ficaria longe delas, Min. Os Gaidin das duas disseram que elas estão de mau humor.
Kiruna tinha quatro Guardiões, e Bera, três.
Min conseguiu abrir um sorriso. Queria dar no pé da estalagem, mas isso levantaria suspeitas até em Mahiro.
— Acho que é um bom conselho. E a minha dica?
O sujeito hesitou por mais um momento, então pousou o quebra-cabeças na mesa.
— Não vou dizer o que é nem o que não é, mas, para bom entendedor… Talvez al’Thor esteja irritado. Talvez seja bom pensar em perguntar se outra pessoa não pode entregar as mensagens, quem sabe um de nós. — Ele estava falando dos Guardiões. — Talvez as irmãs tenham decidido ensinar a ele uma lição sobre humildade. E isso, repolhinha, talvez seja um pouco mais do que eu deveria ter dito. E então, vai pensar a respeito?
Min não sabia se a “pequena lição” era o que acontecera no Palácio ou se era algo que ainda estava para acontecer, mas tudo se encaixava. E aquela aura…
— Também me parece um bom conselho. Mahiro, se Merana vier me procurar para levar alguma mensagem, pode dizer que eu vou passar os próximos dias visitando a Cidade Interna?
— Uma longa jornada. — Ele deu uma risadinha zombeteira, mas gentil. — Se não tomar cuidado, vai acabar sequestrando um marido.
O moço orelhudo da estrebaria olhou surpreso quando Min insistiu para que ele tirasse Rosa da cocheira e a encilhasse outra vez. Deixou o pátio do estábulo a um passo tranquilo, mas, logo que a primeira curva fez A Coroa de Rosas sumir de vista, enfiou os calcanhares na égua, fazendo a multidão pular para sair do caminho quando partiu a galope direto para o Palácio, correndo o máximo que Rosa podia.
— Treze — repetiu Rand, em um tom neutro.
Foi o suficiente para Lews Therin tentar tomar outra vez o controle de saidin. Rand entrou em uma luta muda contra aquela fera, que rosnava e mostrava os dentes. Assim que Min falou que, na verdade, havia treze Aes Sedai em Caemlyn, Rand mal conseguiu agarrar o Poder antes de Lews Therin se lançar para cima da Fonte. O suor escorria por seu rosto, e manchas escuras se espalhavam pelo casaco — só conseguia se concentrar em manter saidin fora do alcance de Lews Therin. Um músculo da bochecha pulsava com o esforço. A mão direita tremia.
Min parou de andar a passos rápidos de um lado para o outro, cruzando o tapete da sala quase pulando de ansiedade.
— Não é só isso, Rand — alertou, desesperada. — É a aura. Sangue, morte, o Poder Único, aquelas mulheres e você… tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar. — Estava outra vez com os olhos brilhando, mas agora as lágrimas escorriam livremente pelas bochechas. — Kiruna e Bera não gostam de você, nem um pouco! Lembra-se daquela visão que tive sobre você? Mulheres capazes de canalizar lhe fazendo mal. As auras, e as treze, e tudo… Rand, é coisa demais!
Min sempre dizia que suas visões todas as vezes se tornavam realidade, mas nunca podia afirmar se isso aconteceria dali a um dia, um ano ou dez — e, se permanecesse ali em Caemlyn, Rand achava que seria questão de dias. Mesmo que a voz se limitasse a um rosnado em sua cabeça, sabia que Lews Therin queria atacar Merana e as outras antes que elas tivessem qualquer chance de atacá-lo. Aliás, aquela ideia lhe parecia tão atraente que chegava a ser desconfortável. Talvez fosse apenas obra do acaso, algo como sua distorção de ta’veren se voltando contra ele, mas não dava para negar os fatos: Merana decidira desafiá-lo no mesmíssimo dia em que passou a haver treze Aes Sedai na cidade.
Ele se levantou e foi até o quarto, mas só para pegar a espada guardada atrás do armário, já presa ao cinturão com fivela em forma de Dragão.
— Você vem comigo, Min — anunciou, pegando o Cetro do Dragão e indo até a porta.
— Para onde? — indagou a jovem, secando as bochechas com um lenço.
Apesar da pergunta, Rand já estava no corredor, e ela acabou indo atrás. Jalani se levantou com um pinote um tantinho mais ligeiro que o de Beralna, uma ruiva magrela de olhos azuis e sorriso ferino.
Quando havia apenas Donzelas por perto, Beralna sempre o encarava como se estivesse considerando fazer ou não o grande favor de atender a seus pedidos. Daquela vez, Rand tratou de encará-la primeiro. O Vazio deixava sua voz fria e distante. Lews Therin estava contido, choramingando baixinho, mas Rand não ousava relaxar — não em Caemlyn, não perto de Caemlyn.
— Beralna, vá atrás de Nandera e diga para ela me encontrar nos aposentos de Perrin com quantas Donzelas quiser levar. — Não podia deixar Perrin para trás, e não por conta daquela visão de Min. Quando Merana tivesse notícia de sua partida, poderia muito bem mandar uma das Aes Sedai criar um elo com Perrin, assim como Alanna fizera com ele. — Pode ser que eu não volte mais para cá. Se alguém vir Perrin, Faile ou Loial, diga a eles para também me encontrarem por lá. Jalani, vá falar com a Senhora Harfor. Avise a ela que preciso de caneta, tinta e papel. — Tinha que escrever algumas cartas antes de partir. Sentiu que as mãos voltaram a tremer, então acrescentou: — Bastante papel. O que estão esperando? Vão logo! Vão!
As duas trocaram um único olhar e saíram correndo. Rand seguiu na direção oposta, com Min quase trotando para conseguir acompanhá-lo.
— Para onde estamos indo, Rand?
— Cairhien. — Com o Vazio envolvendo-o, a resposta saiu com a frieza de uma bofetada na cara. — Min, confie em mim. Não vou machucar você. Seria mais fácil cortar meu braço fora do que machucar você.
A jovem ficou quieta, até que Rand enfim baixou os olhos. Min o encarava com um semblante esquisito.
— Muito bom ouvir isso, pastorzinho. — A voz estava tão estranha quanto o rosto. Devia ter ficado mesmo apavorada com a ideia de treze Aes Sedai atrás dele. O que não era de se espantar, claro.
— Min, se eu tiver que enfrentar essas mulheres, prometo dar um jeito de manter você longe do perigo.
Como um homem conseguiria enfrentar treze delas? Só de pensar naquilo, Lews Therin explodiu outra vez, aos berros.
Para a surpresa de Rand, Min tirou as conhecidas facas das mangas com um floreio, então guardou tudo de volta com a mesma delicadeza — devia estar treinando.
— Você pode me puxar pela orelha daqui até Cairhien ou qualquer outro lugar, mas acho bom você pensar duas vezes se pretende me mandar para onde for, pastorzinho.
Rand não sabia por quê, mas tinha certeza de que não era aquilo que ela pretendia dizer quando começou a falar. Foi apenas o que acabou saindo.
Quando chegaram aos aposentos de Perrin, Rand deu de cara com uma multidão. De um dos lados da sala de estar estavam Perrin e Loial, ambos sem nem terem vestido o casaco, sentados de pernas cruzadas sobre o tapete azul enquanto fumavam seus cachimbos com Gaul, um Cão de Pedra que Rand se lembrava de ter visto na queda da Pedra de Tear. Faile estava sentada do outro lado do aposento, igualmente no chão, junto de Bain e Chiad, que também tinham estado presentes na Pedra. Pela porta aberta que dava para o aposento anexo, Rand viu Sulin trocando as roupas de cama, jogando-as de qualquer jeito como se preferisse rasgá-las em pedacinhos. Todos ergueram os olhos quando ele e Min entraram, e Sulin veio até a porta.
Houve uma boa dose de confusão quando Rand explicou sobre as treze Aes Sedai e o que Min ouvira. Mas nada sobre as visões. Alguns ali sabiam, mas alguns poderiam não saber, e ele não contaria aquilo para ninguém — não sem que Min decidisse contar, o que não era o caso. E também não falou nada de Lews Therin, claro. Não que tivesse medo do que poderia lhe acontecer em uma cidade com treze Aes Sedai, mesmo que elas não fizessem nada. Aquelas mulheres que pensassem que ele estava com medo, se quisessem — e ele próprio não podia afirmar que não estava. Lews Therin se mantivera calado, mas Rand ainda podia senti-lo, olhos intensos observando-o durante a noite. Raiva e medo e talvez até pânico se arrastavam pela parede externa do Vazio feito aranhas enormes.
Perrin e Faile começaram a arrumar a bagagem na mesma hora, e Bain e Chiad conversaram naquela linguagem de sinais antes de anunciar que iriam acompanhar Faile, ao que Gaul anunciou que acompanharia Perrin. Rand não entendia o que estava se passando ali, mas tinha algo a ver com Gaul não olhar para Bain ou Chiad e as duas não olharem para ele. Loial saiu correndo, resmungando sozinho sobre quanto Cairhien era bem mais longe de Dois Rios do que Caemlyn e sobre a fama da mãe de conseguir andar bastante. Quando ele voltou, carregava uma trouxa mal amarrada debaixo do braço e alforjes imensos por cima do ombro, com camisas saindo pelos bolsos e pelas aberturas. Loial estava pronto para partir imediatamente. Sulin também sumiu e voltou trazendo uma trouxa de vestidos vermelhos e brancos. Com a expressão congelada naquela expressão servil incongruente, ela grunhiu alguma coisa sobre ter recebido ordens de servir a ele, a Perrin e a Faile, e só um lagarto com insolação acharia isso possível com ela em Caemlyn enquanto todos estavam em Cairhien. Até acrescentou um “Milorde Dragão” no final, que soou mais como um xingamento, e uma mesura. Surpreendentemente, daquela vez ela não perdeu o equilíbrio em nenhum momento, o que pareceu deixá-la tão impressionada quanto Rand.
Nandera chegou quase junto com a Senhora Harfor, que trazia um estojo com várias canetas de ponta de aço, além de papel, tinta e cera de selagem suficientes para cinquenta cartas, o que acabou por vir a calhar.
Perrin quis escrever para Dannil Lewin, mandando-o seguir viagem com os outros homens de Dois Rios — não parecia ter a menor intenção de deixá-los para as Aes Sedai —, e só não pediu para que levassem Bo e as outras garotas quando Rand e Faile salientaram que, para começo de conversa, as Aes Sedai não as deixariam ir e que, além de tudo, era pouco provável que elas quisessem acompanhá-los. Faile fora com ele à estalagem, mais de uma vez, e até mesmo Perrin teve que admitir que as garotas pareciam impacientes para se tornarem logo Aes Sedai.
A própria Faile tinha duas cartas rápidas para escrever, tanto para a mãe quanto para o pai, para que eles não se preocupassem. Rand não sabia qual carta era para quem, mas as duas pareciam ter sido escritas em tons muito diferentes. A primeira, Faile recomeçou várias vezes para então rasgar o pergaminho, e cada palavra a deixava de cenho franzido; a outra foi escrita às pressas, em meio a sorrisos e risadinhas — Rand achou que devia ser a da mãe. Min escreveu para um amigo chamado Mahiro, também hospedado com as Aes Sedai. Por algum motivo, ela fez questão de dizer a Rand que se tratava de um homem mais velho, mesmo corando ao mencionar a idade do sujeito. Até Loial pegou papel e caneta, depois de alguma hesitação. Teve que usar sua própria pena, já que as canetas humanas seriam engolidas naquelas mãos enormes. Ele selou o bilhete e o entregou à Senhora Harfor com um pedido acanhado para que, se houvesse oportunidade, ela o entregasse pessoalmente. O polegar do tamanho de uma salsicha gorda cobria quase todo o nome do destinatário, escrito tanto no alfabeto humano quanto nas letras dos Ogier, mas, com o Poder Único aguçando a visão, Rand identificou o nome de Erith. Ainda assim, Loial não demonstrava querer esperar e entregar ele mesmo a mensagem.
Suas cartas foram tão difíceis de escrever quanto a primeira mensagem de Faile, mas por motivos distintos. O suor que gotejava do rosto fazia a tinta se espalhar, e sua mão tremia tanto que ele precisou recomeçar mais de uma vez depois de tanto manchar e borrar o papel. Ainda assim, Rand sabia muito bem o que queria dizer. Para Taim, enviou um alerta sobre as treze Aes Sedai e uma reiteração das ordens de se manter longe das mulheres. Para Merana mandou um tipo diferente de alerta, junto com uma espécie de convite. Era inútil que tentasse se esconder, já que Alanna poderia encontrá-lo em qualquer lugar do mundo, mas o encontro seria em seus termos, se ele pudesse garantir isso.
Passou um tempo encarando a Senhora Harfor quando ela lhe entregou um selo de pedra-verde com um Dragão entalhado, mas a mulher respondeu com um olhar neutro inabalável. Quando enfim selou as cartas, Rand se virou para Nandera.
— Já reuniu suas vinte Donzelas?
Nandera ergueu as sobrancelhas.
— Vinte? Seu recado foi para eu trazer quantas quisesse e que talvez você não fosse voltar. Tenho quinhentas, e teria trazido mais se não tivesse decidido eu própria estabelecer um limite.
Rand apenas assentiu. Sua cabeça estava quieta, apenas com os próprios pensamentos, mas sentia Lews Therin ali, junto com ele no Vazio, aguardando feito uma mola tensionada. Só depois de passar todos pelo portão que dava para a câmara em Cairhien e deixar a passagem se fechar, diminuindo a percepção de Alanna para uma vaga impressão de que ela estava em algum ponto a oeste; só então Lews Therin pareceu se afastar. Foi como se, exaurido pela luta por controle, o homem tivesse caído no sono. Por fim, Rand afastou saidin, só então reparando em quanto estava desgastado por conta do embate. Loial teve que o carregar até seus aposentos no Palácio do Sol.
Merana estava sentada, bem quieta, junto à janela da sala de estar, de costas para a rua, com a carta de Rand al’Thor no colo. Já sabia o conteúdo de cor.
Começava com “Merana”. Não com “Merana Aes Sedai”, nem mesmo “Merana Sedai”.
Merana,
Certa vez, um amigo me disse que, na maioria dos jogos de dados, o número treze é considerado quase tão azarado quanto lançar os Olhos do Tenebroso. Também acho que treze é um número azarado. Estou indo para Cairhien. Pode me seguir como puder, sem levar mais que cinco outras irmãs. Assim, estará em pé de igualdade com as emissárias da Torre Branca. Ficarei muito descontente se você tentar levar mais mulheres. Não me pressione mais. Me resta pouca confiança para depositar em quem quer que seja.
A parte final fora escrita com tanta força que a caneta quase rasgara o papel. Em comparação com o restante da carta, aquelas duas últimas linhas quase pareciam ter sido escritas por outra mão.
Merana estava sentada bastante quieta. Não estava sozinha. As outras mulheres da missão diplomática — se ainda podia ser chamada assim — haviam se acomodado em cadeiras ao longo das paredes, em vários estados. O que mais a irritava era que apenas Berenicia se encontrava sentada com a mesma quietude e humildade que ela, as mãos gorduchas entrelaçadas sobre o colo, a cabeça meio baixa, os olhos sérios e bem atentos. Não dizia uma palavra, a menos que se dirigissem a ela. Faeldrin, por sua vez, ostentava uma postura bem orgulhosa e falava quando queria, assim como Masuri e Rafela. Seonid estava quase como elas, sentada bem na beira da cadeira e volta e meia abrindo um sorriso obstinado. As outras agiam mais como Valinde: quase calmas. Todas estavam presentes, exceto Verin e Alanna, e um Gaidin fora enviado para encontrá-las. Kiruna e Bera, paradas de pé no meio da sala, faziam notar sua presença.
— Tenho nojo só de pensar que existe alguém capaz de enviar uma carta dessas para uma Aes Sedai. — Kiruna não falava alto, e sua voz soava ao mesmo tempo serena, calma e enérgica. Mas seus olhos escuros relampejavam. — Demira, seu informante pode confirmar se al’Thor foi mesmo para Cairhien?
— Ele Viajou — murmurou Bera, incrédula. — E pensar que justo ele redescobriu esse Talento…
As contas brilhantes nas tranças de Faeldrin tilintaram quando ela assentiu.
— É impossível cogitar outra possibilidade. Talvez ele seja mais poderoso até do que Logain ou Mazrim Taim, sim?
— Não podemos fazer nada a respeito de Taim? — O rosto redondo de Rafela, sempre calmo e aprazível, estava severo, e a voz, em geral doce, soava impassível. — Tem pelo menos cem homens capazes de canalizar, cem! E a menos de vinte milhas daqui.
Kairen aquiesceu, resoluta, mas não se pronunciou.
— Eles vão ter que esperar — retrucou Kiruna, com firmeza. — Luz e honra, não sei quantas irmãs vamos precisar para dar conta de tantos. Al’Thor é que importa, e desse nós damos conta. Demira?
Demira tinha esperado as outras terminarem, claro. Baixando a cabeça bem de leve, respondeu:
— Só sei que ele foi embora, ao que parece levando um grande número de Aiel, e é bem possível que também tenha levado Perrin Aybara.
Verin, que tinha entrado sem fazer alarde logo que Demira começou a falar, acrescentou:
— Não podemos ter dúvidas quanto ao paradeiro de Perrin. Mandei Tomas verificar o acampamento do pessoal de Dois Rios. Parece que enviaram dois homens ao Palácio para apanhar os cavalos de Perrin e da esposa, e os outros já largaram os carroções e serviçais e estão cavalgando para o leste o mais depressa possível. Marcham com a cabeça de lobo de Perrin e a Águia Vermelha de Manetheren.
Um sorriso fraco curvou de leve os lábios de Verin, como se ela achasse aquilo divertido. Kairen deixava bem claro que não era da mesma opinião, soltando um murmúrio de surpresa e comprimindo os lábios logo em seguida, formando uma linha estreita.
Merana também não achou aquilo nada engraçado, mas era um detalhe tão ínfimo em comparação com o todo… Um cheirinho tênue de coisa estragada quando já estavam sentadas sobre um monte de dejetos; um cachorro rosnando para alguém já com as saias abocanhadas por lobos. E pensar que se preocupara demais com Verin, se esforçara tanto… A verdade era que a Marrom mal conseguira botar os planos em prática, exceto por levar Demira a sugerir aquele confronto infeliz. Tudo tinha sido conduzido com muita habilidade, e Merana achava que ninguém que não fosse da Ajah Cinza teria percebido. No entanto, ela própria concordara com o curso de ação: bater de frente com al’Thor — ou pelo menos tentar — era o mínimo que poderiam ter feito. Tinha se preocupado com Verin, então Kiruna e Bera apareceram. Nenhuma das duas respondia à sua autoridade e ambas eram pelo menos tão fortes quanto Masuri, Faeldrin ou Rafela.
— Isso, sim, é jogar um nabo estragado no cozido — resmungou Bera, emburrada.
Kairen e várias outras assentiram.
— Mas é um nabinho de nada — rebateu Kiruna, o tom bem seco. Quase todas assentiram, tirando Merana e Verin. Merana apenas suspirou baixinho, e Verin ficou examinando Kiruna com aquele olhar de pássaro, a cabeça enviesada. — Por que Alanna está demorando? — indagou a mulher, perguntando para ninguém em particular. — Não quero ter que me repetir.
Bem, Merana achava que talvez ela mesma tivesse começado com aquilo tudo, abstendo-se da disputa de poder com Verin. Ainda era a líder da delegação e todas seguiam suas ordens, inclusive Masuri, Rafela e Faeldrin, mas todas tinham notado a mudança de poder. E não tinha certeza se Kiruna ou Bera agora estavam no comando — e nem fazia diferença, no que dizia respeito à posição entre as Aes Sedai, que uma tivesse nascido na fazenda e a outra, em um palácio. Bem, sua única certeza era de que sua missão diplomática estava desmoronando ao seu redor, o tipo de coisa que jamais teria acontecido quando a Torre Branca era inteira, quando uma embaixadora contava com todo o poder da Torre e do Trono de Amyrlin, pouco importando se levara trinta anos para ascender ao xale e mal tivesse força para ter sido aceita. Àquela altura, elas não passavam de um punhado de Aes Sedai que adotavam para suas posições na cadeia de poder geral sem nem fazer uma pausa para pensar.
Como se tivesse ouvido tocarem em seu nome, Alanna apareceu na sala assim que Bera abria a boca — ela e Kiruna atacaram a recém-chegada:
— Al’Thor afirma que foi para Cairhien — começou Bera, sem rodeios. — Você tem algo a acrescentar?
Alanna encarou as duas com orgulho e um brilho perigoso nos olhos escuros. Estavam falando de seu Guardião, afinal.
— Ele está em algum lugar a leste, é tudo o que eu sei. Pode ser Cairhien.
— Se ia criar um elo sem primeiro falar com ele — começou Kiruna, o tom bem impositivo —, por que, pela Luz mais sagrada, não usou esse elo para fazê-lo se curvar à sua vontade? Em comparação com o que você fez antes, isso é só um tapa no pulso.
Alanna ainda mantinha pouco controle sobre as próprias emoções. As bochechas ficaram coradas, em parte pela raiva, a julgar pelo lampejo em seus olhos, e, com toda a certeza, em parte pela vergonha.
— Ninguém falou para vocês? — indagou a Verde, alegre demais. — Bem, imagino que ninguém queira pensar no assunto, mesmo. Eu, com certeza, não quero. — Faeldrin e Seonid encaravam o chão, e não eram as únicas. — Tentei compelir al’Thor logo que estabeleci o elo — explicou, como se não tivesse notado o constrangimento no ambiente. — Já tentou arrancar um carvalho do chão só com as mãos, Kiruna? Foi igualzinho.
Kiruna foi arregalando os olhos e soltando um suspiro lento. Bera murmurou:
— Isso é impossível. Impossível.
Alanna jogou a cabeça para trás e gargalhou. As mãos na cintura deram um ar de desdém à risada, fazendo Bera comprimir os lábios e deixando os olhos de Kiruna com um brilho frio. Verin as encarava, e Merana achou, com certo desconforto, que parecia o olhar de um pintarroxo observando minhocas. Verin sempre parecia deferir sem deferir, embora Merana não conseguisse entender como.
— Ninguém nunca criou um elo com um homem capaz de canalizar — afirmou Alanna, quando parou de rir. — Pode ser que seja isso.
— Bem, seja como for — rebateu Bera, com a voz e o olhar muito firmes. — Seja como for. Você ainda consegue localizá-lo.
— Isso mesmo — concordou Kiruna. — Você virá conosco, Alanna.
A Verde piscou, como se recobrasse a consciência. Então baixou um tanto a cabeça, aquiescendo.
Merana decidiu que aquela era a hora. Se quisesse manter a delegação unida, aquela era sua última chance. Ela se levantou, dobrando a carta de al’Thor para ocupar as mãos.
— Quando eu trouxe esta missão diplomática até Caemlyn — começou, lembrando a todas que era a líder. Graças à Luz, conseguiu falar com uma voz estável —, recebi ordens muito flexíveis, ainda que o objetivo da missão parecesse óbvio. Então nós — escolheu o pronome para lembrá-las de que todas compunham a delegação — nos dedicamos à questão com uma expectativa justa de sucesso. Al’Thor deveria ser incitado a sair de Caemlyn para trazermos Elayne de volta e vê-la coroada, deixando Andor a nosso lado. Aos pouquinhos, al’Thor se convenceria de que éramos dignas de confiança, pois não lhe faríamos mal. E ele também seria levado a nos demonstrar o devido respeito. Duas ou três, escolhidas com todo o cuidado, assumiriam o lugar de Moiraine, aconselhando-o e guiando-o. Alanna inclusive, claro.
— Como você sabe se não foi ele quem matou Moiraine — interrompeu Bera —, já que dizem que ele matou Morgase?
— Temos ouvido boatos de todo tipo a respeito da morte dela — acrescentou Kiruna. — Alguns até dizem que ela morreu lutando contra Lanfear. A maioria, no entanto, afirma que ela estava sozinha com al’Thor quando morreu.
Merana precisou se esforçar um pouco para não responder. Se permitisse uma só palavra a seus instintos tão enraizados, eles acabariam assumindo o controle de todas elas.
— Isso tudo estava sendo tratado quando vocês duas chegaram — continuou. — Sei que só nos encontraram aqui por acaso, e apenas obedecendo às instruções que receberam de encontrá-lo, mas vocês elevaram o número de Aes Sedai a treze. Que homem da estirpe de al’Thor não fugiria o mais rápido possível ao ouvir que há treze Aes Sedai reunidas? Bem, o fato, puro e simples, é que qualquer prejuízo causado aos nossos planos deve ser atribuído a você, Kiruna, e a você, Bera. — Depois daquilo, só lhe restava esperar. Se tivesse conseguido elevar um pouco a própria moral…
— Você já acabou? — perguntou Bera, fria.
Kiruna foi ainda mais direta. Apenas se virou para as outras e falou:
— Faeldrin, você pode vir conosco para Cairhien, se quiser. E vocês também, Masuri e Rafela.
Merana estremeceu, amassando a carta dobrada no punho.
— Vocês não entendem? — berrou. — Vocês falam como se pudéssemos continuar como antes, como se nada tivesse mudado. Tem uma missão diplomática de Elaida em Cairhien, uma missão da Torre Branca. É isso que al’Thor deve estar pensando. Precisamos mais dele do que ele precisa de nós, e meu medo é que ele saiba disso!
Por um momento, todos os rostos pareceram chocados — todos, menos o de Verin, que só assentiu, pensativa, abrindo um sorrisinho dissimulado. Por um momento, todos os outros rostos eram só olhos esbugalhados, estupefatos. Aquelas palavras pareciam reverberar no ar. Precisamos mais dele do que ele precisa de nós. Não precisavam dos Três Juramentos para saber que era verdade.
Então Bera disse, com toda a firmeza:
— Sente-se, Merana, e se acalme.
Sem nem reparar que obedecia, Merana já estava sentada. Ainda trêmula, ainda querendo gritar, mas sentada, apertando a missiva de al’Thor com toda a força.
Kiruna se virou de costas deliberadamente.
— Seonid, você vem, claro. Dois Gaidin a mais são sempre úteis. E Verin, eu acho. — Verin assentiu, como se aquilo fosse um pedido. — Demira — prosseguiu Kiruna —, sei que você tem certa prioridade nas queixas sobre o garoto, mas não queremos deixar al’Thor em pânico outra vez, e alguém precisa levar aquela coleção extraordinária de garotas de Dois Rios até Salidar. Você, Valinde, junto com Kairen e Berenicia, vão auxiliar Merana nisso.
As outras quatro murmuraram, acatando as ordens sem a menor hesitação. Merana sentiu um calafrio. A delegação não estava desmoronando, estava virando pó.
— Eu… — Ela parou de falar quando os olhares de Bera e de Kiruna se voltaram para ela. E também os de Masuri, Faeldrin e Rafela. Virado pó, levando junto toda a sua autoridade. — Vocês com certeza conseguiriam encontrar serventia para uma Cinza — ponderou, em um fio de voz. — Com certeza haverá negociações, e… — As palavras continuavam a traí-la. Isso nunca teria acontecido quando a Torre ainda estava inteira.
— Muito bem — cedeu Bera, por fim, em um tom que fez com que Merana usasse todo o seu autocontrole para evitar que as bochechas ficassem vermelhas de vergonha.
— Demira, você leva as garotas para Salidar — ordenou Kiruna.
Sentada, Merana nem se mexia. Rezava para que, àquela altura, o Salão já tivesse escolhido uma Amyrlin. Alguém muito forte no Poder e no coração. Precisariam de uma nova Deane ou outra Rashima, para voltar a fazer delas o que já tinham sido. Rezava para que Alanna as conduzisse a al’Thor antes que ele decidisse aceitar a missão de Elaida. Do contrário, nem mesmo uma nova Rashima as salvaria.