Na manhã seguinte, Nynaeve acordou de mau humor ao raiar do dia. Tinha a sensação de que vinha mau tempo pela frente, mas uma olhadela pela janela não revelou uma nuvem sequer no céu ainda meio escuro. O dia já prometia ser outro forno. A roupa de baixo estava empapada de suor e toda amarrotada, de tanto que ela se remexera. Já fora capaz de confiar em sua capacidade de escutar o vento, mas, desde que saíra de Dois Rios, parecia não funcionar do mesmo jeito — isso quando não a deixava na mão.
Ter que aguardar a vez de usar o lavatório também não ajudou, e muito menos escutar o relato de Elayne sobre o que tinha acontecido depois que ela deixou o gabinete de Elaida. Sua própria noite fora uma busca em vão pelas ruas de Tar Valon, onde além dela mesma só se viam pombos, ratos e pilhas de lixo. Aquilo fora um choque: Tar Valon estava sempre impecável. Elaida devia estar negligenciando demais a cidade, para que aparecesse lixo em Tel’aran’rhiod. Em dado momento, avistou Leane de relance pela janela de uma taverna perto da Baía do Sul, por mais incrível que fosse vê-la num lugar daqueles, mas quando correu para dentro do salão só encontrou mesas e bancos recém-pintados de azul. Devia ter desistido, mas Myrelle andava atormentando seu juízo nos últimos tempos, e queria ter a consciência tranquila quando contasse à mulher que de fato tentara. Myrelle podia detectar uma evasiva mais rápido do que qualquer pessoa que ela já conhecera ou de quem ouvira falar. Para completar, tinha saído de Tel’aran’rhiod na noite anterior e encontrado o anel de Elayne já de volta na mesa, com a jovem caída no sono. Se existisse um prêmio para esforço inútil, teria ganhado sem nem tentar. E saber que Sheriam e as outras quase tinham morrido… Até o canto do pardal, em sua gaiolinha de palha, ganhou uma olhada de desprezo.
— Elas acham que sabem de tudo — resmungou Nynaeve, em tom de desprezo. — Contei a elas sobre os pesadelos. Eu avisei, e ontem não foi a primeira vez. — Não fazia diferença que todas as seis irmãs tivessem sido Curadas antes mesmo que ela tivesse voltado de Tel’aran’rhiod. Tudo poderia ter terminado de maneira muito pior… e só porque elas achavam que já sabiam tudo. Os puxões irritados que ela deu na trança atrasaram a refeitura do penteado para o dia. O bracelete do a’dam também às vezes agarrava no cabelo, mas ela não pretendia tirá-lo. Era dia de Elayne usá-lo, o que daria no mesmo que deixá-lo pendurado em um prego na parede. Sentiu preocupação passar pelo bracelete, junto com aquele medo inevitável, porém, mais do que qualquer coisa, frustração. “Marigan” sem dúvida já estava ajudando a preparar o café da manhã, e ter que fazer as tarefas parecia irritá-la mais do que ser prisioneira. — Foi muito bem pensado da sua parte, Elayne. Mas você não disse como foi que acabou no meio da coisa depois de tentar avisar todo mundo.
Ainda esfregando o rosto com a toalha, Elayne estremeceu.
— Não foi tão difícil chegar nessa solução. Um pesadelo daquele tamanho requeria o trabalho de todas. Talvez elas tenham aprendido um pouco de humildade. Talvez a reunião com as Sábias, hoje, não seja tão ruim.
Nynaeve assentiu, pensando consigo mesma. Então fora o que ela imaginara. Não em relação a Sheriam e às outras — as Aes Sedai só aprenderiam a ter humildade no dia em que as cabras começassem a voar, e as Sábias ainda levariam um dia mais. Era em relação a Elayne: estava claro que a garota entrara no pesadelo por escolha própria, embora jamais fosse admitir. Nynaeve não sabia ao certo se a menina considerava ostentação levar crédito pela bravura ou se simplesmente não percebia quanto era corajosa. De todo modo, Nynaeve estava dividida entre admiração pela coragem da amiga e o desejo de que, ao menos uma vez na vida, Elayne reconhecesse seus feitos.
— Achei que tinha visto Rand.
Aquilo fez Elayne baixar a toalhinha.
— Ele estava lá em carne e osso? — Aquilo era perigoso demais, segundo as Sábias. Havia o risco de perder parte de sua humanidade. — Mas você o avisou.
— E desde quando ele escuta a voz da razão? Só o vi de relance. Talvez ele só tenha tocado Tel’aran’rhiod em sonho. — Era improvável. Ao que parecia, Rand criava blindagens tão fortes nos próprios sonhos que ela achava que ele não teria como adentrar aquele mundo de outra forma senão em carne e osso, nem que fosse um Andarilho dos Sonhos e portasse um dos anéis. — Talvez fosse alguém um pouco parecido com ele. Como eu disse, foi uma visão muito rápida, na praça em frente à Torre.
— Eu devia estar lá com ele — murmurou Elayne. Esvaziando a bacia na jarra para a noite, ela abriu espaço para Nynaeve usar o lavatório. — Ele precisa de mim.
— Ele precisa é do que sempre precisou. — Nynaeve parecia irritada enquanto enchia a bacia com água da jarra. Realmente odiava se lavar com água que tinha ficado ali parada a noite toda. Pelo menos não estava fria, já que, naqueles tempos, não havia mais o que se pudesse chamar de água fria. — Alguém para dar um safanão em sua orelha uma vez por semana, só por precaução, e também para mantê-lo na linha.
— Não é justo. — As palavras saíram abafadas pela roupa de baixo limpa que Elayne enfiava pela cabeça. — Eu me preocupo com ele o tempo todo. — A cabeça emergiu pela gola exibindo um semblante mais preocupado que indignado, a despeito do tom, e ela puxou um vestido branco com listras de um dos pregos da parede. — Eu me preocupo com ele até em sonhos! Você acha que ele passa o tempo inteiro preocupado comigo? Duvido muito.
Nynaeve assentiu, embora parte dela considerasse que não era exatamente a mesma coisa. Rand havia sido informado de que Elayne estava em segurança com as Aes Sedai, por mais que não soubesse onde. Como é que ele algum dia poderia estar em segurança? Nynaeve se debruçou no lavatório, e o anel de Lan escapou pela gola da roupa de baixo e ficou balançando no cordão de couro. Não, Elayne tinha razão. Fosse lá o que Lan estivesse fazendo, fosse lá onde ele estivesse, Nynaeve duvidava de que ele pensasse nela metade das vezes que ela pensava nele. Luz, que ele esteja vivo, mesmo que não pense nem um pouco em mim. Aquela possibilidade a encheu de raiva, raiva o bastante para dar um puxão na trança, se não estivesse com as mãos cheias de sabão e segurando a toalha de rosto.
— Você não pode passar o tempo todo preocupada com um homem — declarou, com amargor —, mesmo se quiser ser uma Verde. O que foi que elas encontraram, ontem à noite?
Foi uma longa história, embora com pouco conteúdo, e, depois de um tempo, Nynaeve sentou-se na cama de Elayne para escutar e fazer perguntas. Não que as respostas revelassem muito. Não era a mesma coisa que ela própria olhar os documentos. Era importante descobrir que Elaida finalmente ficara sabendo da anistia de Rand, mas o que a mulher pretendia fazer a respeito? A prova de que a Torre estava travando contato com governantes até poderia ser boa notícia, já que talvez fizesse o Salão começar a se mexer. Alguma coisa tinha que tirar a Aes Sedai daquele marasmo. Era mesmo preocupante que Elaida estivesse enviando uma missão diplomática a Rand, mas ele não seria idiota a ponto de dar ouvidos a qualquer um que viesse a mando de Elaida. Ou seria? Simplesmente não havia informação suficiente no que Elayne entreouvira. E o que Rand estava pensando quando colocou o Trono do Leão em um pedestal? O que ele estava fazendo com um trono, para começo de conversa? Ele até podia ser o Dragão Renascido e o tal car-sei-lá-o-que-das-quantas dos Aiel, mas Nynaeve não conseguia esquecer que cuidara dele quando criança e lhe dera umas boas palmadas quando preciso.
Elayne continuou se vestindo, mas estava arrumada antes de a história acabar.
— Eu conto o resto mais tarde — disse a jovem, muito apressada, e disparou porta afora.
Nynaeve grunhiu e voltou a se vestir, sem pressa. Naquele dia, Elayne daria sua primeira aula às noviças, coisa que Nynaeve ainda não tivera permissão para fazer. Mas, ainda que não tivesse ganhado a confiança para ensinar às noviças, havia Moghedien. Que dentro em breve estaria concluindo as tarefas do café da manhã.
Quando encontrou a mulher, enfiada até os cotovelos em água com sabão, o colar de prata do a’dam parecia bastante deslocado ali. Moghedien não estava sozinha: cerca de dez mulheres esfregavam roupas sobre tábuas em um pátio com cerca de madeira, entre caldeirões borbulhantes de água fervente. Outras penduravam as roupas já limpas em compridos varais erguidos entre estacas, mas, nas tábuas de lavar, pilhas de roupa de cama, roupas de baixo e de todo tipo de tecido aguardavam a vez. O olhar que Moghedien lhe dirigiu teria sido capaz de fritar o couro de Nynaeve. Ódio, vergonha e ira atravessaram o a’dam, quase suficientes para sobrepujar o medo, sempre presente.
A mulher no comando, Nildra, grisalha e magra feito um varapau, veio toda alvoroçada, segurando sua comprida colher de pau feito um cetro, as saias de lã escura amarradas aos joelhos para não tocarem o chão enlameado por conta da água espalhada.
— Bom dia, Aceita. Veio atrás de Marigan, suponho? — Seu tom era seco, um misto de respeito com a certeza de que, no dia seguinte, poderia ver qualquer Aceita trabalhando com as lavadeiras por um dia ou um mês. E sendo tão atormentadas quanto as outras, se não mais. — Bom, eu ainda não posso liberá-la. Já tem pouquíssima gente aqui. Uma das minhas garotas está se casando hoje, outra fugiu, e duas vão pegar leve no trabalho porque estão grávidas. Myrelle Sedai disse que eu podia ficar com ela. Talvez eu consiga liberá-la daqui a umas horas. Vou ver.
Moghedien se endireitou, abrindo a boca, mas Nynaeve a silenciou com um olhar firme e um toque conspícuo no bracelete em seu pulso, e a Abandonada retornou ao trabalho. Bastariam algumas palavras impróprias de Moghedien, uma reclamação do tipo que jamais seria proferida pela camponesa que ela aparentava ser, para levá-la ao estancamento e ao carrasco — e Nynaeve e Elayne não teriam fim muito melhor. Nynaeve não pôde evitar engolir em seco, aliviada, quando Moghedien inclinou-se de volta para a tábua, a boca se contorcendo enquanto resmungava entre dentes. Vergonha imensa e fúria desmedida percorreram o a’dam.
Nynaeve conseguiu abrir um sorriso para Nildra e murmurar qualquer coisa indistinta, depois seguiu a passos firmes até uma das cozinhas comunitárias para tomar o café da manhã. Ficou imaginando se a Verde criara alguma birra com ela, por qualquer motivo que fosse. E se iria amargar uma dor de estômago permanente por estar prendendo Moghedien. Comia menta-de-ganso quase feito bala, desde que pusera o a’dam na mulher.
Foi bem fácil arranjar uma caneca de barro cheia de chá com mel e um pãozinho saído do forno, mas teve que ir comendo enquanto andava. Seu rosto pingava de suor. Mesmo àquela hora da manhã, o calor já estava forte, e o ar, seco. O sol nascente era um domo de ouro fundido acima da floresta.
As ruas de terra batida estavam movimentadas, como de costume quando havia luz do dia. Aes Sedai deslizavam, serenas, ignorando a poeira e o calor, os rostos misteriosos compenetrados em tarefas misteriosas, em geral seguidas de seus Guardiões — lobos de olhos frios fingindo, em vão, que haviam sido domados. Havia soldados por toda parte, em geral marchando ou cavalgando em grupamentos, mas Nynaeve não entendia por que tinham permissão de deixar as ruas lotadas daquele jeito, se seus acampamentos eram na mata. As crianças saracoteavam, às vezes imitando os soldados, mas portando gravetos em lugar das espadas e ponteiras. Noviças com vestidos brancos, ocupadas com suas tarefas, abriam caminho a passo rápido pela multidão. Os serviçais se deslocavam um pouco mais devagar, mulheres com braços abarrotados de lençóis para as camas das Aes Sedai ou cestas de pão das cozinhas, homens guiando carros de boi cheios de lenha empilhada, puxando baús ou levando nos ombros carcaças inteiras de ovelhas para as cozinhas. Salidar não fora concebida para comportar tanta gente, e a aldeia estava quase explodindo.
Nynaeve continuou andando. Uma Aceita supostamente deveria ter a maior parte do dia para si, para estudar sobre o que escolhesse, sozinha ou com uma Aes Sedai, a não ser que desse aulas para as noviças. Ainda assim, se a Aceita aparentasse não estar fazendo nada, poderia ser chamada por qualquer Aes Sedai. E ela não pretendia passar o dia ajudando uma irmã Marrom a catalogar livros ou passando anotações a limpo para uma Cinza. Odiava passar a limpo, com todas aquelas estaladas de língua quando manchava o papel e bufadas por não ter a caligrafia limpa como a de um copista. Então ela seguiu por entre o povo e a poeira, atenta para caso visse Siuan e Leane. Estava com raiva suficiente para canalizar sem usar Moghedien.
Cada vez que reparava no pesado anel de ouro aninhado entre os seios, pensava: ele tem que estar vivo. Mesmo que tenha me esquecido, Luz, que ele esteja vivo. E esse último pensamento, naturalmente, a deixava ainda mais irritada. Se a ideia de esquecê-la sequer passasse pela cabeça de al’Lan Mandragoran, ela o poria na linha. Ele tinha que estar vivo. Os Guardiões quase sempre morriam vingando suas Aes Sedai, e era tão certo quanto o nascer sol que nenhum Guardião se permitiria desviar do caminho dessa vingança, mas não havia como Lan vingar Moiraine. Era como se a Azul tivesse caído de um cavalo e quebrado o pescoço. Ela e Lanfear tinham matado uma à outra. Ele tinha que estar vivo. E por que ela deveria se sentir culpada pela morte de Moiraine? Era verdade que aquilo deixara Lan livre, mas ela não tivera nada a ver com o fato. Ainda assim, a primeira coisa que sentira ao saber que Moiraine estava morta, por mais efêmero que tivesse sido, fora alegria por Lan estar livre, e não pesar por Moiraine. Dessa vergonha ela não tinha como se livrar, o que a deixava com mais raiva do que nunca.
De súbito, viu Myrelle caminhando a passos firmes em sua direção, acompanhada de um homem louro a cavalo: Croi Makin, um de seus três Guardiões, bem jovem e bem magro, mas forte como uma rocha. Com uma expressão determinada, a Aes Sedai decerto não demonstrava os efeitos da noite anterior. Nada indicava que Myrelle estivesse procurando por ela, porém Nynaeve logo se enfiou em um grande edifício de pedras, que outrora fora uma das três estalagens de Salidar.
O amplo salão havia sido limpo e mobiliado como uma recepção. As paredes caiadas e o teto alto tinham sido remendados, havia umas poucas tapeçarias vistosas penduradas e alguns tapetes coloridos jaziam espalhados no chão, que já não parecia lascado, mas continuava a resistir a todos os esforços dos serviçais para deixá-lo com aspecto lustroso. O interior protegido do sol estava fresco, se comparado à rua. Pelo menos um pouco mais fresco. E estava ocupado.
Logain permanecia, insolente, diante de uma das grandes lareiras apagadas, a cauda do casaco vermelho com bordados em ouro enfiada nas costas, parado sob o olhar atento de Lelaine Akashi, com seu xale de franjas azuis indicando a formalidade da ocasião. Uma mulher esbelta, com um ar de dignidade que às vezes se abrandava em um sorriso afetuoso, uma das três Votantes da Ajah Azul no Salão da Torre de Salidar. Naquele dia, o mais evidente era seu olhar penetrante, observando a audiência de Logain.
Eram dois homens e uma mulher resplandecente, vestidos com sedas bordadas e joias de ouro, todos os três grisalhos, embora um dos homens estivesse quase careca — o que ele compensava com a barba quadrada e um longo bigode. Eram poderosos nobres altaranos, que haviam chegado na véspera com uma escolta de peso e pareciam tão desconfiados uns dos outros quanto das Aes Sedai que reuniam um exército dentro de Altara. Os altaranos deviam lealdade a um lorde, uma lady ou cidade — pouca ou nenhuma lealdade restava à nação que chamavam de Altara. Poucos nobres pagavam impostos ou davam atenção ao que dizia a rainha em Ebou Dar, mas voltavam sua atenção a um exército comum. Só a Luz sabia que efeitos os boatos sobre os Devotos do Dragão exerciam no povo dali. Naquele momento, contudo, os nobres tinham se esquecido de trocar olhares altivos e de encarar Lelaine em desafio. Todos tinham os olhos fixos em Logain, como se ele fosse uma serpente imensa e de cores fortes.
Completando o ciclo, Burin Shaeren, de pele acobreada, cujo rosto parecia entalhado de um toco de madeira, observava tanto Logain quanto os visitantes — era um homem preparado para se mover súbita e violentamente em um piscar de olhos. O Guardião de Lelaine estava ali em parte para vigiar Logain — afinal de contas, o sujeito supostamente estava em Salidar de livre e espontânea vontade —, mas sobretudo para proteger o homem dos visitantes e de uma facada no peito.
De sua parte, Logain parecia florescer sob aqueles olhares. Era um homem alto, de cabelos cacheados que tocavam os ombros largos, pele escura e bem bonito, mesmo com feições rígidas, e tinha a soberba e a confiança de uma águia. Mas era uma promessa de vingança que alimentava o brilho em seus olhos. Ainda que ele não pudesse dar o troco em todos os que lhe fizeram mal, poderia pelo menos se esforçar para punir alguns.
— Seis irmãs Vermelhas me encontraram em Cosamelle, cerca de um ano antes de eu me proclamar — ia dizendo ele, quando Nynaeve entrou. — Javindhra, esse era o nome da líder, embora uma chamada Barasine também falasse bastante. E ouvi mencionarem Elaida, como se a mulher soubesse o que elas estavam tramando. Elas me encontraram enquanto eu dormia, e, quando me blindaram, achei que seria o meu fim.
— Aes Sedai — interrompeu a mulher que escutava, bruscamente. Era troncuda e de olhar rígido, com uma fina cicatriz na bochecha, que Nynaeve considerou incongruentes com uma mulher. As altaranas de fato tinham reputação de ferozes, embora muito provavelmente fosse exagero. — Aes Sedai, como pode o que ele alega ser verdade?
— Não sei como, Lady Sarena — respondeu Lelaine, muito calma —, mas recebi a confirmação de uma pessoa incapaz de mentir. Ele está dizendo a verdade.
O rosto de Sarena não se alterou, mas ela cerrou os punhos às costas. Um de seus companheiros, o homem alto de rosto encovado, com mais fios grisalhos que pretos no cabelo, tinha os polegares cravados no cinturão. Ele tentava parecer relaxado, mas a força com que cerrava os punhos embranquecia as juntas.
— Como eu ia dizendo — prosseguiu Logain, dando um sorrisinho —, elas me encontraram e me deixaram optar entre morrer ali mesmo ou aceitar sua oferta. Uma escolha estranha, nada do que eu esperava, mas eu não tinha muito tempo para pensar. Elas não disseram que já tinham feito isso, mas tive a sensação de que já eram experientes na coisa. Não davam motivos, mas, olhando para trás, me parece bem claro. Capturar um homem capaz de canalizar trazia pouca glória, mas abater um falso Dragão, por outro lado…
Nynaeve franziu o cenho. Ele falava em um tom tão displicente, como se conversasse sobre a caça do dia, mas tratava da própria ruína, e cada palavra era mais um prego cravado no caixão de Elaida. Talvez no caixão de toda a Ajah Vermelha. Se as Vermelhas tinham pressionado Logain a se proclamar o Dragão Renascido, poderiam ter feito o mesmo com Gorin Rogad ou Mazrim Taim? Talvez com todos os falsos Dragões da história? Ela quase podia ver as engrenagens girando feito moinhos nas mentes dos altaranos — a princípio lentas, depois girando cada vez mais rápido.
— Durante um ano inteiro, elas me ajudaram a evitar outras Aes Sedai — continuou Logain —, enviando mensagens quando avistavam alguma, embora naquela época não houvesse muitas. Depois que eu me proclamei e comecei a reunir seguidores, elas mandavam notícias sobre onde estavam os exércitos do rei e quantos eram em número. Como é que vocês acham que eu sempre soube onde e quando atacar?
Os ouvintes remexiam os pés, tanto pelas palavras quanto pelo sorriso feroz daquele homem.
Logain odiava as Aes Sedai. Nynaeve tinha certeza disso pelas poucas vezes em que conseguira se obrigar a estudá-lo. Não que tivesse continuado a pesquisa depois da partida de Min ou descoberto qualquer coisa durante as sessões anteriores. Chegara a pensar que observá-lo seria como olhar para o problema de outro ângulo — a diferença entre os homens nunca ficava tão clara quanto ao usarem o Poder —, mas observá-lo era pior do que olhar uma caverna escura. Não havia nada ali, nem a caverna. Em geral, estar perto de Logain era perturbador. O homem perscrutava cada movimento seu com intensidade fervorosa, fazendo-a estremecer mesmo ciente de que poderia envolvê-lo com o Poder, caso ele erguesse um dedinho que fosse para lhe fazer mal. Não era o tipo de fervor que os olhos dos homens costumavam direcionar às mulheres, era um desprezo puro. E o mais aterrorizante era que ele jamais deixava o sentimento transparecer em suas feições. As Aes Sedai o haviam apartado para sempre do Poder Único. Nynaeve só podia imaginar o que ela própria sentiria se alguém lhe fizesse isso. Ele, no entanto, não podia se vingar de todas as Aes Sedai. O que podia era destruir a Ajah Vermelha — e a missão até agora parecia promissora.
Era a primeira vez que vinham três ao mesmo tempo, mas toda semana, mais ou menos, chegava um lorde ou uma lady para ouvir a história dele, vindos de Altara ou às vezes até de Murandy, e todos saíam completamente arrebatados pelo que Logain lhes contava. Não era de se admirar: a única notícia mais chocante seria se as Aes Sedai admitissem que a Ajah Negra de fato existia. Bem, elas não fariam uma coisa dessas, não em público, e era pela mesma razão que faziam o possível para manter em segredo as notícias relacionadas a Logain. Podia ter sido obra da Ajah Vermelha, mas ainda assim eram Aes Sedai, e muita gente não sabia distinguir uma Ajah da outra. No geral, apenas poucas pessoas eram trazidas para ouvir Logain, ainda que cada uma fosse escolhida pelo poder da Casa que liderava. Casas que agora cederiam seu apoio às Aes Sedai em Salidar, ainda que nem sempre abertamente. Ou que pelo menos se recusariam a apoiar Elaida.
— Javindhra me avisou da chegada de mais Aes Sedai — continuou Logain —, as que estavam atrás de mim, e informou onde estariam, para que eu pudesse atacá-las sem aviso prévio. — As feições serenas e etéreas de Lelaine se endureceram por um instante, e a mão de Burin foi sozinha para o punho da espada. Irmãs haviam morrido tentando capturar Logain. O homem pareceu não notar a reação. — A Ajah Vermelha nunca me deu informações falsas, até que me traíram.
O homem barbado encarava Logain com tanta intensidade que era evidente que estava se forçando a fazê-lo.
— Aes Sedai, e os seguidores dele? Talvez ele estivesse seguro na Torre, mas foi capturado muitas léguas mais perto de onde estamos.
— Não foram todos mortos ou capturados — observou o lorde de rosto encovado, logo atrás do primeiro. — A maioria fugiu, evaporou. Eu conheço bem a história de meu povo, Aes Sedai. Os seguidores de Raolin Algoz-das-trevas ousaram atacar a própria Torre Branca depois da captura dele, e os de Guaire Amalasan também. Nós nos lembramos muito bem do exército de Logain marchando por nossas terras para querer que isso se repita numa tentativa de resgate.
— Você não precisa temer isso. — Lelaine olhou para Logain com um sorriso breve, como uma mulher olharia um cão domesticado e preso a uma coleira. — Ele já não deseja glória, quer apenas reparar um pouco do mal que causou. Além do mais, duvido de que muitos de seus antigos seguidores viriam ao seu chamado, não depois de ele ser levado enjaulado para Tar Valon, onde foi amansado. — Sua risada baixinha ecoou na voz dos altaranos, mas só depois de um instante, e era um eco bem fraco. O rosto de Logain era uma máscara de ferro.
De repente, Lelaine notou Nynaeve logo à frente do batente da porta e ergueu as sobrancelhas. A mulher já havia trocado palavras amistosas com Nynaeve mais de uma vez e elogiara as supostas descobertas dela e de Elayne, mas seria tão rápida quanto qualquer outra Aes Sedai em repreender uma Aceita que cometesse um deslize.
Nynaeve curvou-se em uma mesura, fazendo um gesto com a caneca de barro já sem chá.
— Peço perdão, Lelaine Sedai. Preciso levar isso de volta à cozinha. — Ela disparou pela rua escaldante antes que a Aes Sedai pudesse dizer uma palavra.
Por sorte, Myrelle já não estava à vista. Nynaeve não estava com disposição para mais um sermão sobre como demonstrar responsabilidade, manter a calma ou qualquer coisa idiota. Por uma sorte ainda maior, viu Siuan parada a menos de trinta passos de distância, encarando Gareth Bryne no meio da rua, os dois no meio da multidão de transeuntes que iam e vinham. Tal qual Myrelle, Siuan não dava sinais do ataque relatado por Elayne — na opinião de Nynaeve, elas respeitariam mais Tel’aran’rhiod se não pudessem simplesmente fugir de lá e ter seus deslizes Curados na mesma hora em que chegavam ao mundo desperto. Nynaeve se aproximou.
— Qual é o seu problema, mulher? — rosnou Bryne para Siuan. Sua cabeça grisalha a olhava de cima, assomando-se sobre aquele rosto de aspecto jovem. Com os pés calçados em botas bem plantados no chão e as mãos nos quadris, Bryne parecia robusto como um rochedo. O suor que escorria por seu rosto poderia ser de outra pessoa, de tão pouca atenção que ele dispensava às gotas. — Eu a elogio pela maciez das minhas camisas, e você retruca com essa rudeza. E eu disse que você parecia bem-disposta, o que não é um golpe comum para começar batalhas, até onde eu sabia. Foi um elogio, mulher, mesmo que não tenha vindo acompanhado de rosas.
— Elogio? — rosnou Siuan em resposta, os olhos azuis cravados nele. — Eu não quero seus elogios! Você fica todo alegre por eu ter que passar suas camisas. Você é um homem muito mais baixo do que eu imaginava, Gareth Bryne. Espera mesmo que eu corra atrás de você feito uma criadinha quando o exército marchar, mendigando mais elogios? E você não vai se dirigir a mim dessa forma, como mulher! Eu tenho nome!
Uma veia saltou na têmpora de Bryne.
— Fico feliz em saber que você mantém a palavra, Siuan. E, se o exército de fato marchar, espero que continue mantendo. Nunca pedi que você fizesse esse juramento, ele foi escolha sua, para tentar se eximir da responsabilidade pelo que fez. Você nunca achou que seria obrigada a cumpri-lo, não é? Falando na marcha do exército, o que foi que você ouviu enquanto rastejava diante das Aes Sedai e beijava os pés delas?
Em um piscar de olhos, Siuan passou da ira fervilhante à calma gélida.
— Isso não faz parte do meu juramento. — Ela parecia uma jovem Aes Sedai, parada ali, toda empertigada, com aquela rebeldia fria e arrogante. Parecia alguém que ainda não usara o Poder por tempo suficiente para adquirir aquele ar etéreo. — Não vou servir de espiã para você. Você serve ao Salão da Torre, Gareth Bryne, por juramento seu. Seu exército vai marchar quando o Salão decidir. Fique atento às palavras deles e obedeça.
A mudança em Bryne foi imediata.
— Você seria uma inimiga com quem valeria a pena cruzar espadas — comentou, dando uma risadinha de admiração. — Seria melhor ainda… — Com a mesma rapidez, o sorriso deu lugar a uma careta. — O Salão, é? Ora! Diga a Sheriam que ela pode muito bem parar de me evitar. O que pode ser feito aqui já foi feito. Diga a ela que um cão de caça preso em uma jaula pode virar porco com a chegada dos lobos. Não reuni esses homens para serem vendidos no mercado. — Com um curto aceno de cabeça, ele saiu pisando firme pela multidão.
Siuan o encarou de cenho franzido.
— Que história foi essa? — perguntou Nynaeve, e Siuan se assustou.
— Não é da sua conta — retrucou em tom rude, alisando o vestido. Pairava no ar a suspeita de que Nynaeve a estava espiando de propósito. Siuan sempre levava tudo para o lado pessoal.
— Deixe para lá — disse Nynaeve em um tom firme. Ela não se deixaria ser distraída. — O que eu não vou deixar para lá é a vontade de estudar você. — Faria algo de útil hoje, nem que acabasse morta. Siuan abriu a boca e olhou em volta. — Não, eu não estou com Marigan, e, neste exato instante, não preciso dela. Você só permitiu que me aproximasse de você duas vezes desde que encontrei uma pista de que algo em você poderia ser Curado. Duas! Pretendo estudar você hoje, e, se eu não conseguir, vou contar a Sheriam que você está desobedecendo as ordens dela de se colocar disponível. Juro que vou!
Por um instante, pensou que a outra fosse desafiá-la a tentar, mas Siuan por fim respondeu, de má vontade:
— Hoje à tarde. Estou ocupada agora de manhã. A não ser que você considere sua vontade mais importante do que ajudar seu amigo de Dois Rios?
Nynaeve deu um passo à frente. Ninguém na rua dispensava às duas mais do que uma olhadela ao passar, mas mesmo assim ela baixou o tom.
— O que é que elas estão planejando para ele? Você vive dizendo que elas não se decidiram em relação ao que fazer, mas a essa altura devem ter chegado a alguma conclusão. — Se tinham, Siuan saberia, não importava se devesse ou não estar sabendo.
Leane apareceu de repente, e teria sido melhor Nynaeve ficar de boca calada. Siuan e Leane cravaram os olhos uma na outra, as costas rígidas, pareciam dois gatos se estranhando em um cantinho.
— E então? — murmurou Siuan, o maxilar contraído.
Leane fungou, e seus cachos balançaram quando ela jogou a cabeça para trás. Ela contorceu os lábios em uma expressão de desprezo, mas as palavras não correspondiam à expressão e nem ao tom.
— Eu tentei dissuadi-las — retrucou, mas num tom suave. — Só que elas não tinham escutado você o suficiente para sequer considerar. Você não vai se reunir com as Sábias hoje à noite.
— Ah, entranhas de peixe! — rosnou Siuan, dando meia-volta e disparando a passos firmes, porém não mais ligeiros do que Leane, para o lado oposto.
Nynaeve quase jogou as mãos para o alto, de tão frustrada. As duas estavam conversando como se ela não estivesse ali, como se ela não soubesse exatamente sobre o que estavam falando. Ignorando-a. Era bom que Siuan aparecesse à tarde, como prometera, ou daria um jeito de torcê-la todinha e colocá-la para secar! Ao ouvir uma voz de mulher atrás de si, Nynaeve deu um salto.
— Aquelas duas deviam ser enviadas a Tiana para receber umas boas varadas. — Lelaine parou a seu lado, olhando primeiro para Siuan, depois para Leane. A Aes Sedai chegara de mansinho. Que mulher bisbilhoteira! Não havia sinal de Logain, nem de Burin, nem dos nobres altaranos. A irmã azul remexeu o xale. — Elas não são o que eram, claro, mas era de se esperar que conservassem um pouco de decoro. Não será nada bom se elas começarem a puxar os cabelos uma da outra no meio da rua.
— Às vezes as pessoas simplesmente irritam as outras sem querer — comentou Nynaeve. Siuan e Leane se esforçavam tanto para sustentar a historinha que o mínimo que ela podia fazer era corroborá-la. Ah, como odiava gente bisbilhoteira.
Lelaine olhou a mão de Nynaeve, agarrada à trança, e ela mais que depressa soltou o cabelo. Muita gente conhecia aquele hábito — um hábito que ela se esforçava para abandonar. Mas a Aes Sedai apenas disse:
— Não quando isso fere a dignidade das Aes Sedai, criança. Mulheres que servem às Aes Sedai precisam demonstrar certa reserva em público, por mais patetas que sejam a portas fechadas. — Decerto não havia nada a ser dito em resposta. Pelo menos, nada que não gerasse problemas. — Por que você entrou agora há pouco no recinto onde eu estava exibindo Logain?
— Achei que o salão estivesse vazio, Aes Sedai — respondeu Nynaeve, prontamente. — Peço perdão. Espero não ter incomodado a senhora. — Isso não era resposta… ela não podia dizer que estava se escondendo de Myrelle, mas a Azul esguia apenas a encarou por um instante.
— O que você acha que Rand al’Thor vai fazer, criança?
Nynaeve piscou, confusa.
— Aes Sedai, faz meio ano que não o vejo. Só sei o que a gente ouve por aqui. O Salão já…? Aes Sedai, o que foi que o Salão decidiu em relação a ele?
Perscrutando o rosto de Nynaeve, Lelaine franziu os lábios. Aqueles olhos escuros, que pareciam ler pensamentos, eram muito perturbadores.
— Que coincidência impressionante. Você vem da mesma aldeia que o Dragão Renascido, assim como aquela outra garota, Egwene al’Vere. A expectativa era muito boa, quando ela se tornou noviça. Você faz alguma ideia de onde ela está? — A mulher não esperou a resposta. — E os outros dois rapazes, Perrin Aybara e Mat Cauthon. Ambos também ta’veren, pelo que eu soube. É mesmo impressionante. E agora você, com descobertas extraordinárias, apesar de suas limitações. Seja lá onde Egwene estiver, será que está se aventurando em lugares onde nenhuma de nós esteve? Todos vocês geraram muitos debates entre as irmãs, como pode imaginar.
— Espero que estejam dizendo coisas boas a nosso respeito — respondeu Nynaeve, hesitante.
As Aes Sedai haviam feito muitas perguntas sobre Rand desde sua vinda para Salidar, sobretudo depois da partida da missão diplomática para Caemlyn — algumas Aes Sedai, inclusive, eram incapazes de conversar com ela sobre outra coisa. Mas aquilo era diferente. Esse era o problema em falar com Aes Sedai. Metade das vezes não dava para saber ao certo o que elas buscavam ou pretendiam.
— Você ainda tem esperanças de Curar Siuan e Leane, criança? — Lelaine assentiu, como se Nynaeve já tivesse respondido, e soltou um suspiro. — Às vezes acho que Myrelle tem razão. Nós mimamos você demais. Sejam lá quais forem as suas descobertas, talvez devêssemos deixá-la aos cuidados de Theodrin até que esse seu bloqueio de canalizar por vontade própria seja dissolvido. Considerando o que você fez nos dois últimos meses, pense no que poderá fazer depois. — Agarrando a trança sem perceber, Nynaeve tentou encontrar uma brecha para falar, para fazer um protesto cauteloso, mas Lelaine ignorou a tentativa. E decerto foi melhor assim. — Você não está fazendo nenhum favor a Siuan e Leane, criança. Deixe que elas esqueçam quem e o que eram e se contentem com quem e o que são. Pela forma como se comportam, o único impeditivo para que esqueçam completamente é você, com essas tentativas tolas de Curar o que não pode ser Curado. Elas não são mais Aes Sedai. Por que alimentar falsas esperanças?
Havia um toque de compaixão em sua voz, junto com um leve desprezo. Afinal de contas, as que não eram Aes Sedai eram inferiores, e os ardis de Siuan e Leane definitivamente as fizeram cair ainda mais no conceito geral. Além disso, ali em Salidar não eram poucas as que culpavam Siuan e suas tramas, em seus tempos de Amyrlin, pelos problemas da Torre. Era muito provável que acreditassem que ela merecia tudo o que lhe acontecera e muito mais.
O que fora feito, contudo, era um complicador. O estancamento era raro. Antes de Siuan e Leane, fazia cento e quarenta anos que uma mulher não era julgada e estancada, e pelo menos doze anos que não se via uma mulher exaurida. As estancadas em geral tentavam se afastar ao máximo das Aes Sedai. Lelaine, caso fosse estancada, decerto tentaria esquecer que fora Aes Sedai — se é que isso era possível. E deixava claro que gostaria de esquecer que Siuan e Leane também tinham sido, de que haviam sido destituídas de tudo aquilo. Grande parte das Aes Sedai se sentiria mais confortável se elas pudessem ser encaradas como duas mulheres que jamais tinham sido capazes de canalizar, que jamais tinham sido Aes Sedai.
— Sheriam Sedai me concedeu permissão para tentar — declarou Nynaeve, com a maior firmeza que ousava dirigir a uma irmã completa. Lelaine sustentou o olhar até Nynaeve se desviar. Ela agarrou a trança antes que pudesse perceber, e as juntas de seus dedos ficaram brancas, mas manteve a expressão serena. Tentar encarar uma Aes Sedai era um truque bastante insensato para uma Aceita.
— Todas agimos feito bobas algumas vezes, criança, porém a mulher sábia aprende a limitar a frequência desse tipo de atitude. Como parece que você já terminou o café da manhã, sugiro que se livre dessa caneca e vá encontrar o que fazer antes que arrume problemas. Nunca pensou em cortar esse cabelo? Ah, não importa. Pode ir.
Nynaeve fez uma mesura, mas a Aes Sedai já tinha virado as costas. Olhou feio para Lelaine assim que se viu livre de seu olhar. Cortar o cabelo? Ergueu a trança e a sacudiu com força na direção da Aes Sedai que se afastava — e ficou furiosa por ter esperado ela se afastar para fazer aquilo, mas, se não tivesse esperado, com certeza seria mandada para fazer companhia a Moghedien na lavagem das roupas, e no caminho ainda teria que dar uma paradinha para ver Tiana. Já estava ali em Salidar havia meses, sem fazer nada — pelo menos era o que parecia, apesar de tudo o que ela e Elayne tinham conseguido arrancar de Moghedien —, cercada de Aes Sedai que tinham decidido ficar só conversando enquanto esperavam o mundo acabar sem elas. E Lelaine ainda sugeriu que ela cortasse o cabelo! Ah, Nynaeve perseguira a Ajah Negra, havia sido capturada e tinha fugido, além de ter capturado uma Abandonada — tudo bem que ninguém sabia disso —, e ajudado a Panarca de Tarabon a reconquistar o trono — tudo bem que não tinha durado muito. Depois de fazer isso tudo, era obrigada a ficar sentada levando crédito pelo que conseguia arrancar de Moghedien. E vinham lhe sugerir cortar o cabelo? Se fosse adiantar de alguma coisa, aceitaria até ficar careca!
Avistou Dagdara Finchey, que era tão robusta quanto qualquer homem ali na rua e mais alta do que a média, avançando por entre a multidão. Ver a Amarela de rosto redondo só a deixou mais irritada. Um dos motivos para permanecer ali em Salidar era estudar com as Amarelas, que todos diziam conhecer a arte da Cura melhor do que ninguém. Bem, se alguma delas sabia mais que Nynaeve sobre Cura, não estava disposta a compartilhar seus conhecimentos com uma reles Aceita. Tinha pensado que as Amarelas seriam as mais receptivas ao seu desejo de Curar tudo e todos, inclusive o estancamento, mas era o grupo que parecia menos animado com a ideia. Não fosse a intervenção de Sheriam, Dagdara a teria mandado esfregar o chão dia e noite até ela desistir dessas “bobagens e perdas de tempo”; e Nisao Dachen, uma Amarela bem baixinha de olhos penetrantes, se recusava até a falar com Nynaeve enquanto ela insistisse em tentar “alterar a forma da trama do Padrão”.
E, para piorar a situação, os sentidos ainda diziam que uma tempestade estava para chegar, cada vez mais próxima, embora ela continuasse sofrendo os efeitos do céu completamente sem nuvens com um sol escaldante.
Resmungando sozinha, Nynaeve enfiou a caneca de barro na traseira de um carrinho de madeira e seguiu pela rua abarrotada desviando dos outros transeuntes. Sua única opção era seguir com o dia até Moghedien estar livre, e só a Luz sabia quanto isso ia demorar. Uma manhã inteira perdida somada a uma longa lista de dias perdidos.
Muitas das Aes Sedai meneavam a cabeça e sorriam para ela, mas bastava forçar um sorriso de desculpas e acelerar um tantinho o passo, como se estivesse com pressa, para evitar ser parada pelas inevitáveis perguntas sobre que novidades podiam esperar dela. Com seu humor atual, poderia acabar respondendo exatamente o que estava pensando, uma atitude extremamente tola. Ficavam ali fazendo nada. Querendo que ela adivinhasse o que Rand faria. Mandando-a cortar o cabelo. Argh!
Claro que não recebeu apenas sorrisos. Quando se deparou com a pequena Nisao, que agiu como se ela fosse invisível, ainda teve que pular para fora do caminho para não ser atropelada pela Amarela. E uma Aes Sedai altiva, de cabelos claros, olhos azuis e queixo proeminente, guiando um capão ruano alto pela multidão, passou olhando feio para ela. Nynaeve não a reconheceu. Ela estava muito arrumada, usando um vestido de montaria de seda cinza-claro, mas a capa de linho leve dobrada na frente da sela indicava que a mulher tinha acabado de chegar — outro indício era o Guardião magricela de casaco verde que vinha atrás dela, montado em um cavalo de batalha alto e cinzento e com um ar apreensivo. Os Guardiões nunca pareciam apreensivos, mas Nynaeve imaginou que poderiam abrir uma exceção quando sua Aes Sedai decidia se juntar a uma rebelião contra a Torre. Luz! Até os recém-chegados a irritavam!
Então viu Uno, com sua cara cheia de cicatrizes, o cabelo todo raspado, exceto pelo rabo de cavalo no topo da cabeça e o tapa-olho com um olho falso horroroso pintado em vermelho-vivo. Uno parou ao ouvir o berro assustado de um jovem a cavalo vestido com armadura de placa e malha, com uma lança amarrada à sela. O jovem passou de assustado a envergonhado na mesma hora. Uno abriu um sorriso afetuoso para Nynaeve. Bem, até poderia ser afetuoso, não fosse o tapa-olho. A Aceita respondeu com uma careta que o fez piscar e dar meia-volta para ralhar com o soldado.
Não foram Uno e seu tapa-olho que tinham deixado Nynaeve amarga. Não exatamente. Uno acompanhara ela e Elayne até Salidar e até prometera roubar cavalos — “pegar emprestado”, como ele dizia —, caso elas quisessem partir, mas já não havia a menor chance disso. Uno passara a usar uma faixa dourada trançada nos punhos do casaco escuro e surrado, indicando seu posto de oficial — ele estava treinando uma cavalaria pesada para Gareth Bryne, estava dedicado demais para se preocupar com Nynaeve. Não, não era verdade. Se ela dissesse que queria ir embora, Uno arranjaria cavalos em questão de horas, e ela partiria com uma escolta de shienaranos de rabos de cavalo que haviam jurado lealdade a Rand e só estavam ali em Salidar porque ela e Elayne tinham levado todos até lá. Só que para isso ela precisaria admitir que estivera errada ao decidir ficar ali, precisaria admitir que tinha mentido todas as vezes que afirmara estar muito feliz em Salidar. E não era capaz de admitir tudo isso. Uno só estava ali porque acreditava que deveria cuidar dela e de Elayne, e Nynaeve não admitiria nada para ele!
Aquela ideia de sair de Salidar era nova, uma vontade despertada ao ver Uno, e Nynaeve começou a pensar seriamente no assunto. Se Thom e Juilin não tivessem ido embora para Amadícia… Não que os dois tivessem decidido viajar a passeio, é claro. Quando morrer ali como Aes Sedai ainda lhe parecia valer de alguma coisa, aqueles dois tinham se oferecido para descobrir o que estava acontecendo do outro lado do rio. Como queriam avançar até a própria Amador, eles já estavam afastados havia bem mais de um mês — e, na melhor das hipóteses, ainda levariam mais uns dias para voltar. Claro que os dois não eram os únicos despachados para descobrir o que estava acontecendo. Haviam mandado até algumas Aes Sedai, mas a maioria tinha ido mais para oeste, na direção de Tarabon. Entre fingir estar fazendo alguma coisa e a demora no retorno dos dois, Nynaeve tinha boas desculpas para esperar. Desejou não ter deixado os dois partirem — nenhum deles teria ido se ela tivesse dito não.
Thom era um velho menestrel, embora já tivesse sido muito mais que isso, e Juilin era um apanhador de ladrões de Tear: dois homens competentes que sabiam como agir em terras estranhas, além de dotados de um sem-número de capacidades úteis. Os dois também tinham acompanhado Nynaeve e Elayne até Salidar, e nenhum teria questionado caso ela dissesse que queria ir embora. Com certeza falariam dela pelas costas, mas não pela frente, como no caso de Uno.
Era horrível ter que admitir que de fato precisava daqueles dois, mas não tinha a menor ideia de como faria para roubar um cavalo. E, além disso, uma Aceita rondando os estábulos ou as fileiras de estacas dos soldados não passaria despercebida. E, se tirasse o vestido branco, seria vista e denunciada antes mesmo de chegar perto de um casco. E, mesmo que conseguisse fugir, seria perseguida. Quase todas as Aceitas e noviças fugidas eram capturadas e sofriam punições amargas que reduziam a pó qualquer ideia de uma segunda tentativa. Depois de começado, o treinamento para ser Aes Sedai só terminava quando as Aes Sedai diziam que tinha terminado.
Claro que não era o medo da punição que a impedia — o que eram uma ou duas varadas diante da possibilidade de ser morta pela Ajah Negra ou de ter que enfrentar um dos Abandonados? Só não sabia se queria mesmo ir. E para onde iria? Para Caemlyn, atrás de Rand? Encontrar Egwene em Cairhien? E será que Elayne iria junto? Ah, a menina com certeza iria se fossem para Caemlyn. Será que aquela sua ansiedade era uma vontade de agir, de fazer qualquer coisa que fosse, ou o medo de que as Aes Sedai descobrissem Moghedien? A punição para uma fuga não seria páreo para isso! Ainda não tinha chegado a nenhuma conclusão quando virou uma curva e se deparou com a turma de noviças de Elayne, todas reunidas em um espaço aberto entre duas casas de pedra e telhado de palha, onde antes ficavam as ruínas de outra casa.
Eram mais de vinte mulheres vestidas de branco sentadas em semicírculo, observando enquanto Elayne guiava duas outras mulheres em um exercício, as três envoltas pelo brilho tênue de saidar. Tabiya, uma menina sardenta e de olhos verdes, com cerca de dezesseis anos, e Nicola, uma mulher esguia e de cabelos negros da idade de Nynaeve, passavam, inseguras, uma pequenina chama de um lado a outro. A chama tremulava e volta e meia sumia por alguns segundos quando uma das mulheres não era rápida o suficiente em manter a trama que a outra lhe passara. Naquele estado de humor, Nynaeve conseguia ver claramente os fluxos urdidos.
Dezoito noviças tinham sido levadas às pressas quando Sheriam e as outras fugiram da torre, e Tabiya era uma delas, mas a maioria das moças ali era como Nicola: recrutadas depois que as Aes Sedai se estabeleceram em Salidar. Nicola não era a única mais velha que o normal para uma noviça, quase metade das outras mulheres tinha a mesma idade. Quando Nynaeve e Elayne foram para a Torre, era raro as Aes Sedai testarem mulheres mais velhas que Tabiya — Nynaeve era famosa tanto por ser bravia quanto pela idade avançada —, mas, talvez por desespero, as mulheres de Salidar tinham expandido os testes para mulheres até um ou dois anos mais velhas que Nynaeve. E, com isso, aquele acampamento passara a abrigar mais noviças do que a Torre Branca tivera em anos, um sucesso que levou as Aes Sedai a iniciarem novas buscas, cruzando Altara de aldeia em aldeia.
— Você não queria estar dando essa aula?
Nynaeve sentiu o estômago se revirar ao ouvir aquela voz por cima do ombro. Duas vezes na mesma manhã. Ah, como queria ter um pouco de menta-de-ganso na bolsa do cinto. Se continuasse se deixando ser pega de surpresa, acabaria tendo que organizar a papelada de alguma Marrom.
A domanesa bochechuda não era Aes Sedai. Se estivesse na Torre, Theodrin já teria sido elevada ao xale, mas ali fora apenas elevada à uma posição superior à de uma Aceita, porém inferior à de uma irmã plena. Ela usava o anel da Grande Serpente na mão direita, não na esquerda, e o vestido verde caía bem na pele bronzeada, mas ainda não tinha permissão para escolher uma Ajah ou para usar o xale.
— Tenho mais o que fazer do que ensinar um bando de noviças cabeças-duras.
Theodrin apenas sorriu ao notar o tom mordaz de Nynaeve. Ela era sempre tão simpática.
— Uma Aceita cabeça-dura ensinando noviças cabeças-duras? — Bem, nem sempre. — Bom, depois que conseguirmos fazer você canalizar sem estar a ponto de arrancar a cabeça das meninas, também vai ser instrutora. E eu não ia achar nem um pouco surpreendente se você fosse elevada logo em seguida, com todas as coisas que vem descobrindo. Sabe, você nunca me contou o seu truque.
As bravias quase sempre tinham algum truque, desenvolvido logo na primeira vez em que desvelavam a habilidade de canalizar. Outra característica comum era uma espécie de bloqueio, uma barreira mental que escondia o poder de canalização até delas mesmas.
Nynaeve teve que fazer um esforço para manter a expressão serena. Poder canalizar quando bem entendesse, ser elevada a Aes Sedai… Nada disso ia resolver o problema de Moghedien, mas ao menos poderia ir aonde quisesse, estudar o que lhe desse vontade sem ninguém buzinando em seus ouvidos que simplesmente não havia Cura para isso ou aquilo.
— Às vezes, alguns doentes já sem salvação se curavam. Eu ficava tão irritada quando via alguém à beira da morte, mesmo com todos os meus conhecimentos a respeito das ervas… — Ela deu de ombros. — Aí a pessoa ficava boa.
— Muito melhor que o meu. — A mulher esguia suspirou. — Eu podia fazer um rapaz querer me beijar… ou não querer. Meu bloqueio eram os homens, não a raiva. — Nynaeve a encarou, incrédula, e Theodrin deu uma risada. — Bem, e os sentimentos. Se eu estivesse perto de um de quem eu gostasse ou detestasse muito, eu conseguia canalizar. Se não tivesse nenhum sentimento extremo ou se não houvesse homens por perto, eu era praticamente uma árvore para saidar.
— E como foi que você conseguiu superar isso? — perguntou Nynaeve, curiosa.
Elayne tinha dividido as noviças em duplas, e as garotas, muito sem jeito, passavam pequenas chamas de uma para a outra.
O sorriso de Theodrin cresceu, e seu rosto corou.
— Um rapaz chamado Charel, criado dos estábulos da Torre, começou a me olhar diferente… Eu tinha quinze anos, e o sorriso dele era lindo. As Aes Sedai permitiam que ele ficasse em silêncio em um canto durante as minhas aulas, até eu conseguir canalizar. Só que até o nosso primeiro encontro tinha sido planejado por Sheriam, eu não fazia ideia. — Ela enrubesceu ainda mais. — E também não sabia que ele tinha uma irmã gêmea. Nem que, depois de uns dias, o Charel sentado diante de mim na realidade era a Marel. Um dia ela tirou o casaco e a camisa no meio de uma aula, e eu fiquei em estado de choque, quase desmaiei… mas depois disso passei a conseguir canalizar sempre que quisesse.
Nynaeve não conseguiu evitar cair na gargalhada, e, apesar do rosto corado, Theodrin riu junto sem o menor constrangimento.
— Ah, queria que também fosse fácil assim para mim.
— Nós vamos romper esse seu bloqueio, não importa quão difícil seja — respondeu Theodrin, parando de rir. — Hoje à tarde…
— Hoje à tarde eu vou estudar Siuan — interrompeu Nynaeve, mais do que depressa, e Theodrin comprimiu os lábios.
— Você tem me evitado, Nynaeve. No mês passado só tivemos três encontros, você conseguiu escapar de todas as outras aulas. Não tenho problemas com suas tentativas falhas, mas não vou tolerar que você fique com medo de tentar.
— Eu não estou com medo… — começou Nynaeve, indignada, mas uma vozinha perguntou se ela estava tentando esconder a verdade de si mesma. Era tão desanimador tentar, tentar, tentar… sem nunca conseguir.
Theodrin não permitiu que ela continuasse a frase.
— Vou acreditar que você já tem um compromisso hoje — respondeu, muito calma —, mas vamos ter que nos encontrar amanhã e todos os dias seguintes, ou serei forçada a tomar uma atitude. Não quero apelar para outros métodos, e você também não quer que eu faça isso, mas vou quebrar esse seu bloqueio. Myrelle me pediu para dedicar uma atenção especial a isso, e juro que é exatamente o que farei.
Aquilo era quase um eco do que Nynaeve dissera a Siuan, e a antiga Sabedoria ficou de queixo caído. Era a primeira vez que Theodrin usava a autoridade de sua posição, e, considerando sua sorte desde que acordara naquele dia, era capaz de Nynaeve acabar tendo que ir junto com Siuan fazer uma visita à Tiana.
Theodrin não esperou resposta, simplesmente assentiu, como se as duas estivessem de acordo, e saiu deslizando rua afora. Nynaeve quase podia ver um xale franjado sobre os ombros dela. A manhã não estava indo nada bem. E de novo Myrelle se metendo! Quase deu um berro.
Elayne, no meio de suas noviças, sorriu orgulhosa para ela, mas Nynaeve apenas balançou a cabeça e virou as costas. Ia voltar para o quarto. E, como se para ficar bem claro o desastre que estava sendo aquele dia, antes de chegar na metade do caminho Nynaeve trombou com Dagdara Finchey, que passou correndo e a derrubou. Correndo! Uma Aes Sedai! A grandalhona não parou e nem se dignou a se virar para pedir desculpas enquanto seguia abrindo caminho pela multidão.
Nynaeve se levantou, espanou a poeira do vestido, foi até o quarto pisando firme, entrou e bateu a porta com força. Lá dentro estava quente e sufocante, e as camas desfeitas ainda aguardavam Moghedien vir arrumá-las. E o pior de tudo era aquela sensação de que uma chuva de granizo deveria estar se abatendo sobre Salidar naquele exato instante. Bem, ela não seria surpreendida nem derrubada.
Nynaeve se atirou nos lençóis amarfanhados e ficou ali, mexendo no bracelete de prata, divagando sobre o que conseguiria arrancar de Moghedien naquela tarde, se perguntando se Siuan apareceria para o estudo, pensando em Lan, no seu bloqueio, em ficar ou não em Salidar… Não seria uma fuga de verdade, afinal. Provavelmente acabaria indo para Caemlyn atrás de Rand — ele precisava de alguém para impedir que aquele poder todo lhe subisse à cabeça, e Elayne ia gostar de encontrá-lo. Só queria que sua partida — e não fuga! — não tivesse começado a parecer ainda mais atraente depois da conversa com Theodrin.
Esperava que as emoções que recebia pelo a’dam lhe dessem algum sinal de que Moghedien tinha terminado as tarefas, e só então iria atrás dela — a mulher sempre se escondia quando estava de mau humor. Mas a vergonha e o ultraje que identificava pelo bracelete não amainaram, e ela ficou completamente surpresa ao ver a porta ser escancarada com violência.
— Ah, então você está aqui — grunhiu Moghedien. — Olhe só! — Ela ergueu as mãos. — Estão arruinadas! — Nynaeve achou que pareciam as mãos de qualquer outra pessoa que lavava roupas… estavam brancas e enrugadas, era verdade, mas isso era temporário. — Além de eu ter que viver na miséria, andando de um lado para o outro cumprindo tarefas, feito uma serviçal, agora querem que eu trabalhe feito uma primitiva…!
Nynaeve interrompeu a mulher com um procedimento muito simples: pensou em um golpe ligeiro de vara, na sensação de recebê-lo, então transferiu o pensamento para a parte de sua mente que recebia as emoções de Moghedien. A mulher arregalou os olhos escuros e fechou a boca depressa, apertando os lábios. Não foi um golpe forte, apenas um lembrete.
— Feche a porta e sente-se — mandou Nynaeve. — Depois você arruma as camas. Vamos estudar um pouco.
— Estou acostumada a levar uma vida muito melhor — resmungou Moghedien, mas obedeceu. — Até um trabalhador noturno de Tojar levava uma vida melhor!
— Se eu não estiver enganada — retrucou Nynaeve com rispidez —, um trabalhador noturno de sei lá onde não tem uma sentença de morte esperando por ele. Estou pronta para contar a Sheriam exatamente quem você é, se quiser. Basta me pedir. — Era puro blefe, e ela sentiu um embrulho quente no estômago só de pensar.
Ainda assim, Moghedien foi tomada por uma onda de medo e repugnância. Nynaeve quase admirava a capacidade da mulher de manter a expressão firme: se ela estivesse sentindo aquilo, estaria gritando e rangendo os dentes no chão.
— O que você quer que eu ensine? — perguntou Moghedien, contida.
Tinham sempre que dizer o que queriam dela. A mulher quase nunca fazia sugestões ou oferecia seus conhecimentos, a não ser que fosse pressionada a um ponto que Nynaeve considerava à beira da tortura.
— Vamos tentar uma coisa que você não conseguiu me ensinar muito bem: como detectar a canalização de um homem. — Até então, era a única coisa que ela e Elayne não tinham conseguido aprender com facilidade. Seria útil, caso decidisse ir para Caemlyn.
— Não é fácil, ainda mais sem um homem para praticar. Pena que você ainda não conseguiu Curar Logain. — O tom e a expressão de Moghedien não indicavam escárnio, mas ela encarou Nynaeve e prosseguiu, mais do que depressa: — Bem, mesmo assim, podemos tentar outra vez.
A aula realmente não foi fácil. Nunca era, mesmo quando era alguma coisa que Nynaeve aprendia assim que entendia as tramas necessárias. Moghedien não conseguia canalizar sem que Nynaeve permitisse — sem que Nynaeve a conduzisse, na verdade —, e, quando se tratava de aprender algo novo, Moghedien precisava ditar a condução dos fluxos. Era uma confusão e tanto, o principal motivo para não conseguirem aprender dez coisas diferentes por dia. Neste caso específico, Nynaeve já tinha alguma ideia de como eram urdidos os fluxos, mas era um trabalho intrincado que envolvia os Cinco Poderes e fazia a Cura parecer simples, além de o padrão se alterar constantemente, em um piscar de olhos. Pelo que Moghedien dizia, era a dificuldade que reduzia a frequência do uso. E provocava uma bela dor de cabeça em quem tentasse sustentar aqueles fluxos por muito tempo.
Nynaeve se deitou na cama e se esforçou ao máximo. Se decidisse ir mesmo atrás de Rand, poderia precisar disso, e não havia como prever quando partiria. Até canalizou os fluxos sozinha — foi só pensar em Lan, ou Theodrin, que a raiva veio com força. Cedo ou tarde, Moghedien teria que pagar por seus crimes, então como ela ficaria, já tão acostumada a recorrer ao poder da mulher sempre que queria? Precisava viver e operar dentro dos próprios limites. Será que Theodrin era mesmo capaz de encontrar uma forma de quebrar o bloqueio? Lan tinha que estar vivo, ela precisava encontrá-lo. O incômodo se transformou em uma dor penetrante bem nas têmporas. Uma tensão surgiu nos olhos de Moghedien, que volta e meia esfregava a cabeça, mas por baixo do medo que corria pelo bracelete, também havia algo que quase parecia satisfação. Nynaeve supôs que ensinar trouxesse alguma satisfação, mesmo quando a pessoa não queria. Não sabia muito bem se gostava de ver Moghedien exibir uma reação tão normal e humana.
E também não soube dizer quanto tempo a aula durou, com Moghedien murmurando “quase” e “não tanto”, mas, quando a porta se abriu outra vez, ela se sentou tão depressa que quase caiu do colchão. O susto de Moghedien foi tão intenso que qualquer outra mulher teria gritado.
— Já ficou sabendo, Nynaeve? — perguntou Elayne, encostando a porta. — Tem uma emissária da Torre aqui, foi mandada por Elaida.
Nynaeve esqueceu as palavras que teria gritado se o coração não estivesse entalado na boca. Esqueceu até a dor de cabeça.
— Uma emissária? Tem certeza?
— Claro que eu tenho certeza, Nynaeve. Acha que eu teria vindo correndo até aqui só para contar uma fofoca? A aldeia inteira está em polvorosa.
— Não sei por que todo esse alvoroço — retrucou Nynaeve, amarga. Sua cabeça voltou a doer, e nem toda a menta-de-ganso do estoque de ervas guardado debaixo da cama teria aliviado a queimação no estômago. Aquela garota não ia aprender nunca a bater na porta antes de entrar? Moghedien comprimia a barriga com as duas mãos, como se também precisasse de um pouco de menta-de-ganso. — Já contamos a elas que Elaida sabe de Salidar.
— Bem e pode até ser que tenham acreditado — respondeu Elayne, desabando ao pé da cama de Nynaeve —, e pode ser que não, mas acho que isso confirmou a notícia. Elaida sabe onde estamos. Provavelmente sabe até o que estamos tramando. Qualquer um dos serviçais pode ser espião. Talvez até alguma irmã. Dei uma boa olhada na emissária, Nynaeve. É bem loura e tem olhos azuis congelantes. Uma Vermelha chamada Tarna Feir, segundo Faolain. Um dos Guardiões montando guarda a escoltou. Pelo olhar dela, a mulher poderia estar encarando uma pedra.
Nynaeve olhou para Moghedien.
— Vamos parar com essa lição. Volte daqui a uma hora para fazer as camas. — Ela esperou Moghedien sair, franzindo a boca e agarrando as saias, então virou-se para Elayne. — Que… que recado ela trouxe?
— Claro que não me contaram, Nynaeve. Todas as Aes Sedai com quem cruzei estavam se perguntando a mesma coisa. Ouvi dizer que Tarna riu quando informaram que ela seria recebida pelo Salão da Torre… E não foi porque achou graça. Você acha… — Elayne mordeu o lábio inferior por um instante. — Você acha que elas podem mesmo decidir…
— Voltar? — perguntou Nynaeve, incrédula. — Elaida vai querer que elas percorram as últimas dez milhas de joelhos. E a última milha rastejando, com a barriga no chão! E mesmo que não seja o caso, mesmo que essa Vermelha diga “voltem para casa, está tudo perdoado, é hora do jantar”, acha mesmo que elas iam conseguir ignorar Logain assim tão fácil?
— Nynaeve, as Aes Sedai vão ignorar qualquer coisa para reunificar a Torre Branca. Você não compreende a situação como eu. Eu convivo com Aes Sedai no palácio desde o dia em que nasci. A questão é: qual é a mensagem de Tarna? E qual é a resposta do Salão?
Nynaeve esfregou os braços, irritada. Não tinha respostas, só um pouco de esperança, e seus sentidos indicavam que aquela chuva de granizo invisível deveria estar ressoando feito tambor nos telhados de Salidar. A sensação se arrastou durante dias.