CAPÍTULO 24 A missão diplomática

Egwene, muito bem-humorada, deu as costas para a dupla de músicos na esquina — uma mulher suada que soprava uma flauta comprida e um sujeito de rosto corado dedilhando uma sabiola de nove cordas — e começou a abrir caminho pela multidão. O sol era uma bola de ouro líquido bem alta no céu, e o chão de paralelepípedos estava tão quente que o calor atravessava as botas macias e queimava a sola de seus pés. Suor pingava de seu nariz, o xale mais parecia um cobertor, mesmo preso frouxamente na altura dos cotovelos, e o ar estava tão poeirento que ela já estava com vontade de se lavar de novo. Ainda assim, Egwene sorria. Algumas pessoas olhavam de soslaio quando achavam que ela não ia reparar, o que quase a fez rir. Era assim que olhavam para os Aiel. As pessoas sempre viam o que esperavam ver e reparavam apenas nas suas roupas de mulher Aiel, ignorando a cor de seus olhos e sua baixa estatura.

Mascates e ambulantes ofereciam suas mercadorias aos gritos, competindo com os berros de açougueiros e artesãos, com o chocalhar e retinir de oficinas de prateiros ou ceramistas, e com o chiado de eixos mal lubrificados de carroças. Condutores praguejando impropérios e homens andando ao lado de carros de boi disputavam no grito a passagem com liteiras de laca escura e carruagens sóbrias, ostentando os símbolos de Casas nas portas trabalhadas. Havia músicos, acrobatas e malabaristas por toda parte. Um grupo de mulheres pálidas, portando espadas e usando vestidos de montaria, cruzou a passos arrogantes, imitando o comportamento que julgavam ver nos homens, soltando gargalhadas altas e exageradas enquanto abria caminho com uma atitude que, se fossem mesmo homens, teria desencadeado mais de dez brigas a cada cem passadas. O martelo de um ferreiro ressoou contra a bigorna. Pairava no ar aquele zum-zum-zum alvoroçado, o barulho típico de uma cidade — quase se esquecera de como era aquilo, em seu tempo entre os Aiel. Talvez tivesse até sentido falta.

Pensando nisso, a risada de fato saiu — e bem ali, no meio da rua. Ficara quase completamente desorientada da primeira vez em que escutara o barulho de uma cidade. Às vezes, parecia que aquela garota de olhos esbugalhados era outra pessoa.

Uma mulher, conduzindo a égua baia pela multidão, virou-se para Egwene, curiosa. Sininhos de prata estavam amarrados na cauda e na crina comprida da égua, e a mulher também ostentava sinos no cabelo preto, solto até quase o meio das costas. Era bela e não podia ser muito mais velha que Egwene, mas tinha uma expressão dura, um olhar penetrante e portava nada menos que seis facas no cinto — uma delas quase tão grande quanto a de um Aiel. Só podia ser uma Caçadora da Trombeta.

Um homem alto e bonito de casaco verde, com duas espadas às costas, ficou olhando a mulher passar. Devia ser outro. Aquela gente parecia estar por todos os lados. A multidão foi engolindo a mulher montada na égua baia, e o homem pegou Egwene o encarando. O sujeito abriu um sorriso interessado, endireitou os ombros largos e foi até ela.

Egwene foi logo armando a expressão mais fria que tinha, tentando misturar a rigidez de Sorilea com a seriedade de Siuan Sanche quando ostentava a estola do Trono de Amyrlin nos ombros.

O sujeito parou, parecendo surpreso, então deu meia-volta. Egwene pôde ouvi-lo resmungar um “Aiel chamuscados” e não conseguiu conter o riso. O sujeito deve ter ouvido, mesmo com o alarido da multidão, já que enrijeceu e balançou a cabeça — mas não olhou para trás.

Tinha dois motivos para seu bom humor. O primeiro era que as Sábias finalmente tinham concordado que uma caminhada pela cidade era um exercício tão bom quanto dar a volta ao redor das muralhas. Sorilea, em particular, não parecia conseguir entender por que Egwene iria querer passar um minuto a mais que o necessário naquele amontoado de aguacentos, ainda mais fechada entre muralhas. O segundo, porém principal motivo de seu bom humor, era as Sábias terem decidido que, com o desaparecimento das dores de cabeça que tanto as intrigaram — Egwene nunca conseguia esconder a dor muito bem —, ela logo poderia voltar a visitar Tel’aran’rhiod. Claro que não a tempo do encontro seguinte, que seria dali a três noites, mas sem dúvida antes do outro que haveria depois desse.

Para Egwene, a permissão era um alívio em mais de um sentido. Nada mais de entrar escondida no Mundo dos Sonhos. Nada mais de se desdobrar para tentar entender tudo sozinha. Nada mais de viver preocupada, temendo que as Sábias a encontrassem e se recusassem a ensinar a ela. Nada mais de mentiras inevitáveis. E a mentira fora mesmo inevitável: Egwene não podia perder tempo. Havia muito o que aprender, e ela duvidava de que teria tempo suficiente. Ainda assim, as Sábias nunca entenderiam.

Havia alguns Aiel na multidão, alguns de cadin’sor e outros com o branco dos gai’shain — os gai’shain iam para onde eram mandados, mas os outros podiam muito bem estar ali entre as muralhas pela primeira e, muito provavelmente, última vez. Os Aiel não pareciam gostar tanto de cidades, embora muitos tivessem adentrado as muralhas seis dias antes, querendo acompanhar o enforcamento de Mangin. Corria o boato de que o próprio homem passara o nó em volta do pescoço e fizera uma de suas piadas de Aiel sobre se seria a corda que quebraria o pescoço ou o pescoço que partiria a corda. Já vira vários Aiel repetirem a piada, mas nenhum comentário sobre o enforcamento. Sabia que Rand gostava de Mangin — tinha certeza. Berelain informara as Sábias sobre a sentença com a casualidade de quem avisa que as roupas colocadas para lavar voltariam limpas no dia seguinte, e as Sábias receberam a notícia com a mesma falta de preocupação. Egwene achava que nunca entenderia os Aiel. E receava que já não entendesse mais Rand. Já Berelain ela compreendia bem até demais — a mulher só estava interessada em um tipo de homem: os vivos.

Perdida naqueles pensamentos, teve que fazer um esforço para recuperar o bom humor. A cidade não estava mais fresca do que o acampamento do lado de fora das muralhas — na verdade, era capaz até de estar mais quente, sem a brisa e com o tamanho da multidão —, e o ar estava quase tão empoeirado quanto lá fora, mas pelo menos ela não estava caminhando sem nada para olhar além das cinzas de Portão da Frente. Mais alguns dias e poderia voltar aos ensinamentos, enfim aprendendo de verdade. Aquilo devolveu um sorriso ao seu rosto.

Parou perto de um sujeito magrelo com o rosto úmido de suor. Era fácil definir seu ofício: o sujeito era — ou melhor, tinha sido — Iluminador: o bigode espesso não estava coberto pelo véu diáfano dos tarabonianos, mas as calças folgadas com bordados nas pernas e a camisa igualmente folgada com bordados no peito já tornavam possível identificá-lo. Ele estava vendendo pássaros, pardais e pintassilgos presos em gaiolas rústicas. Depois que a sala do capítulo fora incendiada pelos Shaido, vários Iluminadores vinham tentando buscar meios de retornar a Tarabon.

— Ouvi de uma fonte das mais confiáveis — ia dizendo o Iluminador, para uma bela mulher grisalha, metida em um vestido de seda azul e corte simples. Sem dúvida era mercadora, tentando ganhar seu sustento com as pessoas que esperavam por tempos melhores ali em Cairhien. O Iluminador continuou confidenciando suas descobertas, aos sussurros, reclinado sobre uma gaiola: — Elas estão divididas, as Aes Sedai. Estão em guerra. Entre si.

A mercadora assentiu.

Egwene parou de fingir que considerava a ideia de comprar um pássaro de cabeça verde e seguiu em frente. Teve que saltar para fora do caminho de um menestrel de rosto redondo que avançava a seu lado a passos largos, cheio de floreios pomposos da capa coberta de retalhos. Menestréis sabiam muito bem que estavam entre os poucos aguacentos bem recebidos no Deserto e nunca se intimidavam com os Aiel — ou, pelo menos, fingiam que não.

Ficou incomodada com o boato do Iluminador. O problema não era o falatório de que a Torre estivesse dividida — isso não poderia ter sido mantido em segredo por muito tempo —, e sim aquela história de uma guerra entre as Aes Sedai. Ter as únicas mulheres capazes de manejar o Poder vivendo um conflito interno era como ter um lado da família em pé de guerra com o outro, uma disputa que ela só conseguia tolerar porque sabia os motivos. Ainda assim, a hipótese de que aquilo fosse virar algo mais sério… Se ao menos houvesse como Curar a Torre, unificá-la sem precisar de um banho de sangue.

Descendo um pouco mais a rua, encontrou uma mulher de Portão da Frente — estava toda suada e talvez ficasse bonita, se conseguisse limpar o rosto. Ela espalhava boatos junto com as fitas e os broches que vendia de uma bandeja presa em seu pescoço por uma correia. A mulher usava um vestido de seda azul com a saia cheia de tiras vermelhas horizontais que claramente fora confeccionado para uma mulher mais baixa. A bainha, muito desgastada, ficava elevada o bastante para revelar os sapatos robustos, e buracos nas mangas e no corpete indicavam os pontos de onde antigos bordados tinham sido arrancados.

— Pois vou lhe contar uma verdade — informou a mulher, para as clientes que vinham olhar sua bandeja. — Soube de gente que viu Trollocs pela cidade. Ah, sim, isso mesmo, estas contas verdes vão realçar seus olhos. Sim, sim, centenas de Trollocs. E também…

Egwene nem parou para ouvir. Se um único Trolloc tivesse aparecido em qualquer lugar nas redondezas da cidade, os Aiel teriam descoberto muito antes que virasse fofoca de rua. Quem dera as Sábias fofocassem — bem, elas às vezes fofocavam, mas só sobre os outros Aiel: nada dos aguacentos atraía o interesse do povo do Deserto. O problema era que ter a capacidade de viajar toda vez que quisesse para o gabinete de Elaida em Tel’aran’rhiod, onde podia ler suas correspondências, deixara Egwene mal-acostumada, sempre sabendo o que se passava no mundo.

De repente, reparou que mudara sua forma de examinar a cidade ao redor, encarando o rosto das pessoas. Em Cairhien, tão certo quanto havia suor, havia olhos-e-ouvidos das Aes Sedai. A cada dia, pelo menos um pombo devia alçar voo levando um relatório para Elaida. Espiões da Torre, das Ajahs e até de algumas Aes Sedai. E estavam por toda parte — em geral era quem menos se esperava. Por que aqueles dois acrobatas estavam ali parados, sem fazer nada? Estariam recuperando o fôlego ou vigiando-a? Os dois voltaram à ação de repente — com um pinote, um deles virou uma cambalhota no ar e pousou plantando bananeira apoiado nos ombros do colega.

Certa vez, sob ordens de Elaida, uma espiã da Ajah Amarela tentara mandar Elayne e Nynaeve de volta para Tar Valon. Egwene não sabia se Elaida também estava atrás dela, mas presumir o contrário seria uma grande tolice. Não conseguia se convencer de que a Vermelha perdoaria uma Aceita que tivesse trabalhado sob a orientação da Amyrlin que ela depusera.

Aliás, algumas das Aes Sedai de Salidar também deviam ter olhos-e-ouvidos pela cidade. Se a informação sobre “Egwene Sedai da Ajah Verde” chegasse a elas… Podia ser qualquer pessoa: aquela mulher magrinha na porta da loja, parecendo examinar um rolo de tecido cinza-escuro; ou quem sabe aquela outra, toda desgrenhada, encostada ao lado da porta da taverna enquanto abanava o rosto com o avental; ou talvez o sujeito gordo da carroça cheia de tortas — por que ele a encarava daquele jeito estranho? Egwene quase decidiu ir embora pelo primeiro portão que achasse para fora da cidade.

Mas foi justamente o sujeito gordo quem a fez parar — ou ao menos o modo como ele tentou cobrir as tortas com as mãos. O homem a encarara daquele jeito porque ela o encarara. Devia estar com medo de que uma Aiel “selvagem” quisesse levar algumas de suas mercadorias sem pagar.

Egwene soltou uma risadinha fraca. Aiel. Mesmo quando a encaravam bem de perto, achavam que ela era Aiel. Se houvesse alguma agente da Torre atrás dela, passaria a seu lado sem nem olhar duas vezes. Sentindo-se um pouco melhor, ela voltou a perambular pelas ruas, ouvindo as conversas e boatarias sempre que podia.

O problema era que estava acostumada a saber das coisas apenas semanas, no máximo dias, depois de terem acontecido — e ainda por cima com a garantia de que acontecera mesmo da forma relatada. Boatos podiam atravessar cem milhas em um só dia ou levar um mês para andar alguns metros, e a cada dia geravam mais dez. Só naquela volta pela cidade, já descobrira vários boatos conflitantes: Siuan fora executada porque tinha exposto a existência da Ajah Negra; Siuan era Ajah Negra e ainda estava viva; a Ajah Negra expulsara todas as Aes Sedai de outras Ajahs da Torre. Não eram histórias novas, só variações de boatos mais antigos. Mas havia uma história nova, uma que vinha se espalhando feito um incêndio no prado em pleno verão: a Torre estivera por trás de todos os falsos Dragões. Toda vez que ouvia aquela história, Egwene ficava tão irritada que começava a andar mais rápido e com as costas mais rígidas — o que, claro, significava que ela passava um bom tempo andando rápido e com as costas eretas. Também ouviu as histórias de que, com a suposta morte de Morgase, os andorianos em Aringill tinham decidido que uma nobre — Dylin, Delin, o nome variava — agora era sua rainha; o que poderia muito bem ser verdade, aliás. E ouvira que havia Aes Sedai zanzando por Arad Doman, fazendo coisas muito improváveis, o que com certeza era mentira. E havia boatos de que o Profeta estava vindo para Cairhien; de que o Profeta fora coroado rei de Ghealdan — não, de Amadícia —, de que o Dragão Renascido condenara o Profeta à morte por blasfêmia. E dizia-se que os Aiel estavam partindo; mas também que o povo do Deserto pretendia se estabelecer por ali. Falavam que Berelain seria coroada no Trono do Sol. E um homenzinho esquálido de olhos evasivos parado na área externa de uma taverna quase apanhou só por afirmar que Rand era um Abandonado — Egwene nem hesitou em se intrometer para acabar com a confusão.

— Vocês não têm honra? — questionou, com frieza.

Os quatro brutamontes que estavam a ponto de agarrar o sujeito magricela apenas piscaram, confusos. Eram cairhienos, não muito mais altos que ela, mas bem mais encorpados. Tinham marcas de narizes quebrados e as juntas dos dedos afundadas típicas dos brigões, mas ela conseguiu mantê-los quietos apenas com a intensidade do olhar — intensidade e a presença de vários Aiel ali pela rua. Considerando o entorno, aqueles homens não cometeriam a tolice de se indispor com uma Aiel, como pensavam que ela era.

— Se quiserem lutar contra um homem por conta do que ele diz, lutem um de cada vez. E com honra — acrescentou. — Isto não é uma batalha. Vocês deveriam sentir vergonha de quererem lutar quatro contra um.

Os homens a encararam como se ela fosse doida, e Egwene começou a corar. Torceu para que achassem que era de raiva. O problema não era aqueles sujeitos ameaçarem alguém mais fraco, e sim não quererem permitir uma luta justa, um a um. Ah, acabara de passar um sermão como se aqueles homens seguissem ji’e’toh. Claro que, se fosse o caso, não teria havido a necessidade de um sermão.

Um dos brutamontes inclinou a cabeça em uma quase reverência. O nariz, além de torto, não tinha a ponta.

— Hum… é… senhora? Ele já foi. Podemos ir?

Era verdade. O sujeito magricela se aproveitara da interferência dela para dar no pé. Egwene sentiu um lampejo de desprezo: o homem saíra correndo só por medo de encarar quatro adversários. Como conseguia suportar tamanha vergonha? Luz! Já estava pensando como Aiel de novo.

Abriu a boca para dizer que era óbvio que eles podiam ir embora, mas nenhuma palavra saiu. Os homens interpretaram o silêncio como consentimento — ou talvez tenham achado que fosse uma desculpa para sair correndo —, mas Egwene mal reparou. Ela se distraiu com um grupo a cavalo, que seguia rua acima.

Não reconheceu os quase dez soldados de capas verdes que abriam caminho pela multidão, mas identificou na hora quem eles escoltavam. Só via as costas das cinco ou seis mulheres entre os soldados — parte das costas, na verdade, mas era mais do que suficiente. Muito mais. As mulheres usavam capas de viagem leves de linho claro, todas em tons de marrom, e Egwene acabou encarando intensamente o que parecia um disco branco bordado nas costas de uma das capas. Apenas alguns detalhes bordados diferenciavam o círculo alvo do branco da Chama de Tar Valon em seu interior, então a mulher devia ser da Ajah Branca. De relance, avistou um símbolo verde, um vermelho… Vermelho?! Cinco ou seis Aes Sedai cavalgando para o Palácio Real, onde uma cópia do estandarte do Dragão tremulava ao sabor da brisa inconstante, posicionado no topo de uma torre escalonada bem ao lado de uma das bandeiras carmesim de Rand, com o antigo símbolo das Aes Sedai. Alguns diziam que aquele era o estandarte do Dragão, outros alegavam que as bandeiras vermelhas eram o estandarte de al’Thor ou até mesmo dos Aiel, sem falar nas outras dezenas de possibilidades e boatos.

Egwene foi ziguezagueando pela multidão, seguindo as mulheres por cerca de vinte passadas, então parou. A presença daquela irmã Vermelha — ao menos a que tinha visto, poderia haver outras — só podia significar que aquela era a tão aguardada missão diplomática da Torre, que Elaida enviara para escoltar Rand até Tar Valon. Já fazia mais de dois meses que o anúncio da vinda da comitiva chegara a Cairhien, trazida por um mensageiro incansável. O grupo devia ter saído de Tar Valon logo depois do mensageiro.

E não encontrariam Rand ali, a não ser que ele tivesse aparecido sem aviso. Egwene estava certa de que Rand conseguira redescobrir um antigo Talento chamado Viagem, mas saber o que ele fazia não a ajudava a descobrir como. Bem, não importava se as Aes Sedai fossem ou não encontrar o Dragão — não poderiam encontrar Egwene. Se isso acontecesse, mesmo na melhor das hipóteses ela seria identificada como uma Aceita longe da Torre sem uma irmã completa para supervisioná-la — isso se Elaida não estivesse caçando-a. Ainda assim, elas iriam arrastá-la de volta para Tar Valon e Elaida. Egwene não alimentava ilusões de que conseguiria resistir a cinco ou seis Aes Sedai.

Com uma última olhada para o grupo de Aes Sedai já se afastando, Egwene ergueu as saias e saiu em disparada, desviando de algumas pessoas e esbarrando em outras, abaixando-se sob os focinhos de parelhas de animais que puxavam os carroções e as carruagens, deixando uma trilha de gritos indignados. Quando enfim cruzou um dos altos portões de arco triunfal que levavam para fora das muralhas, sentiu o golpe do vento quente no rosto. Sem as paredes e as construções como obstáculo, o ar carregava tanta poeira que fez Egwene tossir, mas ela continuou correndo até chegar às tendas baixas das Sábias.

Para sua surpresa, encontrou uma égua cinza lustrosa com sela e rédea trabalhadas e bordadas em ouro do lado de fora da tenda de Amys, sob os cuidados de um gai’shain que só tirava os olhos do chão para dar tapinhas amistosos no animal irrequieto. Quando se abaixou para entrar na tenda, encontrou a cavaleira: Berelain bebericava chá com Amys, Bair e Sorilea, todas estiradas em almofadas borladas e reluzentes. Uma mulher de robe branco, Rodera, estava ajoelhada em um canto, aguardando a hora de encher as xícaras de novo.

— Aes Sedai chegaram na cidade — alertou Egwene, assim que entrou. — Vão em direção ao Palácio do Sol. Deve ser a missão diplomática de Elaida para Rand.

Berelain levantou-se com muita graça. Mesmo a contragosto, Egwene tinha que admitir: a mulher era elegante. E o vestido de cavalgada tinha um corte decente — nem mesmo ela era tola o bastante para cavalgar ao sol com o decote habitual. As outras mulheres também se levantaram.

— Bem, parece que preciso voltar para o palácio — anunciou Berelain, com um suspiro. — Só a Luz sabe o que elas vão pensar se não tiver ninguém lá para recebê-las. Amys, se souber de Rhuarc, pode mandar um recado para ele ir me encontrar?

Amys assentiu, mas Sorilea que falou:

— Melhor não depender tanto de Rhuarc, garota. Rand al’Thor entregou Cairhien aos seus cuidados. Para os homens, se você dá a mão, logo eles querem o braço inteiro. E, se for um chefe de clã, dê um dedo e ele logo vai estar querendo a sua cabeça.

— É verdade — murmurou Amys. — Rhuarc é a sombra do meu coração, mas é verdade.

Berelain calçou as finas luvas de cavalgada que estavam presas no cinto.

— Ele me lembra meu pai. Às vezes, até demais. — Ela abriu um breve sorriso pesaroso. — Mas dá bons conselhos. E sabe quando precisa ficar por perto e por quanto tempo permanecer. Acho que até as Aes Sedai ficariam impressionadas com Rhuarc cravando os olhos nelas.

Amys deu uma risadinha.

— Ele é mesmo impressionante. Pode deixar que vou mandar Rhuarc para você. — Dizendo aquilo, ela beijou a testa e as bochechas de Berelain com toda a delicadeza.

Egwene ficou olhando. Era um beijo de mãe para o filho ou a filha. O que estava acontecendo entre Berelain e as Sábias? Claro que não podia perguntar — uma pergunta daquela só traria vergonha para ela e para as Sábias. E para Berelain, mesmo que ela não fosse ficar sabendo, e mesmo que Egwene não se importasse de envergonhar Berelain até ela ficar careca.

Quando Berelain estava se virando para sair da tenda, Egwene a segurou pelo braço.

— Tome cuidado com elas. As Aes Sedai não serão amigáveis com Rand, mas as palavras erradas, ou mesmo um movimento errado, podem fazer com que se tornem inimigas declaradas.

Aquilo era verdade, mas não era o que Egwene precisava dizer. Preferia que lhe arrancassem a língua do que ter que pedir um favor de Berelain.

— Já lidei com Aes Sedai antes, Egwene Sedai — afirmou a Primeira de Mayene, seca.

Egwene se conteve e evitou respirar fundo. Teria que pedir, mas não permitiria que a mulher percebesse como estava sendo difícil.

— Elaida não será uma amiga para Rand, não mais que uma doninha pode ser amiga de uma galinha, e essas Aes Sedai são de Elaida. Se elas ficarem sabendo de uma Aes Sedai que o apoia e que está por aqui, ao alcance, essa Aes Sedai pode acabar desaparecendo logo no dia seguinte.

Ela encarou o rosto indecifrável da Primeira de Mayene, sem conseguir se obrigar a dizer mais nada. Depois de um longo instante, Berelain sorriu.

— Egwene Sedai, vou fazer o que estiver ao meu alcance. Por Rand. — Tanto o sorriso quanto a voz pareciam insinuar alguma coisa.

— Garota… — advertiu Sorilea, ríspida, e foi uma surpresa ver que Berelain corou de leve.

Sem olhar para Egwene e com uma voz cuidadosamente neutra, a Primeira de Mayene respondeu:

— Eu agradeceria se vocês não contassem nada a Rhuarc.

Na verdade, ela não olhava para ninguém, mas fazia um esforço para ignorar a presença de Egwene.

— Não vamos contar — retrucou Amys, sem demora, deixando Sorilea boquiaberta. — Não vamos contar. — A repetição era para Sorilea, a voz um misto de firmeza e pedido, até que a idosa enfim aquiesceu, ainda que relutante. Berelain chegou a suspirar de alívio antes de se abaixar e sair da tenda.

— Essa criança é espirituosa — gargalhou Sorilea, assim que Berelain saiu. Ela se reclinou de volta nas almofadas e deu tapinhas no lugar ao lado, sinalizando para que Egwene se sentasse. — Deveríamos encontrar o marido ideal para ela, um homem à altura dela. Se é que tal homem existe entre os aguacentos.

Esfregando as mãos e o rosto com o pano úmido que Rodera trouxera, Egwene se perguntou se aquilo já lhe dava abertura suficiente para perguntar sobre Berelain sem causar desonra. Ela aceitou a xícara de chá de porcelana verde do Povo do Mar e tomou seu lugar no círculo de Sábias. Se uma das outras respondesse ao comentário de Sorilea, talvez bastasse.

— Tem certeza de que essas Aes Sedai representam perigo para o Car’a’carn? — perguntou Amys, antes que outra pudesse se pronunciar.

Egwene corou. Estava perdida em fofocas enquanto havia questões tão importantes a tratar.

— Tenho — respondeu mais do que depressa. Então completou, mais calma: — Pelo menos… não sei se o que elas querem exatamente é fazer mal a Rand. Pelo menos não de propósito. — A carta de Elaida de fato dizia que deviam tratá-lo com “a honra e o respeito” que o Dragão merecia. Quanto respeito uma antiga irmã Vermelha achava que um homem capaz de canalizar merecia? — Mas não duvido de que elas vão querer ter algum controle sobre ele, obrigar Rand a fazer o que Elaida quiser. Não querem ser aliadas. — E até que ponto as Aes Sedai de Salidar eram aliadas? Luz, precisava falar com Elayne e Nynaeve. — E não vão se importar se ele é o Car’a’carn.

Sorilea grunhiu, amargurada.

— Acha que elas vão tentar fazer mal a você? — perguntou Bair.

Egwene assentiu.

— Se descobrirem que eu estou aqui… — Tentou disfarçar o arrepio tomando um golinho do chá de menta. Fosse para ter um meio de controlar Rand ou para levá-la embora como a Aceita não supervisionada que era, aquelas mulheres fariam de tudo para arrastá-la de volta para a Torre. — Elas não me deixarão livre, se tiverem opção. Elaida não vai querer que Rand ouça ninguém além dela mesma.

Bair e Amys trocaram olhares sérios.

— Então a resposta é simples. — Sorilea soou como se tudo estivesse decidido. — Você vai ficar aqui nas tendas, e elas não terão como encontrá-la. As Sábias sempre evitam Aes Sedai, de qualquer forma. Se ficar mais alguns anos com a gente, acho que você dará ótima Sábia.

Egwene quase deixou a xícara cair.

— Fico lisonjeada — respondeu, hesitante —, mas, uma hora ou outra, terei que ir embora.

Sorilea não pareceu convencida. Egwene aprendera a se impor com Amys e Bair, depois de um tempo, mas Sorilea…

— Bem, não tão cedo — retrucou Bair, abrindo um sorriso para que as palavras soassem amigáveis. — Você ainda tem muito o que aprender.

— Tem, e está ansiosa para voltar a estudar — acrescentou Amys. Egwene se esforçou para não corar, e a Sábia franziu o cenho. — Você parece estranha. Andou se esforçando demais, hoje de manhã? Eu tinha certeza de que você já estava recuperada o bastante…

— Já me recuperei — garantiu Egwene, mais do que depressa. — É verdade, já me recuperei. Faz dias que não tenho dor de cabeça. Foi a poeira do vento, quando eu estava correndo de volta para cá. E a multidão na cidade está maior do que eu me lembrava. E sem falar que eu estava tão empolgada que não comi bem no café da manhã.

Sorilea chamou Rodera com um gesto.

— Traga pão de mel, se ainda tiver, e queijo. E qualquer fruta que conseguir encontrar. — Ela cutucou as costelas de Egwene. — As mulheres não devem ser só pele e osso — disse a mulher que parecia ter sido largada ao sol até que quase toda a carne tivesse ressecado.

Egwene não se importava de ter que comer, já que estava tão empolgada naquela manhã que de fato se esquecera, mas Sorilea ficou olhando cada pedaço ser engolido, e aquele escrutínio dificultava um pouco as coisas. Isso e o fato de que as Sábias queriam discutir o que fazer quanto às Aes Sedai — se as mulheres da Torre se mostrassem hostis a Rand, então teriam que ser vigiadas. As Sábias precisavam encontrar um jeito de preservar e proteger o Car’a’carn. Até Sorilea estava meio nervosa com a possibilidade de terem que se colocar diretamente contra as Aes Sedai — nervosa, mas não com medo: o que a incomodava era ter que ir contra seus costumes. De qualquer forma, fariam o que fosse preciso pelo Car’a’carn.

Egwene estava preocupada com a possibilidade de que as Sábias transformassem em ordem aquela sugestão de Sorilea, de que ela permanecesse entre as tendas. Não haveria como escapar, passar despercebida por aqueles cinquenta olhos, a não ser ficando dentro da tenda. Como Rand fazia para Viajar? As Sábias fariam o que fosse preciso, desde que não fosse contra os princípios de ji’e’toh. As Sábias podiam muito bem ter interpretações criativas de alguns aspectos, mas se agarravam a essas interpretações com a mesma firmeza de qualquer outro Aiel. Luz, a própria Rodera era Shaido — uma dentre os milhares que foram capturados na batalha para expulsar os Shaido de Cairhien —, mas as Sábias a tratavam como qualquer outro gai’shain. E, pelo que Egwene via, Rodera também não se comportava nem um pouco diferente de qualquer outro gai’shain. Nenhuma delas se disporia a contrariar ji’e’toh, não importava quanto fosse preciso.

Por sorte, não tocaram de novo naquele assunto. Mas, para seu azar, falaram bastante de sua saúde. As Sábias não sabiam Curar nem verificar o estado de alguém com o Poder, então faziam testes com seus próprios métodos — alguns ela reconhecia das aulas de Nynaeve, quando queria se tornar Sabedoria, como examinar os olhos, ouvir o coração com um tubo oco de madeira; outros eram tipicamente Aiel, como tocar os dedos do pé até ficar tonta, pular no lugar até achar que os olhos iam saltar da cabeça e correr ao redor das tendas das Sábias até sua vista ficar cheia de pontinhos negros. Quando um gai’shain trouxe água para derramar em sua cabeça, ela bebeu o que pôde, ergueu as saias e correu mais um pouco. Aiel eram grandes adeptos de manter um corpo resistente, e, se ela fosse um passinho mais lenta, se vacilasse e parasse antes que Amys mandasse, as Sábias decidiriam que ela ainda não se recuperara o suficiente.

Quando Sorilea enfim assentiu, completando com um “você está tão saudável quanto uma Donzela”, Egwene já estava cambaleando, ofegante. Tinha certeza de que nenhuma Donzela estaria naquele estado, mas mesmo assim ficou orgulhosa de si mesma. Nunca se considerara molenga, mas tinha plena consciência de que, antes de viver entre os Aiel, teria caído de cara no chão na metade do teste. Mais um ano e vou conseguir correr tão bem quanto qualquer Far Dareis Mai, pensou.

Egwene também não estava com muita vontade de voltar para a cidade. Juntou-se às Sábias na tenda de vapor — desta vez não recebeu ordens de derramar água nas rochas quentes, e Rodera cuidou disso —, aproveitando o calor úmido enquanto os músculos relaxavam. Só saiu porque Rhuarc e dois outros chefes de clã — Timolan, dos Miagoma, e Indirian, dos Codarra — se juntaram a elas, todos homens altos e imensos, com rostos duros e austeros e cabelos já grisalhos. Quando os viu, saiu correndo da tenda, então tratou de enrolar o xale no corpo. Sempre que isso acontecia, esperava ouvir gargalhadas, mas os Aiel nunca entendiam por que ela saía correndo da tenda de vapor sempre que um homem entrava. Se entendessem, já teriam feito suas típicas piadas Aiel. Por sorte, simplesmente não faziam a conexão, para a felicidade de Egwene.

Egwene recolheu o restante das roupas em meio às pilhas bem arrumadas ali fora e saiu depressa para sua própria tenda. O sol já estava baixo no céu, e, depois de uma refeição leve, estaria pronta para dormir. Estava cansada demais para sequer pensar em Tel’aran’rhiod. Cansada demais, também, para se lembrar da maioria dos sonhos que teve — coisa que as Sábias vinham tentando lhe ensinar a fazer —, e a maioria dos que conseguiu se recordar envolvia Gawyn.

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