Apesar dos sonhos que teve a noite inteira, Egwene acordou se sentindo inexplicavelmente revigorada quando Cowinde veio chamá-la bem cedo, ainda no céu cinza que precede a alvorada. Renovada e pronta para tentar descobrir alguma coisa em sua ida à cidade. Depois de bocejar e se espreguiçar, levantou-se sem delongas, cantarolando enquanto se lavava e se vestia às pressas, mal parando para pentear os cabelos direito. Teria saído correndo da área das tendas, sem nem gastar tempo com o desjejum, mas deu de cara com Sorilea, o que pôs um fim a seus planos de sair às pressas. No fim das contas, também acabou sendo bom.
— Você não devia ter saído tão cedo da tenda de suor — comentou Amys, que estava recebendo cerca de vinte Sábias em sua tenda. Ela pegou uma tigela de mingau e frutas secas das mãos de Rodera, que, junto de Cowinde e um homem de robe branco chamado Doilan, outro Shaido, corria para servir a todos. — Rhuarc tinha muito o que dizer sobre suas irmãs. Talvez você possa acrescentar mais algumas coisas.
Depois de meses de fingimento, Egwene nem se perguntava quem seriam essas irmãs — sabia que a mulher estava falando da missão diplomática da Torre.
— Vou lhe contar o que puder. O que ele disse?
Para começar, havia seis Aes Sedai. E duas eram Vermelhas, não uma. Egwene não conseguia acreditar na arrogância — ou talvez na burrice — de Elaida, de ter enviado uma única Vermelha que fosse. Pelo menos o comando estava nas mãos de uma Cinza. As Sábias estavam acomodadas em um grande círculo, a maioria deitada, seus corpos parecendo delinear os raios de uma roda, embora houvesse algumas de pé ou ajoelhadas nos espaços. Todas se voltaram para Egwene assim que ela foi informada dos nomes das Aes Sedai visitantes.
— Infelizmente só conheço duas dessas — declarou a jovem, hesitante. — Temos muitas Aes Sedai, afinal, e não sou irmã completa há tanto tempo, para conhecer tantas. — Várias assentiram, aceitando a explicação. — Nesune Bihara é bem justa, escuta todos os lados antes de tomar uma decisão, mas sempre consegue identificar incongruências, por menores que sejam. Ela vê tudo, se lembra de tudo. Passa os olhos numa página uma única vez e consegue repetir palavra por palavra, e também é capaz de repetir uma conversa que ouviu um ano antes. E ela às vezes fala sozinha, enunciando os pensamentos sem nem se dar conta de que está falando em voz alta.
— Rhuarc falou que essa mulher estava interessada na Biblioteca Real. — Bair mexeu seu mingau, a atenção voltada para Egwene. — Disse que a escutou resmungar alguma coisa sobre selos.
Um murmúrio se espalhou por entre as outras Sábias, mas foi silenciado quando Sorilea pigarreou bem alto.
Egwene pensou por um instante, remexendo o mingau com a colher — notou lascas de ameixa seca e alguma baga doce na mistura. Se Elaida tivesse interrogado Siuan antes da execução, devia saber que três selos já haviam sido quebrados. Rand mantinha dois outros escondidos em algum lugar — Egwene queria muito saber onde, mas seu velho amigo não parecia confiar em ninguém, nos últimos tempos — e Nynaeve e Elayne tinham encontrado um em Tanchico e o levado para Salidar. Bem, Elaida não tinha como saber destes. A menos que contasse com espiões em Salidar, mas… Não. Era especulação para outro momento, seria inútil cogitar aquilo agora. Elaida devia estar desesperada atrás dos outros selos. Parecia sensato enviar Nesune para a segunda maior biblioteca do mundo, perdendo apenas para a biblioteca da própria Torre Branca. Engolindo algumas ameixas secas, Egwene revelou suas conclusões às Sábias.
— Eu já tinha falado isso ontem à noite — grunhiu Sorilea. — Aeron, Colinda, Edarra, vão para a Biblioteca. Três Sábias devem bastar para encontrar o que houver para ser encontrado antes de uma Aes Sedai. — Três rostos assumiram uma expressão irritada. A Biblioteca Real era imensa. Mas a ordem partira de Sorilea, e, apesar de terem resmungado e suspirado, as mulheres escolhidas deixaram suas tigelas de mingau no chão e saíram imediatamente. — Você disse que conhecia duas — prosseguiu a Sábia mais velha, antes mesmo que as três tivessem saído. — Nesune Bihara e quem mais?
— Sarene Nemdahl — respondeu Egwene. — Mas vejam bem, conheço as duas apenas superficialmente. Sarene é como a maioria das Brancas, pondera tudo com muita lógica e às vezes parece surpresa quando alguém age com o coração, mas é geniosa. Ela quase sempre consegue se controlar, mas basta um passo errado na hora errada e ela acaba… arrancando seu nariz antes de você entender o que está acontecendo. Ainda assim, ela sempre escuta outras opiniões e admite que estava errada, mesmo depois de um ataque. Quer dizer, pelo menos depois que passa o acesso de raiva.
Enfiando uma colherada de bagas e mingau na boca, Egwene tentou examinar as Sábias sem que elas percebessem. Nenhuma parecia ter percebido sua hesitação. Ela quase dissera que Sarene mandaria alguém esfregar o chão antes que a pessoa pudesse entender o que estava acontecendo. Só conhecia as duas das aulas dos tempos de noviça. Nesune, uma kandoriana esguia com olhos afiados de águia, conseguia perceber mesmo de costas quando alguém deixava de prestar atenção. Assistira a várias aulas dela. Quanto a Sarene, só fora a duas de suas palestras sobre a natureza da realidade, mas era difícil esquecer uma mulher que afirmava como a beleza e a feiura eram ilusões, mesmo tendo um rosto que fazia qualquer homem parar para olhar com atenção.
— Espero que você consiga se lembrar de mais coisas — comentou Bair, apoiada no cotovelo, inclinando-se para Egwene. — Parece que você é a nossa única fonte de informações.
Egwene precisou de um momento para entender o que a mulher dizia. Sim, claro. Bair e Amys deviam ter tentado espiar o sonho das Aes Sedai, na noite anterior, mas todas as Aes Sedai protegiam os sonhos com barreiras — uma habilidade que se arrependia de não ter aprendido antes de deixar a Torre.
— Farei o possível. Onde ficam os aposentos delas lá no palácio?
Se quisesse falar com Rand na próxima vez em que ele visitasse a cidade, seria bom não ir parar nos aposentos delas enquanto tentava encontrar o caminho. Sobretudo os de Nesune. Sarene talvez não se lembrasse de uma noviça entre tantas outras, mas tinha quase certeza de que Nesune se lembraria. Aliás, qualquer uma das mulheres que não conhecia também poderia se lembrar dela, já que houve muito falatório a seu respeito quando estava na Torre.
— As Aes Sedai recusaram a oferta de sombra de Berelain, mesmo por uma única noite. — Amys franziu o cenho. Entre os Aiel, uma oferta de hospitalidade sempre devia ser aceita. A recusa, mesmo entre inimigos de sangue, era desonrosa. — Estão hospedadas com uma mulher chamada Arilyn, uma nobre dos Assassinos da Árvore. Rhuarc acredita que Coiren Saeldain já conhecia essa Arilyn antes de chegarem, ontem.
— É uma espiã de Coiren — garantiu Egwene. — Ou da Ajah Cinza.
Várias das Sábias resmungaram entre dentes, irritadas. Sorilea grunhiu alto de desgosto, e Amys soltou um longo suspiro de desapontamento. Algumas outras não pareceram tão convencidas. Corelna, de olhos verdes e um rosto que lembrava um falcão, ostentando grandes mechas cinza nos cabelos louros, balançou a cabeça em dúvida; já Tialin, uma ruiva esguia de nariz pontudo, encarou Egwene sem esconder a descrença.
Espionagem era uma violação de ji’e’toh — Egwene só não entendera ainda por que isso não se aplicava quando as Andarilhas dos Sonhos bisbilhotavam os sonhos alheios. Seria inútil ressaltar que as Aes Sedai não seguiam ji’e’toh. Aquelas mulheres sabiam disso, só achavam difícil de acreditar ou de compreender, tratando-se de Aes Sedai ou de qualquer outra pessoa.
Não importava o que algumas das Sábias achavam; Egwene sabia que estava certa e apostaria o que fosse. Galldrian, o último Rei de Cairhien, tivera uma conselheira Aes Sedai antes de ser assassinado. Niande Moorwyn fora uma presença quase invisível naquelas terras, mesmo antes de ter que desaparecer após a morte de Galldrian, mas Egwene conseguira descobrir que a mulher fizera algumas visitas às propriedades rurais de Lady Arilyn. E Niande era uma Cinza.
— Ao que parece, puseram cem guardas debaixo do teto de Arilyn — comentou Bair, depois de algum tempo. Então completou, em uma voz completamente sem emoção: — As Aes Sedai alegam que a situação na cidade ainda está instável, mas acho que estão com medo dos Aiel.
Olhares muito interessados surgiram em vários rostos — chegava a ser um pouco perturbador.
— Cem!? — exclamou Egwene. — Elas trouxeram cem homens?
Amys negou com a cabeça.
— Trouxeram mais de quinhentos. Os batedores de Timolan encontraram grande parte acampados a menos de meio dia de viagem a norte. Rhuarc mencionou os homens, e Coiren Saeldain explicou que eram uma guarda de honra, mas que tinham deixado a maioria esperando nos arredores da cidade para não alarmar ninguém.
— Elas acham mesmo que vão escoltar o Car’a’carn para Tar Valon. — Sorilea falava em uma voz tão dura que poderia rachar uma pedra, e sua expressão fazia o tom parecer bem suave. Egwene não fizera segredo do que dizia a carta de Elaida para Rand, e as Sábias pareciam gostar menos da mensagem a cada vez que a ouviam.
— Rand não é tolo o bastante para aceitar a oferta — declarou Egwene, mas não estava pensando na carta.
Quinhentos homens de fato poderiam ser apenas uma guarda de honra, e Elaida podia muito bem achar que o Dragão Renascido esperaria honrarias do tipo e ficaria até lisonjeado. Pensou em diversas possibilidades, mas precisava prosseguir com cuidado. Bastava uma palavra errada para que Amys, Bair ou, pior ainda, Sorilea — escapar dela era como tentar sair de um espinheiro — lhe dessem ordens que não seria capaz de obedecer se tivesse que dar conta do que só ela própria tinha como resolver. Ou que só ela estava disposta a resolver.
— Imagino que os chefes estejam de olho nesses soldados fora da cidade, certo? — Meio dia a norte estava mais para um dia inteiro de marcha, já que os soldados não eram Aiel. Era longe demais para representar qualquer perigo, mas um pouco de cautela nunca caía mal. Amys assentiu, e Sorilea olhou para Egwene como se ela tivesse perguntado se o sol ainda estaria no céu ao meio-dia. A jovem pigarreou. — Ah, claro que estão. — Era pouco provável que os chefes de clã fossem cometer um erro tão ingênuo. — Bem, tenho algumas sugestões. Se uma dessas Aes Sedai for ao palácio, algumas Sábias capazes de canalizar deveriam ir atrás, para garantir que ela não deixe nenhuma armadilha com o Poder.
As Sábias aquiesceram. Dois terços das presentes conseguiam manejar saidar. Algumas não tinham muito mais habilidade que Sorilea, mas outras tinham o mesmo nível de Amys, que era tão forte quanto a maioria das Aes Sedai que Egwene já conhecera. Era mais ou menos a mesma proporção dali para todas as Sábias dos Aiel. Suas habilidades eram bem distintas das Aes Sedai — sabiam menos de alguns aspectos e mais de outros, mas no geral era o mesmo nível de poder, apenas em áreas distintas. Ainda assim, era provável que as Sábias conseguissem detectar “presentes” indesejados.
— E temos que ter certeza de que vieram só seis representantes da Torre — completou Egwene.
Teve que explicar essa parte. As Sábias tinham lido livros de aguacentos, mas nem as capazes de canalizar conheciam os rituais que as Aes Sedai haviam desenvolvido para lidar com homens capazes de tocar saidin. Entre os Aiel, um homem capaz de canalizar acreditava ser um escolhido e partia para o norte, para a Praga, caçando o Tenebroso. Nenhum nunca voltava. A própria Egwene não sabia dos rituais até ir para a Torre. Era raro as histórias que ouvira quando criança terem qualquer relação com a realidade.
— Rand consegue dar conta de duas mulheres de uma só vez — declarou Egwene, e sabia disso por experiência própria. — E pode ser que dê conta de seis. Mas, se estiverem em maior número do que afirmam, seria no mínimo prova de que mentiram, mesmo que apenas por omissão.
Quase se encolheu diante das testas franzidas daquelas mulheres. Quem mentia incorria em toh para com qualquer um que ouvisse a mentira. No seu caso, a mentira era inevitável. Era mesmo.
Durante todo o restante do café, as Sábias decidiram quem iria ao palácio naquele dia e quais chefes poderiam ser confiados para escolher homens e Donzelas para vasculharem a cidade em busca de mais Aes Sedai. Alguns poderiam relutar em agir contra qualquer Aes Sedai, não importava como — as Sábias não declararam isso, apenas deram a entender pelas coisas que diziam, e sempre com amargor —, e outros talvez acreditassem que qualquer ameaça ao Car’a’carn, mesmo por parte das Aes Sedai, seria mais bem resolvida com a lança — e algumas Sábias também pareciam partilhar daquela opinião. Sorilea recusara com muita ênfase as sugestões evasivas de que esse problema seria resolvido se Aes Sedai simplesmente não estivessem mais na cidade. No fim das contas, Rhuarc e Mandelain, dos Daryne, foram os dois únicos chefes de Clã que todas concordaram em chamar.
— Mas fiquem atentas para eles não escolherem nenhum siswai’aman — advertiu Egwene.
Os siswai’aman, a lança do Dragão, com certeza recorreriam à violência ao menor sinal de ameaça. O alerta lhe rendeu muitos olhares, tanto inexpressivos quanto irônicos — as Sábias são eram tolas. Ainda assim, Egwene estava incomodada com uma coisa: nenhuma delas mencionou o que já estava tão acostumada a ouvir quase sempre que o povo do Deserto mencionava as mulheres da Torre: no passado, os Aiel tinham falhado com as Aes Sedai e seriam destruídos se falhassem de novo.
Exceto por aquele único comentário, Egwene se manteve de fora da discussão, ocupando-se de uma segunda tigela de mingau — dessa vez com pera seca junto das ameixas —, o que gerou um meneio de aprovação de Sorilea. Mas não buscava aprovação de Sorilea — estava com fome, verdade, mas queria mesmo que aquelas mulheres esquecessem que ela estava ali. Pareceu funcionar.
Depois de encerrados o café da manhã e as discussões, Egwene voltou para sua tenda e se agachou junto da aba, do lado de dentro, observando um pequeno grupo de Sábias que partia rumo à cidade, lideradas por Amys. Quando as mulheres cruzaram o portão mais próximo, Egwene deu um pinote e saiu outra vez. Havia Aiel por toda parte, gai’shain e outros, mas todas as Sábias estavam em suas tendas, e ninguém pareceu olhá-la quando saiu andando para a muralha, tentando não caminhar rápido demais. Se alguém a notasse, poderia pensar que ela só estava fazendo seu exercício matinal. O vento aumentou, soprando ondas de poeira e resquícios das cinzas de Portão da Frente, mas ela manteve o ritmo. Estava apenas se exercitando.
Na cidade, a primeira pessoa para quem ela pediu informação, uma mulher magrela vendendo maçãs murchas a um preço exorbitante, não soube dizer o caminho para o palácio de Lady Arilyn. Nem a segunda, uma costureira rechonchuda que arregalou os olhos ao ver o que parecia uma Aiel entrando em sua loja, muito menos o cuteleiro meio careca que achou que Egwene estaria muitíssimo interessada em suas facas. Por fim, conseguiu a informação com uma prateira de olhos estreitos que a encarou com muita atenção durante todo o tempo que ela passou na loja. Egwene balançou a cabeça, desapontada, enquanto avançava a passos largos por entre a multidão. Às vezes esquecia como era grande uma cidade do porte de Cairhien — grande a ponto de que nem todo mundo saber onde ficava cada lugar.
Tão grande era a cidade que Egwene acabou se perdendo três vezes e precisou pedir informação a duas outras pessoas antes de acabar se esgueirando pela lateral de um estábulo que alugava cavalos, espiando o outro lado da rua. Sua atenção estava concentrada em uma construção que consistia em um amontoado de pedras escuras com janelas estreitas, varandas anguladas e torres inclinadas. Era pequeno para um palácio, mas parecia enorme para uma casa comum. Se bem lembrava, Arilyn estava um pouco acima da média da nobreza de Cairhien. Soldados com casacos verdes, usando placas peitorais e elmos, montavam guarda na espaçosa escadaria frontal, diante de cada portão visível e nas varandas. Estranhamente, eram todos jovens — bem, isso não importava. Havia mulheres canalizando dentro daquela casa, e não eram quantidades pequenas de saidar, para ela estar sentindo ali da rua — e sentindo com tanta intensidade. A quantidade de poder sendo canalizado diminuiu de repente, mas continuava significativa.
Egwene mordeu o lábio inferior. Não tinha como saber o que estavam fazendo ali dentro, não sem ver os fluxos. Por outro lado, as mulheres que estavam canalizando também precisavam ver os fluxos para tecê-los. Mesmo que estivessem diante de alguma janela mais escondida, se houvesse um fluxo sendo canalizado para fora da mansão, Egwene só não conseguiria ver se fossem todos voltados para o sul, para longe do Palácio do Sol — longe de tudo. O que elas estariam fazendo?
Um dos portões se abriu apenas por tempo suficiente para deixar sair uma parelha de seis baios puxando uma carruagem preta toda fechada com um brasão laqueado nas portas — duas estrelas de prata em um fundo de listras vermelhas e verdes. A carruagem rumou para o norte, abrindo caminho por entre a multidão. O condutor, de libré, abusava do chicote comprido, usando-o tanto para afastar as pessoas quanto para incitar os cavalos. Seria Lady Arilyn indo a algum lugar, ou seria alguém da missão diplomática?
Bem, não tinha ido até ali para ficar olhando. Recuando até só conseguir espiar para a rua com um dos olhos e apenas o suficiente para divisar o casarão, Egwene tirou uma pequena pedra vermelha da bolsinha do cinto, respirou fundo e começou a canalizar. Se uma das Aes Sedai estivesse olhando para fora naquela direção, conseguiria ver os fluxos, mas não a veria. Bem, precisava correr o risco.
A pedra lisa era apenas isso — uma pedra polida de algum regato. Mas Egwene aprendera aquele truque com Moiraine e, como esta usara uma pedra para se concentrar — na verdade uma pedra preciosa, mas a qualidade do material não fazia diferença —, Egwene também usava. Teceu principalmente Ar, com um toque de Fogo. A tessitura permitia ouvir a conversa alheia — ou espionar, como diriam as Sábias. Egwene não ligava para como chamavam, só queria descobrir as intenções das Aes Sedai enviadas pela Torre.
Tocou a tessitura com todo o cuidado na abertura de uma janela — bem de leve, com toda a delicadeza… Depois tocou em outra, e mais outra. Apenas silêncio. E então…
— … daí virei pra ele — anunciou uma voz feminina, em seu ouvido — e falei bem assim: ah, você quer essas camas pra agora, é? Pois vai ficar querendo, Alwin Rael!
Outra mulher respondeu:
— Até parece que você falou isso mesmo!
Egwene abriu um sorriso amargo. Criadas.
Uma mulher corpulenta carregando uma cesta de pão no ombro passou por ali, encarando Egwene, confusa. Claro que estaria confusa: ouvia duas mulheres e via apenas uma garota ali, parada, com os lábios imóveis. Egwene resolveu o problema do jeito mais rápido que conhecia: encarou a mulher com tanta irritação que ela levou um susto e quase deixou cair a cesta quando disparou para o meio da multidão.
Um pouco relutante, Egwene reduziu a intensidade da tessitura. Não ouviria tão bem, mas também não atrairia mais olhares curiosos. Uma Aiel espremida contra a parede já atraía muitos olhares, embora ninguém sequer hesitasse antes de seguir adiante, já que não queriam confusão com os Aiel. Não quis se preocupar com os curiosos. Foi movendo a tessitura de janela em janela. Suava em bicas, e não só por conta do calor, que já aumentava. Se uma única Aes Sedai visse seus fluxos, mesmo que de relance, mesmo que não reconhecesse a tessitura, todas saberiam que alguém estava canalizando contra elas. E claro que imaginariam o propósito da tessitura. Egwene se escondeu ainda mais — só aparecia metade do olho.
Silêncio. Silêncio. Um farfalhar — alguém andando? Chinelos num carpete? Mas nenhuma palavra. Silêncio. Um homem resmungando — parecia estar esvaziando penicos e nem um pouco contente. Sentindo as orelhas quentes, Egwene prosseguiu com a busca. Silêncio. Silêncio. Silêncio.
— … acha mesmo que é necessário? — A voz da mulher chegava como um sussurro, mas mesmo assim soava intensa e cheia de si.
— Precisamos estar preparadas para qualquer eventualidade, Coiren — retrucou outra mulher, com uma voz que parecia uma barra de ferro. — Ouvi um boato surpreendente…
Uma porta bateu com força, cortando o restante da conversa.
Egwene encostou na parede de pedra do estábulo, desanimada. Queria gritar de tanta frustração. Ouvira a Cinza que estava no comando, e a outra só podia ser uma das Aes Sedai que a acompanhavam, ou não teria falado daquele jeito com Coiren. Não poderia ter encontrado conversa melhor para ouvir, mas claro que as duas saíram da sala onde estavam. Que boato surpreendente? Que eventualidades? Como elas iam se preparar? A canalização dentro da mansão voltou a aumentar. O que aquelas mulheres estavam armando? Egwene respirou fundo e recomeçou, obstinada.
O sol ia cada vez mais alto, e ela ouviu uma infinidade de barulhos, quase todos impossíveis de identificar, além de muitas conversas e fofocas dos serviçais. Uma mulher chamada Ceri estava grávida de novo, e teriam que servir vinho de Arindrim — Egwene não fazia ideia de que lugar era esse — para as Aes Sedai junto com a refeição do meio-dia. A descoberta mais interessante foi que era mesmo Arilyn naquela carruagem. A nobre tinha ido se encontrar com o marido, na área rural. Grande coisa. Uma manhã inteira desperdiçada.
As portas principais da mansão se escancaram, e os serviçais de libré se curvaram em mesuras. Os soldados não pareceram tensos, apenas um pouco mais atentos. Nesune Bihara saiu, seguida por um jovem alto que aparentava ter sido talhado em pedra — em um pedregulho, na verdade.
Egwene soltou depressa a tessitura, largou saidar e respirou bem fundo, tentando se acalmar. Não era hora de entrar em pânico. Nesune e seu Guardião trocaram algumas palavras, então a irmã Marrom de cabelo escuro olhou para os dois lados rua abaixo. Não restava dúvida de que estava atrás de alguma coisa.
Achando que, afinal, talvez fosse uma boa hora para entrar em pânico, Egwene começou a se afastar bem devagar, sem querer atrair o olhar atento de Nesune, e tratou de dar meia-volta assim que saiu de vista. Ergueu as saias e saiu correndo, abrindo caminho à força pela multidão. Correu três passadas, até que deu de cara com uma parede de pedra e caiu sentada no meio da rua, batendo no chão com tanta força que até quicou nos paralelepípedos quentes.
Ergueu os olhos, confusa — e só ficou ainda mais confusa. A parede de pedra era Gawyn, que a encarava de cima, parecendo tão estarrecido quanto ela. Os olhos dele eram azuis brilhantes e intensos, e aqueles cachos dourados… Sentiu o rosto corar, pensando em como queria enroscar os dedos outra vez naqueles cachos neles. Você nunca fez isso, corrigiu-se, com firmeza. Foi só um sonho!
— Machuquei você? — perguntou o rapaz, ansioso, abaixando-se para se ajoelhar a seu lado.
Egwene conseguiu se levantar, meio sem jeito, e espanou a poeira do corpo. Se pudesse ter um único desejo realizado naquele exato momento, seria perder a capacidade de corar. Os dois já haviam atraído um círculo de curiosos, e ela enroscou o braço no de Gawyn e o puxou pela rua na direção em que estava indo antes de esbarrarem. Com uma olhadela por cima do ombro, viu que deixavam para trás apenas uma aglomeração agitada. Mesmo que Nesune fosse exatamente para aquela esquina, veria apenas um grupo de curiosos confusos. Ainda assim, não desacelerou, e a multidão abria passagem sem reclamar para a Aiel e seu companheiro, alto o bastante para também ser Aiel, mesmo carregando uma espada — e o modo como Gawyn se movia indicava que sabia como usá-la. Ele se portava como um Guardião.
Depois de se afastarem algumas passadas, Egwene desenroscou o braço do dele, embora relutante. Gawyn, por sua vez, agarrou sua mão antes que ela pudesse se afastar muito, e Egwene permitiu que ele a segurasse enquanto caminhavam.
— Bem, imagino que é para ignorar o fato de você estar vestida como uma Aiel — comentou o jovem, depois de alguns instantes. — A última notícia que tive era de que você estava em Illian. E imagino que eu também não deva comentar que você estava fugindo de um palácio onde seis Aes Sedai estão hospedadas. Um comportamento estranho para uma Aceita.
— Nunca fui a Illian — retrucou ela, olhando em volta, querendo ver se algum Aiel estaria perto o bastante para entreouvir. Vários olharam em sua direção, mas nenhum estava ao alcance da voz. De repente, Egwene assimilou o que Gawyn dissera. Encarou o casaco verde dele, do mesmo tom do casaco dos soldados. — Você veio com elas. Com as Aes Sedai da Torre.
Luz, era uma tola por não ter percebido isso assim que o viu.
A expressão dele se suavizou. Por um instante, seu rosto ficara duro como pedra.
— Eu comando a guarda de honra das Aes Sedai para escoltar o Dragão Renascido até Tar Valon. — Sua voz era uma estranha mistura de ironia, raiva e cansaço. — Isso se ele quiser. E se estiver mesmo aqui. Fiquei sabendo que ele… aparece e some. Coiren está irritada.
Egwene sentia o coração na garganta.
— Eu… Eu preciso lhe pedir um favor, Gawyn.
— Faço qualquer coisa, a não ser minhas poucas restrições — retrucou ele, simplesmente. — Não farei nenhum mal a Elayne ou a Andor e não me tornarei um Devoto do Dragão. Qualquer outra coisa que possa fazer por você, farei.
Várias pessoas se viraram na direção deles dois. A menor menção aos Devotos do Dragão já atraía muitos ouvidos. Quatro durões que levavam chicotes de condutor de carroção enrolados por cima dos ombros olharam feio para Gawyn e estalaram os dedos daquele jeito ameaçador que alguns homens faziam antes de uma briga. Gawyn apenas os encarou. Não eram pequenos, mas sua beligerância esvaneceu sob o olhar daquele rapaz. Dois até o saudaram levando o punho à testa antes de desaparecerem em meio ao mar de gente. Ainda assim, restaram muitos olhares curiosos, muitos rostos tentando observá-los furtivamente. Com aqueles trajes, Egwene atrairia olhares mesmo sem dizer uma só palavra. Ao lado daquele homem de cachos dourados com bem mais que uma braça de altura e que parecia um Guardião, não tinha como não chamar atenção.
— Precisamos conversar a sós — sugeriu ela.
Ah, se alguma Aes Sedai tiver feito Gawyn seu Guardião, eu vou… Mas era uma ameaça vazia.
Sem retrucar, Gawyn a levou a uma estalagem próxima chamada Homem Comprido. Uma coroa dourada arremessada ao estalajadeiro roliço resultou em uma saudação quase reverente e uma pequena sala de jantar privada com painéis escuros, cadeiras e uma mesa bem polida, além de uma lareira apagada sobre a qual repousava um vaso azul cheio de flores secas. Gawyn fechou a porta, e eles de repente pareceram muito desconfortáveis ali, a sós. Luz, como ele era lindo. Tão lindo quanto Galad. E o cabelo cacheando em torno das orelhas…
Gawyn pigarreou.
— O calor parece cada dia pior. — Ele secou o rosto com um lenço, então o ofereceu. Então pareceu se dar conta de que o lenço estava usado e pigarreou outra vez. — Hã, acho que tenho outro.
Egwene pegou seu próprio lenço enquanto ele vasculhava os bolsos.
— Gawyn, como você pode servir a Elaida depois do que ela fez?
— A Jovem Guarda serve a Torre — retrucou ele, rígido, mas balançou a cabeça, desconfortável. — Desde que… Siuan Sanche… — Por um momento, seus olhos viraram uma pedra de gelo. Só por um momento. — Egwene, minha mãe sempre dizia que até uma rainha precisa obedecer às leis que cria, ou não existiria lei. — Ele balançou a cabeça, irritado. — Eu não deveria ter ficado surpreso por encontrá-la aqui. Eu devia saber que você estaria junto de al’Thor.
— Por que esse ódio dele? — Se a voz dele não estava cheia de ódio, então nunca tinha ouvido ódio na vida. — Gawyn, ele realmente é o Dragão Renascido. Você deve ter ouvido falar do que aconteceu em Tear. Ele…
— Ele pode até ser o próprio Criador encarnado — retrucou o rapaz, irritado. — Al’Thor matou a minha mãe!
Os olhos de Egwene ficaram tão arregalados que quase saltaram do rosto.
— Não, Gawyn! Não matou, não!
— Pode jurar isso? Estava lá quando ela morreu? Todos estão falando nisso. O Dragão Renascido tomou Caemlyn e matou Morgase. E deve ter matado Elayne também. Não tenho nenhuma notícia dela. — Toda aquela fúria foi drenada, e Gawyn pareceu perder as forças. Deixou a cabeça cair para a frente, cerrou os punhos, fechou os olhos. — Não consigo descobrir nada sobre ela — sussurrou.
— Elayne está ilesa — avisou Egwene.
Ficou surpresa ao notar que estava bem diante dele. Então se levantou e ficou surpresa outra vez quando ergueu a mão e acariciou os cachos de Gawyn enquanto erguia sua cabeça. A sensação era idêntica à da memória do sonho. Então recolheu a mão como se tivesse sido queimada. Tinha certeza de que estava corando tanto que seu rosto em breve pegaria fogo. Só que… Manchas de cor brotaram nas bochechas de Gawyn. Claro. Ele também se lembrava, embora achasse que tinha sido um sonho só dele. Aquilo deveria ter deixado Egwene ainda mais corada, porém, de alguma forma, sua reação foi o oposto. O ruborizar de Gawyn acalmou seus nervos e a fez até querer sorrir.
— Elayne está em segurança, Gawyn. Isso, eu posso jurar.
— Onde ela está? — A voz dele era pura angústia. — E por onde andou? O lugar dela é em Caemlyn. Quer dizer, não em Caemlyn. Não enquanto al’Thor estiver lá. Mas é em Andor. Onde ela está, Egwene?
— Eu… não posso dizer. Não posso, Gawyn.
Ele a analisou, o rosto completamente inexpressivo, então suspirou.
— A cada vez que nos vemos, você é mais Aes Sedai. — Ele riu. A risada soou forçada. — Sabia que eu às vezes pensava em ser seu Guardião? Que tolice, não é?
— Você vai ser o meu Guardião.
Egwene só percebeu que dissera aquilo quando as palavras já tinham saído da boca. No entanto, soube que era verdade. Aquele sonho. Gawyn se ajoelhando diante dela para que segurasse sua cabeça. O significado daquilo poderia ser cem coisas ou nada, mas Egwene sabia.
Gawyn sorriu. O idiota achava que ela estava brincando!
— Ah, com certeza não serei eu. Galad, talvez. Só que você vai ter que espantar as outras Aes Sedai com uma vara. As Aes Sedai, as serviçais, as rainhas, as camareiras, as mercadoras, as mulheres de fazendeiros… Todas só têm olhos para ele. Nem tente dizer que não acha Galad…
O jeito mais simples de acabar com aquela baboseira foi cobrir a boca dele com a mão.
— Eu não amo Galad. Eu amo você.
Gawyn continuou tentando fingir que era zombaria, sorrindo por trás de seus dedos.
— Eu não posso ser Guardião. Serei o Primeiro Príncipe da Espada de Elayne.
— Se a Rainha de Andor pode ser Aes Sedai, então um Primeiro Príncipe pode ser Guardião. E você vai ser o meu. Trate de meter isso nessa sua cabeça dura, porque estou falando sério. E eu te amo.
Gawyn simplesmente a encarou. Pelo menos tinha parado com aquele sorriso. Só que ele não disse nada, ficou apenas olhando. Egwene afastou a mão do rosto dele e perguntou:
— E então? Não vai dizer nada?
— Quando você passa tanto tempo desejando ouvir algo — começou ele, hesitante —, então ouve de repente, sem aviso, é como escutar relâmpagos e ver a chuva cair no solo seco e rachado depois de uma longa seca. É um choque, mas você não quer ouvir outra coisa.
— Eu te amo, eu te amo, eu te amo — repetiu Egwene, sorrindo. — E então?
Em resposta, ele a ergueu nos braços e a beijou. Cada detalhe foi tão bom quanto nos sonhos. Foi ainda melhor. Foi… Quando ele a botou de volta no chão, Egwene se agarrou em seus braços — ela sentia que os joelhos não estavam funcionando direito.
— Milady Aiel Egwene Aes Sedai, eu te amo. Não vejo a hora de me tornar seu Guardião. — Deixando de lado a falsa formalidade e assumindo um tom mais leve, ele acrescentou: — Eu te amo, Egwene al’Vere. Você disse que queria um favor. Qual era? A lua em um colar? Mando um ourives dar um jeito nisso em menos de uma hora. Estrelas para usar no cabelo? Vou…
— Não conte a Coiren e as outras que estou aqui. Nem mencione o meu nome.
Egwene esperava alguma hesitação, mas Gawyn apenas respondeu, sem rodeios:
— Elas não vão ficar sabendo de nada por mim. E, se eu puder evitar, ninguém vai dizer nada. — Ele fez uma breve pausa, então segurou seus ombros e a encarou. — Egwene, não vou perguntar por que você está aqui. Não, ouça o que tenho a dizer. Sei que Siuan a envolveu em suas tramas e entendo que você seja leal a um homem da sua própria aldeia. Isso não importa. Mas você deveria estar na Torre Branca, estudando. Eu me lembro de todas lá comentarem que você seria uma Aes Sedai poderosa um dia. Você tem algum plano para voltar sem… sem ser punida? — Egwene balançou a cabeça, muda, e ele prosseguiu, apressado: — Talvez eu consiga arranjar um jeito, caso você não pense em nada antes. Sei que você não tinha opção senão obedecer Siuan, mas duvido que Elaida vá considerar isso. Só de mencionar o nome da antiga Amyrlin perto dela a pessoa corre o risco de sair sem cabeça. Vou tentar descobrir um jeito, qualquer que seja. Eu juro. Mas me prometa que, até eu conseguir, você não vai… não vai fazer nenhuma bobagem. — Durou apenas um instante, mas ele apertou seu ombro quase a ponto de doer. — Só me prometa que vai tomar cuidado.
Luz, se metera em uma encrenca daquelas. Não podia dizer a ele que não tinha a menor intenção de voltar à Torre enquanto Elaida ainda ocupasse o Trono de Amyrlin. E essa tal bobagem que ele queria que ela não fizesse com certeza estava relacionada a Rand. Gawyn parecia tão preocupado. Com ela.
— Eu vou tomar cuidado, Gawyn. Prometo. — O máximo de cuidado possível, emendou, para si mesma. Era apenas um pequeno detalhe, mas dificultou ainda mais o que precisava dizer: — Preciso lhe pedir um segundo favor. Rand não matou sua mãe. — Como podia dizer aquilo e esperar que ele ficasse menos tenso? Bem, com ou sem tensão, precisava ser feito. — Me prometa que não vai levantar a mão contra Rand até eu ter como provar que ele não matou sua mãe.
— Eu juro.
A resposta mais uma vez veio sem hesitação, mas a voz estava rouca, e as mãos a apertaram de novo por alguns instantes, e com mais força que antes. Egwene não se encolheu. Aquela leve dor foi como uma compensação para a dor que infligia nele.
— Tem que ser assim, Gawyn. Não foi ele, mas preciso de tempo para provar.
Ah, Luz, como faria isso? A palavra de Rand não bastaria. Que enrascada! Bem, precisava se concentrar em uma coisa de cada vez. E o que aquelas Aes Sedai estariam tramando?
Gawyn deixou-a sobressaltada ao respirar com pesar.
— Eu posso abrir mão de tudo, trair tudo, por você. Fuja comigo, Egwene. Vamos deixar isso tudo para trás. Eu tenho uma pequena propriedade ao sul de Ponte Branca, com um vinhedo e uma aldeia. É tão embrenhada na zona rural que por lá o sol se levanta com dois dias de atraso. Mal vamos ficar sabendo do que tem acontecido no mundo. Podemos nos casar no caminho. Não sei quanto tempo temos, com al’Thor e Tarmon Gai’don. Não sei quanto tempo teremos, mas podemos passá-lo juntos.
Egwene o encarou, pasma. Em seguida, ela se deu conta de que falara em voz alta, perguntando o que as Aes Sedai estariam tramando. Só então entendeu a palavra que ele usou — trair. Gawyn achava que Egwene queria que ele espionasse as Aes Sedai. E espionaria. Estava desesperado atrás de um modo de não ter que fazer isso, mas faria, se ela pedisse. Quando Gawyn prometera que faria qualquer coisa, estava falando de qualquer coisa mesmo, não importava o que lhe custasse. Foi quando Egwene fez uma promessa para si mesma — para ele, na verdade, mas não era o tipo de promessa que podia ser feita em voz alta. Se Gawyn deixasse escapar alguma coisa, ela usaria a informação — não tinha opção. Mas não iria tentar extrair qualquer informação dele, por menos que fosse. Não importava o que poderia lhe custar. Sarene Nemdahl jamais compreenderia aquilo, mas era a única coisa que poderia se equiparar à lealdade que ele lhe prometera.
— Eu não posso — respondeu, baixinho. — Você nunca vai conseguir compreender quanto eu quero isso, mas não posso. — Ela começou a rir de repente, sentindo lágrimas brotarem em seus olhos. — E nem você. Trair? Gawyn Trakand, essa palavra faz tanto sentido na sua boca quanto dizer que a escuridão é coisa do sol. — Suas promessas mudas podiam ser ótimas e muito verdadeiras, mas não podia deixar por aquilo mesmo. Sabia que usaria a lealdade que ele lhe dedicara, e usaria contra o que ele acreditava ser certo. Precisava oferecer uma parte de si em troca. — Eu durmo nas tendas, mas venho passear pela cidade todas as manhãs. Atravesso o Portão da Muralha do Dragão pouco depois do nascer do sol.
E Gawyn compreendeu, claro. Para retribuir a lealdade de Gawyn, ela oferecia sua fé nas palavras dele, depositava sua liberdade nas mãos dele. Gawyn tomou suas mãos dela e virou-as, beijando as palmas com toda a delicadeza.
— É um presente muito precioso. Se eu for todas as manhãs ao Portão da Muralha do Dragão, alguém com certeza vai notar. E pode ser que eu não consiga ir todas as manhãs. Mas não fique surpresa em me ver a seu lado quase todos os dias, logo depois de você entrar na cidade.
Quando Egwene finalmente saiu da estalagem, o sol já percorrera uma distância considerável. Era a hora mais quente da tarde, o que diminuía um pouco a multidão. Despedir-se levou bem mais tempo do que imaginara. Além disso, beijar Gawyn talvez não fosse bem o tipo de exercício que as Sábias tinham em mente, mas seu coração estava acelerado como se tivesse corrido.
Afastou aqueles pensamentos com firmeza — na verdade, teve que fazer bastante esforço para deixar o rapaz em segundo plano, já que afastá-lo da mente por completo parecia muito além de suas possibilidades — e voltou ao ponto de observação perto do estábulo. Alguém ainda canalizava lá dentro da mansão, e provavelmente era mais de uma pessoa — a menos que uma única pessoa estivesse tecendo algo bem grande. Dali de fora, a sensação estava mais fraca, mas ainda era forte. Viu uma mulher de cabelo escuro entrando na propriedade — não a reconheceu, mas o rosto duro de idade indefinida deixava bem claro o que a mulher era. Não tentou ouvir mais conversas e não ficou muito tempo ali — se as mulheres iam ficar entrando e saindo, havia uma grande chance de acabar sendo vista e reconhecida, apesar das roupas. Enquanto saía, às pressas, um pensamento ainda martelava em sua cabeça: o que elas estariam tramando?
— Viemos com a intenção de oferecer uma escolta para levar o Dragão a Tar Valon — informou Katerine Alruddin, remexendo-se de leve no assento. Nunca tinha entendido se as poltronas cairhienas eram tão desconfortáveis quanto pareciam ou se sua mente acreditava que fossem desconfortáveis apenas pela aparência. — Depois que ele deixar Cairhien para ir a Tar Valon, haverá… um vácuo aqui.
Lady Colavaere, acomodada na poltrona dourada diante dela, não sorriu, apenas se inclinou um pouco para a frente.
— Isso desperta meu interesse, Katerine Sedai. — Então se virou para os serviçais e completou: — Podem ir.
Katerine sorriu.
— Viemos com a intenção de oferecer uma escolta para levar o Dragão a Tar Valon — declarou Nesune, a voz muito controlada revelando uma pontinha de irritação. Apesar do rosto sereno, o taireno à sua frente não parava de remexer os pés, ansioso por estar na presença de uma Aes Sedai e talvez apreensivo com a possibilidade de ela começar a canalizar. Só um amadiciano estaria pior. — Depois que ele deixar Cairhien para ir a Tar Valon, Cairhien precisará de uma figura poderosa.
O Grão-senhor Meilan umedeceu os lábios.
— Por que está me dizendo isso?
O sorriso de Nesune poderia significar qualquer coisa.
Quando Sarene entrou na sala de estar, só encontrou Coiren e Erian, bebericando chá. Além do serviçal esperando para servi-las, claro. Sarene gesticulou para que o homem saísse.
— Ela pode se revelar bem difícil, essa Berelain — opinou, assim que a porta se fechou. — Não sei se o que funcionaria melhor com ela seria a maçã ou o chicote. Eu deveria encontrar Aracome amanhã, não é mesmo? Mas acho que precisaremos de mais tempo com Berelain.
— Maçã ou chicote — ponderou Erian, a voz contrita. — No caso, usamos o que for preciso.
Sarene pensou em como o rosto de Erian parecia ser de mármore claro emoldurado por asas de corvo — seu vício secreto era a poesia, mas jamais permitiria que descobrissem que ela se interessava por algo tão… emotivo. Morreria de vergonha se Vitalien, seu Guardião, descobrisse que ela já escrevera versos comparando-o a um leopardo, além de outros animais graciosos, poderosos e perigosos.
— Controle-se, Erian. — Como de costume, Coiren falava como se discursasse. — Sarene, ela está assim incomodada por um rumor que Galina escutou. Corre o boato de que uma irmã Verde estava em Tear com o jovem Rand al’Thor e que essa mulher agora está aqui em Cairhien.
Coiren sempre se referia ao garoto como “o jovem Rand al’Thor”, como se quisesse lembrar a todos de que o rapaz era muito jovem — e, portanto, inexperiente.
— Moiraine e uma Verde — matutou Sarene. Aquilo de fato poderia indicar problemas. Elaida insistia que Moiraine e Siuan tinham agido sozinhas, permitindo que al’Thor ficasse à solta sem orientação, mas, mesmo que o boato fosse de apenas mais uma Aes Sedai envolvida, poderia significar que outras também estavam, o que poderia ser um fio condutor que levasse até algumas, quiçá muitas, das que tinham ido embora da Torre quando Siuan foi deposta. — Mas é só um boato.
— Talvez não seja — alertou Galina, entrando na sala. — Não ouviram? Alguém canalizou contra nós hoje de manhã. Por que eu não sei, mas acho que dá para ter um palpite. E com muitas chances de estar certo.
As contas presas às trancinhas escuras de Sarene estalaram quando ela balançou a cabeça.
— Isso não comprova a presença de uma Verde, Galina. Não prova nem que era uma Aes Sedai. Poderia ser alguma coitada qualquer mandada embora da Torre por não ter passado no teste para Aceita. E você sabe tão bem quanto eu que algumas daquelas Aiel podem canalizar.
Galina sorriu, os dentes brancos se destacando no rosto negro e duro.
— Acho que comprova a presença de Moiraine. Ouvi dizer que ela tinha a mania de ouvir as conversas alheias e não acredito nada nessa história tão oportuna de ela ter morrido. Não sem nenhum cadáver de prova e nem ninguém para dar detalhes de como foi.
Sarene também se incomodava bastante com aquilo. Em parte porque gostava de Moiraine, antes daquela história toda. Tinham sido amigas durante seu tempo de noviças e Aceitas, mesmo Moiraine estando um ano à frente, e a amizade se mantivera em seus poucos encontros nos anos seguintes. E em parte porque aquela história estava mesmo muito estranha, e era bastante conveniente que Moiraine tivesse morrido — ou melhor, desaparecido — agora que havia um mandato de prisão para sua cabeça. Naquelas circunstâncias, a Azul podia muito bem ter forjado a própria morte.
— Então você acredita que teremos que lidar com Moiraine e com uma irmã Verde desconhecida? Isso tudo é especulação, Galina.
O sorriso de Galina não se alterou, mas os olhos brilharam. A mulher era inflexível demais para a lógica, acreditava no que acreditava, não importando as evidências. Ainda assim, Sarene sempre achava que havia um fogo intenso e incandescente ardendo em algum lugar das profundezas de Galina.
— Eu acredito é que Moiraine é essa irmã Verde misteriosa — revelou Galina. — Que jeito melhor de escapar da prisão do que morrer e reaparecer como outra mulher, de outra Ajah? Já ouvi falar até que essa Verde é baixa, e todas sabemos como Moiraine está longe de ser uma alta. — Erian se endireitou na poltrona, rígida feito uma rocha, as labaredas de ultraje ardendo em seus grandes olhos castanhos. Galina se virou para ela: — Quando pegarmos essa irmã Verde, acredito que o melhor será deixá-la sob sua responsabilidade durante a jornada de volta à Torre.
Erian assentiu, ávida, mas o calor não se dissipou de seus olhos.
Sarene estava estarrecida. Moiraine fingindo ser de outra Ajah? Claro que não. Sarene nunca se casara — não havia nada de lógico em pensar que duas pessoas poderiam permanecer compatíveis por uma vida inteira —, mas a única comparação que lhe vinha à cabeça era que se passar por outra Ajah era como se deitar com o marido de outra mulher. No entanto, foi a acusação em si que a deixou estarrecida, não a possibilidade de que aquela fantasia pudesse ser verdade. Estava prestes a retrucar, observando que havia muitas mulheres baixas no mundo e que a pouca estatura de alguém era algo relativo, quando Coiren voltou a falar, naquela voz retumbante:
— Sarene, é sua vez de novo. Precisamos estar preparadas, aconteça o que acontecer.
— Ah, nem gosto de falar nisso — reclamou Erian. — No caso, parece que estamos nos preparando para o fracasso.
— O que é apenas lógico — retrucou Sarene. — Mesmo se dividirmos nosso tempo pela menor medida possível, continua sendo impossível afirmar com certeza factível o que vai acontecer entre um momento e outro. Se formos a Caemlyn atrás de al’Thor, podemos muito bem chegar lá apenas para descobrir que ele veio para cá, é melhor continuarmos aqui, para onde podemos afirmar com razoável certeza que ele vai voltar em algum momento. O problema é que isso pode acontecer amanhã ou daqui a um mês. Qualquer acontecimento isolado em qualquer momento dessa espera, ou ainda qualquer combinação de eventos, poderia nos deixar sem alternativa. Portanto, é apenas lógico estarmos preparadas para o pior.
— Muito bem explicado — retrucou Erian, seca.
A mulher não levava muito jeito para a lógica, e Sarene às vezes achava que aquilo era uma característica comum às mulheres bonitas, apesar de não haver qualquer lógica aparente nessa relação.
— Temos todo o tempo de que precisamos — anunciou Coiren, com ares de grandeza. Mesmo quando não estava discursando, parecia fazer um pronunciamento. — Beldeine chegou hoje e alugou um quarto perto do rio, mas Mayam não conseguirá chegar em menos de dois dias. Precisamos tomar muito cuidado, e essa demora nos dá tempo.
— Continuo sem gostar nada dessa história de me preparar para o fracasso — murmurou Erian, para sua xícara de chá.
— Não considero nem um pouco inoportuno se tivermos algum tempo para levar Moiraine à justiça — opinou Galina. — Já esperamos esse tempo todo, não há tanta pressa assim para resolver as coisas com al’Thor.
Sarene suspirou. Aquelas mulheres eram tão boas em suas especialidades, mas não conseguia entender como. Não havia um pingo de lógica em qualquer uma delas.
Retirou-se para seus aposentos, sentou-se diante da lareira apagada e começou a canalizar. Seria mesmo possível que esse tal Rand al’Thor tivesse redescoberto a arte de Viajar? Era muito mais do que se poderia acreditar, mas era a única explicação. Que tipo de homem ele era? Bem, descobriria quando o conhecesse, não antes. Preenchida por saidin quase a ponto de a doçura se transformar em dor, começou a repassar os exercícios das noviças — aquilo serviria tão bem quanto qualquer outra preparação mental. E se preparar era apenas lógico.