Mat jogava as cinco pedras para cima, formando um círculo que girava suavemente logo acima das mãos — uma vermelha, uma azul, uma verde-clara e as outras duas com listras em padrões interessantes. Não parara de cavalgar enquanto jogava as pedras, conduzindo Pips com os joelhos, a lança de cabo preto enfiada atrás da cinta da sela, no lado oposto em que repousava o arco desencordoado. As pedras lembravam Thom Merrilin, que lhe ensinara a arte do malabarismo, e ele se perguntou se o velho ainda estaria vivo. Pouco provável. Parecia ter passado uma eternidade desde que Rand mandara o menestrel ir atrás de Elayne e Nynaeve, querendo que ele cuidasse das duas — se existiam duas mulheres que precisassem menos de cuidados, Mat não conhecia. Só sabia que não havia dupla de mulheres mais capazes de fazer um homem acabar morto simplesmente por não dar ouvidos a seus conselhos. Nynaeve se metia em tudo o que um homem fazia, dizia ou pensava e sempre puxava aquela maldita trança na cara de quem fosse, e aquela maldita Filha-herdeira sempre achava que conseguiria deixar as coisas do jeito dela se empinasse bem o nariz e explicasse o que queria tão mal quanto Nynaeve — mas com Elayne era ainda pior, já que, se a petulância gélida não desse certo, a garota sorria, deixando as covinhas à mostra, e esperava que acabassem cedendo só porque ela era bonita. Mat torcia para que Thom tivesse sobrevivido às duas. E torcia para que elas também estivessem bem, mesmo que não fosse se importar muito se tivessem se metido em apuros vez ou outra desde que partiram às pressas sabia lá a Luz para onde. Elas que vissem como era difícil não ter Mat sempre por perto para descascar os abacaxis — e não tinham agradecido nem uma única vez quando ele estava sempre lá para ajudar. E nem precisavam ter encontrado algum abacaxi muito grande, só algo difícil o suficiente para desejarem que Mat Cauthon estivesse ali para resgatá-las de novo, como o idiota que era.
— E você, Mat? — indagou Nalesean, puxando as rédeas para se aproximar. — Já pensou alguma vez em como seria ser Guardião?
Mat quase deixou cair as pedras. Daerid e Talmanes o encaravam, muito suados, esperando a resposta. O sol já deslizava em direção ao horizonte, e em pouco tempo teriam que parar. O crepúsculo parecia durar cada vez mais conforme os dias iam se encurtando, mas Mat queria já estar sossegado com seu cachimbo quando a noite enfim caísse. E, além do mais, aquele era o tipo de terreno onde era muito fácil os cavalos quebrarem as pernas, se viajassem no escuro. Os cavalos e os homens.
Vinham do norte, e o Bando se estendia atrás dele, patas de cavalos e pés humanos levantando um rastro de poeira. Os estandartes drapejavam ao vento, mas os tambores estavam quietos conforme o grupo atravessava as colinas baixas cobertas por um matagal esparso com aglomerados de árvores aqui e ali. Avançavam mais rápido do que Mat imaginara: fazia onze dias que tinham partido de Maerone, mas já estavam na metade do caminho — talvez um pouco além — para Tear. E só tinham gastado um dia inteiro com o descanso dos cavalos. Claro que não sentia a menor pressa para tomar o lugar de Weiramon, mas não conseguia deixar de se perguntar quanto mais conseguiriam percorrer se avançassem entre o nascer e o pôr do sol, caso precisassem. Até ali, o máximo que tinham conseguido era quarenta e cinco milhas de uma só vez. Claro que os carroções com mantimentos levariam metade da noite para alcançá-los, mas, nos últimos dias, os homens a pé tinham feito questão de demonstrar que conseguiriam acompanhar os cavalos ao longo da viagem, ainda que não se mantivessem emparelhados com os animais a todo momento.
Um pouco mais para trás, a leste, havia um grupo de Aiel no topo de uma elevação cercada por árvores, todos correndo sem a menor dificuldade, diminuindo a distância pouco a pouco. Deviam estar viajando desde o nascer do sol e era certo que continuariam avançando até o cair da noite — isso se não avançassem por mais tempo. Se passassem pelo Bando enquanto ainda houvesse luz para vê-los, seria um bom estímulo para os homens no dia seguinte. Sempre que os Aiel os ultrapassavam, os homens pareciam dispostos a tentar avançar uma ou duas milhas a mais no dia seguinte.
Algumas milhas à frente, os aglomerados de árvores iam se alargando até virarem outra vez uma floresta densa, então era melhor descerem para um pouco mais perto do Erinin antes de avançarem até a mata. Quando chegaram no topo de uma colina, Mat avistou o rio, onde os cinco barcos que haviam sido contratados ostentavam o estandarte da Mão Vermelha, enquanto outros quatro barcos — que transportavam principalmente forragem para os cavalos — voltavam a Maerone para serem recarregados. O que ele não conseguia avistar ainda, mas que sabia que estava lá, era as pessoas que andavam ao longo das margens, algumas rio acima, outras rio abaixo, e algumas mudando de direção sempre que encontravam um grupo liderado por alguém com alguma lábia. Umas poucas tinham carroças, que em geral eram puxadas por seus próprios donos, e outras tinham carroções, mas a maioria levava apenas o que podia carregar — até os salteadores mais obtusos já tinham aprendido que não havia por que gastar tempo com aquela gente. Mat não fazia ideia de para onde aquele povo ia — coisa que nem mesmo aquelas pessoas sabiam —, mas o fluxo de gente ainda era o suficiente para congestionar aquela trilha ridícula ao longo do rio, que muitos teimavam em chamar de estrada. O Bando ganhava tempo indo ali por cima. Se tentassem seguir pela trilha no mesmo ritmo, precisariam abrir caminho a pauladas.
— Um Guardião? — repetiu Mat, guardando as pedras no alforje. Conseguiria encontrar mais pedras daquelas em qualquer lugar que fosse, mas gostava das cores das que tinha. Também estava guardando uma pena de águia, uma pedra desgastada, branca como a neve, que, no passado, devia ser coberta de entalhes. Também ficara tentado a levar consigo um pedregulho que parecia ter sido a cabeça de alguma estátua, mas para isso precisaria de um carroção. — Nunca. São um bando de tolos, idiotas o bastante para se deixar serem arrastados pela orelha por uma Aes Sedai. De onde você tirou essa ideia de jerico?
Nalesean deu de ombros. Estava bastante suado, mas mesmo assim usava o casaco — que naquele dia era vermelho com listras azuis — abotoado até o pescoço. O casaco de Mat estava aberto, mas mesmo assim ele sentia como se estivesse assando ao sol.
— Acho que foi por causa das Aes Sedai ali perto — sugeriu o taireno. — Que me queime a alma, mas não dá para não pensar. Quer dizer, que me queime a alma, o que elas estão tramando?
Ele estava falando das Aes Sedai no outro lado do Erinin, que, segundo os batedores, estavam subindo e descendo o rio às pressas, um pouco mais rápido que os andarilhos na outra margem.
— O que eu acho é que é melhor não pensar nelas — retrucou Mat.
Através da camisa, tocou a cabeça de raposa de prata. Mesmo com ela, ficou feliz em saber que as Aes Sedai estavam do outro lado do rio. Alguns dos seus soldados viajavam naquelas embarcações, e, mesmo havendo poucas aldeias, seguiam as ordens de Mat e atracavam sempre que passavam por alguém na margem oposta, só para saber que notícias o viajante trazia. Até aquele momento, as notícias não tinham sido nada reveladoras e eram quase sempre desagradáveis. Aquele monte de Aes Sedai por ali era o menor dos problemas.
— E como não pensar nelas? — questionou Talmanes. — Acha que a Torre controlava mesmo Logain?
Aquela era uma das novidades, uma notícia que chegara havia apenas dois dias.
Mat tirou o chapéu apenas por tempo suficiente para enxugar a testa. Quando caísse a noite, ficaria um pouco mais fresco. Mas continuaria sem vinho, sem cerveja, sem mulheres e sem jogos. Quem é que virava soldado por opção?
— Eu, por mim, acho que não duvido de quase nada vindo das Aes Sedai. — Ele deslizou o dedo por trás do cachecol preso ao pescoço e o afrouxou. Uma coisa boa em ser Guardião, pelo que sabia de Lan, era que eles pareciam não suar. — Mas isso? Veja, Talmanes, mais fácil eu acreditar que você é uma Aes Sedai. E você não é, é?
Daerid se curvou sobre o cepilho da sela de tanto gargalhar, e Nalesean quase caiu do cavalo. Talmanes ficou muito rígido, mas acabou sorrindo — até quase riu: o sujeito podia não ter muito senso de humor assim, mas tinha alguma coisa.
A seriedade logo voltou.
— E os Devotos do Dragão? Se for verdade, Mat, temos um problema.
O comentário cortou a gargalhada dos outros como se tivesse sido decepada por um machado.
Mat fez careta. Aquela era a última notícia — ou boato, ficava a gosto do freguês — que chegara, no dia anterior: uma aldeia incendiada em algum lugar de Murandy. E pior, pelo que se dizia, tinham matado todos que não jurassem fidelidade ao Dragão Renascido, executando as famílias junto.
— Rand vai resolver isso. Se for verdade. Aes Sedai, Devotos do Dragão, isso tudo é problema dele e a gente não tem nada com isso. Temos nossos próprios problemas.
Claro que aquilo não diminuiu a preocupação no rosto de nenhum deles. Já tinham visto muitas aldeias incendiadas, e todos suspeitavam de que veriam outras tantas logo que chegassem a Tear. Quem é que queria ser soldado?
Um cavaleiro despontou o topo da colina logo à frente e vinha galopando até eles. O sujeito fez o cavalo saltar por cima dos arbustos, em vez de desviar, mesmo na descida. Mat sinalizou para que os homens parassem e acrescentou:
— Nada de trompetes.
A ordem foi viajando atrás dele, em murmúrios, mas Mat manteve o olhar fixo no cavaleiro.
Transpirando aos borbotões, Chel Vanin puxou as rédeas do capão pardo bem diante de Mat. Usava um casaco cinza grosseiro que caía como um saco no corpo calvo e também se sentava na sela como se fosse um saco. Vanin era gordo, e não havia como disfarçar. Porém, por mais improvável que fosse, conseguia cavalgar qualquer coisa viva e era muito bom nisso.
Muito antes de chegarem a Maerone, Mat surpreendera Nalesean, Daerid e Talmanes pedindo os nomes dos melhores caçadores ilegais e ladrões de cavalo entre seus homens — gente que eles sabiam que eram culpados, mas contra os quais não se podia provar nada. Os dois nobres não quiseram admitir que tinham esse tipo de gente sob seu comando, mas, depois de certa insistência, acabaram revelando os nomes de três cairhienos, dois tairenos e — para surpresa de Mat — dois andorianos. Achava que nenhum andoriano estivesse entre eles por tempo suficiente para já ter aquela fama, mas parecia que as notícias se espalhavam rápido.
Mat chamou os sete sujeitos de lado e explicou que precisava de batedores, e um bom batedor utilizava praticamente as mesmas habilidades que um caçador ilegal ou um ladrão de cavalos. Ignorando as negativas fervorosas de que eles já tivessem cometido qualquer tipo de crime — cada um soltou mais negativas do que Talmanes e Nalesean juntos, e com a mesma eloquência, ainda que com palavras bem mais vulgares —, Mat ofereceu perdão para quaisquer delitos praticados antes daquele dia, além de o triplo do pagamento e nenhum requisito sobre como conduziriam o trabalho, contanto que lhe contassem a verdade. Alertou que seriam enforcados logo na primeira mentira. Muitos homens podiam acabar mortos por causa de uma mentira de um batedor. Mesmo com a ameaça, todos toparam sem nem pestanejar — claro que devia ser mais pelo trabalho fácil do que pela prata extra.
Só que sete não bastavam, então Mat tratou de pedir que sugerissem outros, tendo em mente o que ele dissera sobre as habilidades necessárias e sem esquecer que eles conseguirem ficar vivos para coletar o pagamento triplo dependeria em grande medida da capacidade dos homens que indicassem. Aquilo gerou muito coçar de queixos e olhares nervosos, mas os homens acabaram oferecendo mais onze nomes, sempre enfatizando que não estavam acusando os tais sujeitos de nada. Onze homens, todos caçadores ilegais e ladrões de cavalo bons o bastante para que nem Daerid nem Talmanes tivessem suspeitado deles, mas não o suficiente para passarem despercebidos pelos sete primeiros. Mat lhes fez a mesma oferta, tornando a pedir mais nomes. Quando chegou ao ponto em que não conseguia mais nenhuma nova indicação, Mat já contava com quarenta e sete batedores. Os tempos difíceis tinham levado muitos homens a se tornarem soldados, em vez de seguirem o ofício que teriam preferido.
O último, apontado por todos os três que foram recomendados antes dele, era Chel Vanin, um andoriano que antes morava em Maerone, mas que sempre atuara muito nas duas margens do Erinin. Vanin era capaz de roubar os ovos de uma fêmea de faisão ainda no ninho sem nem perturbá-la, embora fosse mais provável que ele levasse a coitada da ave junto. Vanin conseguia roubar um cavalo com o nobre ainda montado na sela, e o sujeito só descobriria dois dias depois. Ao menos foi o que disseram a seu respeito, sempre em tom de admiração. Com o sorriso faltando alguns dentes e um olhar da mais absoluta inocência no rosto redondo, Vanin protestara, alegando que não passava de um mero cavalariço e, quando conseguia, mantinha o ofício de ferrador — mas completou dizendo que aceitaria o trabalho pelo quádruplo do pagamento normal do Bando. Até aquele momento, o pagamento mais do que valera a pena.
Sentado em seu capão pardo diante de Mat naquele topo de colina, Vanin parecia incomodado. O sujeito ficara feliz com o fato de Mat não querer ser tratado por “milorde”, já que não gostava muito de fazer reverências, mas mesmo assim tocou a testa com os dedos, em uma espécie de saudação.
— Acho que tem uma coisa que você precisa ver. Não sei o que dizer, você tem que ver com seus próprios olhos.
— Esperem aqui — ordenou Mat aos demais. Virou-se para Vanin e completou: — Me mostre.
Não era muito longe, cruzaram apenas as duas colinas seguintes e subiram ao longo de um regato sinuoso com margens largas de lama seca. O cheiro anunciou o que Vanin queria que Mat visse antes que os primeiros abutres bamboleassem e levantassem voo — muitos dos pássaros só bateram as asas por umas poucas passadas antes de voltarem a pousar, sacudindo as cabeças peladas e guinchando provocações, mas o pior foram os que nem tiraram a cabeça do jantar, formando um amontoado de penas negras manchadas.
Havia um carroção tombado na passagem. Mais parecia uma casinha sobre rodas, e a madeira em tons intensos de verde, azul e amarelo o marcava como a morada de Latoeiros. Da caravana em volta, poucos carroções tinham escapado do fogo. Havia corpos por toda parte, homens, mulheres e crianças com roupas coloridas rasgadas e escurecidas pelo sangue seco. Parte de Mat analisou tudo aquilo com frieza, mas o restante queria vomitar ou sair correndo, qualquer coisa que não fosse ficar ali, sentado no dorso de Pips. Os agressores tinham vindo do oeste. Quase todos os corpos de homens e garotos mais velhos estava por ali, misturados ao que ainda restava de vários cães grandes, como se tivessem tentado formar uma barreira para deter os assassinos enquanto as mulheres e crianças fugiam. Uma luta inútil. Cadáveres empilhados indicavam o lado para onde tinham tentado fugir, quando veio o segundo ataque. Só os abutres se moviam pela cena.
Vanin cuspiu por uma fresta entre os dentes, enojado.
— A gente sempre tem que expulsar esses daí antes que eles roubem muita coisa. E se a pessoa não ficar esperta, eles pegam as crianças e levam pra criar. E de vez em quando é preciso dar uns chutes para eles irem embora mais rápido, mas isso não se faz. Quem seria capaz de uma barbaridade dessas?
— Não sei. Ladrões, talvez.
De fato, os cavalos não estavam por ali. Mas ladrões sempre queriam apenas roubar, não matar, e nenhum Latoeiro resistiria, nem se quisessem levar sua última moeda e os fizessem tirar a roupa do corpo, do casaco às botas. Mat se obrigou a diminuir o aperto das mãos nas rédeas. Não havia para onde se virar sem esbarrar os olhos em uma mulher ou criança morta. Quem tinha feito aquilo, fosse quem fosse, não queria sobreviventes. Deu uma volta na área, bem devagar, tentando ignorar os guinchos dos abutres, que abriam as asas à sua passagem. O chão estava seco demais para exibir rastros precisos do que acontecera, mas, pelo que via, Mat achava que os cavalos tinham fugido por todos os lados, na hora da confusão. Voltou para perto de Vanin.
— Você poderia ter me contado — protestou. — Eu não precisava ver.
Luz, não precisava!
— Eu podia ter contado que não encontrei nenhum rastro — retrucou Vanin, virando o cavalo e avançando pelo regato raso. — Mas achei que o senhor precisava ver isto aqui.
O carroção tombado de lado fora quase completamente consumido pelo fogo, mas o anexo sobre rodas amarelas de aros vermelhos, onde ficava a cama, permanecera intacto. Um sujeito metido em um casaco escurecido pelas chamas, ainda com alguns pedaços remanescentes do tecido de um tom azul de doer os olhos, jazia estatelado contra a parede de madeira, uma das mãos coberta de sangue seco enegrecido e caída aberta para o lado. Ele escrevera uma mensagem no carroção intocado, e as letras trêmulas se destacavam, mais escuras que a madeira de fundo:
CONTE AO DRAGÃO RENASCIDO
Contar o quê?, pensou Mat. Que alguém assassinara uma caravana inteira de Latoeiros? Vai ver o homem tinha morrido antes de conseguir completar a frase. Não seria a primeira vez que um grupo de Latoeiros encontrava alguma informação importante. Se fosse uma história, o sujeito teria vivido por tempo suficiente para conseguir escrever aquele trecho vital que levaria à vitória do bem. Ora, fosse qual fosse a mensagem, ninguém àquela altura iria descobrir mais nenhuma palavra.
— Você estava certo, Vanin — concordou Mat. Então hesitou. Contar o que para o Dragão Renascido? Não tinha por que gerar ainda mais boataria. — Antes de ir embora, cuide de queimar o que resta desse carroção. E, se alguém perguntar, só o que tinha por aqui eram homens mortos.
E mulheres, e crianças.
Vanin aquiesceu.
— Esses selvagens imundos — resmungou, cuspindo outra vez pelo buraco do sorriso. — Acho até que pode ter sido um grupo deles.
O sujeito estava reclamando do grupo de Aiel que enfim os alcançara, cerca de trezentos ou quatrocentos homens. Vinham trotando encosta abaixo e cruzaram o regato a não mais que cinquenta passadas dos carroções. Alguns ergueram a mão em cumprimento. Mat não reconheceu nenhum rosto, mas muitos dos Aiel já tinham ouvido falar do amigo de Rand al’Thor, um sujeito de chapéu contra o qual era melhor não apostar. Depois de atravessado o regato e subido a encosta seguinte, os Aiel seguiram em frente — para eles, todos aqueles corpos podiam muito bem nem ter existido.
Malditos Aiel, pensou Mat. Sabia que os Aiel evitavam os Latoeiros, que os ignoravam. Não sabia bem por quê, mas aquilo…
— Mas acho que não foram eles — opinou. — Não se esqueça de tocar fogo no carroção, Vanin.
Talmanes e os outros dois estavam no mesmíssimo lugar onde os deixara, claro. Quando Mat contou o que havia à frente e explicou que precisariam designar alguns destacamentos para os enterros, os homens assentiram com tristeza. E Daerid resmungou, descrente:
— Latoeiros?
— Vamos acampar aqui — acrescentou Mat.
Esperava algum comentário em protesto — ainda havia luz para avançarem mais algumas milhas, e aqueles três também tinham se envolvido nos debates sobre quanto o Bando conseguiria avançar por dia, tinham até feito suas apostas. Mas Nalesean só respondeu:
— Vou mandar um homem ir lá embaixo dar um sinal para os navios, antes que se distanciem demais.
Talvez os três também se sentissem como ele. A menos que dessem uma grande volta para chegarem ao rio, não haveria como evitar ao menos a visão dos abutres espalhados pelo céu acima dos destacamentos. Só porque o sujeito já tinha visto a morte de perto não significava que ia querer ver uma coisa daquelas. Mat, de sua parte, achava que acabaria esvaziando o estômago se visse aqueles pássaros mais uma vez. Pela manhã, haveria apenas túmulos — e bem longe do alcance dos olhos.
Mas a cena não saía da cabeça, mesmo depois de sua tenda ter sido montada bem no topo daquela colina, onde talvez passasse uma brisa do rio, caso surgisse alguma brisa. Corpos destroçados por assassinos, bicados por abutres. Fora pior que na batalha contra os Shaido, nos arredores de Cairhien. Algumas Donzelas tinham morrido naquela batalha, mas Mat pelo menos não vira nenhuma, e não houvera crianças. Os Latoeiros não lutavam nem para defender a própria vida. Ninguém matava o Povo Errante. Mat mal tocou na sua porção de carne com feijão e se recolheu o mais cedo possível. Nem mesmo Nalesean queria conversar, e Talmanes parecia mais tenso do que nunca.
A notícia da matança se espalhara. Uma quietude inédita tomou o acampamento. Em geral, a escuridão da noite era cortada por pelo menos algumas gargalhadas, e muitas vezes as canções desafinadas e de gosto duvidoso quebravam o silêncio até que os porta-estandartes finalmente convenciam o grupo dos que não admitiriam estar cansados a irem dormir. Aquela noite era como nas vezes em que tinham encontrado uma aldeia que ainda não enterrara seus muitos mortos ou um grupo de refugiados assassinados enquanto tentavam evitar que bandidos levassem o pouco que possuíam. Poucos conseguiam rir ou cantar depois de cenas como aquelas, e quase sempre eram silenciados pelos outros.
Mat ficou deitado, fumando seu cachimbo enquanto a noite caía. A tenda estava fechada para visitas, mas o sono não viria, com tantas memórias de Latoeiros mortos — e outras memórias, mais antigas, de outros mortos mais antigos. Eram batalhas demais, mortos demais. Dedilhou a lança, tateando a inscrição na Língua Antiga ao longo do cabo preto.
Eis o que foi acordado, tratado saído a contento.
O pensamento é a flecha do tempo, a lembrança jamais se apaga.
O que foi pedido está dado. O preço assim se paga.
Ficara com a pior parte daquele trato.
Depois de um tempo, Mat pegou um cobertor. Hesitou um instante, então pegou também a lança e saiu da tenda só com as roupas de baixo, o pingente de prata de cabeça de raposa em seu peito desnudo refletindo a luz da nesga de lua no céu. Uma leve brisa soprava, um discreto revolver do vento com um frescor mínimo que mal fazia o estandarte da Mão Vermelha tremular no mastro cravado no chão diante da tenda. Ainda assim era melhor do que lá dentro.
Mat estendeu o cobertor entre os arbustos e se deitou de peito para cima. Quando era garoto, às vezes se deitava ao relento e dormia identificando as constelações. Naquele céu claro, a lua, mesmo minguante, proporcionava luz suficiente para ofuscar quase todas as estrelas, mas ainda deixava algumas. Lá estavam a Carroça de Feno, bem acima de sua cabeça; assim como as Cinco Irmãs e, mais ao lado, os Três Gansos, indicando o norte. A constelação do Arqueiro, a do Fazendeiro, a do Ferreiro, a da Serpente — que os Aiel chamavam de Dragão. E também a do Escudo, que alguns chamavam de “Escudo de Asa-de-gavião” — ver aquelas estrelas o deixou meio agitado: em algumas das suas memórias, não gostava nem um pouco de Artur Paendrag Tanreall —, além de a do Cervo e a do Carneiro. Ah, e logo ali a da Xícara e a da Viajante, o cajado bem destacado.
Mat ouviu um barulho, mas não conseguiu identificar o que era. Se a noite não estivesse tão parada, o ruído tênue poderia não ter parecido furtivo, mas, com a calmaria, foi exatamente essa a impressão que passou. Quem estaria se esgueirando ali por cima? Curioso, Mat ergueu o tronco, apoiando-se só no cotovelo — e congelou.
Vultos se moviam ao redor de sua tenda, sombras ao luar. A lua iluminou um deles o suficiente para que Mat identificasse um rosto velado. Seriam Aiel? Como assim, pela Luz? Em silêncio, os vultos cercaram a tenda e se aproximaram cada vez mais. O brilho do metal reluziu na noite, e Mat ouviu o tecido ser rasgado, então todos sumiram de vista. Saíram da tenda apenas um momento depois, muito atentos ao acampamento em volta. Havia luz suficiente para notar sua inquietação.
Mat ergueu o corpo, mas permaneceu de cócoras. Se ficasse abaixado, talvez conseguisse escapulir sem ser ouvido.
— Mat! — gritou Talmanes, para o alto da colina. Pela voz, parecia bêbado.
Ficou imóvel. Talvez Talmanes fosse embora, se achasse que ele estava dormindo. Os Aiel pareciam ter desaparecido, mas Mat tinha certeza de que só haviam se abaixado exatamente onde estavam.
O som das botas de Talmanes contra o chão foi ficando mais perto.
— Tenho um pouco de conhaque aqui, Mat. Acho que você devia tomar um gole. É bom para os sonhos. Você não vai se lembrar de nenhum.
Mat se perguntou se, caso saísse correndo, os Aiel o ouviriam por cima do alarde de Talmanes. Estava a pouco mais de dez passadas dos homens adormecidos mais próximos — naquela noite, era o Primeiro Estandarte do Cavalo, os Raios de Talmanes, que ganharam a “honra” de cercá-lo naquela noite —, mas os Aiel estavam a menos de dez passadas, ao lado de sua tenda. Os homens do Deserto eram rápidos, mas, com duas passadas de vantagem, Mat achava que conseguiria ter cinquenta homens quase ao alcance quando os Aiel o alcançassem.
— Mat? Sei que que você não está dormindo. Vi sua cara, mais cedo. Vai melhorar depois que você matar os sonhos. Pode acreditar.
Mat ficou agachado, agarrando a espada, e respirou fundo. Só precisava de duas passadas de vantagem.
— Mat? — Talmanes estava mais perto. A qualquer momento, o idiota acabaria pisando em um Aiel. Acabaria com a garganta cortada, e os agressores não fariam nem um ruído.
Que a Luz o queime, Mat pensou. Só preciso de duas passadas.
— Às armas! — gritou, dando um pinote e se levantando de vez. — Os Aiel estão atacando! — Saiu correndo encosta abaixo. — Todos para o estandarte! Todos para a Mão Vermelha! Corram, seu bando de ladrões de tumba!
Aquilo acordou todos em volta — claro, o que mais poderia acontecer, com Mat berrando feito um touro no estouro da boiada? Ouviu gritos de todas as direções. Os tambores começaram a ribombar, os trompetes ressoavam em convocação. Homens do Primeiro Cavalo irromperam dos lençóis e saíram correndo em direção ao estandarte, espadas em riste.
Ainda assim, o fato era que os Aiel tinham uma distância menor a percorrer do que os soldados e sabiam o que estavam procurando. Por instinto, por sorte ou simplesmente por ser ta’veren — Mat com certeza não ouviu nada em meio àquele alvoroço —, algo o fez se virar justo no instante em que o primeiro vulto de véu apareceu atrás de si, como se brotando do ar. Não teve nem tempo para pensar. Bloqueou a investida de uma lança Aiel com o cabo de sua lança estranha, mas o sujeito defendeu o contra-ataque com um broquel e deu um chute na barriga de Mat. O desespero lhe deu forças para manter as pernas eretas, mesmo sem nenhum ar nos pulmões, e Mat desviou depressa para o lado, escapando de uma ponta de lança que tentava se enfiar entre suas costelas. Então passou o cabo de sua própria lança por trás das pernas do Aiel, derrubando-o, e enfiou a ponta da arma no coração do agressor. Luz, torcia para que fosse um homem.
Mat sacudiu a lança, soltando a lâmina bem a tempo de se defender do ataque seguinte. Eu devia ter fugido quando tive a chance! Começou a usar a lança feito um bastão, os golpes fluindo em movimentos mais rápidos e intensos do que em toda a vida, girando e bloqueando investidas de lanças Aiel. Não tinha nem tempo de contra-atacar. Eram muitos. Devia ter fechado essa minha matraca e dado no pé! Conseguiu recuperar o fôlego.
— Avancem, seus ladrões de ovelha com tripas de pombo! Estão surdos? Limpem esses ouvidos e venham logo!
Mat começou a se perguntar por que ainda não estava morto — tivera sorte na luta contra aquele primeiro Aiel, mas não havia sorte que desse conta daquilo tudo —, até que reparou que não estava mais sozinho. Viu um cairhieno magricela só de roupas de baixo cair ali perto, quase aos seus pés, com um grito estridente. O sujeito logo foi substituído por um taireno, a camisa solta tremulando, a espada rodopiando sem parar. Outros homens se amontoaram, aos berros de “Lorde Matrim, vitória!”; “Avante Mão Vermelha!” e “Matem esses vermes!”
Mat recuou, deixando os soldados darem conta daquilo. Tolo é o general que lidera na linha de frente. As palavras vinham de uma daquelas memórias antigas, a fala de alguém cujo nome não acompanhara a lembrança. Os homens morrem fácil, na linha de frente. Aquele pensamento era só dele, mesmo.
No fim das contas, foi mesmo uma questão de números. Eram pouco mais de dez Aiel contra várias centenas de homens, se não o Bando inteiro, que conseguiram chegar no topo da colina antes que a coisa toda terminasse. Os Aiel morreram e, como se tratava de Aiel, levaram quase vinte homens do Bando, deixando o dobro de gente ou até mais sangrando, mas ainda vivos para se lamuriar. Mesmo tendo passado pouco tempo em luta, Mat estava dolorido e sangrava de cinco cortes diferentes — e suspeitava de que pelo menos três precisariam de suturas.
A lança serviu bem como bengala quando Mat foi mancando até Talmanes, estirado no chão com Daerid amarrando um torniquete em sua perna esquerda.
Havia duas manchas escuras na camisa branca de Talmanes.
— Parece que Nerim vai ter outra chance de treinar suas mãos de costureira na minha pele — comentou, ofegante. — Que o queime, ele tem patas de touro.
Nerim era serviçal de Talmanes e remendava a pele de seu senhor com quase a mesma frequência com que remendava as roupas do nobre.
— Ele vai ficar bem? — perguntou Mat, baixinho.
Daerid deu de ombros. Estava só de bombachas.
— Acho que ele está sangrando menos que você. — Quando o sujeito ergueu a cabeça para responder, Mat notou que ele teria uma nova cicatriz para a coleção que ostentava no rosto. — Foi bom ter saído da frente deles, Mat. Ficou bem claro que vieram atrás de você.
— Que bom que não conseguiram o que queriam. — Talmanes se esforçou para ficar de pé, fazendo uma careta de dor enquanto se apoiava com o braço por sobre o ombro de Daerid. — Seria uma pena perder a sorte do Bando para uns selvagens que apareceram no meio da noite.
Mat pigarreou.
— Também fiquei pensando nisso.
Lembrou-se dos Aiel desaparecendo tenda adentro e estremeceu. Luz, por que aqueles Aiel queriam acabar com ele?
Nalesean apareceu, vindo de onde tinham disposto os corpos dos Aiel. Ainda estava com o casaco, apesar de desabotoado, e não parava de olhar feio para uma mancha de sangue na lapela — talvez fosse seu próprio sangue, talvez não.
— Que minha alma queime, sabia que mais cedo ou mais tarde esses selvagens iam nos atacar. Acho que eram parte daquele grupo que nos passou, mais cedo.
— Duvido — contestou Mat. — Se aqueles Aiel estivessem atrás de mim, teriam me enfiado num espeto e me colocado para assar no fogo antes que qualquer um de vocês notasse minha ausência. — Ele deu um jeito de ir mancando até os corpos dos Aiel e examinou um a um, usando a luz de uma lanterna que tinham trazido para ampliar sua visão à luz do luar. O alívio de encontrar apenas rostos masculinos quase fez seus joelhos bambearem. Não conhecia nenhum daqueles homens, mas de fato não conhecia muitos Aiel. — Devem ser Shaido — sugeriu, voltando com a lanterna para junto dos outros.
Poderiam ser Shaido. Poderiam ser Amigos das Trevas — Mat tinha plena consciência de que havia Amigos das Trevas entre os Aiel. E claro que Amigos das Trevas tinham muitos motivos para querer vê-lo morto.
— Amanhã acho que deveríamos tentar encontrar uma daquelas Aes Sedai no outro lado do rio — ponderou Daerid. — Nosso Talmanes aqui vai sobreviver, a menos que todo o conhaque tenha vazado pelos cortes, mas alguns dos outros feridos talvez não tenham tanta sorte.
Nalesean não se pronunciou, mas deu um grunhido que já dizia muita coisa. Ele era taireno, afinal — gostava menos das Aes Sedai do que Mat.
Mesmo assim, Mat não hesitou em concordar. Não permitiria que Aes Sedai nenhuma canalizasse nele — de certo modo, cada cicatriz era a marca de uma pequena vitória, de mais uma ocasião em que evitara as Aes Sedai —, mas não poderia pedir a um homem que morresse por ele. Depois de resolvido isso, tratou de falar sobre os outros assuntos que tinha em mente.
— Um fosso? — questionou Talmanes, descrente.
— Dando a volta em todo o acampamento? — A barba pontuda de Nalesean estremeceu quando ele falou. — A cada noite?
— E uma paliçada?! — exclamou Daerid. Então olhou em volta e baixou a voz: ainda havia soldados demais ali por perto, arrastando os mortos. — Os homens vão se rebelar, Mat.
— Não vão, não. Quando a manhã raiar, cada homem aqui vai saber que os Aiel se esgueiraram por todo o acampamento para chegar à minha tenda. Metade não vai nem mais dormir, com medo de acordar com uma lança nas costelas. Vocês três tratem de garantir que eles entendam direitinho como uma paliçada pode evitar que os Aiel entrem outra vez no acampamento. — Bem, se não os impedisse, pelo menos os atrasaria. — Agora vão embora, quero dormir pelo menos um pouco esta noite.
Depois que os nobres saíram, Mat examinou sua tenda. Havia cortes compridos nas paredes de tecido, as frestas por onde os Aiel tinham entrado, e o tecido meio solto volta e meia balançava com a brisa. Com um suspiro, foi voltando para o lençol em meio aos arbustos, então parou. Lembrou-se do barulho que o alertara. Os Aiel não tinham feito nenhum outro som, nem mesmo um farfalhar. Qualquer Aiel fazia tanto ruído ao se mover quanto uma sombra. Então de onde viera o barulho?
Apoiado na lança, mancando, Mat deu a volta na tenda, examinando o chão em volta. Não tinha certeza do que estava procurando. Não havia qualquer rastro que pudesse identificar à luz da lanterna. Duas das cordas da tenda tinham sido cortadas e pendiam ao longo das paredes de tecido, mas… Mat largou a lanterna no chão e tateou as cordas. O ruído podia ter sido feito ao cortar uma corda tensionada, mas não era preciso cortar nenhuma corda para entrar na tenda. Algo chamou sua atenção no ângulo dos cortes, na forma como se alinhavam. Pegou a lanterna e iluminou em volta. Um arbusto próximo estava com a lateral podada, e os resquícios dos galhos finos ainda cheios de folhinhas repousavam no chão. Tinha sido uma poda muito bem-feita: perfeitamente reta, as pontas dos galhos cortadas bem lisinhas, como se tivessem sido aplainadas por um marceneiro.
Mat sentiu um arrepio. Ali fora aberto um daqueles buracos que Rand usava para Viajar. Já era ruim o bastante ter Aiel tentando matá-lo, mas ainda por cima tinham sido enviados por alguém capaz de fazer um daqueles… portões, como Rand chamava. Luz, se não estava a salvo dos Abandonados nem no meio do Bando, onde mais estaria? Ficou se perguntando como faria para dormir sob o brilho das tochas de segurança que teria que dispor ao redor da tenda. E os guardas — anunciaria uma guarda de honra, tentando amenizar um pouco a necessidade de escolher sentinela para ficar em torno da tenda. Da próxima vez, era provável que mandassem cem Trollocs — ou mil —, em vez de um bando de Aiel. Quer dizer, será que ele era importante o bastante para merecer isso? Se decidissem que era, poderia acabar recebendo a visita de um dos Abandonados. Sangue e cinzas! Não pedira para ser ta’veren, não pedira para ficar amarrado ao maldito Dragão Renascido.
— Sangue e malditas…!
Foi alertado por um barulho de passos no chão seco e rachado. Com um rosnado, já girou o corpo com a lança em riste… e conseguiu frear a investida a tempo: Olver gritou e caiu de costas, os olhos arregalados fixos na ponta de lança.
— Pelo maldito Poço da Perdição, o que você está fazendo aqui? — ralhou Mat.
— Eu… Eu… — O garoto parou para engolir em seco. — Estão dizendo que cinquenta Aiel tentaram matar o senhor durante o sono, Lorde Mat, mas que o senhor deu conta de matar todos primeiro. Mas eu queria ver se está tudo bem e se… Ah, veja: Lorde Edorion comprou sapatos para mim! — Ele ergueu o pé calçado.
Resmungando sozinho, Mat ajudou Olver a se levantar.
— Não foi isso que eu perguntei. Por que você não ficou em Maerone? Edorion não encontrou ninguém lá para cuidar de você?
— A mulher só estava interessada nas moedas de Lorde Edorion, não queria nada comigo. E já tinha seus próprios filhos, eram seis. Mestre Burdin me dá bastante comida, e só preciso dar de comer e beber para os cavalos dele. E escovar o pelo também. E gosto disso, Lorde Mat. Mas ele não me deixa montar.
Alguém pigarreou.
— Lorde Talmanes me enviou, milorde.
Era Nerim, um sujeito baixo até para um cairhieno, muito magricela e grisalho, com um rosto tristonho que parecia dizer que nada ia bem, mas que, no fim das contas, ainda assim era um dia melhor do que a maioria.
— Se milorde me perdoar a intromissão, devo dizer que essas manchas de sangue nunca mais sairão de suas roupas de baixo. Mas, se milorde me permitir, talvez eu consiga dar um jeito nesses cortes. — Nerim estava com a caixa de costura debaixo do braço. — Garoto, me arrume um pouco de água. E não quero ouvir nem um pio. Água para milorde, e rápido. — O criado de Talmanes aproveitou enquanto fazia uma reverência para pegar a lanterna no chão. — Será que milorde não quer entrar? O ar da noite não é bom para ferimentos.
Pouco depois, Mat já estava estirado ao lado das roupas de cama — afinal, “Milorde não vai querer manchar os lençóis” —, permitindo que Nerim limpasse o sangue ressecado e suturasse as feridas. Talmanes tinha razão: no que dizia respeito à arte da agulha e linha, o criado era um excelente cozinheiro. Com Olver ali perto, não lhe restou escolha senão cerrar os dentes e aguentar a dor.
Tentando manter a mente bem longe da agulha de Nerim, Mat apontou para a bolsa de pano pendurada no ombro de Olver.
— O que tem aí? — perguntou, arfando.
Olver apertou a bolsa esfarrapada contra o peito. O garoto continuava magricela, mas pelo menos estava mais limpo. Os sapatos eram bem robustos, e as calças e a camisa de lã pareciam novas.
— É tudo meu — declarou, na defensiva. — Não roubei nada. — Passado um momento, ele abriu a bolsa e foi retirando seus pertences: o par de calças sobressalente, as outras duas camisas e os pares de meias não despertaram o interesse de Mat, mas o garoto continuou listando o que tinha: — Esta aqui é a minha pena de falcão-vermelho, Lorde Mat, e esta pedra aqui é da cor do sol. Está vendo? — Ele mostrou uma bolsinha: — Tenho cinco moedas de cobre e uma de prata. — Então revelou um pano enrolado, amarrado com um barbante, junto de uma caixinha de madeira: — Meu jogo de Cobras e Raposas. Foi meu pai que fez, ele mesmo desenhou o tabuleiro. — Ele franziu o cenho por um instante, consternado, então prosseguiu: — E olhe só, tem uma cabeça de peixe grudada nesta pedra aqui. Não tenho ideia de como o peixe foi parar nela. E este aqui é o meu casco de tartaruga, de uma tartaruga de dorso azul. Dá para ver as listras?
Mat fez careta ao levar uma estocada particularmente forte da agulha de sutura e estendeu a mão, tateando o pano enrolado. Ficava bem melhor quando respirava pelo nariz. Estranho como funcionavam aquelas lacunas em sua memória. Sabia como jogar Cobras e Raposas, mas não tinha qualquer lembrança de já ter jogado.
— É mesmo um belo casco de tartaruga, Olver. Já tive um. De uma verde, essas que gostam de sol. — Mat esticou a mão para o lado e pegou a bolsa, de onde pescou duas coroas de ouro cairhienas. — Pode botar essas aqui na sua bolsa, Olver. Os homens precisam sempre andar com um pouco de ouro.
Olver se retesou e começou a guardar seus pertences de volta.
— Não sou de pedir dinheiro, Lorde Mat. Posso trabalhar por comida. Não sou nenhum mendigo.
— Não foi minha intenção sugerir uma coisa dessas. — Mat tentou encontrar algum motivo para pagar as duas coroas ao garoto. — Eu… Eu preciso de alguém para ser meu mensageiro. Não posso pedir isso a ninguém do Bando, estão todos ocupados com suas tarefas de soldado. Claro que você teria que cuidar do seu próprio cavalo, não tenho como pedir para fazerem isso no seu lugar.
Olver se endireitou.
— Eu teria o meu próprio cavalo? — indagou, incrédulo.
— Claro. Mas tem mais um detalhe. Meu nome é Mat. Se me chamar de Lorde Mat mais uma vez, vou arrancar seu nariz e dar um nó. — Mat soltou um berro e até encolheu o corpo de tanta dor. — Que o queime, Nerim! Isto aí é uma perna, não uma droga de um bife!
— Como milorde quiser — murmurou Nerim. — Sua perna não é mesmo nenhum pedaço de bife. Obrigado, milorde, pelo esclarecimento.
Olver levou a mão ao nariz, hesitante, como se considerasse se era possível arrancá-lo para dar um nó.
Gemendo, Mat se endireitou. Tinha acabado de se comprometer com um garoto, e aquilo não fora nenhum favor ao coitado — não se Olver estivesse por perto, da próxima vez que os Abandonados tentassem reduzir a quantidade de ta’veren no mundo. Bem, se o plano de Rand funcionasse, haveria um Abandonado a menos. Se fosse só pela vontade de Mat Cauthon, ficaria bem longe de confusões e perigos até que não existisse mais nenhum Abandonado.