Rand deixou Sulin ajudá-lo com o casaco só porque para impedi-la teria sido necessário arrancar a peça das mãos dela. Como de costume, a Aiel tentou enfiar a roupa nele sem a menor consideração para detalhes mínimos como, por exemplo o ponto em que de fato ficavam os braços. Claro que, com isso, acabaram envolvidos em uma dancinha pelo quarto. Lews Therin tagarelava sem parar, gargalhando com uma alegria insana, alto o bastante para se fazer ouvir. Sammael, ah, sim! Mas Demandred primeiro. Antes de tudo, eu me livro dele. Depois de Sammael. Ah, sim… Se aquela voz tivesse um corpo e mãos, não pararia de esfregá-las, todo satisfeito. Rand o ignorou.
— Aja com respeito — resmungou Sulin, entre dentes. — Você não demonstrou o devido respeito àquelas Aes Sedai de Caemlyn e viu o que aconteceu. As Sábias… ouvi as Sábias falarem umas coisas… você tem que agir com o devido respeito. Milorde Dragão — acrescentou, como se só então tivesse se lembrado.
Rand conseguiu terminar de botar o casaco, aos trancos.
— Min já chegou?
— Ela por acaso está aqui? Milorde Dragão. — Sulin puxou um fio imaginário da seda vermelha, então começou a fechar os botões. Era mais fácil nem tentar impedi-la. — Min virá quando vier, se vier. Sorilea vai encerrar a lição dela nas tendas quando for a hora. — Ela o encarou com um olhar penetrante. — O que é que você quer com a menina? Duvido que queira uns beliscões no traseiro na frente das Aes Sedai. — Ela nem tentou esconder o sorriso. — Milorde Dragão.
Foi muito difícil não fechar a cara. Tudo estava indo tão bem, mas agora isso… Sorilea sabia que ele precisava de Min mais do que em qualquer audiência que já acontecera, não podiam passar a chance de ela ter alguma visão em relação a Coiren e duas outras emissárias de Elaida. Sorilea prometera que a devolveria a tempo. Rand se afastou outra vez, mas Sulin foi atrás, ainda fechando os botões.
— Sulin, quero que você vá à tenda de Sorilea. Encontre Min e traga ela aqui. Sem perguntas, Sulin. Só obedeça.
A mulher tentou sorrir e ranger os dentes ao mesmo tempo, em uma cena memorável.
— Como milorde Dragão ordenar.
Com uma mesura suave, ela abriu as saias vermelhas e brancas e baixou o rosto quase até o chão.
— Até quando? — perguntou Rand, quando ela se virou para ir. Não precisava explicar a pergunta, e a hesitação de Sulin deixou claro que ela compreendera.
A Aiel enfim respondeu, com calma e firmeza, sem murmúrios.
— Até minha vergonha se igualar à delas. — Ela o encarou bem nos olhos e, por um instante, voltou a ser a antiga Sulin, mesmo com os cabelos mais compridos. Mas a máscara logo voltou. — Se milorde Dragão me der licença, preciso correr para lhe obedecer.
E ela correu: erguendo as saias até os joelhos, Sulin saiu em disparada. Rand balançou a cabeça e fechou os últimos botões sozinho.
A verdade era que até se sentia bem. Exceto por Min, claro. Sorilea lhe prometera… Min lhe prometera. Assim que se esquivasse das inevitáveis perguntas de Coiren sobre ir ou não para Tar Valon, ele se sentaria com Min e… não tinha certeza do que viria depois. Mas Alanna estava cada dia mais perto. Depois de dar alguma atenção a Coiren, treinaria com a espada por uma hora.
Demandred, rosnou Lews Therin. Ele queria Ilyena! Como de costume, a lembrança de Ilyena o fez voltar ao choro e às lamúrias. Ilyena! Ah, Luz, Ilyena!
Rand pegou o Cetro do Dragão e foi até a antessala. Ponderando quem Coiren levaria daquela vez, sentou-se na cadeira de espaldar alto sobre o palanque, para não ficar andando de lá para cá — e não seria por conta das Aes Sedai, mas sim de Min. A mulher sabia quanto Rand precisava dela. Sabia.
Até que uma das portas se entreabriu para deixar passar uma mulher… era Chiad, não Min.
— As Aes Sedai estão aqui, Car’a’carn. — O título saiu em um tom rígido, como se ela ainda não conseguisse aceitar que um aguacento era o chefe dos chefes ou que ele de fato fosse o filho de uma Donzela.
Rand assentiu, levantando-se e apoiando a ponta do Cetro do Dragão no joelho.
— Mande elas entrarem.
Teria uma conversa séria com Min sobre essa coisa de dedicar todo o tempo às Sábias.
Coiren adentrou, deslizando como um cisne roliço e presunçoso, logo seguida de Galina e outra mulher de olhos duros, cabelos negros feito as penas de um corvo e aquela expressão de Aes Sedai. Estavam todas de cinza, e Rand suspeitou de que a cor tinha sido escolhida para disfarçar a poeira. Para sua surpresa, mais uma vez serviçais com sobrecapas leves vieram atrás das Aes Sedai — quase dez, carregando dois pesados baús trabalhados em latão, nenhum dos dois pequeno. Algumas das jovens o encaravam, mas a maioria mantinha a cabeça baixa, talvez por medo, talvez por estarem concentradas no esforço da tarefa em questão.
Rand quase fez uma careta, mas conseguiu se conter. Aquelas mulheres achavam mesmo que podiam comprá-lo.
— Uma pena que sua irmã Verde não esteja aqui hoje — comentou Galina.
Os olhos de Rand se desviaram das serviçais e se voltaram para ela na hora. As três Aes Sedai o encaravam atentamente. Como poderiam saber a respeito de Alanna?
Porém, não havia tempo para questionamentos. Quase no mesmo instante, ele sentiu a pele começar a se arrepiar.
Foi tomado pela fúria, e Lews Therin também se abalou. Os dois agarraram saidin quase no mesmo instante. Somada ao desprezo, a ira branca e incandescente se revolvia nos limites do Vazio, enquanto ele cravava os olhos em Coiren, Galina e fosse lá quem fosse a terceira. O rosto suave e redondo de Coiren era pura determinação, e as outras duas chegavam a exibir um sorriso ávido e nem um pouco agradável. Eram tão idiotas quanto Merana e aquelas outras.
Uma barreira deslizou entre ele e a Fonte Verdadeira, como o fechamento de uma comporta. O fluxo de saidin desapareceu, deixando apenas o resíduo imundo da mácula. O choque foi tão grande que quase não sentiu o ar que parecia se solidificar à volta dele, dos pés à cabeça. Aquele escudo o deixou de olhos arregalados — era impossível. Três mulheres sozinhas não conseguiriam apartá-lo da Fonte depois que ele tomava o controle de saidin, a menos que fossem fortes como Semirhage, Mesaana, ou… tentou tocar a Fonte, esmurrou aquela muralha de pedras invisível com mais força, mais força… Lews Therin rosnava feito uma besta frenética, esmurrando, atacando. Um deles tinha que conseguir tocar saidin; derrubar aquela barreira erguida por apenas três.
O bloqueio só estava erguido havia poucos instantes quando uma das serviçais deu um passo à frente, parando ao lado de Galina, e Rand sentiu o rosto empalidecer. Quatro pares de olhos o encaravam em quatro rostos de idade indefinida.
— É mesmo uma pena que tenhamos chegado a este ponto. — Coiren falava em um tom sereno e claro, mais parecendo se dirigir a um grupo do que a um só homem. — Queria muito que você viesse a Tar Valon por vontade própria, mas ficou óbvio que sua única intenção era protelar até desistirmos. Bem, imagino que você tenha entrado em contato com aquelas pobres coitadas que fugiram depois que Sanche foi estancada. Achava mesmo que elas poderiam lhe oferecer alguma coisa melhor do que conseguiria com a Torre Branca? — A mulher de fato parecia decepcionada com ele.
Rand só conseguia mexer os olhos. Encarou as serviçais ocupadas com um dos baús que jazia aberto. As mulheres tiraram uma bandeja rasa de lá de dentro. Alguns daqueles rostos pareciam jovens, mas outros… eram todas Aes Sedai, tinha certeza. As cinco mais moças ainda não tinham o rosto de idade indefinida. Eram as cinco que haviam olhado para ele, diminuindo suas suspeitas, enquanto o restante permanecera de rosto escondido. Quinze Aes Sedai: treze para se unirem e tecerem um escudo que homem nenhum poderia quebrar, e duas para atá-lo. Treze para… Lews Therin fugiu aos berros.
Galina arrancou o Cetro do Dragão da mão de Rand, balançando a cabeça.
— Agora eu assumo, Coiren. — Ela nem o olhou. Rand poderia muito bem ser uma parte da cadeira. — Segundo o acordo, caso chegássemos a este ponto, a Ajah Vermelha assumiria o comando. — Então mandou, entregando o Cetro do Dragão à outra mulher de cabelos negros e de roupa cinza: — Ponha isto em algum lugar, Katerine. Pode ser um bom suvenir para a Amyrlin.
A Ajah Vermelha. Rand sentia o suor brotar de seu rosto. Se ao menos as Donzelas lá fora entrassem. Ou as Sábias, Sulin… qualquer pessoa que pudesse gritar por ajuda, despertar o Palácio. Treze Aes Sedai, e a Ajah Vermelha no comando. Se pudesse abrir a boca, teria gritado.
Quando as portas se abriram, Bain ficou surpresa. Rand al’Thor acabara de receber as Aes Sedai. Mas seu olhar automaticamente se desviou ao ver as serviçais carregando os baús para fora. Uma Aes Sedai de cabelos negros plantou-se diante dela, e Bain tratou de se levantar. Mal sabia o que pensar da história que as outras Donzelas tinham contado em Caemlyn, coisas das quais apenas os chefes e as Sábias tinham conhecimento, mas os olhos negros daquela mulher pareciam saber tudo sobre o fracasso dos Aiel, tanto tempo antes. Aqueles olhos se fixaram nos de Bain até que ela tomasse apenas vaga ciência da outra Aes Sedai de cabelos negros que confrontava Chiad, e da outra, cheia de pompa, que conduzia as mulheres com os baús para longe. Bain se perguntou se a Aes Sedai que a encarava pretendia matá-la pelo fracasso dos Aiel. Bem, elas decerto já teriam começado a matança, se fosse essa a intenção, já que decerto sabiam de tudo. Ainda assim, aqueles olhos escuros cintilavam com uma dureza que trazia o presságio claro da morte. Bain não tinha medo de morrer, só queria tempo para se velar antes.
— Parece que o jovem Mestre al’Thor está acostumado a ir e vir de Cairhien a hora que bem entende — comentou a Aes Sedai, a voz dura como pedra. — Não estamos acostumadas a ter alguém virando as costas para nós de maneira tão rude. Se ele voltar ao Palácio nos próximos dias, então também voltaremos. Senão… nossa paciência não é infinita.
Ela foi embora, desfilando ao lado da outra, indo atrás das mulheres com os baús.
Bain e Chiad trocaram olhares apressados e correram até os aposentos de Rand al’Thor.
— Como assim, ele sumiu? — inquiriu Perrin.
As orelhas de Loial tremelicaram na direção dele, mas o Ogier manteve o olhar fixo no tabuleiro de pedras, assim como Faile. Ela cheirava… Perrin não conseguia distinguir nada no amontoado de aromas que vinha dela — aquela combinação de odores o deixava desesperado.
Nandera simplesmente deu de ombros.
— Ele faz isso às vezes. — Parecia bastante calma, os braços cruzados e o rosto impassível, mas cheirava a irritação, aquele fedor que remetia a pequenos espinhos. — Ele foge das Donzelas e às vezes passa o dia todo fora. E acha que a gente não sabe. Pensei que você pudesse saber aonde ele foi. — Algo em sua voz dava a entender que, se ela descobrisse o paradeiro de Rand, pretendia ir atrás.
— Não — respondeu, com um suspiro. — Não faço ideia.
— Preste atenção no jogo, Loial — resmungou Faile. — Claro que você não pretendia pôr uma pedra aí.
Perrin suspirou outra vez. Tinha decidido passar o tempo inteiro ao lado de Faile. Cedo ou tarde a mulher teria que falar com ele, e Berelain decerto o deixaria quieto se ele estivesse com a esposa. Bem, ao menos Berelain o deixara em paz. Assim que Faile percebeu que ele não sairia para caçar, laçou Loial antes que o Ogier pudesse correr para a Biblioteca, e os dois estavam engatando uma partida de jogo de pedras atrás da outra. E praticamente sem falar. Perrin queria estar onde quer que Rand estivesse.
Deitado de costas na cama, Rand encarava as grossas vigas do porão, mas não olhava para elas de fato. A cama não era grande, mas os dois colchões com travesseiros de penas de ganso e os bons lençóis de linho proporcionavam conforto. No quarto também havia uma cadeira robusta e uma mesa pequena e simples, porém muito bem-feita. Ainda sentia dor nos músculos por conta do transporte até ali dentro de um dos baús. Com o Poder, foi fácil dobrar seu corpo, enfiando a cabeça entre os joelhos, e cordas simples bastaram para transformá-lo em um embrulho.
O som de metal contra metal o fez virar a cabeça. Galina usara uma grande chave para destrancar uma portinhola na jaula de ferro que circundava a cama, a mesa e a cadeira. Uma mulher grisalha de rosto enrugado estendeu os braços jaula adentro apenas o suficiente para botar uma bandeja coberta por um pano na mesa, então se afastou quase com um salto.
— Pretendo levar você até a Torre com a saúde razoável — declarou Galina, com frieza, enquanto trancava a portinhola. — Coma, ou será forçado a comer.
Rand voltou a encarar as vigas. Seis Aes Sedai estavam sentadas em cadeiras ao redor da jaula, sustentando a blindagem. Manteve o Vazio, para caso as mulheres vacilassem, mas não investiu contra a barreira. Quando elas o empurraram, trôpego, para dentro da jaula, ele tentou derrubar aquele muro invisível. Algumas riram, ao menos as que perceberam. Em vez disso, decidiu avançar com cautela em direção à fúria de saidin, uma tempestade de fogo e gelo logo fora de seu campo de visão. Alcançou-a, sentiu a muralha invisível que o apartava da Fonte, deslizou ao longo dela como se tentasse encontrar uma aresta. O que encontrou foi um local onde a muralha parecia se dividir em seis pontos — serviam para barrá-lo tão bem quanto a parede, mas eram seis, não um, e definitivamente eram pontos distintos.
Fazia quanto tempo que estava ali? Uma desolação se abatera sobre ele, embotando a passagem do tempo, mergulhando-o em um estado de letargia. Estava ali havia tempo suficiente para sentir fome, mas o Vazio deixava a sensação distante, e nem mesmo o cheiro de cozido quente e pão fresco vindo da bandeja suscitava algum interesse. Levantar-se requeria esforço demais. Até então, doze Aes Sedai se revezavam ao redor da jaula, nenhuma com um rosto que ele conhecera antes de chegar naquele porão. Quantas estariam naquela casa? Isso talvez fosse importante mais tarde. Onde ficava aquela casa, afinal? Não fazia ideia da distância que percorrera dentro do baú, sacolejando em alguma carruagem ou carroção. Por que se esquecera do conselho de Moiraine? Não podia confiar em nenhuma Aes Sedai, nem um pouquinho, nem por um instante. Seis Aes Sedai usando o poder para sustentar aquela blindagem deveria ser detectável para qualquer mulher capaz de canalizar que estivesse lá fora. Só precisava que Amys, Bair ou alguma outra passasse na rua e desconfiasse. Elas deviam estar achando que ele desaparecera logo que Coiren deixou o palácio. Bem, isso se houvesse uma rua lá fora. Só precisava…
Tateou outra vez a blindagem, bem lentamente, para que elas não percebessem. Seis pontos. Seis pontos que poderiam ser descritos como macios. Aquilo só podia significar alguma coisa. Desejou que Lews Therin voltasse a falar, mas o único som em sua cabeça eram seus próprios pensamentos vagando pelo Vazio. Seis pontos.
Avançando depressa pela rua que passava junto à grande casa de pedra onde estavam as Aes Sedai, Sorilea mal sentia que as mulheres ainda canalizavam lá dentro. Sentia pouco porque só podia canalizar bem pouco, mas não foi por isso que ignorou o que se passava ali. Aquelas mulheres estavam canalizando dia e noite desde que haviam chegado, e mais nenhuma das Sábias continuava perdendo tempo se perguntando o porquê. Sorilea decerto tinha questões mais importantes em que pensar. No palácio do Assassino da Árvore, as Donzelas já começavam a ficar irritadas com Rand al’Thor, resmungando que o Car’a’carn teria que dar algumas explicações quando voltasse. Sorilea já vivera um bom tempo a mais que qualquer uma daquelas Donzelas, um bom tempo a mais que qualquer Sábia, fosse fraca no Poder ou não, e estava apreensiva. Como quase todo homem, Rand al’Thor saía e voltava quando queria, indo sempre para onde queria — nesse aspecto, os homens eram como os gatos —, mas desta vez ele sumira ao mesmo tempo que Min desaparecera, em algum ponto do caminho entre as tendas e o Palácio. Sorilea não gostava de coincidências, não importava quanto elas fossem frequentes quando o assunto era o Car’a’carn. Apertando o xale contra o corpo para amenizar aquele súbito frio na espinha, rumou depressa de volta para as tendas.