CAPÍTULO 20 Visitas do pouso

Rand tinha apenas começado a enfiar o tabaco de Dois Rios no cachimbo curto quando a cabeça de Liah apareceu pela porta entreaberta. Antes que ela pudesse falar qualquer coisa, um criado de rosto redondo, usando um uniforme vermelho e branco, empurrou-a para abrir caminho e entrou, muito ofegante, desabando de joelhos diante de Rand. A Aiel encarava o sujeito, estupefata.

— Milorde Dragão — ganiu o criado, ainda sem ar —, os Ogier acabaram de chegar ao Palácio. Três deles! Servimos vinho e oferecemos um pouco mais, mas eles insistem que só querem ver o Lorde Dragão.

Rand manteve a voz calma, sem querer assustar o sujeito.

— Há quanto tempo você trabalha no Palácio…? — Além de usar o casaco do uniforme do tamanho certo, o sujeito não era jovem. — Acho que ainda não sei seu nome.

O criado ajoelhado arregalou os olhos.

— Meu nome? É Bari, milorde Dragão. É… trabalho aqui há… Milorde, fará vinte e dois anos na Noite Invernal. Milorde Dragão, e o Ogier?

Rand já fora duas vezes a um pouso Ogier, mas não sabia a etiqueta apropriada para recebê-los como convidados. Os Ogier tinham construído quase todas as grandes cidades, pelo menos as partes mais antigas, e de vez em quando ainda saíam dos pousos para realizar alguns reparos, mas ele duvidava de que um criado como Bari fosse ficar tão ansioso por qualquer visita menos importante que um rei ou uma Aes Sedai — ou talvez nem isso. Ele guardou o cachimbo e a bolsa de tabaco de volta no bolso.

— Então me leve até eles.

Bari se levantou de pé em um salto, quase dando pulinhos de ansiedade. Rand suspeitou de que tivesse tomado a decisão certa: o homem não demonstrou muita surpresa em ver o Lorde Dragão ir até os Ogier, em vez de mandar que viessem ao seu encontro. Ele deixou a espada e o cetro para trás — nada daquilo impressionaria os Ogier. Liah e Cassin o acompanharam, naturalmente, e pelo jeito Bari decerto teria ido correndo até os visitantes se não tivesse que ajustar o passo ao ritmo menos afoito de Rand.

Os Ogier aguardavam em um pátio, ao largo de uma fonte cheia de vitórias-régias, com peixes vermelhos e dourados nadando na base. Eram três: um homem de cabelos brancos usando um casaco comprido e aberto com botas altas de cano dobrado e duas mulheres, uma notavelmente mais jovem que a outra, ambas com saias cheias de bordados de vinhas e folhas, embora os bordados das roupas da Ogier mais velha fossem consideravelmente mais elaborados do que os da mais jovem. Os cálices de ouro, feitos para humanos, pareciam minúsculos em suas mãos enormes. Muitas das árvores ali no pátio ainda conservavam algumas de suas folhas, e o próprio Palácio também fornecia alguma sombra. Os Ogier não estavam sozinhos. Quando Rand chegou, viu Sulin e quase trinta Donzelas à volta deles, além de Urien, junto de cinquenta ou mais de seus homens. Os Aiel tiveram a delicadeza de fazer silêncio ao avistarem Rand.

— Seu nome é música para meus ouvidos, Rand al’Thor — disse o Ogier, a voz retumbante feito um trovão, então fez as apresentações.

Ele era Haman, filho de Dal, filho de Morel. A mais velha era Covril, filha de Ella, filha de Soong; e a mais nova era Erith, filha de Iva, filha de Alar. Rand se lembrava de ter visto Erith quando foi ao Pouso Tsofu, a dois dias de cavalgada intensa de Cairhien. Não tinha a menor ideia do que ela estava fazendo ali em Caemlyn.

Os Ogier faziam os Aiel parecerem pequenos; faziam até o pátio parecer pequeno. Haman tinha uma vez e meia a altura de Rand e a mesma proporção em largura, Covril era menos de uma cabeça — uma cabeça Ogier — mais baixa que seu companheiro. Até mesmo Erith era quase um pé e meio mais alta que Rand. Ainda assim, essa era a menor das diferenças entre os Ogier e os humanos à volta. Haman tinha olhos imensos e redondos feito xícaras de chá, um nariz largo que ocupava quase o rosto inteiro, e orelhas pontudas, cheias de tufos de pelos brancos e despontando no topo da cabeça, por entre os cabelos grisalhos. Ele usava um comprido bigode branco, e uma barba estreita brotava do queixo. As sobrancelhas chegavam até as bochechas. Rand não sabia dizer exatamente o que distinguia o rosto masculino dele das feições de Erith e de Covril — exceto pela barba e pelo bigode, claro, além de as sobrancelhas delas serem menores e menos espessas —, mas os rostos delas pareciam mais delicados. Mesmo que Covril tivesse uma expressão bastante rígida — a Ogier mais velha lhe parecia familiar, não sabia por quê — e Erith parecesse preocupada, com as orelhas caídas.

— Peço licença um instante — começou Rand, mas Sulin não permitiu que ele dissesse outra palavra.

— Viemos falar com os Irmãos das Árvores, Rand al’Thor — declarou ela, com firmeza. — Você sabe que os Aiel são velhos amigos de água dos Irmãos da Árvore. Vamos com frequência ao pouso deles para fazer negócios.

— Isso é mesmo verdade — murmurou Haman. Ou melhor, murmurou para os padrões de um Ogier, mas que poderia muito bem ter causado uma avalanche nas montanhas ao longe.

— E não tenho dúvidas de que os outros vieram mesmo falar com eles — retrucou Rand. Só de olhar, conseguia identificar cada um dos integrantes de sua guarda entre a multidão de Aiel. O rosto de Jalani ficou escarlate. Por outro lado, não se viam Escudos Vermelhos ali, além de Urien e mais de três ou quatro homens espalhados pela multidão. — Não gostaria de ter que pedir a Enaila e a Somara que cuidem de você. — A indignação tomou o rosto bronzeado de Sulin, destacando ainda mais a cicatriz que ela conseguira por ter seguido Rand. — Vou conversar com eles sozinho. Sozinho — enfatizou, encarando Liah e Cassin. — A não ser que vocês achem que preciso de proteção contra esses Ogier.

A última frase apenas aumentou a irritação de Sulin, e ela reuniu as Donzelas com gestos rápidos na linguagem de sinais — o que, para qualquer um que não fosse Aiel, teria parecido um ataque de raiva. Alguns dos homens entre a multidão de Aiel deram risadinhas ao vê-las saírem, e Rand supôs que tivesse feito alguma piada sem querer.

Enquanto as Donzelas saíam, Haman afagou a longa barba.

— Nem sempre os humanos nos consideraram tão confiáveis, sabe. Não, não. — O murmúrio dele soava como uma imensa colmeia de abelhas. — Está nos registros antigos. Muito antigos. Apenas fragmentos, na verdade, mas datados de logo depois da…

— Ancião Haman — interrompeu Covril, com muita educação —, talvez seja melhor nos atermos ao assunto em questão? — A colmeia dela ressoava em um tom um pouco mais agudo.

Ancião Haman. Onde Rand ouvira aquele nome, antes? Cada pouso tinha seu próprio Conselho de Anciões.

Haman suspirou profundamente.

— Muito bem, Covril, mas essa sua pressa é um tanto inquietante. Você mal nos deu tempo de nos lavarmos, depois que chegamos. Você começou a cabriolar feito um… — Seus olhos enormes se voltaram para Rand, e ele disfarçou a frase com uma tossidela, cobrindo a boca com a mão enorme, do tamanho de um pernil.

Os Ogier consideravam os humanos muito apressados, sempre tentando fazer agora o que não teria a menor importância até o dia seguinte. Ou até o ano seguinte, já que os Ogier viam tudo a longo prazo. Também consideravam afrontoso lembrar aos humanos de quanto eles “cabriolavam”.

— Tivemos uma viagem bastante árdua aqui Fora — prosseguiu Haman, para Rand. — Nosso tempo aqui não ficou menos difícil quando soubemos que os Aiel Shaido tinham sitiado Al’cair’rahienallen, o que foi mesmo extraordinário. Considerando isso, assim como o fato de que você de fato estava lá, mas foi embora antes que pudéssemos nos apresentar, e… não consigo deixar de pensar que fomos muito impetuosos. Não. Não, fale você, Covril. Foi por você que larguei meus estudos e ensinamentos para percorrer o mundo. A essa altura, minhas turmas já devem estar armando uma revolução. — Rand quase abriu um sorriso. Se seguissem os costumes Ogier, as turmas de Haman levariam mais de meio ano para concluir que ele de fato partira, depois passariam mais um ano inteiro debatendo como proceder a respeito.

— Você não pode culpar uma mãe por se preocupar — retrucou Covril, as orelhas peludas tremelicando. Ela parecia em conflito entre o respeito que devia demonstrar a um Ancião e a impaciência, pouco adequada aos modos Ogier. Ela se virou para Rand, empertigando-se, as orelhas bem erguidas e o queixo firme. — O que você fez com o meu filho?

Rand ficou boquiaberto.

— Filho?

— Loial! — Covril o encarou como se ele estivesse louco. Erith olhava para os dois, ansiosa, as mãos entrelaçadas contra o peito. — Você disse ao Ancião dos Anciões do Pouso Tsofu que cuidaria dele — prosseguiu Covril. — Os Anciões me contaram. Você ainda não tinha se proclamado Dragão, naquela época, mas foi você mesmo. Não foi, Erith? Alar não disse que foi Rand al’Thor? — Ela não deu tempo para a jovem fazer mais do que assentir. Sua voz foi ganhando velocidade, e uma careta de desgosto surgiu no rosto de Haman. — Meu Loial é jovem demais para estar aqui Fora, jovem demais para viajar pelo mundo fazendo as coisas que o senhor com certeza o está botando para fazer. O Ancião Alar me falou do senhor. O que é que o meu Loial tem a ver com os Caminhos e os Trollocs e a Trombeta de Valere? O senhor me devolva meu filho agora mesmo, por favor, para que eu possa casá-lo com Erith, como é o correto. Ela vai pôr um fim nessa vontade de viajar dele.

— Ele é muito bonito — murmurou Erith, encabulada, as orelhas tremelicando tanto de vergonha que os tufos de pelos escuros viraram um borrão. — E acho que ele também é muito corajoso.

Rand levou um instante para recuperar o equilíbrio mental. Um Ogier falando com tamanha firmeza era feito uma montanha desabando. Mas um Ogier falando com aquela firmeza e tão rápido…

Pelos costumes dos Ogier, Loial era mesmo jovem demais para sair do pouso sozinho. Loial tinha pouco mais de noventa anos, mas os Ogier tinham uma vida bastante longa. Desde o dia que em que o conhecera, sempre ansioso para ver o mundo, Loial morria de medo do que aconteceria quando os Anciões percebessem que ele fugira. E, acima de tudo, morria de medo de que sua mãe partisse para buscá-lo com uma noiva a tiracolo. Ele dizia que o noivo não tinha voz nesses assuntos, segundo a cultura Ogier, e que mesmo a noiva só podia opinar muito pouco — tudo ficava a cargo das duas mães. Não era nada impossível que um Ogier se visse comprometido com uma mulher que só iria conhecer no dia em que a mãe o apresentasse às futuras noiva e sogra.

Loial parecia pensar que o casamento seria o fim de tudo para ele — ou pelo menos o fim de seus anseios em ver mais do mundo. Bem, estivesse ele certo ou não, Rand não podia entregar um amigo de bandeja a seus maiores temores. Estava prestes a dizer que não sabia o paradeiro de Loial e sugerir que os três retornassem ao pouso e aguardassem que ele voltasse — chegou até a abrir a boca para isso —, quando uma dúvida lhe ocorreu. Ficou um pouco constrangido por não conseguir se lembrar de algo tão importante — pelo menos para Loial.

— Há quanto tempo ele está longe do pouso?

— Tempo demais — resmungou Haman, feito pedregulhos rolando montanha abaixo. — O garoto nunca se dedicava. Sempre falando em conhecer o mundo aqui Fora, como se de fato algo fosse diferente do que há nos livros que ele deveria estar estudando. Hum, hum. Que diferença faz se os humanos alteram as linhas de um mapa? A terra continua sendo…

— Ele está Fora faz tempo demais — acrescentou a mãe de Loial, com a firmeza de um mourão fincado em barro seco.

Haman franziu o cenho para ela, que devolveu um olhar igualmente firme, mesmo com as orelhas vibrando de constrangimento.

— J-Já faz mais de cinco anos — contou Erith. Suas orelhas murcharam por alguns instantes, depois subiram de volta, resistentes. Em uma imitação muito boa de Covril, ela completou: — Quero que ele seja meu marido. Soube disso assim que o vi pela primeira vez. Não vou deixar que ele morra. Não por conta dessas bobagens que ele faz.

Rand e Loial tinham conversado sobre muitos assuntos, e um deles fora a Saudade, embora Loial não gostasse de falar nisso. A Ruptura do Mundo fez os humanos fugirem para qualquer lugar seguro que encontrassem, e também fez os Ogier se afastarem dos pousos. Os humanos vagaram durante longos anos, atravessando um mundo que mudava algumas vezes ao longo do dia, e os Ogier também vagaram, buscando seus pousos perdidos com as mudanças da terra. Foi quando passaram a sofrer de Saudade. Um Ogier longe do pouso sempre desejava retornar. Um Ogier que ficava longe do pouso por muito tempo precisava retornar. Um Ogier muito tempo longe do pouso acabava morrendo.

— Ele me contou de um Ogier que ficou longe por mais tempo — respondeu Rand, baixinho. — Dez anos, acho que foi isso.

Haman já balançava a imensa cabeça em negativa antes mesmo que Rand concluísse o pensamento.

— Isso não importa. Pelo que sei, cinco ficaram Fora por tanto tempo assim e conseguiram voltar vivos, e acho que eu saberia se houvesse outros. Tamanha loucura decerto teria sido registrada nos livros. Três desses Ogier morreram menos de um ano depois de voltarem, e o quarto ficou inválido pelo resto da vida. O quinto não ficou muito longe disso e passou o resto da vida precisando de uma bengala para caminhar, apesar de não ter parado de escrever. Hum, hum. Dalar tinha umas coisas bem interessantes a dizer sobre… — Desta vez, quando Covril abriu a boca para protestar, Haman virou a cabeça de repente e a encarou, as compridas sobrancelhas curvadas para cima, até que a mulher começou a ajeitar as saias. Porém mesmo assim Covril sustentou seu olhar. — Cinco anos é pouco tempo, eu sei — continuou Haman, encarando Covril com um olhar de esguelha penetrante —, mas estamos atados ao pouso. Não ouvimos na cidade nada que indicasse que Loial está aqui, e, pelo alarido que suscitamos, acho que teríamos ouvido alguma notícia da presença dele. No entanto, se o senhor nos disser onde ele está, será um bem enorme para ele.

— Em Dois Rios — respondeu Rand. Salvar a vida de um amigo não era traição. — Quando o vi pela última vez, Loial estava em boa companhia, rodeado de amigos. Dois Rios é um lugar tranquilo. Seguro. — Ou pelo menos voltara a ser, graças a Perrin. — E ele estava bem, uns meses atrás. — Era o que ouvira de Bo, quando as garotas relataram o que acontecera pelas bandas de casa.

— Dois Rios — murmurou Haman. — Hum, hum. Pois sim, eu sei onde fica. Mais uma longa caminhada.

Os Ogier não tinham o costume de montar a cavalo. Poucos cavalos eram capazes de sustentá-los, e os Ogier preferiam avançar nos próprios pés.

— Temos que partir imediatamente — declarou Erith, com firmeza, ainda que seu tom fosse menos grave se comparado ao de Haman.

Covril e Haman a encararam, surpresos, e as orelhas dela desabaram de vez. Afinal, ela era uma moça jovem demais na companhia de um Ancião e de uma mulher que Rand suspeitava de ser de alguma importância entre os seus, pela maneira com que enfrentava Haman. Erith não devia ter um dia a mais que oitenta anos.

Pensando nisso, Rand sorriu. Ela era uma garotinha, lá pelos seus setenta anos.

— Por favor, aceitem a hospitalidade do Palácio. Uns poucos dias de descanso podem até acelerar sua viagem. E o senhor talvez possa me ajudar, Ancião Haman. — Naturalmente, Loial estava sempre falando de seu professor, o Ancião Haman. O Ogier que, segundo Loial, sabia tudo. — Preciso localizar os Portais dos Caminhos. Todos eles.

Os três Ogier falaram ao mesmo tempo:

— Portais dos Caminhos? — perguntou Haman, erguendo as orelhas e sobrancelhas ao mesmo tempo. — Os Caminhos são muito perigosos. Perigosos demais.

— Uns poucos dias? — protestou Erith. — Meu Loial pode estar morrendo.

— Uns poucos dias? — inquiriu Covril, a voz um tom acima da de Erith. — Meu Loial pode estar… — Ela calou a boca e encarou a mais jovem, comprimindo os lábios e tremelicando as orelhas.

Haman olhou feio para as duas, afagando a barba estreita, irritado.

— Não sei por que me deixei convencer de uma coisa dessas. Eu devia estar dando minhas aulas, me reunindo com o Cepo… Covril, se você não fosse uma Oradora tão respeitada…

— Se você não fosse casado com a minha irmã… — retrucou a mulher, incisiva. — Voniel mandou que você cumprisse seu dever, Haman. — As sobrancelhas de Haman baixaram até que as compridas pontas tocassem as bochechas, e as orelhas de Covril pareceram perder quase toda a rigidez. — Quer dizer, Voniel pediu — corrigiu ela. Não foi uma correção apressada, e ela não perdeu a pose, mas definitivamente não hesitou em completar: — Pela Árvore e quietude, não quis ofendê-lo, Ancião Haman.

Haman pigarreou alto — o que, para um Ogier, era muito alto — e virou-se para Rand, puxando o casaco como se o arrumasse.

— Há Crias da Sombra usando os Caminhos — explicou Rand, antes que Haman pudesse abrir a boca. — Deixei guardas nos poucos que pude. — Incluindo o que ficava logo ao lado do Pouso Tsofu, depois de partirem. Aqueles três não poderiam ter vindo a pé desde o Pouso Tsofu depois de sua última visita inútil ao local. — Mas foram poucos. Todos precisam ser vigiados, ou então Myrddraal e Trollocs poderão surgir do nada e nos pegar desprevenidos. Mas não faço ideia de onde ficam todos.

Isso não adiantaria de nada para os portões, naturalmente. Às vezes ele se perguntava por que um dos Abandonados simplesmente não abria um portão para o palácio e mandava alguns milhares de Trollocs. Dez mil, talvez vinte. Seria muito difícil impedir um ataque dessa magnitude, isso se conseguisse impedir. Seria, na melhor das hipóteses, uma carnificina. Bem, não podia fazer nada em relação a um portão, a menos que estivesse nele. Mas podia tomar atitudes para se proteger dos Portais dos Caminhos.

Haman e Covril se entreolharam. Os dois foram para um canto conversar aos sussurros — incrivelmente, falaram baixo o suficiente para que Rand ouvisse apenas um zunido, como um imenso enxame de abelhas preso no telhado. Estava certo sobre a mãe de Loial ser de alguma importância: uma Oradora, um título que parecera relevante. Considerou agarrar saidin para poder ouvir a conversa, mas rejeitou a ideia, enojado. Ainda não se rebaixara a bisbilhotar. A atenção de Erith estava dividida entre Rand e seus anciões, e ela alisou as saias sem perceber que o fazia.

Rand torceu para que eles não decidissem perguntar por que não pedira aquilo ao Conselho de Anciões no Pouso Tsofu. Alar, a Anciã dos Anciões de lá, fora bastante firme: o Cepo estava se reunindo, e uma coisa tão estranha — e tão peculiar, algo que jamais se cogitara fazer — quanto entregar a um humano o controle dos Portais dos Caminhos só poderia ser feita com o apoio do Cepo. Quem ele era parecia não importar — nem para ela e nem para aqueles três ali.

Haman enfim retornou, franzindo o cenho e agarrando as lapelas do casaco. Covril também franzia a testa.

— Isso tudo está indo rápido demais, rápido demais — começou Haman, em um tom grave, soando como o rolar de pedregulhos. — Queria poder debater isso com… bem, não posso. Crias da Sombra, o senhor disse? Hum, hum. Muito bem, se é preciso ligeireza, então é preciso ligeireza. E que não digam que os Ogier não sabem agir com rapidez quando é necessário. E talvez agora seja necessário. O senhor precisa entender que o Conselho de Anciões de qualquer pouso pode lhe negar isso, e também o Cepo.

— Mapas! — gritou Rand, tão alto que os três Ogier deram um salto. — Preciso de mapas! — Ele deu meia-volta, procurando algum dos serviçais que pareciam estar sempre por perto, um gai’shain, qualquer um. Sulin meteu a cabeça porta adentro e espiou o pátio. Claro que ela estaria ali por perto, depois de tudo o que Rand dissera. — Mapas — vociferou para ela. — Quero todos os mapas do Palácio. E uma pena, e tinta. Agora! Rápido! — Sulin o encarou com uma expressão de quase desdém e deu meia-volta. Os Aiel não usavam mapas, até alegavam que eram desnecessários. — Corra, Far Dareis Mai! — gritou.

Sulin o encarou por cima do ombro… e correu. Rand se perguntou que cara estava fazendo naquele momento para ter sido obedecido, querendo usá-la de novo quando fosse preciso.

Pela expressão no rosto de Haman, o Ancião já estaria retorcendo as mãos em desespero se tivesse um pouquinho menos de dignidade.

— Na verdade, tem pouca coisa que podemos de fato dizer que o senhor já não saiba. Cada pouso tem apenas um Portal, bem ao lado. — Essa parte não era novidade. Os primeiros Portais dos Caminhos não poderiam ter sido feitos dentro do pouso, que bloqueava a canalização. E, mesmo quando os Ogier receberam o Talismã do Crescimento e puderam eles próprios fazer com que os Caminhos crescessem e abrissem novos Portais, ainda havia Poder envolvido, por mais que não fosse usado para canalizar. — E tem um em cada cidade com um bosque Ogier. Embora aqui a cidade pareça ter crescido por cima do bosque. E em Al’cair’rahienallen… — A voz de Haman foi morrendo, e ele balançou a cabeça.

Era um nome que poderia muito bem sintetizar a questão. Três mil anos antes, ou quase isso, existira uma cidade erguida pelos Ogier chamada Al’cair’rahienallen. O local passara a se chamar Cairhien, e o bosque que os construtores Ogier plantaram em memória de seu pouso era parte de uma propriedade que pertencia ao mesmo Barthanes cujo palácio agora abrigava a escola de Rand. Ninguém, além dos Ogier e talvez de algumas Aes Sedai, sabia de Al’cair’rahienallen. Nem mesmo os cairhienos.

Fosse lá em que Haman acreditasse, muita coisa podia mudar em três mil anos. Imensas cidades construídas por Ogier tinham deixado de existir, algumas sem deixar nada além do nome. E algumas grandes cidades foram erguidas sem a mão dos Ogier. Segundo Moiraine, Amador era uma delas, criada depois das Guerras dos Trollocs — assim como Chachin, em Kandor, e Shol Arbela, em Arafel, e Fal Moran, em Shienar. Em Arad Doman, Bandar Eban fora construída sobre as ruínas de uma cidade devastada durante a Guerra dos Cem Anos — uma cidade que Moiraine conhecia por três nomes diferentes, nenhum deles confirmado, e que fora erguida sobre uma cidade sem nome que desaparecera nas Guerras dos Trollocs. Rand sabia de um Portal dos Caminhos no interior de Shienar, próximo a uma cidade de porte médio que conservara parte do nome da gigantesca cidade arrasada pelos Trollocs. Sabia também de outro, dentro da Praga, em Malkier, um reino destruído pela Sombra. Outros locais tinham apenas passado por mudanças ou crescido bastante, como apontara o próprio Haman. O Portal dos Caminhos ali em Caemlyn agora ficava em um porão. Um porão bem escondido. Rand sabia que havia um Portal dos Caminhos em Tear, entre os campos de pastoreio onde os Grão-lordes criavam seus famosos rebanhos equinos. Devia haver outro em algum ponto das Montanhas da Névoa, onde um dia ficara Manetheren — fosse lá onde fosse. Quanto aos pousos, sabia apenas onde ficava o Pouso Tsofu. Moiraine não considerara os pousos ou os Ogier parte essencial da educação de Rand.

— O senhor não sabe onde ficam os pousos? — perguntou Haman, incrédulo, quando Rand terminou de explicar. — Isso é alguma piada Aiel? Nunca entendi o humor do Deserto.

— Para os Ogier, já faz um bom tempo que os Caminhos foram criados — explicou Rand, educadamente. — Para os humanos, faz uma eternidade.

— Mas o senhor nem ao menos se lembra de Mafal Dadaranell, Ancohima, Londaren Cor, ou…?

Covril pôs uma das mãos no ombro de Haman, mas a compaixão em seus olhos era para Rand.

— Ele não se lembra — murmurou ela. — Os humanos já se esqueceram. — Covril falava como se aquilo fosse a pior perda imaginável. Erith, apertando as mãos sobre a boca, parecia a ponto de chorar.

Sulin voltou, fazendo questão de mostrar que não corria, seguida por um grande grupo de gai’shain com braços abarrotados de rolos de mapas de todos os tamanhos, alguns arrastando nas pedras do pavimento do pátio, de tão compridos. Um homem de toga branca trazia uma caixa de escrita de marfim entalhado.

— Mandei alguns gai’shain procurarem mais — anunciou Sulin, em um tom rígido —, junto com alguns aguacentos.

— Obrigado — respondeu Rand. Um pouco da tensão se esvaiu do rosto da Aiel.

Rand se agachou e começou a espalhar e organizar os mapas ali mesmo, nas pedras do pavimento. Vários eram da cidade, e outros tantos representavam apenas partes de Andor. Ele logo encontrou um que exibia toda a faixa das Terras da Fronteira, e só a Luz sabia o que aquele mapa estava fazendo em Caemlyn. Alguns dos mapas, já envelhecidos e puídos, mostravam fronteiras que não existiam mais e nomeavam nações extintas centenas de anos antes.

As fronteiras e os nomes foram suficientes para ele classificar os mapas em ordem cronológica. Nos mais antigos, Hardan margeava o norte de Cairhien. Então, com o passar dos anos, Hardan desaparecia, e as fronteiras de Cairhien avançaram até a metade de Shienar antes de voltarem, quando ficou claro que o Trono do Sol simplesmente não conseguiria dar conta de tantas terras. Primeiro Maredo ficava entre Tear e Illian, depois desapareceu, e Tear e Illian passaram a fazer fronteira nas Planícies de Maredo, mas ambas foram se retirando aos poucos do local — pelos mesmos motivos de Cairhien. Caralain desapareceu, assim como Almoth, Mosara, Irenvelle e outras, por vezes absorvidas por outras nações, quase sempre virando territórios indômitos, terras de ninguém. Aqueles mapas narravam uma história de perecimento que começara com a ruína do império de Asa-de-gavião, um lento recuo da humanidade. Um segundo mapa das Terras da Fronteira mostrava apenas Saldaea e parte de Arafel, com a Fronteira da Praga cinquenta milhas mais longe a norte. A humanidade recuava, e a Sombra avançava.

Um homem magro e careca, usando um uniforme do Palácio mal-ajustado ao corpo, veio correndo pátio adentro com outro monte de mapas, e Rand suspirou e prosseguiu com a seleção.

Haman, muito sério, examinava a caixa de escrita que lhe fora entregue pelo gai’shain, então tirou outra, quase tão grande quanto, embora bastante simples, de um espaçoso bolso do casaco. A pena que saiu da caixa era de madeira polida, bem mais grossa que o polegar de Rand e comprida o bastante para parecer fina, mas encaixava-se perfeitamente nos dedos robustos do Ogier. Haman apoiou-se sobre as mãos e os joelhos e foi engatinhando por cima dos mapas que Rand estendera, vez ou outra molhando a pena no frasco de tinta do gai’shain e rabiscando em uma caligrafia que parecia grande demais, mas que para ele era bastante pequena. Covril o acompanhava, espiando por cima do ombro de Haman, mesmo depois de ele perguntar duas vezes se a mulher achava que ele cometeria algum erro.

Foi uma aula para Rand, começando com sete pousos espalhados pelas Terras da Fronteira. Bem, os Trollocs de fato tinham medo de entrar nos pousos, e até os Myrddraal precisavam de um bom incentivo. A Espinha do Mundo, a Muralha do Dragão, abrigava treze, incluindo o que havia na Adaga do Fratricida — apenas algumas milhas separavam o Pouso Shangtai, ao sul, do Pouso Qichen e do Pouso Sanshen, ao norte.

— A terra realmente mudou com a Ruptura do Mundo — explicou Haman, quando Rand deu voz à surpresa. Ele prosseguiu com as marcações, um tanto ávido. Ou melhor, ávido para os padrões Ogier. — A terra virou mar, e o mar virou terra, mas a terra também se dobrou. Às vezes o que era bem distante se aproximou, e o que era próximo se distanciou. Embora, claro, ninguém possa dizer se Qichen e Sanshen começaram muito longe um do outro.

— Você se esqueceu de Cantoine — anunciou Covril, assustando um serviçal de uniforme, que jogou longe a nova braçada de mapas.

Haman olhou feio para ela e rabiscou o nome logo acima do Rio Iralell, não muito longe a norte de Haddon Mirk. Na faixa a oeste da Muralha do Dragão, da fronteira sul de Shienar até o Mar das Tempestades, havia apenas quatro pousos, todos considerados recém-encontrados pelos Ogier — o que significava que o mais recente, Tsofu, abrigava Ogier havia apenas seiscentos anos, e nenhum dos outros era habitado havia mais de mil anos. Alguns dos locais foram tão surpreendentes quanto as Terras da Fronteira, como as Montanhas da Névoa, que abrigava seis, e a Costa da Sombra. As Colinas Negras também tinham seus pousos, assim como as florestas acima do Rio Ivo, e as montanhas acima do Rio Dhagon, logo ao norte de Arad Doman.

O mais triste era a lista de pousos abandonados, desocupados por causa da grande redução da população Ogier. A Espinha do Mundo, as Montanhas da Névoa e a Costa da Sombra também estavam nessa lista, assim como um pouso nas profundezas da Planície de Almoth, perto da imensa floresta de Paerish Swar, e de um nas montanhas baixas ao longo do norte da Ponta de Toman, diante do Oceano de Aryth. Talvez mais triste ainda fosse o pouso assinalado bem na extremidade da Praga, em Arafel — os Myrddraal podiam ser relutantes em adentrar um pouso, mas, à medida que a Praga avançava para o sul, ia varrendo tudo em seu caminho.

Haman hesitou e comentou, em um tom triste:

— Sherandu foi tragado pela Grande Praga há 1.843 anos, e Chandar já não existe há 968.

— Que suas memórias floresçam e prosperem sob a Luz — murmuraram Covril e Erith, em uníssono.

— Eu sei de um que o senhor não marcou — avisou Rand.

Perrin lhe contara que tinha se abrigado nesse pouso. Ele puxou um mapa de Andor, para leste do Rio Arinelle, e tocou um ponto bem acima da estrada de Caemlyn, rumo à Ponte Branca — se não acertou o ponto exato, ao menos sabia que ficava bem perto.

Haman fez uma careta, quase um rosnado.

— Onde seria a cidade de Asa-de-gavião. Esse nunca chegou a ser reivindicado. Muitos pousos foram encontrados, mas não reivindicados. Tentamos nos manter afastados das terras dos homens.

Todas as marcações ficavam em montanhas escarpadas, em locais que os homens consideravam difíceis de entrar, ou, em uns poucos casos, apenas longe de qualquer habitação humana. O Pouso Tsofu ficava bem mais perto de um local habitado por homens, mas mesmo ele ficava a um dia inteiro de viagem da aldeia mais próxima.

— Esse seria um ótimo debate para algum outro momento — ralhou Covril. Falava com Rand, mas claramente se dirigia a Haman, como indicava seu olhar de esguelha. — Quero chegar o mais a oeste que der antes do cair da noite.

Haman suspirou pesadamente.

— Ah, mas vocês não vão ficar aqui um pouco? — protestou Rand. — Devem estar exaustos, depois de toda essa caminhada, vindos de Cairhien.

— As mulheres não se exaurem nunca — reclamou Haman —, só exaurem os outros. É um ditado Ogier muito antigo.

Covril e Erith fungaram com desdém ao mesmo tempo. Resmungando sozinho, Haman seguiu com sua lista, mas agora de cidades construídas pelos Ogier — cidades que tinham abrigado bosques, cada qual com seu Portal dos Caminhos, para que os Ogier pudessem entrar e sair dos pousos sem ter de passar pelas sempre conturbadas terras dos homens.

Ele marcou Caemlyn, naturalmente, assim como Tar Valon, Tear, Illian, Cairhien, Maradon e Ebou Dar. Era tudo, no que dizia respeito às cidades que ainda existiam, e ele escreveu Barashta em vez de Ebou Dar. Talvez o lugar de Barashta fosse com as outras marcas, que indicavam locais onde os mapas não mostravam nada além de uma aldeia, quando muito: Mafal Dadaranell, Ancohima, Londaren Cor, claro, e Manetheren; além de Aren Mador, Aridhol, Shaemal, Braem, Condaris, Hai Ecorimon, Iman… a lista crescia, e Rand começou a ver manchinhas úmidas em cada mapa, quando Haman terminava. Levou um instante para perceber que o Ancião Ogier estava chorando em silêncio, deixando que as lágrimas vertessem enquanto assinalava cidades mortas e esquecidas. Talvez ele chorasse pelo povo, talvez pelas lembranças. A única certeza de Rand era que o choro não era pelas cidades em si, não era pelo trabalho perdido dos pedreiros Ogier — para os Ogier, o trabalho de cantaria era apenas uma função que haviam aprendido durante o Exílio. E que trabalho de cantaria poderia se comparar à grandiosidade das árvores?

Um daqueles nomes lhe pareceu familiar, e a localização também. A leste de Baerlon, vários dias de viagem para cima da Ponte Branca e Arinelle.

— Tinha um bosque aqui? — perguntou, o dedo sobre a marcação.

— Em Aridhol? — perguntou Haman. — Sim. Tinha, sim. Que tristeza.

Rand não ergueu a cabeça.

— Em Shadar Logoth — corrigiu. — Foi mesmo uma tristeza. Vocês poderiam… vocês me mostrariam esse Portal dos Caminhos, se eu os levasse até lá?

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