6 A Caçada Começa

Perrin não esperava pegar no sono, mas o estômago cheio de cozido frio — a decisão de que comeria apenas tubérculos havia durado apenas até o cheiro das sobras do jantar chegarem ao seu nariz — e o cansaço profundo o derrubaram na cama. Se sonhou, não lembrava. Acordou com Lan sacudindo seus ombros. A claridade da aurora que entrava pela porta transformava o Guardião em uma sombra com halo luminoso.

— Rand foi embora. — Foi tudo o que Lan disse antes de sair correndo, mas era mais que suficiente.

Perrin rastejou para fora da cama bocejando e se vestiu depressa, sob o frio da manhã. Do lado de fora havia apenas um punhado de shienaranos à vista. Arrastavam corpos de Trollocs para a floresta com a ajuda dos cavalos, e, a julgar pelo modo como se moviam, a maioria deveria estar na cama, recuperando-se. O organismo precisava de tempo para restituir a força que a Cura exigia.

A barriga de Perrin roncou, e ele farejou a brisa, na esperança de que alguém já tivesse começado a cozinhar. Comeria aquelas raízes com cara de nabo, mesmo que cruas. Sentiu apenas o fedor persistente de Myrddraal e Trollocs mortos, de homens, vivos e mortos, de cavalos e árvores. E de lobos mortos.

A cabana de Moiraine, no alto do outro extremo do vale, parecia bastante movimentada. Min entrou nela correndo, e em instantes Masema saiu, depois Uno. Mais do que depressa, o caolho sumiu em meio às árvores em direção ao muro íngreme de pedras que ficava depois da cabana, enquanto os outros shienaranos mancavam pela descida da encosta.

Perrin foi correndo na direção da cabana. Patinhando pelo córrego raso, cruzou com Masema. O shienarano tinha uma expressão exausta, a cicatriz pálida na bochecha estava mais proeminente, e os olhos, mais fundos que o habitual. No meio do córrego, ergueu a cabeça de repente e agarrou a manga do casaco de Perrin.

— Você é da mesma aldeia que ele — disse, com a voz rouca. — Deve saber. Por que o Lorde Dragão nos abandonou? Que pecado cometemos?

— Pecado? Do que está falando? Seja lá por que Rand tenha ido embora, não foi por nada do que tenham feito ou deixado de fazer. — Masema não parecia satisfeito, continuava agarrado à manga de Perrin, perscrutando seu rosto como se ali houvesse alguma resposta. A água congelante começou a entrar pela bota esquerda de Perrin. — Masema — tentou dizer, com cuidado —, seja lá o que o Lorde Dragão tenha feito, estava dentro dos planos dele. O Lorde Dragão não nos abandonaria.

Ou será que abandonaria? Se eu estivesse no lugar dele, faria isso?

Masema assentiu devagar.

— Sim. Sim. Estou entendendo. Ele saiu sozinho para anunciar sua chegada. Nós precisamos espalhar a notícia também. Sim. — Ele avançou pelo riacho mancando, murmurando sozinho.

Chapinhando a cada dois passos, Perrin subiu até a cabana de Moiraine e bateu à porta. Não houve resposta. Ele hesitou por um instante, depois entrou.

O cômodo externo, onde Lan dormia, era tão simples e austero quanto a cabana de Perrin. Tinha uma cama dura encostada em uma parede, ganchos para pendurar os pertences e uma prateleira. Não entrava muita luz pela porta aberta, e a única iluminação extra vinha de lampiões grosseiros na prateleira, além de lascas de madeira embebidas em óleo enfiadas nas rachaduras das pedras que soltavam filetes de fumaça, formando uma nuvem sob o teto. Ao sentir o cheiro, Perrin franziu o nariz.

O teto baixo era só um pouco mais alto que sua cabeça. A de Loial chegava a tocá-lo no teto, mesmo com o Ogier sentado encolhido em uma ponta da cama de Lan. As orelhas peludas do amigo tremiam, mostrando seu desconforto. Min estava sentada de pernas cruzadas no chão sujo ao lado da porta do quarto de Moiraine, enquanto a Aes Sedai andava de um lado para o outro, absorta em seus pensamentos. Deviam ser pensamentos sombrios. Ela só podia dar três passos em cada direção, mas fazia uso vigoroso do espaço, e a calma em seu rosto era desmentida pelos passos ansiosos.

— Acho que Masema está ficando louco — disse Perrin.

Min fungou com desdém.

— Com aquele ali, como dá para saber?

Moiraine parou diante de Perrin, com a boca contraída. Tinha a voz suave. Suave demais.

— Masema é a sua maior preocupação na manhã de hoje, Perrin Aybara?

— Não. Queria saber a que horas Rand foi embora, e por quê. Alguém o viu partir? Alguém sabe para onde foi? — Ele encarou Moiraine com um olhar tão firme e inabalável quanto o dela. Não foi nada fácil. Era bem mais alto que ela, mas a mulher era Aes Sedai. — Isso foi por sua causa, Moiraine? Você tentou conter Rand até ele ficar tão impaciente que quis sair correndo para qualquer lugar, fazer qualquer coisa, só para não ficar mais parado?

Loial enrijeceu as orelhas e sinalizou uma advertência furtiva com o dedo grosso de uma das mãos.

Moiraine perscrutou Perrin com a cabeça inclinada, e ele precisou de toda a sua força de vontade para não baixar os olhos.

— Não foi por minha causa — respondeu ela. — Ele partiu em algum momento no meio da noite. Quando, como e por quê, ainda espero descobrir.

Loial ergueu os ombros, com um discreto suspiro de alívio. Discreto para um Ogier, mas soava como um silvo de vapor escapando de ferro escaldante.

— Jamais irrite uma Aes Sedai — disse, em um sussurro obviamente dirigido para si mesmo, mas que todos ouviram. — “É melhor abraçar o sol do que irritar uma Aes Sedai.”

Min estendeu o braço e entregou a Perrin um pedaço de papel dobrado.

— Loial foi ver Rand ontem à noite, depois que fomos dormir, e ele pediu caneta, papel e tinta emprestados.

O Ogier mexeu as orelhas e franziu a testa, preocupado, até que as longas sobrancelhas encostaram nas bochechas.

— Eu não sabia o que ele estava planejando. Não sabia.

— Nós sabemos — tranquilizou-o Min. — Ninguém está acusando você, Loial.

Moiraine olhou o papel com a testa franzida, mas não tentou impedir Perrin de ler. Era a caligrafia de Rand.

Faço o que faço porque não há outra saída. Ele está me caçando de novo, e, desta vez, acho que um de nós tem que morrer. Não é necessário que todos à minha volta morram também. Muitos já morreram por mim. Também não quero morrer, e nem pretendo, se conseguir evitar. Há mentiras nos sonhos, e morte, mas os sonhos também dizem a verdade.

Era só aquilo, sem assinatura. Não havia motivo para Perrin se perguntar de que “ele” Rand estava falando. Para o amigo, para todos eles, só podia ser um. Ba’alzamon.

— Ele enfiou o papel por debaixo da porta — disse Min, com a voz tensa. — Pegou umas roupas velhas que os shienaranos tinham deixado secando no varal, a flauta e um cavalo. E um pouquinho de comida, até onde sabemos. Nenhum dos guardas o viu, e ontem à noite eles teriam visto até um rato passando.

— E quem disse que adiantaria caso o tivessem visto? — perguntou Moiraine, com calma. — Será que algum deles teria impedido o Lorde Dragão ou sequer o questionado? Alguns, como Masema, por exemplo, cortariam a própria garganta se o Lorde Dragão ordenasse.

Foi a vez de Perrin analisá-la.

— Você esperava outra coisa? Eles juraram segui-lo. Pela Luz, Moiraine, ele jamais teria se intitulado Dragão se não fosse por você. Que atitude esperava deles? — Ela não se pronunciou, e ele prosseguiu, falando mais baixo. — Você acredita nisso, Moiraine? Acredita mesmo que ele é o Dragão Renascido? Ou pensa que ele é só alguém que você pode usar até o Poder Único matar ou enlouquecer?

— Calma, Perrin — disse Loial. — Sem tanta raiva.

— Vou me acalmar quando ela me responder. E então, Moiraine?

— Ele é o que é — respondeu ela, ríspida.

— Você falou que o Padrão acabaria forçando Rand a seguir pelo caminho certo. É isso mesmo ou ele está só tentando fugir de você? — Por um instante, Perrin pensou que tinha ido longe demais. Os olhos negros de Moiraine faiscavam de raiva. Porém, recusou-se a recuar. — E então?

Moiraine respirou fundo.

— Pode muito bem ter sido decidido pelo Padrão, mas eu não queria que ele partisse sozinho. Apesar de tão poderoso, ele é, sob muitos aspectos, indefeso como um bebê, além de ignorante a respeito do mundo. Rand canaliza, mas não controla se estabelece contato com o Poder Único ou não, quando tenta tocá-lo, e, nas vezes em que é bem-sucedido, também não controla o que pode fazer com ele. Se não adquirir um pouco de controle, o próprio Poder vai matá-lo antes que ele tenha a chance de enlouquecer. Ele tem tanto a aprender. E quer correr antes de aprender a andar.

— Você briga por bobagens e joga pistas falsas, Moiraine — afirmou Perrin, com desdém. — Se ele é o que você diz, já lhe ocorreu que talvez ele saiba mais do que você o que precisa fazer?

— Ele é o que é — repetiu ela, com firmeza —, mas preciso mantê-lo vivo se é para ele realizar alguma coisa. Não cumprirá nenhuma profecia morto, e, mesmo que evite os Amigos das Trevas e criaturas da sombra, existem milhares de mãos dispostas a matá-lo. Basta uma pista que indique um centésimo do que ele é. No entanto, se fosse apenas isso que tivesse para enfrentar, minha preocupação não chegaria sequer à metade. Ainda temos que considerar os Abandonados.

Perrin se sobressaltou. Loial, em um canto, soltou um gemido.

— “O Tenebroso e todos os Abandonados estão presos em Shayol Ghul…” — começou a dizer Perrin, sem pensar, mas ela não lhe deu tempo de terminar.

— Os selos estão enfraquecendo, Perrin. Alguns estão quebrados, embora o mundo não saiba. O mundo não pode saber. O Pai das Mentiras não está livre. Por enquanto. Mas os selos enfraquecem cada vez mais, e quais dos Abandonados já podem estar livres? Lanfear? Sammael? Asmodean, Be’lal, Rahvin? Talvez o próprio Ishamael, Traidor da Esperança? Eram treze ao todo, Perrin, todos presos pelos selos, não na prisão que mantém o Tenebroso. Os treze Aes Sedai mais poderosos da Era das Lendas, o mais fraco deles ainda mais forte que as dez mais fortes Aes Sedai de hoje em dia. O mais ignorante detinha todo o conhecimento da Era das Lendas. Cada um desses homens e mulheres abdicou da Luz e entregou a alma à Sombra. E se estiverem livres, soltos, à espera dele? Não vou permitir que o levem.

Perrin estremeceu, em parte pela frieza determinada das últimas palavras dela, em parte por pensar nos Abandonados. Não queria imaginar que houvesse sequer um Abandonado à solta no mundo. Sua mãe o assustara com aqueles nomes quando ele era criança. Ishamael vem pegar os meninos que mentem para as mães. Lanfear vem puxar os pés dos meninos que não vão para a cama na hora de dormir. Ser adulto não diminuía em nada seu medo, não quando sabia que todos eram reais. Não quando Moiraine dizia que poderiam estar livres.

— Presos em Shayol Ghul — sussurrou, desejando ainda acreditar. Preocupado, releu a carta de Rand. — Sonhos. Ele também falou sobre sonhos ontem.

Moiraine se aproximou e o encarou.

— Sonhos? — Lan e Uno entraram, mas ela acenou para que fizessem silêncio. O pequeno aposento estava completamente lotado, com cinco pessoas e mais um Ogier. — Quais foram os seus sonhos nos últimos dias, Perrin? — Ela ignorou o protesto dele de que não havia nada de errado com seus sonhos. — Me conte — insistiu. — Que sonhos incomuns você andou tendo? Me conte. — O olhar dela o prendia como uma pinça de ferreiro, impelindo-o a falar.

Ele olhou para os outros — todos o encaravam fixamente, até Min —, e contou, hesitante, o único sonho que lhe parecia incomum, o que tinha todas as noites. O sonho da espada que ele não conseguia tocar. Não mencionou o lobo que aparecera no último.

Callandor — sussurrou Lan, quando Perrin terminou de contar. Rosto de pedra ou não, ele parecia chocado.

— Sim — disse Moiraine —, mas precisamos ter certeza absoluta. Fale com os outros. — Assim que Lan saiu, ela se virou para Uno. — E você? Também sonhou com alguma espada?

O shienarano mexeu os pés. O olho vermelho pintado no tapa-olho encarava Moiraine, mas o verdadeiro piscava e tremia.

— Eu sonho com essas bost… hã, com espadas o tempo todo, Moiraine Sedai — respondeu, severo. — Acho que sonhei com uma espada nas últimas noites. Não me lembro dos meus sonhos como Lorde Perrin se lembra dos dele.

— Loial? — perguntou Moiraine.

— Meus sonhos são sempre os mesmos, Moiraine Sedai. Os bosques, as Grandes Árvores e os pousos. Nós Ogier sempre sonhamos com os pousos quando estamos longe deles.

A Aes Sedai virou-se outra vez para Perrin.

— Foi só um sonho — disse ele. — Só isso.

— Eu duvido — retrucou a mulher. — Você descreveu em detalhes o salão chamado Coração da Pedra, que fica dentro fortaleza chamada Pedra de Tear. E a espada brilhante é Callandor, a Espada Que Não É Espada, a Espada Que Não Se Pode Tocar.

Loial se empertigou, batendo a cabeça no teto. Não pareceu nem reparar.

— As Profecias do Dragão dizem que a Pedra de Tear não cairá até que Callandor seja empunhada pela mão do Dragão — disse ele. — A queda da Pedra de Tear será um dos principais sinais do Renascimento do Dragão. Se Rand empunhar Callandor, o mundo inteiro deverá reconhecê-lo como o Dragão.

— Talvez. — A palavra saiu dos lábios da Aes Sedai como uma lasca de gelo em águas paradas.

— Talvez? — perguntou Perrin. — Talvez? Achei que esse fosse o último sinal, o último presságio do cumprimento das Profecias.

— Não é nem o primeiro nem o último — respondeu Moiraine. — Callandor cumprirá apenas uma das profecias previstas em O Ciclo de Karaethon, assim como o nascimento dele nas encostas do Monte do Dragão cumpriu antes. Ele ainda precisa dividir as nações ou destruir o mundo. Nem os sábios que estudaram as Profecias durante a vida inteira sabem interpretar todas elas. O que significa “ele matará seu povo com a espada da paz e o destruirá com a folha”? O que significa “ele fará as nove luas o servirem”? No entanto, essas passagens têm o mesmo peso de Callandor, no Ciclo. E ainda há outras. Quais “chagas de loucura e talhos de esperança” ele curou? Quais correntes rompeu e quem foi que o acorrentou? Algumas são tão obscuras que ele talvez já tenha cumprido, embora eu não esteja ciente. Mas, não. Callandor está muito longe de ser o fim.

Perrin deu de ombros, incomodado. Ele só conhecia alguns trechos das Profecias, e gostava ainda menos de escutá-los desde que Rand deixara Moiraine pôr aquele estandarte em suas mãos. Não, na verdade desde antes disso. Desde que uma viagem por uma Pedra-portal o convencera de que sua vida estava atrelada à de Rand.

Moiraine prosseguiu:

— Se pensa que basta ele estender a mão, Loial, filho de Arent, filho de Halan, você é um tolo, assim como ele, se pensar como você. Ainda que ele sobreviva à viagem a Tear, talvez jamais alcance a Pedra. Os tairenos não têm amor pelo Poder Único, muito menos por qualquer homem que afirme ser o Dragão. Canalizar é proibido, e Aes Sedai até são toleradas, contanto que não canalizem. Em Tear, narrar as Profecias do Dragão ou sequer possuir uma cópia já é o bastante para ser mandado para a prisão. E ninguém adentra a Pedra de Tear sem a permissão dos Grãos-lordes. Ninguém, a não ser os próprios Grãos-lordes, entra no Coração da Pedra. Ele não está preparado. Não está.

Perrin soltou um leve grunhido. A Pedra só cairia quando o Dragão Renascido empunhasse Callandor. Como, pela Luz, ele vai conseguir alcançá-la dentro da porcaria de uma fortaleza antes que o lugar desabe? É loucura!

— Por que estamos sentados aqui? — explodiu Min. — Se Rand está indo para Tear, por que não vamos atrás? Ele pode morrer, ou… ou… por que estamos aqui sentados?

Moiraine colocou a mão na cabeça de Min.

— Porque preciso ter certeza — disse, com delicadeza. — Não é nada confortável ser escolhido pela Roda, ser grande ou estar muito próximo à grandeza. Aos escolhidos pela Roda resta apenas aceitar o que vem.

— Estou cansada de aceitar o que vem. — Min esfregou os olhos. Perrin pensou ter visto lágrimas. — Rand pode estar morrendo enquanto esperamos.

Moiraine afagou os cabelos de Min. O olhar no rosto da Aes Sedai era quase de piedade.

Perrin sentou-se na ponta da cama de Lan, do lado oposto de Loial. Havia um cheiro forte de gente no quarto — gente, medo e preocupação. Loial, além de preocupação, cheirava a livros e a árvores. Parecia uma armadilha, com as paredes em volta, todas tão próximas. As lascas de madeira queimada fediam.

— Como meu sonho pode dizer aonde Rand está indo? — perguntou. — Quem sonhou fui eu.

— Aqueles capazes de canalizar o Poder Único — explicou Moiraine, com calma —, aqueles que são muito fortes em Espírito, às vezes conseguem fazer com que seus sonhos penetrem nos dos outros. — Ela continuava a consolar Min. — Principalmente nos mais… suscetíveis. Não creio que Rand tenha feito isso de propósito, mas os que tocam a Fonte Verdadeira podem ter sonhos muito poderosos. Os de alguém com a força dele poderiam dominar uma aldeia inteira, talvez até uma cidade. Ele sabe muito pouco a respeito do que faz, e sabe menos ainda controlar suas ações.

— Então por que você não sonhou também? — indagou o rapaz. — Ou Lan. — Uno olhava para a frente, como se preferisse estar em qualquer outro lugar, e as orelhas de Loial estavam caídas. Perrin estava cansado e faminto demais para se importar em demonstrar o devido respeito a uma Aes Sedai. Além de muito irritado, notou. — Por quê?

Moiraine respondeu com muita calma:

— Aes Sedai aprendem a resguardar os sonhos. Faço isso sem pensar quando durmo. Aos Guardiões, com o elo, algo parecido é concedido. Um Gaidin não poderia fazer o que é preciso com a Sombra invadindo seus sonhos. Todos ficamos vulneráveis enquanto dormimos, e durante a noite a Sombra ganha força.

— Você sempre conta alguma novidade — resmungou Perrin. — Será que não dava para explicar as coisas antes, em vez de esperar elas acontecerem?

Uno parecia estar tentando pensar em alguma desculpa para sair.

Moiraine lançou a Perrin um olhar indiferente.

— Quer que eu compartilhe com você uma vida inteira de conhecimento no intervalo de uma tarde? Ou de um ano? Vou lhe contar uma coisa. Tome cuidado com os sonhos, Perrin Aybara. Tome muito cuidado.

Ele desviou o olhar.

— Eu tomo — murmurou. — Eu tomo.

Depois daquilo um silêncio se abateu, e ninguém pareceu querer quebrá-lo. Min continuava sentada, encarando as pernas cruzadas, aparentemente reconfortada pela presença de Moiraine. Uno permanecia de pé diante da parede, sem olhar para ninguém. Loial se distraiu de tal forma que puxou um livro do bolso do casaco e começou a tentar ler na penumbra. A espera era longa, e nada fácil para Perrin. Não é a Sombra em meus sonhos que me amedronta. São os lobos. Não vou deixá-los entrar. Não vou!

Lan retornou, e Moiraine se empertigou, ansiosa. O Guardião respondeu à pergunta em seus olhos.

— Metade deles se lembra de sonhar com espadas nas últimas quatro noites seguidas. Alguns se lembram de um lugar com grandes colunas, e cinco disseram que a espada era de cristal ou de vidro. Masema afirmou que viu Rand erguer a espada ontem à noite.

— Isso já basta. — Moiraine esfregou as mãos com força. Parecia cheia de energia. — Agora tenho certeza. Mas ainda gostaria de saber como foi que ele saiu daqui sem ser visto. Se redescobriu algum Dom da Era das Lendas…

Lan olhou para Uno, e o caolho deu de ombros, consternado.

— Acabei me esquecendo, com todo esse falatório chamej… — Ele limpou a garganta, olhando para Moiraine. Ela correspondeu o olhar, esperando que prosseguisse, e ele continuou: — Quer dizer… hã… quer dizer, eu segui o rastro do Lorde Dragão. Agora existe outro caminho que dá naquele vale fechado. O… terremoto derrubou o paredão mais afastado. É uma subida difícil, mas dá para ir a cavalo. Encontrei mais pegadas no topo, e de lá é fácil contornar a montanha. — Ao terminar de falar, respirou fundo.

— Bom — disse Moiraine. — Pelo menos ele não redescobriu como voar, ficar invisível ou qualquer coisa saída das lendas. Precisamos ir atrás dele agora mesmo. Uno, vou lhe dar ouro suficiente para todos chegarem em Jehannah, além do nome de uma pessoa por lá que proverá mais. O povo de Ghealdan é cauteloso com estranhos, mas, se vocês não se expuserem, não serão incomodados. Fiquem lá, aguardando notícias minhas.

— Mas vamos com você — protestou ele. — Todos juramos seguir o Dragão Renascido. Não vejo como nós, sendo tão poucos, poderemos tomar uma fortaleza que nunca desabou, mas com a ajuda do Lorde Dragão faremos o que tem de ser feito.

— Então agora somos o “Povo do Dragão”. — Perrin soltou uma risada melancólica. — “A Pedra de Tear não cairá antes da vinda do Povo do Dragão.” Você nos deu um novo nome, Moiraine?

— Segure a língua, ferreiro — rosnou Lan, duro e frio.

Moiraine lançou aos dois um olhar penetrante, e eles se calaram.

— Me desculpe, Uno — disse ela —, mas precisamos seguir viagem rápido se quisermos ter esperanças de alcançar Rand. Vocês são os únicos shienaranos com preparo físico para uma caminhada difícil, e não podemos perder os dias necessários para que os outros recuperem a energia. Mando buscar vocês assim que puder.

Uno pareceu não gostar da ideia, mas fez uma mesura aquiescente. Assim que ela o dispensou, ele ajeitou os ombros e partiu para dar as ordens.

— Bem, eu vou junto, não importa o que você diga — falou Min, com firmeza.

— Você vai para Tar Valon — ordenou Moiraine.

— Não vou, não!

A Aes Sedai prosseguiu calmamente, como se a outra mulher não tivesse dito palavra.

— O Trono de Amyrlin deve ser informado a respeito do que aconteceu, e não posso ter certeza de que encontrarei alguém de confiança que tenha algum pombo-correio; nem que o Trono verá uma mensagem enviada por um pombo. Vai ser uma viagem longa e difícil. Não mandaria você sozinha se houvesse alguém para ir junto, mas vou lhe dar algum dinheiro e cartas que poderão ajudar no trajeto. No entanto, vai ter que cavalgar depressa. Quando um cavalo se cansar, compre outro ou roube um, se for preciso, mas cavalgue depressa.

— Deixe Uno levar a mensagem. Ele tem preparo físico, você mesma disse. Eu vou atrás de Rand.

— Uno tem as próprias obrigações, Min. Além disso, você acha que um homem poderia simplesmente cruzar os portões da Torre Branca e pedir uma audiência com o Trono de Amyrlin? Até um rei teria que esperar por dias se chegasse sem avisar, e temo que qualquer um dos shienaranos teria que esperar semanas, senão a vida inteira. Sem falar que algo tão estranho chegaria aos ouvidos de todos em Tar Valon antes do primeiro crepúsculo. Poucas mulheres pedem audiências com o Trono, mas pode acontecer, e o fato não gera grande alvoroço. Ninguém pode sequer saber que o Trono de Amyrlin recebeu uma mensagem minha. A vida dela, e a nossa, pode depender disso. É você quem deve ir.

Min continuava sentada, abrindo e fechando a boca, claramente procurando outros argumentos, mas Moiraine já prosseguia com as ordens:

— Lan, temo que encontremos mais evidências da passagem dele do que gostaria, mas confio na sua capacidade de rastrear. — O Guardião assentiu. — Perrin? Loial? Vocês podem vir comigo atrás de Rand? — De onde estava, encostada na parede, Min soltou um chiado de indignação, mas a Aes Sedai a ignorou.

— Eu vou — disse Loial, no mesmo instante. — Rand é meu amigo. E eu admito… não quero perder nada. Para o meu livro, entende?

Perrin demorou mais a responder. Rand era seu amigo, não importava o que tivesse se tornado ao ser forjado. E havia aquela quase certeza de que seus futuros estavam interligados, embora ele, se pudesse, evitaria aquela parte.

— Tem de ser feito, não tem? — disse por fim. — Eu vou.

— Bom. — Moiraine esfregou as mãos mais uma vez, com a expressão de alguém se preparando para o trabalho. — Vão todos se aprontar de uma vez. Rand está algumas horas à nossa frente. Pretendo avançar bastante antes do meio-dia.

Apesar de esguia, a força de sua presença fez todos seguirem para a saída, exceto Lan. Loial foi caminhando curvado até passar pela porta. Perrin achou que a cena parecia a de uma dona de casa espantando seus gansos.

Do lado de fora, Min se afastou por um instante e interpelou Lan com um sorriso excessivamente doce.

— Deseja que eu transmita alguma mensagem? A Nynaeve, talvez?

O Guardião, desprevenido, cambaleou como um cavalo de três pernas.

— Todo mundo está sabendo…? — Quase no mesmo instante recobrou o equilíbrio. — Se houver algo mais que ela precise saber de mim, eu mesmo direi. — Ele fechou a porta quase na cara de Min.

— Homens! — murmurou a jovem diante da porta. — Tão cegos que não enxergam o que até uma pedra poderia ver, e tão teimosos que não podemos deixá-los pensando por si próprios.

Perrin inspirou profundamente. Um leve cheiro de morte ainda pairava no ar do vale, mas era melhor que o quarto abafado. Um pouco melhor.

— Ar puro — suspirou Loial. — A fumaça estava começando a me incomodar um pouco.

Os três desceram a encosta juntos. Perto do córrego abaixo, os shienaranos capazes de se manter de pé estavam reunidos em torno de Uno. Pelos gestos, o caolho tentava recuperar todo o tempo que precisara passar sem xingar.

— Como é que vocês dois conseguiram esse privilégio? — indagou Min, de supetão. — Ela perguntou a vocês. Não fez a gentileza de me perguntar.

Loial balançou a cabeça.

— Acho que ela perguntou porque sabia qual seria a nossa resposta, Min. Moiraine parece saber interpretar a mim e a Perrin, conhece nossas reações. Já você é um livro fechado para ela.

Min pareceu apenas um pouco mais calma. Olhou para eles, de um lado Perrin, cujos ombros estavam na altura de sua cabeça, e de outro Loial, muito maior.

— Como se isso me adiantasse alguma coisa. Estou indo para onde ela quer, feito vocês, cordeirinhos. Você estava indo bem, Perrin. Enfrentou Moiraine como se ela tivesse lhe vendido um casaco com a costura solta.

— Enfrentei mesmo, não foi? — repetiu Perrin, pensativo. — Ele ainda não havia se dado conta do que fizera. — Não foi tão ruim quanto pensei.

— Você teve sorte — resmungou Loial. — “Irritar uma Aes Sedai é meter a cabeça em um ninho de vespas.”

— Loial — chamou Min —, preciso falar com Perrin. A sós. Você se incomoda?

— Ah, claro que não. — Ele aumentou a velocidade dos passos, entrando no ritmo costumeiro, e se afastou depressa dos dois, puxando cachimbo e tabaco de um dos bolsos do casaco.

Perrin a encarou, cauteloso. Ela mordia o lábio, como se refletisse sobre o que dizer.

— Você já teve alguma visão com ele? — perguntou, inclinando a cabeça para o Ogier.

Ela fez que não.

— Acho que só funciona com humanos. Mas já vi algumas coisas à sua volta que você deveria saber.

— Eu já disse…

— Não seja mais teimoso que o necessário, Perrin. Foi lá na cabana, logo depois que você disse que iria. Não tinha visto antes. Deve ter a ver com a sua viagem. Ou pelo menos com a decisão de ir.

Após um momento ele perguntou, relutante:

— O que foi que você viu?

— Um Aiel dentro de uma jaula — respondeu ela, sem cerimônias. — Um Tuatha’an com uma espada. Um falcão e um gavião empoleirados nos seus ombros. Duas fêmeas, eu acho. E todo o resto, é claro. O que está sempre lá. Escuridão à sua volta e…

— Já chega! — retrucou, mais do que depressa. Quando teve certeza de que ela tinha parado de falar, coçou a cabeça, pensativo. Nada daquilo fazia o menor sentido. — Você tem alguma ideia do que significam? Quer dizer, as coisas novas.

— Não, mas são importantes. Tudo o que vejo sempre é. Um momento decisivo na vida das pessoas ou algo que está traçado. Sempre é importante. — Ela hesitou por um momento, olhando para ele. — Mais uma coisa — continuou, devagar. — Se você conhecer uma mulher, a mulher mais bonita que já viu, fuja!

Perrin piscou os olhos.

— Você viu uma mulher bonita? Por que eu deveria fugir de uma mulher bonita?

— Será que você não pode simplesmente seguir o conselho? — perguntou ela, irritada. Chutou uma pedra e olhou-a rolar pelo barranco.

Perrin não gostava de tirar conclusões precipitadas, era uma das razões por que algumas pessoas o julgavam meio lento, mas considerou todas as coisas que Min dissera nos últimos dias e chegou a uma conclusão assustadora. Parou, estupefato, procurando as palavras.

— Hã… Min, você sabe que eu gosto de você. Gosto de você, mas… hã… você me lembra um pouco as minhas irmãs. Quer dizer, você… — Parou de falar quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, sobrancelhas arqueadas e um leve sorriso.

— Ora, Perrin, sabe que eu amo você. — Ela ficou parada vendo a boca dele se mexer, depois continuou, devagar e cuidadosa. — Como um irmão, sua grande besta quadrada! Não canso de me espantar com a arrogância dos homens. Todos pensam que tudo diz respeito a eles, que todas as mulheres os desejam.

Perrin sentiu o rosto esquentar.

— Eu nunca… eu não… — Limpou a garganta. — O que foi que você viu com uma mulher?

— Apenas siga o meu conselho. — Ela prosseguiu córrego abaixo, caminhando depressa. — Se esquecer todo o resto — gritou por cima do ombro —, lembre-se disso!

Ele franziu a testa atrás dela. Pelo menos daquela vez seus pensamentos se organizaram bem depressa. Então a alcançou com dois passos.

— É Rand, não é?

Ela fez um barulho com a garganta e olhou para ele de soslaio. No entanto, não reduziu o passo.

— Talvez você não seja tão cabeça-dura, afinal de contas — murmurou. Depois de um instante acrescentou, como se para si mesma: — Estou amarrada a ele feito as ripas de madeira de um barril. Mas não sei se ele algum dia retribuirá o meu amor. E não sou a única.

— Egwene sabe disso? — perguntou.

Rand e Egwene eram praticamente prometidos desde a infância. Só faltava os dois se ajoelharem diante do Círculo das Mulheres da aldeia para anunciar o noivado. Ele não sabia ao certo o quanto estavam longe disso, nem se estavam.

— Ela sabe — disse Min, de um jeito rude. — E isso não adianta muito para nenhuma de nós duas.

— E Rand? Sabe?

— Ah, é claro — respondeu, amarga. — Eu contei a ele, não contei? “Rand, tive uma visão sua, e parece que tenho que me apaixonar por você. Também tenho que dividir você, e não gosto muito, mas é isso aí.” Você é mesmo um belo idiota, Perrin Aybara. — Ela passou as mãos pelos olhos, irritada. — Se eu pudesse estar com ele, sei que ajudaria. De alguma forma. Luz, se ele morrer, não sei se vou aguentar.

Perrin deu de ombros, incomodado.

— Escute, Min. Vou fazer o possível para ajudá-lo. — Tanto quanto for possível. — Prometo. É mesmo melhor você ir até Tar Valon. Estará segura por lá.

— Segura? — Ela testou a palavra, como se tentasse entender o significado. — Você acha que Tar Valon é segura?

— Se não houver segurança em Tar Valon, não haverá em nenhum outro lugar.

Ela deu uma fungada de desdém, e, em silêncio, os dois foram se juntar aos que se preparavam para partir.

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