Furlan continuava balbuciando enquanto levava os recém-chegados para seus quartos, embora Perrin não estivesse prestando muita atenção. Estava ocupado se perguntando se a garota de cabelos negros sabia o significado de seus olhos amarelos. Que me queime, ela estava me encarando. Então ouviu o estalajadeiro dizer as palavras “proclamando o Dragão em Ghealdan”, e pensou que as suas orelhas iriam se eriçar como as de Loial.
Moiraine parou onde estava, diante da porta de seu quarto.
— Há outro falso Dragão, estalajadeiro? Em Ghealdan? — O capuz do manto ainda escondia seu rosto, mas a voz saiu trêmula e abalada.
Mesmo ao ouvir a resposta do homem, Perrin não pôde evitar olhar para ela: sentia cheiro de algo que parecia medo.
— Ah, milady, não tema. São cem léguas até Ghealdan, e ninguém a perturbará aqui, não com Mestre Andra por perto, além de Lorde Orban e Lorde Gann. Por que…
— Responda! — retrucou Lan, com rispidez. — Há um falso Dragão em Ghealdan?
— Ah. Ah, não, Mestre Andra, não exatamente. Eu disse que há um homem proclamando o Dragão em Ghealdan, pelo que ouvimos uns dias atrás. Pregando a vinda dele, pode-se dizer. Falando daquele sujeito de Tarabon de que ouvimos tanto. Embora alguns digam que ele é de Arad Doman, não de Tarabon. Em ambos os casos, é muito longe daqui. Ora, em qualquer outro dia é de se esperar mais falatório sobre isso do que sobre qualquer outra coisa, exceto talvez das histórias loucas sobre o retorno do exército de Asa-de-gavião… — Os olhos gélidos de Lan podiam muito bem ser lâminas afiadas, pelo jeito como Furlan engoliu em seco e esfregou as mãos com mais vigor. — Só sei o que eu escuto, Mestre Andra. Dizem que o sujeito tem um olhar que faz você parar onde quer que esteja. E também que ele fala toda sorte de baboseiras sobre a vinda do Dragão para nos salvar, como todos temos que segui-lo, e que até as bestas vão lutar pelo Dragão. Não sei se já prenderam o sujeito ou não. É provável, uma vez que o povo de Ghealdan não aguentaria esse falatório por tanto tempo.
Masema, pensou Perrin, admirado. É o infeliz do Masema.
— Tem razão, estalajadeiro — disse Lan. — Esse sujeito não vai nos perturbar por aqui. Conheci um homem que gostava de fazer discursos inflamados. A senhora se lembra dele, Lady Alys? Masema?
Moiraine levou um susto.
— Masema. Sim, é claro. Já tinha me esquecido dele. — Ela deixou a voz mais firme. — Quando encontrar Masema outra vez, ele desejará ter tido o couro arrancado para fazer botas. — Ela bateu a porta do quarto com tanta força que o estrondo ecoou pelo corredor.
— Façam silêncio! — Um grito abafado veio do canto oposto. — Minha cabeça está explodindo!
— Ah. — Furlan limpou as mãos em uma direção, depois as esfregou no sentido oposto. — Ah. Peço perdão, Mestre Andra, mas Lady Alys é uma mulher impetuosa.
— Apenas com os que a desagradam — retorquiu Lan, em tom monótono. — E a mordida é muito pior do que o ladrado.
— Ah. Ah. Ah. Seus quartos ficam por aqui. Ah, amigo Ogier, quando Mestre Andra me contou que estava a caminho, mandei descer do sótão uma antiga cama Ogier, que estava apanhando poeira havia uns trezentos anos ou mais. Ora, é…
Perrin deixou correrem as palavras do homem, ouvindo-as tanto quanto uma pedra ouve as águas do rio. A jovem de cabelos negros o perturbava. E o Aiel enjaulado.
Já dentro do quarto — um pequeno, nos fundos, já que Lan não fizera nada para corrigir o estalajadeiro de sua impressão de que Perrin era um servo —, ele se movimentava de forma mecânica, ainda envolto em pensamentos. Desamarrou a corda do arco e apoiou-o em um canto. Manter a corda presa por muito tempo arruinava tanto o arco quanto a corda. Depois pousou o cobertor e os alforjes junto ao lavatório e jogou o manto por cima. Pendurou o cinturão com a aljava e o machado em um gancho na parede, e já ia se deitando na cama quando um bocejo fez sua mandíbula estalar, lembrando-o do perigo que aquilo poderia trazer. A cama era estreita, e o colchão parecia todo encalombado, porém era mais convidativa do que qualquer cama de que ele se lembrava. Em vez de deitar, sentou-se no banquinho de três pés e refletiu. Gostava sempre de pensar bastante nas coisas.
Depois de um tempo, Loial bateu à porta e pôs a cabeça para dentro. As orelhas do Ogier praticamente tremiam de empolgação, e ele exibia um grande sorriso.
— Perrin, você não vai acreditar! Minha cama é de madeira cantada! Ora, deve ter bem mais de mil anos de idade! Nenhum Cantor das Árvores cantou uma peça tão grande em todo esse tempo. Eu mesmo não me daria ao trabalho de tentar, e tenho um talento mais forte do que a maioria dos Ogier de agora. Para dizer a verdade, já não existem mais muitos de nós com esse talento. Mas sou um dos que mais sabe cantar as árvores.
— Que interessante — respondeu Perrin. Um Aiel numa jaula. Foi isso o que Min disse. Por que aquela garota estava me encarando?
— Foi o que pensei. — Loial soou um tanto chateado por ele não compartilhar a empolgação, mas tudo o que Perrin desejava era pensar. — O jantar está pronto lá embaixo, Perrin. Prepararam a melhor refeição para caso os Caçadores queiram, mas poderemos comer um pouco.
— Vá você, Loial. Não estou com fome. — O aroma de carne cozida que subia da cozinha não o interessara. Ele mal notou a saída do amigo.
Com as mãos nos joelhos e bocejando de vez em quando, ele tentou refletir. Parecia um daqueles quebra-cabeças que Mestre Luhhan fazia, com peças de metal que pareciam se unir de maneira insolúvel. Mas sempre havia um truque para fazer os nós e as armações de ferro se desmantelarem, e também deveria haver um, neste caso.
A garota tinha olhado para ele. Seus próprios olhos poderiam ter sido o motivo, exceto pelo fato de que o estalajadeiro os ignorara e ninguém mais os notara. Tinham um Ogier para admirar, além de Caçadores da Trombeta na casa, a visita de uma lady e um Aiel enjaulado na praça. Nada tão pequeno quanto a cor dos olhos de um homem poderia lhes chamar a atenção. Nada que viesse de um servo poderia competir com os outros. Então por que ela escolheu a mim para encarar?
E o Aiel na gaiola. As visões de Min eram sempre importantes. Mas como? O que ele deveria fazer? Eu podia ter impedido aquelas crianças de atirarem pedras. Deveria ter impedido. Não adiantava nada dizer a si mesmo que os adultos certamente o mandariam cuidar da própria vida, que ele era um estranho em Remen e que o Aiel não era de sua conta. Eu deveria ter tentado.
Não lhe veio resposta alguma, então retornou ao início e, com muita paciência, começou a rever os fatos. Depois de novo, e de novo. Continuava a não encontrar resposta, apenas o arrependimento pelo que não fizera.
Depois de um tempo, percebeu que a noite já havia caído. O quarto estava escuro, exceto por uma pequena faixa de luar que entrava pela única janela. Ele pensou na vela de sebo e no acendedor que jaziam sobre cornija acima da lareira estreita, mas aquela luz era mais do que suficiente para seus olhos. Tenho que fazer alguma coisa, não tenho?
Ele afivelou o cinturão com o machado, depois parou. Agira sem pensar, e usar o machado se tornara tão natural quanto respirar. Não gostava disso. Porém, manteve o cinturão e saiu.
A luz das escadas deixava o corredor quase todo iluminado. O som de risadas e conversas vinha do salão, e aromas subiam da cozinha. Ele avançou em direção à entrada da estalagem, até o quarto de Moiraine, deu uma batida na porta e entrou. Então parou, com o rosto queimando.
Moiraine fechou o robe azul-claro que pendia dos ombros.
— Deseja alguma coisa? — perguntou, friamente. Tinha uma escova de cabelos prateada em uma das mãos, e os cabelos escuros, que caíam pelo pescoço em ondas negras, cintilavam como se ela estivesse escovando-os. O quarto era de longe muito melhor que o dele, com painéis de madeira nas paredes, lampiões folheados a prata e um fogo suave na ampla lareira de tijolos. O ar tinha uma fragrância de sabão de rosas.
— Eu… pensei que Lan estivesse aqui — conseguiu dizer. — Vocês dois sempre andam juntos, então eu pensei… pensei…
— O que você quer, Perrin?
Ele respirou fundo.
— Isso é coisa do Rand? Sei que Lan o seguiu até aqui, e tudo parece esquisito, com os Caçadores, o Aiel… mas foi ele quem fez isso?
— Acredito que não. Saberei mais quando Lan me contar o que descobrir hoje à noite. Com sorte, o que ele encontrar ajudará na escolha que tenho que fazer.
— Escolha?
— Rand pode ter atravessado o rio, indo por terra a caminho de Tear. Ou pode ter pegado um navio e descido o rio até Illian, com a intenção de partir em outro de lá para Tear. A jornada é muitas léguas mais comprida por esse caminho, porém dias mais rápida.
— Acho que não vamos alcançar Rand, Moiraine. Não sei como ele consegue, mas mesmo a pé está muito adiantado. Se Lan estiver certo, ele ainda está meio dia à nossa frente.
— Eu poderia até suspeitar que ele tenha aprendido a Viajar — comentou Moiraine, franzindo um pouco a testa —, só que, se tivesse, ele iria direto para Tear. Não, ele tem o sangue dos andarilhos e corredores nas veias. Mas podemos pegar o rio mesmo assim. Se eu não conseguir alcançá-lo, estarei em Tear logo depois que ele chegar. Ou esperando-o.
Perrin remexia os pés, incomodado. A voz dela tinha um tom de promessa fria.
— Uma vez você me disse que era capaz de sentir um Amigo das Trevas ou alguém que havia muito tivesse partido para as Sombras, pelo menos. Lan também. Vocês sentiram alguma coisa assim por aqui?
Ela fungou alto e se virou para um espelho de chão comprido, com finos entalhes de prata nos pés. Mantendo o robe fechado com uma das mãos, ela passou a escova pelos cabelos com a outra.
— Poucos humanos chegaram a esse ponto, Perrin, mesmo entre os piores Amigos das Trevas. — A escova parou no meio do caminho. — Por que a pergunta?
— Tinha uma garota no salão me encarando. Não olhava para você ou Loial, como todos os outros. Olhava para mim.
Ela retomou o movimento da escova, e um breve sorriso tocou-lhe os lábios.
— Às vezes você se esquece, Perrin, de que é um rapaz bonito. Algumas mulheres admiram um belo par de ombros.
Ele grunhiu e trocou o peso de pé.
— Aconteceu alguma outra coisa, Perrin?
— Hã… não. — Ela não poderia ajudar em relação à visão de Min, não além de dizer que era importante, o que ele já sabia. E ele não queria contar a ela o que Min vira. Aliás, não queria nem contar que Min vira algo.
De volta ao corredor, com a porta fechada, ele se encostou à parede por um instante. Luz, acabei de entrar no quarto desse jeito, e ela… Era uma bela mulher. E com idade para ser minha mãe, no mínimo. Pensou que Mat decerto a teria convidado para uma dança no salão. Não teria nada. Nem Mat seria idiota a ponto de tentar seduzir uma Aes Sedai. Moiraine dançava. Ele mesmo já dançara com ela, uma vez. Quase tropeçando nos próprios pés a cada passo. Pare de pensar nela como uma garota de aldeia, só porque a viu… Ela é uma maldita Aes Sedai! E você tem mais é que se preocupar com aquele Aiel. Ele se recompôs e desceu as escadas.
O salão estava em sua lotação máxima, com todas as cadeiras ocupadas, além dos bancos e das banquetas, e os que não tinham onde sentar se encostavam nas paredes. Ele não viu a garota de cabelos negros, e ninguém reparou quando ele cruzou o salão.
Orban ocupava uma mesa sozinho, a perna enfaixada apoiada em uma cadeira acolchoada, com uma pantufa macia no pé erguido e um cálice de prata na mão, que as serviçais mantinham sempre cheio de vinho.
— É — dizia a todo o salão —, sabíamos que os Aiel eram lutadores implacáveis, Gann e eu, mas não havia tempo para titubear. Desembainhei a espada, meti os calcanhares nos flancos de Leão…
Perrin se assustou, mas percebeu que o nome do cavalo do homem era Leão. Não seria improvável que ele dissesse que cavalgava um leão. Sentiu uma pontada de vergonha: só porque não gostava do sujeito, não significava que havia razão para supor que o Caçador fosse se gabar tanto. Correu para fora sem olhar para trás.
A rua estava tão apinhada quanto a estalagem, com gente que não conseguira um lugar no salão espiando pelas janelas, e o dobro de gente amontoada diante das portas, todos tentando ouvir a história de Orban. Ninguém deu a menor atenção a Perrin, embora sua passagem tivesse gerado resmungos dos que se aglomeravam um pouco mais longe da porta.
Naquela noite, toda a gente fora de casa devia estar na estalagem, pois ele não viu vivalma ao caminhar até a praça. Às vezes, a sombra de uma pessoa se movia por detrás de uma janela iluminada, mas era só. Tinha a sensação de estar sendo observado e olhava em volta, desconfortável. Nada além de ruas envoltas pela noite, pontilhadas de janelas reluzentes. Ao redor da praça, a maioria das janelas estava escura, a não ser algumas nos andares de cima.
A forca continuava igual ao que ele se lembrava, e o homem, o Aiel, ainda estava enjaulado, erguido a uma altura que Perrin não conseguia alcançar. O prisioneiro parecia acordado, pelo menos tinha a cabeça erguida, mas não olhou para Perrin. As pedras que as crianças haviam atirado estavam espalhadas pelo chão.
A jaula pendia de uma corda grossa, amarrada a um aro em uma das barras superiores, que depois passava por uma pesada roldana acoplada à barra horizontal da forca e ia até um par de tocos no chão, cada um da altura das pernas de um homem, presos de cada lado da plataforma. A sobra de corda fora embolada sem cuidado aos pés da forca.
Perrin olhou em volta outra vez, esquadrinhando a praça escura. Ainda tinha a sensação de estar sendo observado, mas não via nada. Tentou ouvir o ambiente, mas não escutou qualquer barulho. Sentia o cheiro das chaminés e das cozinhas das casas, além de suor e sangue seco do homem dentro da jaula. O homem não cheirava a medo.
O peso dele, e mais o da jaula, pensou, ao se aproximar da forca. Não sabia quando tomara a decisão, nem sequer se de fato decidira, mas sabia que o faria.
Ele enganchou uma perna em volta da pesada plataforma e içou a corda, erguendo a jaula o suficiente para afrouxá-la um pouco. Um solavanco na corda revelou que o homem dentro da jaula enfim se movera, mas Perrin estava com pressa demais para parar e informar ao sujeito o que estava fazendo. Com a corda frouxa, pôde desamarrá-la dos tocos. Ainda com a perna enganchada à plataforma, baixou a jaula depressa até os blocos de pavimento.
O Aiel agora olhava para ele, estudando-o em silêncio. Perrin não disse uma palavra. Quando pôde olhar direito para a jaula, apertou os lábios. Se era preciso fabricar algo, mesmo que algo dessa natureza, era importante fazer um bom trabalho. Porém, a frente inteira era uma porta, com dobradiças toscas feitas por mãos descuidadas, presa por um bom cadeado de ferro a uma corrente forjada de um jeito tão malfeito quanto a jaula. Ele manuseou a corrente às pressas, até encontrar o elo mais fraco, depois emperrou a ponta grossa do machado no meio do elo. Um movimento rápido de seu pulso forçou o ferro, que se abriu. Em questão de segundos, desmontou a corrente, soltou-a e abriu a porta da jaula.
O Aiel permanecia sentado, o queixo apoiado no joelho, olhando para ele.
— E então? — sussurrou Perrin, com a voz rouca. — Abri a droga da jaula, mas não vou carregar você. — Analisou depressa a praça escura. Nenhum movimento, mas ele ainda tinha a sensação de estar sendo observado.
— Você é forte, aguacento. — O Aiel apenas alongava os ombros. — Eles precisaram de três homens para me erguer lá em cima. E agora você me trouxe aqui para baixo. Por quê?
— Não gosto de ver ninguém enjaulado — sussurrou Perrin. Queria ir embora. A jaula estava aberta, e aqueles olhos, à espreita. Mas o Aiel não se mexia. Se fizer algo, faça direito. — Você pode sair daí antes que chegue alguém?
O Aiel agarrou a primeira barra da jaula por cima da cabeça, lançou-se para fora e ficou de pé em um movimento só. Depois ficou meio pendurado, usando o punho agarrado à barra para sustentar o próprio peso. De pé, talvez fosse quase uma cabeça mais alto que Perrin. Encarou o rapaz, que sabia bem que os próprios olhos brilhavam como ouro, reluzindo ao luar, mas não disse nada a respeito.
— Estou aí desde ontem, aguacento. — Ele falava como Lan. Não que as vozes ou sotaques fossem sequer parecidos, mas o Aiel tinha a mesma calma fria, a mesma certeza tranquila. — Ainda vai levar um tempo para as minhas pernas voltarem a funcionar. Sou Gaul, do ramo Imran dos Aiel Shaarad, aguacento. Sou Shae’em M’taal, um Cão de Pedra. Minha água é sua.
— Bem, sou Perrin Aybara. De Dois Rios. Sou ferreiro. — O homem estava fora da jaula, Perrin já podia ir embora. No entanto, se alguém chegasse antes que Gaul conseguisse caminhar, ele voltaria direto para a jaula, a não ser que o matassem, o que de qualquer forma estragaria o trabalho de Perrin. — Se eu tivesse pensado melhor, teria trazido uma garrafa de água, ou uma pele. Por que me chama de “aguacento”?
Gaul apontou para o rio. Nem mesmo os olhos de Perrin enxergavam tão bem ao luar, mas pela primeira vez achou que o Aiel parecia um pouco desconfortável.
— Três dias atrás, vi uma garota se exercitando em um imenso lago. Devia ter uns vinte passos de largura. Ela… se empurrava por dentro dele. — O homem fez um gesto estranho, tentando imitar o movimento de natação com uma das mãos. — Uma garota corajosa. Cruzando esses… rios… quase me intimidou. Nunca achei que fosse pensar que via água demais, mas não sabia que tinha tanta água no mundo como vocês aguacentos têm.
Perrin sacudiu a cabeça. Ele sabia que havia pouca água no Deserto Aiel, o que era uma das poucas coisas que sabia sobre o Deserto ou sobre os Aiel, mas não sabia que era tão escassa a ponto de causar uma reação assim.
— Você está muito longe de casa, Gaul. Por que está aqui?
— Nós procuramos — respondeu o homem, devagar. — Buscamos Aquele Que Vem Com a Aurora.
Perrin já ouvira o nome antes, sob circunstâncias que o fizeram ter certeza do que significava. Luz, o assunto sempre volta para Rand. Estou preso a ele como um cavalo que não presta para usar ferradura.
— Está procurando no lugar errado, Gaul. Também estou atrás dele, e ele está a caminho de Tear.
— Tear? — O Aiel fez uma expressão de surpresa. — Por quê…? Mas deve ser. A Profecia diz que, quando a Pedra de Tear cair, enfim deixaremos a Terra da Trindade. — Era o nome que os Aiel davam para o Deserto. — Diz que seremos transformados e reencontraremos o que era nosso, o que foi perdido.
— Pode ser. Não conheço suas profecias, Gaul. Você já está pronto para ir? Alguém pode chegar a qualquer minuto.
— Já é tarde para fugir — retrucou Gaul, e uma voz grave gritou:
— O selvagem está solto! — Dez ou doze homens de mantos brancos saíram pela praça em disparada, desembainhando as espadas, os capacetes cônicos reluzindo ao luar. Filhos da Luz.
Como se tivesse todo o tempo do mundo, Gaul ergueu um pedaço de pano escuro dos ombros com muita calma e o enrolou por cima da cabeça, formando um véu negro e grosso que escondia todo o rosto, exceto os olhos.
— Gosta de dançar, Perrin Aybara? — perguntou. Com isso, saltou da jaula. Direto para cima dos Mantos-brancos.
Por um instante, eles foram pegos de surpresa. Mas, ao que parecia, um instante era tudo de que o Aiel precisava. Ele chutou a espada do punho do primeiro que o alcançou, depois a mão firme golpeou a garganta do Manto-branco como uma adaga, então o Aiel contornou o soldado que caía. O braço do segundo homem estalou alto quando Gaul o quebrou. Ele empurrou o sujeito por cima dos pés de um terceiro e chutou o quarto no rosto. Era mesmo uma dança, de um para outro, sem parar nem reduzir o passo, embora o homem que tropeçou estivesse se reerguendo, e o do braço quebrado tivesse trocado a mão que segurava a espada. Gaul continuava dançando no meio deles.
Perrin teve apenas um instante de assombro, pois nem todos os Mantos-brancos voltaram as atenções ao Aiel. Quase não conseguiu se mover a tempo, mas agarrou o cabo do machado com as duas mãos para bloquear o golpe de uma espada, girou… e sentiu vontade de gritar quando a lâmina em meia-lua rasgou a garganta do homem. Mas não havia tempo para gritos, nem para arrependimentos. Outros Mantos-brancos vieram, antes mesmo de o primeiro cair. Ele odiava as feridas enormes que o machado fazia, odiava a forma como ele retalhava a malha e rasgava a pele por baixo, como rachava os capacetes e crânios com quase a mesma facilidade. Odiava aquilo tudo. Mas não queria morrer.
O tempo parecia se contrair e esticar ao mesmo tempo. O corpo reclamava como se lutasse havia horas, e a respiração raspava sua garganta. Os homens pareciam se mover como se flutuassem em geleia. Pareciam saltar em um instante, de onde vinham até onde caíam. O suor escorria pelo rosto de Perrin, mas ele se sentia frio como água da forja. Lutava pela vida, e não sabia dizer se a luta durava segundos ou a noite inteira.
Quando enfim ficou de pé, arfando e quase atônito, olhou para uma dúzia de homens de Mantos-brancos caídos sobre os paralelepípedos da calçada da praça, e a lua pareceu estar exatamente no mesmo lugar. Alguns homens gemiam, outros jaziam em silêncio. Gaul estava entre eles, ainda de véu, ainda de mãos vazias. A maioria dos homens no chão fora obra dele. Perrin desejou que todos tivessem sido, então sentiu vergonha. O cheiro de sangue e morte era amargo e pungente.
— Você não dança mal com as lanças, Perrin Aybara.
Com a cabeça girando, o jovem murmurou:
— Não vejo como doze homens podem ter lutado contra vinte de vocês e ganhado, mesmo com dois Caçadores.
— Foi isso que disseram? — Gaul riu baixinho. — Sarien e eu fomos descuidados, há tanto tempo nestas terras úmidas, e o vento soprava na direção errada, então não sentimos cheiro de nada. Entramos na frente deles antes que pudéssemos perceber. Bem, Sarien está morto, e eu fui enjaulado como um tolo, então talvez tenhamos pagado o preço. Está na hora de correr, aguacento. Tear: vou me lembrar disso. — Por fim, ele baixou o véu negro. — Que você sempre encontre água e sombra, Perrin Aybara. — Virando-se, ele avançou pela noite.
Perrin também começou a correr, então percebeu que levava um machado ensanguentado nas mãos. Mais do que depressa, limpou a lâmina curva com o manto de um dos homens mortos. Ele já está morto, que me queime, já está cheio de sangue. Prendeu o cabo de volta no cinturão e começou a andar depressa.
Pôde vê-la logo no segundo passo, um vulto esguio no canto da praça, com saias apertadas e escuras. Ela se virou para correr, Perrin conseguiu ver que as saias eram divididas para cavalgada. Ela saiu correndo de volta para a rua e desapareceu.
Lan o encontrou antes que ele chegasse ao local onde a moça estava parada. O Guardião olhou a jaula vazia ao lado da forca e os amontoados de sombras brancas reluzindo ao luar e jogou a cabeça para trás, como se estivesse prestes a explodir. Com a voz contida e dura como o aro de uma roda nova, disse:
— Isso é obra sua, ferreiro? Que a Luz me queime! Alguém pode ligar isso a você?
— Uma garota — respondeu Perrin. — Acho que ela viu. Não quero machucá-la, Lan! Muitos outros também podem ter visto. Há um monte de janelas iluminadas à nossa volta.
O Guardião agarrou Perrin pela manga do casaco e o empurrou em direção à estalagem.
— Vi uma garota correndo, mas achei… não importa. Tire o Ogier lá de dentro e o arraste até o estábulo. Depois, vamos levar os cavalos para as docas o mais rápido possível. Só a Luz sabe se há um navio partindo hoje à noite, ou quanto terei que pagar para contratar um. Não faça perguntas, ferreiro! Ande! Corra!