Deitada na cama estreita, Egwene franzia a testa para as sombras tremeluzentes que o único lampião do quarto formava no teto. Desejava poder criar algum plano, ou ao menos deduzir o que esperar. Não tinha ideia. As sombras eram mais organizadas que seus pensamentos. Ela mal conseguia se preocupar com Mat, porém mesmo isso não a fazia sentir mais do que uma leve vergonha, esmagada pelas paredes ao redor.
Era um quarto austero e sem janelas, como todos no alojamento das noviças, pequeno, quadrado e pintado de branco, com pinos para pendurar pertences em uma parede, uma cama encostada em outra e uma pequenina prateleira em uma terceira, onde em outros tempos ela guardava alguns livros que pegara emprestados da biblioteca da Torre. Um lavatório e um banquinho de três pés completavam o mobiliário. As tábuas do chão eram quase brancas de tanto serem esfregadas. Ela fizera isso, ajoelhada no chão, todos os dias em que morou ali, além de outras tarefas domésticas e lições. As noviças levavam uma vida simples, não importava se eram filhas de estalajadeiros ou a Filha-herdeira de Andor.
Ela usava outra vez o vestido branco e simples de noviça, até mesmo o cinturão e a bolsa eram brancos, mas não estava feliz por ter se livrado daquele cinza odioso. Seu quarto se tornara muito similar a uma prisão. E se elas tiverem intenção de me manter aqui? Neste quarto, feito uma cela? Feito o colar, e…
Ela olhou para a porta — a Aceita de pele escura sem dúvida ainda montava guarda do outro lado —, e se aproximou da parede caiada. Logo acima do colchão havia um pequeno buraco, quase imperceptível para quem não soubesse onde ficava, aberto por noviças de muito tempo atrás. Egwene chamou, em um sussurro:
— Elayne? — Não houve resposta. — Elayne? Está dormindo?
— Como é que eu posso dormir? — respondeu Elayne pelo buraco, com um sussurro agudo. — Sabia que teríamos problemas, mas não esperava por isso. Egwene, o que elas vão fazer com a gente?
Egwene não soube responder, e os palpites que tinha não eram do tipo que gostaria de pronunciar em voz alta. Ela preferia nem pensar a respeito.
— Cheguei a pensar que seríamos consideradas heroínas, Elayne. Nós trouxemos a Trombeta de Valere de volta e a salvo. Descobrimos que Liandrin era da Ajah Negra. — Sua voz falhou ao dizer isso. Aes Sedai sempre negaram a existência de uma Ajah Negra, uma Ajah que servia ao Tenebroso, e era notório como se irritavam com quem sequer insinuasse que aquilo fosse verdade. Mas sabemos que é verdade. — Deveríamos ser consideradas heroínas, Elayne.
— “Ias” e “devias” não erguem pontes — retrucou Elayne. — Luz, eu odiava quando mamãe me dizia isso, mas é verdade. Verin disse que não devemos mencionar a Trombeta, ou Liandrin, a ninguém além dela ou do Trono de Amyrlin. Acho que nada disso vai ser como imaginamos. Não é justo. Já passamos por tanta coisa, você já passou por tanta coisa. Simplesmente não é justo.
— Verin disse, Moiraine disse. Sei por que as pessoas pensam que Aes Sedai são titereiras. Quase consigo sentir as cordinhas nos meus braços e pernas. Seja lá o que fizerem, será apenas o que considerarem bom para a Torre Branca, e não bom ou justo para nós.
— Mas você ainda quer ser uma Aes Sedai. Não quer?
Egwene hesitou, mas jamais houve dúvida em relação à resposta.
— Sim — respondeu. — Ainda quero. É a única maneira de nos mantermos seguras. Mas vou dizer uma coisa. Não vou deixar me estancarem. — Aquela era uma ideia nova, verbalizada assim que se formou, mas ela percebeu que não queria voltar atrás no que disse. Desistir de tocar a Fonte Verdadeira? Era capaz de senti-la ali mesmo, naquele instante, o brilho tênue bem acima de seu ombro e logo sumindo de vista. Ela resistiu ao desejo de tentar alcançá-la. Desistir de ser preenchida pelo Poder Único, de me sentir mais viva do que nunca? Não! — Não sem lutar.
Um longo silêncio se fez do outro lado da parede.
— Como é que você poderia impedir isso? Você até pode ser forte como elas agora, mas nem eu e nem você sabemos o suficiente para sequer impedir uma Aes Sedai de bloquear nosso acesso à Fonte, e há dezenas delas por aqui.
Egwene refletiu e, por fim, disse:
— Eu poderia fugir. Fugir de verdade, dessa vez.
— Elas iriam atrás da gente, Egwene. Tenho certeza. É só você mostrar a menor habilidade que for, e elas não a deixarão ir embora até aprender o suficiente para não se matar. Ou até acabar morrendo.
— Não sou mais uma simples garotinha de aldeia. Já conheço o mundo. Posso me manter longe das Aes Sedai, se quiser. — Ela tentava convencer tanto Elayne quanto a si mesma. E se eu ainda não souber o suficiente? Sobre o mundo, sobre o Poder? E se eu ainda puder morrer só por canalizar? Ela se recusava a pensar naquilo. Ainda tenho tanto a aprender. Não vou deixar que me impeçam.
— Minha mãe talvez possa nos proteger — disse Elayne —, se o que aquele Manto-branco disse for verdade. Nunca pensei que algum dia fosse desejar que uma coisa daquelas fosse verdade. Mas, se não for, é muito provável que a Mãe nos mande embora acorrentadas. Você vai me ensinar a viver em uma aldeia?
Egwene apenas piscou.
— Você virá comigo? Quer dizer, se chegarmos a esse ponto?
Outro longo silêncio se fez, seguido de um sussurro fraco.
— Não quero ser estancada, Egwene. Não vou ser estancada. Não vou!
A porta se abriu com um tranco e bateu na parede. Assustada, Egwene se sentou. Ela ouviu a pancada de uma porta do outro lado da parede. Faolain entrou no quarto de Egwene sorrindo, e seus olhos miraram o buraco diminuto. Havia buracos como aqueles na maioria dos quartos das noviças, qualquer mulher que tivesse ocupado aquela posição sabia disso.
— Cochichando com a amiga, é? — perguntou a Aceita de cabelos cacheados com surpreendente simpatia. — Está certo, é muito solitário esperar sozinha. A conversa foi agradável?
Egwene abriu a boca, mas fechou-a mais do que depressa. Ela podia responder a uma Aes Sedai, dissera Sheriam. E a mais ninguém. Olhou a Aceita com uma expressão firme e esperou.
A falsa simpatia sumiu do rosto de Faolain como água escorrendo de um telhado.
— De pé. A Amyrlin não pode ficar esperando por gente da sua laia. Vocês tiveram sorte por eu não ter chegado a tempo de escutar as duas. Ande!
As noviças deveriam obedecer às Aceitas quase com a mesma rapidez com que obedeciam às Aes Sedai, mas Egwene levantou-se bem devagar e ficou alisando o vestido pelo tempo que sua coragem permitiu. Depois, fez uma pequena mesura e deu um sorrisinho a Faolain. A carranca que surgiu no rosto da Aceita fez o sorriso de Egwene se alargar ainda mais antes que ela se lembrasse de contê-lo: não havia por que provocá-la demais. De pé, disfarçando a tremedeira nos joelhos, ela saiu do quarto na frente da Aceita.
Elayne já aguardava do lado de fora com a Aceita de maçãs do rosto salientes, parecendo determinada a ser corajosa. De alguma forma, conseguia dar a impressão de que a Aceita era uma criada que levava suas luvas. Egwene esperou que tivesse ao menos a metade daquele desempenho.
Os corredores gradeados do alojamento das noviças subiam por muitos andares em uma coluna oca, e desciam tantos outros até o Pátio das Noviças. Não havia outras mulheres à vista. No entanto, mesmo que cada noviça da Torre estivesse ali, menos de um quarto dos dormitórios seriam preenchidos. As quatro atravessaram os corredores vazios e desceram as rampas espiraladas em silêncio: ninguém suportaria os sons de vozes acentuando o vazio.
Egwene jamais adentrara a parte da Torre onde ficavam os aposentos da Amyrlin. Os corredores eram tão amplos que uma carroça passaria por ali sem dificuldade, e a altura era ainda maior que a largura. Tapeçarias coloridas pendiam das paredes em dezenas de estilos, desenhos florais e cenários florestais, feitos heroicos e padrões intrincados, alguns tão antigos que talvez se despedaçassem se fossem manuseados. Os sapatos produziam estalidos altos no chão de azulejos em formato de diamantes que reproduziam as cores das setes Ajahs.
Havia poucas mulheres à vista: algumas Aes Sedai aqui e ali, com seu andar majestoso, sem tempo para reparar em Aceitas ou noviças, e cinco ou seis Aceitas andando apressadas para cuidar de suas tarefas ou estudos, com um ar todo importante. Além delas, havia um punhado de servas com bandejas, esfregões ou uma pilha de lençóis ou toalhas nos braços, e umas poucas noviças cheias de incumbências, ainda mais apressadas que as servas.
Nynaeve e sua acompanhante de pescoço delgado, Theodrin, juntaram-se a elas. Nenhuma das duas disse uma palavra. Nynaeve usava um vestido de Aceita, branco com as sete faixas coloridas na barra, mas o cinturão e a bolsa eram dela. Ela deu a Egwene e Elayne um sorriso reconfortante e um abraço. Egwene estava tão aliviada em ver outro rosto amigo que retribuiu o abraço quase sem pensar que Nynaeve agia como se consolasse uma criança. Mas, à medida que foram caminhando, Nynaeve passou a dar uns puxões fortes na trança grossa.
Pouquíssimos homens iam àquela parte da Torre, e Egwene viu apenas dois: Guardiões que caminhavam lado a lado, conversando. Um com a espada na cintura, e o outro, nas costas. Um era pequeno e esbelto, quase esguio, o outro era alto com ombros muito largos. Ainda assim, ambos se moviam com uma graça perigosa. Os mantos que mudavam de cor deixavam enjoado quem tentasse encarar os dois Guardiões por muito tempo, e algumas partes dos mantos às vezes pareciam sumir por entre as paredes. Ela viu Nynaeve olhando para eles e balançou a cabeça. Ela precisa tomar alguma atitude em relação a Lan. Isso se alguma de nós for capaz de tomar qualquer atitude, depois de hoje.
A antessala do gabinete do Trono de Amyrlin era suntuosa o bastante para pertencer a um palácio, embora as cadeiras espalhadas para os que precisassem esperar fossem simples. No entanto, Egwene só tinha olhos para Leane Sedai. A Curadora usava a pequena estola que revelava seu ofício, feita de pano azul, para mostrar sua Ajah de origem. Seu rosto poderia ter sido esculpido em pedra marrom lisa. Não havia mais ninguém ali.
— Elas causaram algum problema? — O jeito áspero de falar da Curadora não indicava raiva nem simpatia.
— Não, Aes Sedai — disseram Theodrin e a Aceita com as maçãs do rosto salientes.
— Essa aqui teve que ser puxada pelos cabelos, Aes Sedai — disse Faolain, apontando para Egwene. A Aceita soava indignada. — Empacou como se tivesse esquecido da disciplina da Torre Branca.
— Liderar — respondeu Leane — não é empurrar e nem puxar. Vá até Marris Sedai, Faolain, e peça permissão para meditar a respeito disso enquanto varre os corredores do Jardim da Primavera. — Ela dispensou Faolain e as outras duas Aceitas, que se curvaram em mesuras profundas. Antes mesmo de se levantar, Faolain lançou a Egwene um olhar furioso.
A Curadora não deu atenção à saída das Aceitas. Em vez disso, examinou as outras mulheres, batendo o indicador nos lábios, até que Egwene teve a sensação de que todas haviam sido avaliadas do dedão do pé até o último fio de cabelo. Nynaeve agarrava a trança com firmeza e tinha um brilho perigoso nos olhos.
Enfim, Leane ergueu uma das mãos em direção à porta do gabinete da Amyrlin. Um passo adiante, a Grande Serpente mordia o próprio rabo, gravada na madeira escura de cada uma das portas.
— Entrem — disse.
Nynaeve prontamente deu um passo à frente e abriu uma das portas. Foi o bastante para fazer Egwene se mexer. Elayne segurou sua mão com força, e a jovem retribuiu o aperto com a mesma intensidade. Leane seguiu as três e se posicionou de um dos lados, entre as moças e a mesa no centro da sala.
A Amyrlin estava sentada atrás da mesa, examinando alguns papéis. Não ergueu os olhos. Nynaeve chegou a abrir a boca, mas fechou-a outra vez, sob o olhar de advertência da Curadora. As três formaram uma fila diante da mesa da Amyrlin e aguardaram. Egwene tentou não se inquietar. Longos minutos se passaram, pareceram horas, até que a Amyrlin levantou a cabeça. Mas, quando aqueles olhos azuis encararam uma de cada vez, Egwene decidiu que não teria sido ruim esperar mais um pouco. O olhar da Amyrlin era como duas lanças de gelo enterrando-se em seu coração. A sala estava fria, mas um fio de suor começou a descer pelas costas de Egwene.
— Então! — começou a Amyrlin, enfim. — Nossas fugitivas estão de volta.
— Nós não fugimos, Mãe. — Era óbvio que Nynaeve se esforçava para manter a calma, mas sua voz tremia. De raiva, Egwene sabia. Aquela obstinação de Nynaeve costumava vir acompanhada de raiva. — Liandrin nos mandou seguir com ela, e… — O ruído forte da mão da Amyrlin batendo na mesa a interrompeu.
— Não fale o nome de Liandrin aqui, criança! — cortou a mulher, ríspida. Leane assistia a tudo com uma calma impassível.
— Mãe, Liandrin é da Ajah Negra — soltou Elayne.
— Já sabemos disso, criança. Suspeitamos, pelo menos, e já é o suficiente. Liandrin deixou a Torre alguns meses atrás, e doze outras… mulheres foram atrás dela. Nenhuma foi vista desde então. Antes de partirem, elas tentaram invadir o depósito onde guardamos angreal e sa’angreal. Conseguiram até entrar no depósito onde ficam os ter’angreal menores. Roubaram vários, muitos dos quais não temos certeza da serventia.
Nynaeve encarava a Amyrlin, horrorizada, e de súbito Elayne esfregou os braços como se sentisse frio. Ela sabia que também estava tremendo. Imaginara tantas vezes retornar para confrontar e acusar Liandrin, para vê-la sofrer alguma punição… mas jamais conseguira pensar em um castigo com a severidade adequada para os crimes daquela Aes Sedai com cara de boneca. Até concebera voltar e descobrir que Liandrin havia fugido — o que costumava ser acompanhado pelo temor de que ela voltasse. Mas jamais cogitara algo desse tipo. Se Liandrin e as outras — não quisera de fato crer que havia outras — tinham roubado aqueles fragmentos da Era das Lendas, era impossível prever o que poderiam fazer com eles. Graças à Luz elas não pegaram nenhum sa’angreal, pensou. Terem levado os ter’angreal já era ruim o bastante.
Sa’angreal eram como angreal: permitiam que uma Aes Sedai canalizasse com segurança muito mais do Poder do que sua capacidade em geral permitia, mas eram muitíssimo mais poderosos e raros. Os ter’angreal eram um pouco diferentes. Existiam em maior número que os angreal e sa’angreal, embora não fossem muito comuns. Eles utilizavam o Poder Único, em vez de ajudar a canalizá-lo, e ninguém os compreendia direito. Muitos funcionavam apenas para aqueles capazes de canalizar e requeriam que isso acontecesse, enquanto outros funcionavam com qualquer um. Todos os angreal e sa’angreal de que Egwene já ouvira falar eram pequenos, mas os ter’angreal podiam, ao que parecia, assumir qualquer tamanho. Pelo que sabia, cada um fora fabricado com um propósito específico, por Aes Sedai de três mil anos atrás. E, desde então, Aes Sedai morreram tentando descobrir quais eram esses propósitos. Morreram ou tiveram a capacidade de canalizar destruída. Algumas irmãs da Ajah Marrom tinham os ter’angreal como objeto de estudo.
Alguns estavam em uso, mesmo que talvez não para os propósitos para os quais haviam sido fabricados. A pesada barra branca que as Aceitas seguravam ao fazer os Três Juramentos quando se tornavam Aes Sedai completas era um ter’angreal, e gravava os juramentos nas mulheres de maneira tão profunda que era como se fossem incrustados em seus cernes. Outro ter’angreal era o local do teste final para uma noviça ser elevada a Aceita. Havia ainda outros, incluindo muitos que ninguém era capaz de ativar, e muitos que pareciam não ter propósito.
Por que elas levaram coisas que ninguém sabe usar? Egwene se perguntou. Ou talvez a Ajah Negra saiba usar. Essa possibilidade fez seu estômago se embrulhar. Talvez aquilo fosse tão ruim quanto um sa’angreal nas mãos de Amigos das Trevas.
— O roubo — prosseguiu a Amyrlin, em um tom tão frio quanto seus olhos — não foi o que fizeram de pior. Três irmãs morreram naquela noite, assim como dois Guardiões, sete guardas e nove serviçais. Cometeram assassinatos para encobrir o roubo e a fuga. Talvez isso não prove que elas são da… Ajah Negra — as palavras deixaram sua boca como um chiado —, mas não posso acreditar em outra coisa. Se há cabeças de peixe e sangue na água, não é preciso ver os lúcios para ter certeza da sua presença.
— Então por que estamos sendo tratadas feito criminosas? — inquiriu Nynaeve. — Fomos enganadas por uma mulher da… Ajah Negra. Isso já deveria ser o suficiente para nos absolver de qualquer transgressão.
A Amyrlin soltou uma gargalhada desconsolada.
— Você acredita mesmo nisso, criança? Talvez sua salvação seja que ninguém na Torre além de Verin, Leane e eu sequer suspeite que vocês têm algo a ver com Liandrin. Se isso se espalhasse, ou mesmo a pequena demonstração que fizeram para os Mantos-brancos… não precisam se espantar, Verin me contou tudo. Se ficarem sabendo que vocês partiram com Liandrin, o Salão sem dúvida votará pelo estancamento das três antes que consigam piscar os olhos.
— Isso não é justo! — reclamou Nynaeve. Leane mudou de posição, inquieta, mas Nynaeve prosseguiu: — Isso não é certo! Isso…
A Amyrlin se levantou. Foi só o que fez, mas Nynaeve parou.
Egwene se considerou sensata por ficar calada. Sempre acreditara que Nynaeve era mais forte e tinha mais força de vontade que todos. Até conhecer a mulher da estola listrada. Por favor, não perca a cabeça, Nynaeve. Nós somos como crianças, como bebês enfrentando a mãe, e essa Mãe pode nos dar muito mais do que umas palmadas.
Ela sentiu que a Amyrlin lhes oferecia uma saída, mas não soube ao certo qual.
— Mãe, peço perdão por falar, mas o que a senhora pretende fazer conosco?
— Fazer com vocês, criança? Pretendo punir você e Elayne por deixarem a Torre sem permissão, e a Nynaeve por deixar a cidade sem permissão. Primeiro, cada uma será chamada ao gabinete de Sheriam Sedai, onde já pedi que ela lhes encha de varadas até desejarem passar a próxima semana em cima de uma almofada. Já anunciei isso às noviças e às Aceitas.
Egwene piscou, surpresa. Elayne soltou um grunhido alto, endireitou as costas e murmurou algo entre dentes. Nynaeve era a única que parecia ter recebido a notícia sem choque. As punições, fossem trabalhos extras ou qualquer outra coisa, eram sempre mantidas entre a Mestra das Noviças e quem fosse enviada a ela. Em geral eram noviças, mas também acontecia com Aceitas que desobedeciam às regras. Sheriam sempre mantém tudo entre você e ela, pensou Egwene, sombria. Ela não pode ter contado a todo mundo. Mas é melhor do que ficar presa. Melhor do que ser estancada.
— O anúncio faz parte da punição, é claro — prosseguiu a Amyrlin, como se tivesse lido os pensamentos de Egwene. — Também anunciei que vocês três serão mandadas às cozinhas, para trabalhar com as ajudantes até segunda ordem. E deixei escapar que a “segunda ordem” pode significar o resto da sua vida. Alguma objeção?
— Não, Mãe — respondeu Egwene depressa. Nynaeve odiaria esfregar panelas, até mais que a visita ao gabinete de Sheriam. Poderia ser pior, Nynaeve. Luz, poderia ser muito pior. A Sabedoria inflou as narinas, mas fez que não com a cabeça, rígida.
— E você, Elayne? — inquiriu a Amyrlin. — A Filha-herdeira de Andor está acostumada a um tratamento mais amável.
— Quero ser Aes Sedai, Mãe — respondeu Elayne, com a voz firme.
A Amyrlin apontou para um papel na mesa diante de si e pareceu analisá-lo por um instante. Quando ergueu a cabeça, tinha um sorriso nada agradável.
— Se alguma de vocês tivesse sido burra o bastante para responder qualquer outra coisa, eu ainda acrescentaria outra coisa à lista, algo que as faria amaldiçoar o dia em que seu pai roubou o primeiro beijo de sua mãe. Arrancaria vocês da Torre feito crianças inconsequentes. Nem um bebê cairia nessa armadilha. Vou ensiná-las a pensar antes de agir ou usá-las para tapar as fendas da represa!
Egwene percebeu que agradecia em silêncio. Um arrepio percorreu sua pele quando a Amyrlin prosseguiu:
— Agora, quanto ao que mais pretendo fazer com vocês. Parece que todas as três tiveram progresso considerável na habilidade de canalizar desde que deixaram a Torre. Vocês aprenderam bastante. Inclusive algumas coisas — acrescentou, com rispidez — que pretendo que desaprendam!
Nynaeve surpreendeu Egwene ao dizer:
— Sei que fizemos… coisas… que não deveríamos ter feito, Mãe. Eu garanto à senhora que faremos todo esforço possível para viver como se já tivéssemos feito os Três Juramentos.
A Amyrlin soltou um grunhido.
— Façam isso mesmo — respondeu, seca. — Se eu pudesse, colocaria o Bastão dos Juramentos nas mãos das três hoje mesmo, mas como ele é reservado às que são elevadas a Aes Sedai, devo confiar que o bom senso de vocês, se é que ainda lhes resta algum, as conservará inteiras. Sendo assim, você, Egwene, e você, Elayne, serão elevadas a Aceitas.
Elayne ofegou, e Egwene gaguejou, chocada:
— Obrigada, Mãe.
Leane se remexeu onde estava. A Curadora não parecia muito satisfeita. Não parecia surpresa — estava claro que sabia o que aconteceria —, mas também não estava satisfeita.
— Não me agradeçam. Vocês levaram as habilidades longe demais para continuarem como noviças. Alguns pensarão que não deveriam usar o anel, não depois do que fizeram, mas vê-las com os cotovelos enfiados em panelas engorduradas calará as críticas. E, para que não comecem a achar que isso é algum tipo de recompensa, lembrem-se de que as primeiras semanas como Aceitas servem para separar os peixes podres dos bons. O pior dia que tiveram como noviças parecerá um sonho dourado comparado ao aprendizado mais simples que terão durante as próximas semanas. Suspeito que algumas das irmãs instrutoras lhes darão testes ainda piores do que deveriam ser, a rigor, mas não creio que vocês vão reclamar. Estou errada?
Posso aprender, pensou Egwene. Escolherei meus próprios estudos. Posso aprender sobre os sonhos, aprender a…
O sorriso da Amyrlin interrompeu seus pensamentos. Aquele sorriso afirmava que nada do que as irmãs fizessem com elas seria pior do que mereciam, se as deixassem vivas. O rosto de Nynaeve era uma mistura de profunda compaixão e recordação horrorizada de suas próprias primeiras semanas como Aceita. A combinação bastou para fazer Egwene engolir em seco.
— Não, Mãe — respondeu, com a voz fraca.
A resposta de Elayne foi um sussurro rouco.
— Então está resolvido. Sua mãe não ficou nada contente com seu sumiço, Elayne.
— Ela sabe? — perguntou a jovem, com voz aguda.
Leane fungou, e a Amyrlin arqueou uma sobrancelha.
— Não tive como esconder. Vocês se desencontraram por menos de um mês, o que pode ter sido bom para você. Talvez você não tivesse sobrevivido àquele encontro. Ela entrou aqui com cara de quem iria roer um remo, furiosa com você, comigo, com a Torre Branca.
— Posso imaginar, Mãe — disse Elayne, baixinho.
— Acho que não pode, criança. Talvez você tenha acabado com uma tradição que começou antes de Andor existir. Um costume mais forte que a maioria das leis. Morgase se recusou a levar Elaida de volta. Pela primeira vez, a Rainha de Andor não tem uma conselheira Aes Sedai. Ela exigiu que você retornasse a Caemlyn imediatamente, assim que fosse encontrada. Eu a convenci de que seria mais seguro que você treinasse um pouco mais por aqui. Ela também queria retirar seus dois irmãos do treinamento com os Guardiões. Eles a dissuadiram sozinhos. Ainda não sei como conseguiram.
Elayne pareceu refletir, talvez estivesse imaginando Morgase em toda a sua fúria. Ela estremeceu.
— Gawyn é meu irmão — disse, absorta. — Galad, não.
— Não seja infantil — retrucou a Amyrlin. — Ter o mesmo pai torna Galad seu irmão também, quer você goste dele ou não. Não permitirei este tipo de imaturidade, menina. É possível tolerar certa dose de estupidez em uma noviça. Em uma Aceita, não.
— Está bem, Mãe — cedeu Elayne, taciturna.
— A Rainha deixou uma carta para você com Sheriam. Além de lhe passar um sermão, acredito que ela vá expor a intenção de levar você para casa assim que for seguro. Ela tem certeza de que, em alguns meses, você será capaz de canalizar sem pôr a própria vida em risco.
— Mas eu quero aprender, Mãe. — A frieza retornou à voz de Elayne. — Quero ser uma Aes Sedai.
A Amyrlin deu um sorriso ainda mais sombrio que o anterior.
— Que bom, criança, porque eu não tenho intenção nenhuma de deixar que Morgase a leve daqui. Você tem potencial para ser mais forte que qualquer Aes Sedai em mil anos, e não deixarei que vá embora antes de obter o xale e o anel. Mesmo que para isso precise arrancar seu couro. Não vou desistir de você. Estamos entendidas?
— Estamos, Mãe. — Elayne parecia incomodada, e Egwene não a culpava. Dividida entre Morgase e a Torre Branca feito um osso entre dois cachorros, dividida entre a Rainha de Andor e o Trono de Amyrlin. Se Egwene em alguns momentos chegou a invejar Elayne pela riqueza e pelo trono que um dia ocuparia, aquele sem dúvida não era um deles.
A Amyrlin disse com vigor:
— Leane, desça com Elayne até o gabinete de Sheriam. Ainda tenho umas palavrinhas para dizer às outras duas. Palavras que creio que não gostarão de ouvir.
Egwene e Nynaeve trocaram olhares assustados por um instante: a preocupação dissolveu a tensão entre as duas. O que ela tem para dizer a nós e não a Elayne?, pensou. Não importa, desde que não me impeça de aprender. Mas por que não Elayne, também?
Elayne fez uma careta ao ouvir a menção ao gabinete da Mestra das Noviças, mas se endireitou quando Leane se aproximou.
— Como a senhora ordenar, Mãe — disse, em um tom formal e curvou-se em uma mesura perfeita, segurando a saia —, assim farei. — E saiu atrás de Leane, de cabeça erguida.