38 Donzelas da Lança

Egwene abraçou saidar antes mesmo que o grito saísse de sua boca, e também notou o brilho tênue ao redor de Elayne. Por um instante, perguntou-se se Ellisor teria ouvido seus gritos e enviaria socorro, pois o Garça Azul não podia estar a mais de uma milha rio acima. Na mesma hora, dispensou a necessidade de ajuda, transformando fluxos de Ar e Fogo em raios, antes mesmo de parar de gritar.

Nynaeve simplesmente ficou parada de braços cruzados, uma expressão firme no rosto, mas Egwene não sabia ao certo se era porque não estava irritada o bastante para tocar a Fonte Verdadeira ou se era porque já tinha reparado no que ela própria só notara depois. A pessoa que as encarava era uma mulher, e não mais velha que a própria Egwene, ainda que um tanto mais alta.

Ela não abandonou saidar. Os homens às vezes eram muito tolos em acreditar que uma mulher era inofensiva só por ser mulher, mas Egwene não sofria desse tipo de ilusão. Com um cantinho da mente, percebeu que Elayne já não estava rodeada pelo brilho suave. A Filha-herdeira ainda devia nutrir aquelas ideias tolas. Ela nunca foi prisioneira dos Seanchan.

Egwene acreditava que não eram muitos os homens burros o suficiente para pensar que a mulher diante delas não era perigosa, mesmo que estivesse de mãos vazias e parecesse não portar armas. Tinha olhos verde-azulados e cabelos vermelhos bem curtos, a não ser por um fino rabo de cavalo que pendia dos ombros. Usava botas macias amarradas até os joelhos, casaco e calças justos e em tons de terra e rocha. Ela conhecia a descrição daquelas roupas e tons de cores: a mulher era uma Aiel.

Olhando para ela, Egwene sentiu uma súbita e estranha afinidade. Não conseguia entender. Ela parece prima de Rand, é por isso. Ainda assim, a sensação, que era quase de parentesco, não conteve a curiosidade. O quê, sob a Luz, uma Aiel está fazendo aqui? Eles nunca saem do Deserto, não desde a Guerra dos Aiel. A sua vida inteira ouvira histórias sobre como os Aiel eram mortíferos e as Donzelas da Lança não eram menos temíveis que os integrantes das sociedades guerreiras masculinas, mas não sentia qualquer medo em particular, apenas certa irritação por algum dia ter sentido medo. Com saidar alimentando o Poder Único dentro dela, não era preciso temer qualquer um. Exceto talvez uma irmã completa, admitiu. Mas sem dúvida não uma mulher qualquer, mesmo que seja Aiel.

— Meu nome é Aviendha — disse a Aiel —, do ramo dos Nove Vales dos Aiel Taardad. — Seu rosto era tão frio e inexpressivo quanto a voz. — Sou Far Dareis Mai, uma Donzela da Lança. — Ela fez uma pequena pausa e analisou as mulheres à frente. — Vocês não têm os rostos, mas vimos os anéis. Nessas suas terras há mulheres muito parecidas com as nossas Sábias, mulheres chamadas Aes Sedai. Vocês vêm da Torre Branca, não vêm?

Egwene sentiu um desconforto momentâneo. Vimos? Olhou em volta com cautela, mas não havia ninguém atrás de qualquer um dos arbustos a menos de vinte passos dali.

Se houvesse outros, deviam estar no matagal próximo, mais de duzentos passos à frente, ou no anterior, ao dobro da distância. Muito longe para oferecerem qualquer ameaça. A não ser que tenham arcos. Mas teriam de ser muito bons arqueiros. Em casa, nas competições no Bel Tine e no Dia do Sol, apenas os melhores arqueiros atiravam a qualquer distância maior que duzentos passos.

No entanto, ainda se sentia melhor por saber que podia lançar um relâmpago em qualquer um que tentasse atirar.

— Somos mulheres da Torre Branca — respondeu Nynaeve, tranquila. Demonstrava claramente não procurar outras Aiel. Até Elayne espiava ao redor. — Se você consideraria alguma de nós sábia, é outra questão — prosseguiu Nynaeve. — O que quer de nós?

Aviendha sorriu. Era de fato muito linda, reparou Egwene. A expressão séria mascarara sua beleza.

— Você fala como Sábia. Vai direto ao ponto e não se prende a tolices. — O sorriso se desfez, mas a voz se manteve calma. — Uma das nossas está muito ferida, quiçá morrendo. As Sábias muitas vezes curam os que morreriam não fosse a ajuda delas, e ouvi dizer que as Aes Sedai podem fazer ainda mais. Podem ajudá-la?

Egwene quase sacudiu a cabeça, confusa. Uma amiga dela está morrendo? Ela fala como se estivesse pedindo emprestada uma xícara de farinha de cevada!

— Ajudarei, se puder — respondeu Nynaeve, devagar. — Não posso prometer nada, Aviendha. Pode ser que ela morra apesar dos meus esforços.

— A morte chega para todos — retrucou a Aiel. — Podemos apenas escolher como encará-la, quando chegar. Eu as levarei até ela.

Duas mulheres em trajes Aiel se levantaram a não mais de dois passos de distância, uma saiu de uma pequena depressão no solo que Egwene não imaginava que fosse capaz de esconder sequer um cachorro, a outra, de um matagal que chegava no máximo até os joelhos. Abaixaram os véus negros quando levantaram, o que foi outro choque: tinha certeza de ter ouvido Elayne contar que os Aiel só escondiam os rostos quando havia a chance de precisarem matar. Depois, ajeitaram nos ombros o pedaço de tecido que cobrira suas cabeças. Uma delas tinha os mesmos cabelos vermelhos de Aviendha, mas os olhos cinzentos, já a outra tinha olhos azul-escuros e cabelos cor de fogo. Nenhuma era mais velha que Egwene ou Elayne, e ambas pareciam prontas para usar as lanças curtas que tinham nas mãos.

A mulher de cabelos de fogo entregou algumas armas a Aviendha. Uma faca de lâmina comprida e pesada para prender em um dos lados do cinturão e uma aljava de pelos que era presa ao outro lado. Um arco curvo e escuro cujo brilho fraco indicava ser feito de chifre envolvido em uma capa que era presa às costas. Quatro lanças curtas com pontas longas para prender na mão esquerda, junto com um pequeno broquel redondo feito de couro. Aviendha, assim como suas companheiras, usava todas aquelas armas com a mesma naturalidade com que qualquer mulher de Campo de Emond usaria uma echarpe.

— Venham — disse ela, e avançou por onde as três Aceitas já haviam passado.

Egwene enfim liberou saidar. Suspeitava que, se quisessem, todas as três Aiel poderiam golpeá-la com aquelas lanças antes que pudesse fazer qualquer coisa. Entretanto, embora as estrangeiras estivessem cautelosas, ela achava que não atacariam. E se Nynaeve não conseguir Curar a amiga delas? Gostaria que ela pedisse nossa opinião antes de tomar essas decisões que envolvem nós três!

Enquanto avançavam em direção às árvores, as Aiel vasculhavam o terreno em volta como se esperassem que aquele cenário vazio ocultasse inimigos com tanta perícia em se esconder quanto elas próprias.

— Sou Elayne, da Casa Trakand — disse a Aceita loura, como se quisesse puxar conversa —, Filha-herdeira de Morgase, Rainha de Andor.

Egwene cambaleou. Luz, será que ela perdeu o juízo? Sei que Andor lutou na Guerra dos Aiel. Pode ter sido há vinte anos, mas dizem que os Aiel têm boa memória.

Mas a Aiel de cabelos de fogo, que estava mais próxima a ela, apenas respondeu:

— Sou Bain, do ramo da Pedra Negra dos Aiel Shaarad.

— Sou Chiad — disse a mulher mais baixa e de cabelos mais claros, do outro lado —, do ramo do Rio de Pedras dos Aiel Goshien.

Bain e Chiad olharam para Egwene. Não alteraram as expressões, mas a jovem teve a sensação de que pensavam que ela estava sendo mal-educada.

— Sou Egwene al’Vere — disse a elas. As duas pareciam aguardar algo mais, então acrescentou: — Filha de Marin al’Vere, do Campo de Emond, em Dois Rios. — Aquilo pareceu satisfazê-las de alguma forma, mas apostava que as Aiel tinham entendido tanto quanto ela entendera quando falaram de todos aqueles ramos e clãs. Devem ser como famílias, de certa forma.

— São irmãs-primeiras? — Bain parecia perguntar para as três.

Egwene pensou que o termo “irmãs” tivesse o mesmo significado dado pelas Aes Sedai, e respondeu “sim”, ao passo que Elayne disse “não”.

Chiad e Bain trocaram um olhar rápido, que sugeria que achavam que as mulheres com quem conversavam talvez não estivessem muito bem da cabeça.

— Irmãs-primeiras — disse Elayne para Egwene, em um tom professoral — são mulheres que nasceram da mesma mãe. E, quando duas mulheres são irmãs-segundas, significa que as mães delas são irmãs. — Ela então se dirigiu às Aiel. — Nenhuma de nós sabe muita coisa a respeito do seu povo. Peço perdão pela ignorância. Às vezes considero Egwene minha irmã-primeira, mas não somos do mesmo sangue.

— Então por que não falam com suas Sábias? — perguntou Chiad. — Bain e eu nos tornamos irmãs-primeiras.

Egwene apenas piscou, confusa.

— Como é que as pessoas podem se tornar irmãs-primeiras? Ou elas têm a mesma mãe ou não têm. Sem ofensas. A maior parte do que sei sobre vocês, Donzelas da Lança, vem do pouco que Elayne me ensinou. Sei que lutam em batalhas e que não ligam muito para os homens, mas não sei muito mais do que isso. — Elayne assentiu: descrevera as Donzelas para Egwene de uma forma que soara bastante como uma mistura de uma versão feminina dos Guardiões e a Ajah Vermelha.

As Aiel exibiram outra vez aquele olhar, como se não soubessem ao certo qual era o grau de sensatez de Egwene e Elayne.

— Não ligamos muito para os homens? — murmurou Chiad, parecendo intrigada.

Bain franziu a testa, pensativa.

— O que diz está próximo da verdade, mas ao mesmo tempo é completamente falso. Quando desposamos a lança, assumimos o compromisso de não nos ligarmos a homens ou filhos. Mas algumas de nós abrem mão da lança depois, por quererem esse tipo de ligação. — A expressão em seu rosto revelava que ela não compreendia aquilo muito bem. — Mas, uma vez que abrimos mão da lança, não podemos voltar atrás.

— Ou se formos escolhidas para ir a Rhuidean — acrescentou Chiad. — Uma Sábia não pode desposar a lança.

Bain olhou para ela como se a mulher tivesse anunciado que o céu era azul ou que a chuva vinha das nuvens. O olhar que ela lançou em resposta, indicando Egwene e Elayne, explicava que achava que talvez as duas não soubessem sobre aquilo.

— Pois é, é verdade. Embora algumas resistam.

— Resistem mesmo. — Parecia que Chiad e Bain tinham algum acontecimento específico em mente.

— Mas já me desviei demais da explicação que queria dar — prosseguiu Bain. — As Donzelas não dançam as lanças umas com as outras, mesmo que seus clãs dancem um com o outro. Mas a rixa de sangue entre os Aiel Shaarad e os Aiel Goshien já existe há mais de quatrocentos anos, por isso Chiad e eu sentimos que o casamento com a lança não era o bastante. Então fomos às Sábias de nossos clãs para que nos ligassem como irmãs-primeiras. Ela arriscou a própria vida em meu nome, e eu arrisquei a minha em nome dela. Como é de costume entre Donzelas que são irmãs-primeiras, protegemos uma à outra, e nenhuma deixa um homem se aproximar sem que a outra esteja por perto. Não diria que nós não ligamos muito para os homens. — Chiad assentiu, com um indício de sorriso nos lábios. — Esclareci a verdade para você, Egwene?

— Sim — respondeu a Aceita, com a voz fraca. Olhou para Elayne e viu, nos olhos azuis da amiga, a confusão que sabia que também havia nos seus. Não é como a Ajah Vermelha. Talvez a Verde. Uma mistura de Guardiões e Ajah Verde, e não entendo mais nada disso. — A verdade está bem clara agora, Bain. Obrigada.

— Se vocês duas sentem que são irmãs-primeiras — comentou Chiad —, deveriam ir até suas Sábias. Mas vocês são as Sábias, embora jovens. Não sei o que poderia ser feito nesse caso.

Egwene não sabia se ria ou se enrubescia. Não conseguia se livrar do pensamento de ela e Elayne dividindo o mesmo homem. Não, isso é só para as irmãs-primeiras que também são Donzelas da Lança. Certo? As bochechas de Elayne exibiam duas manchas vermelhas, e Egwene teve certeza de que a amiga estava pensando em Rand. Mas não dividimos Rand, Elayne. Ele não pode ser de nenhuma de nós.

Elayne pigarreou.

— Não creio que haja necessidade disso, Chiad. Egwene e eu já protegemos uma à outra.

— Como é que pode? — perguntou Chiad, devagar. — Não desposaram a lança. E são Sábias. Quem levantaria a mão contra uma Sábia? Isso me confunde. Por que necessitam de alguém para protegê-las?

Egwene foi poupada de inventar uma resposta, pois chegaram ao arvoredo. Havia outras duas Aiel sob as árvores, bem no meio do mato, mas perto do rio. Jolien, do ramo do Campo de Sal dos Aiel Nakai, uma mulher de olhos azuis e cabelos acobreados quase da cor dos de Elayne. Ela estava cuidando de Dailin, do mesmo ramo e clã de Aviendha. O suor deixara os cabelos de Dailin úmidos, dando-lhes uma tonalidade de vermelho mais escura, e a jovem abriu os olhos cinzentos apenas uma vez, logo que elas chegaram, e tornou a fechá-los. O casaco e camisa estavam estendidos ao lado dela, e as ataduras que envolviam seu tronco estavam manchadas de vermelho.

— Ela foi ferida pela espada — explicou Aviendha. — Alguns daqueles tolos que esses traidores assassinos da árvore chamam de soldados pensaram que éramos mais um grupo dos bandidos que infestam essas terras. Foi preciso que morressem para se convencerem do contrário, mas Dailin… Pode curá-la, Aes Sedai?

Nynaeve ajoelhou-se ao lado da mulher ferida e levantou as ataduras para analisar o que havia por baixo. Estremeceu com o que viu.

— Vocês mudaram a posição dela, depois que foi ferida? Tem uma crosta, mas está rompida.

— Ela queria morrer perto da água — respondeu Aviendha. Lançou um olhar para o rio, mas logo desviou os olhos. Egwene pensou tê-la visto estremecer.

— Tolas! — Nynaeve começou a revirar a bolsa cheia de ervas. — Poderiam tê-la matado, movendo-a com um ferimento desses. Ela queria morrer perto da água! — repetiu, indignada. — Só porque carregam armas como homens não quer dizer que precisam pensar como eles. — Ela tirou um copo fundo de madeira de dentro da bolsa e entregou-o a Chiad. — Encha. Preciso de água para misturar as ervas que ela vai beber.

Chiad e Bain foram até a margem do rio e retornaram juntas. Suas expressões não se alteraram, mas Egwene achou que elas quase pareciam esperar que o rio fosse se erguer e engoli-las.

— Se não a tivéssemos trazido para o… rio, Aes Sedai — retrucou Aviendha —, nunca teríamos encontrado vocês, e ela acabaria morrendo do mesmo jeito.

Nynaeve deu uma bufada e começou a despejar algumas ervas em pó no copo de água, resmungando, baixinho.

— Raiz-de-cerne ajuda a fazer sangue, erva-de-cão para fechar a carne, e cura-tudo, naturalmente, e… — Ela baixou a voz a um sussurro inaudível. Aviendha a encarava com a testa franzida.

— As Sábias usam ervas, Aes Sedai, mas não sabia que Aes Sedai também usavam.

— Eu uso o que uso! — retrucou Nynaeve, bruscamente, voltando a separar os pós e a murmurar sozinha.

— Ela de fato fala como uma Sábia — sussurrou Chiad para Bain, que respondeu com um aceno contido.

Dailin era a única Aiel sem armas nas mãos, e todas pareciam prontas para usar as que tinham em um piscar de olhos. Nynaeve sem dúvida não está tranquilizando ninguém, pensou Egwene. Faça com que elas falem sobre alguma coisa. Qualquer coisa. Ninguém tem vontade de brigar quando está conversando sobre algo tranquilo.

— Por favor, não se ofendam — começou, cautelosa —, mas percebi que ficam um pouco desconfortáveis com o rio. Ele só fica violento durante as tempestades. Podem nadar nele, se quiserem, embora a corrente seja mais forte para longe das margens.

Elayne sacudiu a cabeça.

As Aiel se mantinham inexpressivas, e Aviendha se pronunciou:

— Eu vi um homem… um shienarano… nadando assim… uma vez.

— Não entendo — disse Egwene. — Sei que não tem muita água no Deserto, mas você disse que é do ramo do “Rio de Pedras”, Jolien. Com certeza já nadou no Rio de Pedras, não?

Elayne olhou para Egwene como se ela estivesse louca.

— Nadar — começou Jolien, sem jeito. — Quer dizer… entrar na água? Toda aquela água? Sem nada para se segurar? — Ela estremeceu. — Aes Sedai, antes de cruzar a Muralha do Dragão eu nunca tinha visto água corrente que não pudesse atravessar com um passo. O Rio de Pedras… alguns dizem que já houve água nele, mas são apenas boatos. Lá só tem as pedras. Os registros mais antigos das Sábias e do chefe do clã confirmam que nunca houve nada além de pedras desde o primeiro dia, quando nosso ramo se separou do ramo da Planície Alta e ocupou aquela terra. Nadar! — Ela agarrou as lanças, como se quisesse lutar com a palavra. Chiad e Bain deram um passo para longe da margem do rio.

Egwene suspirou. E enrubesceu assim que encontrou os olhos de Elayne. Bem, não sou uma Filha-herdeira, para saber de todas essas coisas. Mas vou aprender tudo. Ao olhar para as mulheres Aiel, percebeu que, em vez de confortá-las, deixara todas ainda mais nervosas. Se tentarem alguma coisa, vou paralisá-las com Ar. Ela não fazia ideia se conseguiria capturar as quatro de uma vez só, mas abriu-se para saidar, combinou os fluxos em Ar e os manteve a postos. O Poder pulsava dentro dela com ânsia de ser usado. Nenhum brilho envolvia Elayne, e ela se perguntou por quê. A amiga olhou bem para ela e fez que não com a cabeça.

— Eu jamais faria mal a uma Aes Sedai — falou Aviendha, de repente. — Quero que saibam disso. Não importa se Dailin viver ou morrer, não fará diferença. Eu jamais usaria isso — ela ergueu um pouco uma das lanças curtas — contra uma mulher. E vocês são Aes Sedai.

Egwene teve a súbita sensação de que a mulher é que tentava confortá-las.

— Eu já sabia disso — respondeu Elayne, como se para Aviendha, mas seus olhos mostravam a Egwene que as palavras eram para ela. — Ninguém sabe muito sobre o seu povo, mas aprendi que os Aiel nunca machucam uma mulher, a não ser que tenha… Como foi que você disse? Desposado a lança.

Bain pareceu pensar que, mais uma vez, Elayne falhava em enxergar a verdade com clareza.

— As coisas não são exatamente assim, Elayne. Se uma mulher que não desposou a lança viesse até mim portando armas, eu daria uma surra até ela aprender a ter mais juízo. Um homem… Um homem pode pensar que uma mulher dessas suas terras desposou a lança, caso a veja portando armas. Não sei. Os homens são meio estranhos.

— É claro — concordou Elayne. — Mas, desde que a gente não tente atacá-las com armas, vocês não tentarão nos fazer mal. — Todas as quatro Aiel pareceram chocadas, e a jovem lançou a Egwene um olhar significativo.

Mesmo assim, Egwene agarrou-se a saidar. Só porque ensinaram algo a Elayne, não significava que fosse verdade, ainda que as Aiel concordassem. E saidar produzia… uma sensação boa.

Nynaeve ergueu a cabeça de Dailin e começou a virar a mistura na boca da mulher.

— Beba — ordenou, com a voz firme. — Sei que o gosto é ruim, mas beba tudo.

Dailin engoliu, engasgou e engoliu outra vez.

— Nem se atacarem, Aes Sedai — explicou Aviendha a Elayne. Mas mantinha os olhos fixos em Dailin e Nynaeve. — Dizem que uma época, antes da Ruptura do Mundo, nós servimos às Aes Sedai, embora nenhuma história conte como. Falhamos nesse serviço. Talvez tenha sido esse o pecado que nos condenou à Terra da Trindade, não sei. Ninguém sabe que pecado foi esse, exceto talvez as Sábias e os chefes de clã, e eles não falam sobre o assunto. Dizem que, se falharmos com as Aes Sedai outra vez, elas nos destruirão.

— Beba tudo — murmurou Nynaeve. — Espadas! Espadas, músculos e nenhum cérebro!

— Não seremos nós que vamos destruí-las — retrucou Elayne com firmeza, e Aviendha assentiu.

— Como quiser, Aes Sedai. Mas todas as histórias antigas deixam um ponto muito claro: não devemos jamais lutar contra uma Aes Sedai. Se apontarem seus relâmpagos e seu fogo devastador para mim, dançarei com eles, mas não lhes farei mal algum.

— Esfaquear pessoas — grunhiu Nynaeve. Ela baixou a cabeça de Dailin e pôs a mão na testa da mulher. A Aiel fechou os olhos outra vez. — Esfaquear mulheres! — Aviendha remexeu os pés e franziu a testa, e não era a única das Aiel a fazer isso.

— Fogo devastador — repetiu Egwene. — Aviendha, o que é fogo devastador?

A Aiel direcionou a testa franzida para ela.

— Não sabe, Aes Sedai? Nas histórias antigas, as Aes Sedai o manipulavam. As histórias o descrevem como algo apavorante, mas não sei nada além disso. Dizem que nos esquecemos de muitas coisas que um dia soubemos.

— Talvez a Torre Branca tenha se esquecido de muitas coisas também — respondeu Egwene. Eu sabia disso naquele… sonho, ou seja lá o que tenha sido. Foi tão real quanto Tel’aran’rhiod. Eu poderia apostar com Mat.

— Não têm o direito! — bradou Nynaeve, de repente. — Ninguém tem o direito de dilacerar um corpo! Não é certo!

— Ela está irritada? — perguntou Aviendha, preocupada.

Chiad, Bain e Jolien trocaram olhares aflitos.

— Está tudo bem — respondeu Elayne.

— Está melhor que bem — acrescentou Egwene. — Ela está ficando irritada, e isso é muito melhor que “tudo bem”.

O brilho tênue de saidar envolveu Nynaeve de repente, e Egwene se inclinou para a frente, tentando enxergar, assim como Elayne. Dailin deu um salto na mesma hora, gritando, os olhos arregalados. Um instante depois, Nynaeve apoiou as costas da mulher de volta no chão, e o brilho se extinguiu. Os olhos de Dailin se fecharam, e ela ficou ali deitada, ofegante.

Eu vi, pensou Egwene. Eu… acho que vi. Ela não sabia se conseguira distinguir os muitos fluxos, muito menos a forma como Nynaeve os combinara. O que a outra mulher fizera naqueles poucos segundos fora parecido com tecer quatro carpetes de uma vez só, e com os olhos vendados.

Nynaeve usou as ataduras ensanguentadas para limpar a barriga de Dailin, retirando o sangue fresco, vermelho vivo, e as crostas negras de sangue ressecado. Não havia feridas ou cicatrizes, apenas pele saudável e consideravelmente mais pálida que o rosto de Dailin.

De cara fechada, Nynaeve pegou os panos cheios de sangue, levantou-se e jogou-os no rio.

— Lavem o tronco dela para limpar o resto — mandou. — E ponham umas roupas nela. Está com frio. E preparem comida. Ela vai acordar com fome. Ajoelhou-se na beira do rio e lavou as mãos.

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