44 Caçados

Perrin saiu da cama e começou a se vestir, sem se importar se Zarine estava ou não observando. Ele sabia o que pretendia fazer, mas perguntou a Moiraine mesmo assim.

— Vamos embora?

— A não ser que você deseje estreitar os laços com Sammael — retrucou a mulher, seca.

Um trovão ressoou, como se para pontuar a frase, e um relâmpago iluminou o céu. A Aes Sedai mal olhava para Zarine.

Enquanto enfiava a camisa nas calças, ele de súbito desejou que já estivesse com o casaco e o manto. Dizer o nome de um dos Abandonados em voz alta deixara o quarto gélido. Ba’alzamon não é o suficiente, precisamos dos Abandonados à solta também. Luz, será que encontrar Rand ainda adianta alguma coisa? Será que é tarde demais? Porém, continuou se vestindo e calçando as botas. Era isso ou desistir, e o povo de Dois Rios não tinha fama de desistir.

— Sammael? — perguntou Zarine, com a voz fraca. — Um dos Abandonados está governando…? Luz!

— Ainda quer nos acompanhar? — perguntou Moiraine, baixinho. — Não a obrigaria a ficar aqui, não agora, mas vou lhe dar uma última chance de jurar seguir um caminho diferente do meu.

Zarine hesitou, e Perrin parou com metade do casaco já vestida. Sem dúvidas ninguém escolheria acompanhar as pessoas que haviam despertado a ira de um dos Abandonados. Ela não escolheria isso naquele momento, depois de descobrir um pouco do que eles enfrentavam. A não ser que ela tenha uma excelente razão. Mas, independentemente do motivo, ninguém que descobrisse que um dos Abandonados estava à solta ficaria ali sentado refletindo, mas sim sairia correndo atrás de um navio do Povo do Mar e pediria uma passagem para o outro lado do Deserto Aiel.

— Não — disse Zarine, enfim, e ele começou a relaxar. — Não, não vou jurar seguir outro caminho. Quer vocês me levem ou não até a Trombeta de Valere, nem mesmo a pessoa que encontrar a Trombeta terá vivido uma história como essa. Acho que essa história será contada por muitas eras, Aes Sedai, e quero fazer parte dela.

— Não — gritou Perrin, bruscamente. — Essa resposta não é boa o suficiente. O que é que você quer?

— Não tenho tempo para essa briguinha — interrompeu Moiraine. — A qualquer momento Lorde Brend pode descobrir que um dos Cães das Trevas está morto. E podem ter certeza de que ele saberá que isso foi obra de um Guardião e virá atrás da Aes Sedai do Gaidin. Vocês querem ficar aqui sentados até ele descobrir onde estão? Mexam-se, crianças tolas! Mexam-se! — Ela desapareceu no corredor antes que ele pudesse abrir a boca.

Zarine também não esperou e saiu correndo do quarto, deixando a vela para trás. Perrin recolheu seus pertences depressa e correu até a escada dos fundos, ainda afivelando o cinturão com o machado. Ele alcançou Loial na descida, o Ogier tentava enfiar um livro de capa de madeira nos alforjes e vestir o manto ao mesmo tempo. Perrin ajudou-o com o manto enquanto os dois desciam as escadas, e Zarine alcançou-os antes que saíssem do prédio pela chuva forte.

Perrin curvou os ombros para se proteger da chuva e correu até o estábulo, cruzando o quintal enegrecido pela tempestade sem parar para puxar o capuz do manto. Ela deve ter um motivo. Viver uma maldita história não é razão suficiente para ninguém, a não ser uma mulher louca! A chuva ensopou seus cachos bagunçados, colando-os à cabeça, antes de chegar à porta do estábulo.

Moiraine já estava lá, em um manto impermeável coberto de gotas de chuva, e Nieda erguia uma lanterna para que Lan terminasse de selar os cavalos. Havia um animal a mais, um capão baio com o nariz ainda mais acentuado que o de Zarine.

— Vou enviar pombos todos os dias — dizia a mulher robusta. — Ninguém vai suspeitar de mim, no caso. Que a Sorte me espicace! Até os Mantos-brancos me têm em boa conta.

— Escute bem, mulher! — retrucou Moiraine, bruscamente. — Não estou falando de um Manto-branco ou de um Amigo das Trevas. Você vai fugir desta cidade e levará junto todos os que ama. Já me obedeceu por doze anos. Obedeça agora!

Nieda assentiu, relutante, e Moiraine soltou um grunhido exasperado.

— O baio é seu, garota — explicou Lan, para Zarine. — Pode montar. Se não souber cavalgar, ou aprende na prática ou aceita minha oferta.

Apoiando uma das mãos no cepilho alto, ela saltou com facilidade e sentou-se na sela.

— Pensando bem, cara de pedra, já montei um cavalo uma vez. — Ela se virou para amarrar a trouxa atrás de si.

— O que você quis dizer, Moiraine? — exigiu Perrin, enquanto jogava o alforje no lombo de Galope. — Você disse que ele conseguiria descobrir onde estou. Ele sabe. Os Homens Cinza! — Nieda soltou uma risadinha, e ele se perguntou, irritado, o quanto a mulher saberia ou acreditaria entre as coisas que dissera não acreditar.

— Sammael não enviou os Homens Cinza. — Moiraine montou Aldieb com calma, as costas eretas e uma precisão calculada, quase como se não houvesse pressa. — Mas o Cão das Trevas foi mandado por ele. Acredito que tenha seguido meus rastros. Ele não teria enviado os dois. Alguém está atrás de você, mas acho que Sammael nem sabe da sua existência. Ainda.

Perrin parou com um dos pés no estribo, olhando para ela, mas a mulher parecia mais preocupada em dar palmadinhas no pescoço arqueado da égua do que com seu rosto indagativo.

— Assim como eu fui atrás de você — comentou Lan, e a Aes Sedai fungou alto.

— Queria que você fosse mulher, Gaidin. Assim, poderia mandá-lo para a Torre como noviça, para aprender a obedecer! — Ele ergueu uma sobrancelha e tocou o cabo da espada, então subiu na sela, e ela suspirou. — Talvez a sua desobediência seja algo bom. Às vezes é. Além do mais, acho que nem Sheriam e Siuan Sanche juntas poderiam ensiná-lo a ser obediente.

— Não entendo — continuou Perrin. Acho que ando dizendo muito isso, e estou ficando cansado. Quero algumas respostas que eu consiga entender. Ele terminou de montar o cavalo, para que Moiraine não olhasse para baixo. Ela já tinha vantagens demais. — Se não foi ele que enviou os Homens Cinza, quem foi? Se foi um Myrddraal ou outro Abandonado… — Ele parou e engoliu. OUTRO Abandonado! Luz! — Se alguém os enviou, por que não disseram nada a ele? São todos Amigos das Trevas, não são? E por que eu, Moiraine? Por que eu? Rand é que é o maldito Dragão Renascido!

Perrin ouviu os arquejos de Zarine e Nieda e só então percebeu o que acabara de dizer. O olhar de Moiraine parecia esfolá-lo como o aço mais afiado do mundo. Língua desgraçada. Quando foi que eu parei de pensar antes de falar? Parecia que havia sido quando sentira pela primeira vez os olhos de Zarine a observá-lo. Ela o observava naquele instante, a boca escancarada.

— Você está ligada a nós, agora — disse Moiraine, olhando para a mulher de rosto forte. — Não há como voltar atrás. Nunca mais. — Zarine parecia querer responder, e também parecia receosa de dizer o que quer que estivesse em sua mente, mas a Aes Sedai já voltara a atenção para o outro lado. — Nieda, saia de Illian hoje à noite. Agora mesmo! E segure essa língua, ainda mais do que segurou por todos esses anos. Alguns podem cortá-la fora, dependendo do que você disser. E o farão antes que eu consiga chegar até você.

O tom severo deixou dúvidas sobre o que ela faria exatamente se chegasse até a outra mulher, e Nieda assentiu com vigor, como se tivesse ouvido tanto a ameaça quanto o aviso.

— Quanto a você, Perrin. — A égua branca aproximou-se, e ele se inclinou para trás e se afastou da Aes Sedai, apesar de ter se convencido de que a enfrentaria. — Há muitos fios tecidos no Padrão, e alguns são tão negros quanto a própria Sombra. Cuide para que um deles não o estrangule. — Ela tocou os flancos de Aldieb com os calcanhares, e a égua saltou para a chuva. Mandarb a seguia bem de perto.

Que a queime, Moiraine, pensou Perrin, enquanto cavalgava atrás deles. Às vezes eu não sei de que lado você está. Ele olhou para Zarine, que cavalgava a seu lado como se tivesse nascido em cima de uma sela. E você, de que lado está?

A chuva mantinha as pessoas longe das ruas e dos canais, por isso parecia que nenhum olho os observava partir, mas também fazia os cavalos caminharem com insegurança pelas ruas de pedras. Quando o grupo chegou ao Passadiço de Maredo, uma ampla via de terra batida e um pouco elevada que atravessava o pântano rumo ao norte, o aguaceiro começara a diminuir. Os trovões ainda ressoavam, mas os raios já reluziam bem longe deles, talvez em alto-mar.

Perrin sentiu que estavam com um pouco de sorte. A chuva se estendera por tempo suficiente para encobrir a partida do grupo, mas no momento parecia que teriam uma noite limpa para cavalgar. Ele expressou o pensamento, mas Lan sacudiu a cabeça em discordância.

— Cães das Trevas gostam mais de céu limpo e noites enluaradas e menos da chuva, ferreiro. Uma boa tempestade pode afugentá-los de vez. — Como se aquelas palavras fossem uma ordem, a chuva virou uma garoa fraca. Perrin ouviu Loial grunhir atrás de si.

O passadiço elevado e o pântano terminavam juntos, a cerca de duas milhas da cidade, mas a estrada continuava, com uma leve curva para o leste. O crepúsculo encoberto pelas nuvens tornou-se noite, e a chuva fina continuava a cair. Moiraine e Lan mantinham o passo firme, cavalgando bem rápido. Os cascos dos cavalos faziam as poças no chão de terra batida respingarem. A lua brilhava por entre as fendas das nuvens. Colinas baixas começavam a se elevar ao redor deles, e as árvores passaram a aparecer cada vez em maior número. Perrin pensou que deveria haver uma floresta mais adiante, mas não sabia ao certo se gostava da ideia. A mata podia escondê-los dos perseguidores, mas a mata também podia permitir que esses mesmos seguidores se aproximassem sem que eles percebessem.

Um uivo agudo foi ouvido atrás deles, bem ao longe. Por um instante, pensou que fosse um lobo. Surpreendeu-se por quase não ser capaz de frear o ímpeto de fazer contato. O uivo se repetiu, e ele soube que não era de um lobo. Outros responderam, todos a milhas de distância, lamentos horripilantes cheios de sangue e morte, gritos que falavam de pesadelos. Para sua surpresa, Lan e Moiraine reduziram a marcha, e a Aes Sedai foi analisando as colinas ao redor, cobertas pela noite.

— Eles estão muito longe — comentou Perrin. — Não vão alcançar a gente se continuarmos avançando.

— Os Cães das Trevas? — murmurou Zarine. — Esses são os Cães das Trevas? Tem certeza de que não é a Caçada Selvagem, Aes Sedai?

— Mas é — respondeu Moiraine. — É.

— Ninguém é capaz de ir mais rápido que os Cães das Trevas, ferreiro — retrucou Lan —, nem mesmo montado no mais veloz dos cavalos. É preciso sempre enfrentá-los e derrotá-los, ou o alcançarão.

— Eu podia ter ficado no pouso, sabe? — comentou Loial. — A esta altura, minha mãe já teria me obrigado a me casar, mas não teria sido uma vida ruim. Muitos livros. Eu não precisava ter vindo aqui para Fora.

— Ali — disse Moiraine, apontando para um montinho sem árvores bem à direita. Não havia qualquer árvore que Perrin pudesse enxergar a duzentos passos ou mais ao redor de onde ela apontava, e mesmo mais ao longe elas eram esparsas. — Precisamos vê-los chegando se queremos ter alguma chance.

Os lúgubres uivos dos Cães das Trevas se fizeram ouvir outra vez, mais perto, porém ainda distantes.

Lan apressou um pouco o ritmo de Mandarb, após Moiraine ter definido a base do grupo. Enquanto subiam a colina, os cascos dos cavalos batiam nas pedras semienterradas na terra, escorregadias por causa da garoa. Aos olhos de Perrin, a maioria das pedras tinha cantos quadrados demais para ser natural. Chegando ao topo, desceram das montarias, espalhados ao redor de um rochedo baixo e arredondado. A lua surgiu por entre uma fenda nas nuvens, e ele pôde ver que estava de frente para um rosto de pedra desgastado pelo tempo, a cerca de dois passos de distância. Um rosto de mulher, imaginou, pelo comprimento dos cabelos. Com a chuva, ela parecia chorar.

Moiraine desmontou da égua e ficou olhando na direção de onde vinham os uivos. Ela era uma silhueta sombria e encapuzada, a água da chuva refletindo o luar ao deslizar por seu manto impermeável.

Loial levou o cavalo até a escultura, para observá-la, depois inclinou-se mais para perto e tateou suas feições.

— Acho que ela era uma Ogier — disse, por fim. — Mas isso aqui não é um pouso antigo. Eu sentiria. Todos sentiríamos. E estaríamos a salvo das Criaturas da Sombra.

— O que é que vocês dois estão olhando aí? — Zarine apertou os olhos em direção à pedra. — O que é isso? Ela? Quem?

— Muitas nações se ergueram e caíram desde a Ruptura — explicou Moiraine, sem se virar. — Algumas não deixaram nada além de nomes em páginas amareladas ou traçados em mapas despedaçados. Será que deixaremos ao menos isso para trás? — Os uivos sedentos por sangue se fizeram ouvir outra vez, ainda mais próximos. Perrin tentou calcular o ritmo em que as criaturas se deslocavam e concluiu que Lan estava certo: os cavalos de fato não conseguiriam deixá-los para trás. Eles não teriam que esperar por mais muito tempo.

— Ogier — comandou Lan —, você e a garota segurem os cavalos. — Zarine protestou, mas ele cavalgou direto até ela. — Suas facas não têm muita serventia aqui, garota. — A lâmina da espada do Guardião reluziu ao luar quando ele a desembainhou. — Até isso aqui é apenas um último recurso. Pelo som, parece que há dez a caminho, não um. Seu trabalho é evitar que os cavalos fujam quando farejarem os Cães das Trevas. Nem mesmo Mandarb gosta desse cheiro.

Se a espada do Guardião não tinha serventia, o machado de Perrin também não. O rapaz sentiu uma espécie de alívio, mesmo que fossem Criaturas da Sombra: não precisaria usar o machado. Desembainhou o arco sem corda das cilhas da sela de Galope.

— Talvez isso aqui ajude.

— Tente se quiser, ferreiro — retrucou Lan. — Eles não morrem com facilidade. Quem sabe você consegue matar algum.

Perrin puxou uma corda de arcos nova de dentro da bolsa, tentando protegê-la da chuva fina. O revestimento de cera de abelhas era fino e não protegia muito da umidade prolongada. Ele posicionou o arco inclinado entre as pernas e o dobrou de leve, dando voltas com a corda nos encaixes das extremidades do arco. Quando se endireitou, já podia ver os Cães das Trevas.

Eles corriam como cavalos a galope, e, assim que os avistou, reparou que eles ganharam mais velocidade. Eram apenas dez silhuetas volumosas correndo pela noite, varrendo o terreno entre as árvores esparsas. Ele tirou uma flecha da aljava, encaixou-a, mas não puxou. Estava longe de ser o melhor arqueiro de Campo de Emond, mas entre os homens mais jovens apenas Rand se saía melhor que ele.

Decidiu que dispararia quando as criaturas estivessem a trezentos passos de distância. Idiota! Você teria dificuldade até pra acertar um alvo parado, a essa distância. Mas, se esperar, pela rapidez com que estão vindo… Ele se posicionou ao lado de Moiraine e ergueu o arco. Só preciso imaginar que essa sombra em movimento seja um cachorrão enorme. Ele puxou a flecha com uma pena de ganso na ponta até o rosto e soltou. Teve a certeza de que ela se fundira com a sombra mais próxima, porém o único resultado foi um rosnado. Não vai funcionar. Estão vindo rápido demais! Ele já preparava outra flecha. Por que não está fazendo nada, Moiraine? Podia ver os olhos das criaturas, brilhantes como prata, os dentes cintilando como aço reluzente. Tão negros quanto a própria noite e do tamanho de pequenos pôneis, as bestas disparavam em sua direção, silenciosos, ansiando pela matança. O vento trazia o fedor de enxofre queimado. Os cavalos relinchavam, amedrontados, até mesmo o cavalo de batalha de Lan. Que a queime, Aes Sedai, faça alguma coisa! Ele soltou a flecha outra vez: o Cão das Trevas à frente cambaleou e continuou avançando. Eles podem morrer! Disparou mais uma, e a criatura que liderava o grupo cambaleou, tropeçou nas próprias pernas e desabou, mas mesmo assim Perrin sentiu um instante de desespero. Um caíra, mas os outros nove já haviam coberto dois terços da distância. Pareciam correr ainda mais depressa, como sombras deslizando no chão. Mais uma flecha. Dá tempo para mais uma, talvez, e depois eu pego o machado. Que a queime, Aes Sedai! Ele preparou outra.

— Agora — disse Moiraine, enquanto a flecha saía do arco.

O ar entre as mãos dela pegou fogo e disparou como um raio em direção aos Cães das Trevas, tornando a noite tão clara quanto o dia. Os cavalos relincharam e pularam, tentando se soltar.

Perrin pôs o braço diante do rosto para proteger os olhos do brilho branco de tão quente e incandescente, como uma fornalha se abrindo. O sol irrompeu de repente, no meio da noite, e desapareceu. Quando destapou os olhos, a visão estava tomada de pontinhos, e a marca daquela linha de fogo ainda se desvanecia. Onde antes estavam os Cães das Trevas, nada havia além de solo encoberto pela noite e chuva fina. As únicas sombras que se moviam eram formadas pelas nuvens que cortavam a lua.

Pensei que ela jogaria fogo em cima deles ou evocaria um relâmpago, mas isso…

— O que foi isso? — perguntou com a voz rouca.

Moiraine olhava outra vez na direção de Illian, como se pudesse enxergar através de todas aquelas milhas de escuridão.

— Talvez ele não tenha visto — disse, quase para si mesma. — Está longe, e, se não estiver atento, talvez não tenha percebido.

— Quem? — perguntou Zarine. — Sammael? — A voz dela tremeu um pouco. — Você disse que ele estava em Illian. Como é que poderia ver qualquer coisa que aconteceu aqui? O que foi que você fez?

— Uma coisa proibida — respondeu Moiraine, fria. — Proibida por votos quase tão poderosos quanto os Três Juramentos. — Ela tomou as rédeas de Aldieb da garota e deu um tapinha no pescoço da égua, para acalmá-la. — Algo que não é usado há quase dois mil anos. Algo que pode me levar a ser estancada só por saber que existe.

— Talvez…? — A voz de Loial era um sussurro débil. — Talvez seja melhor irmos? Pode haver mais deles.

— Acho que não — respondeu a Aes Sedai, montando. — Ele não soltaria dois grupos ao mesmo tempo, mesmo que tenha dois. Eles se virariam um contra o outro em vez de caçar a presa. E creio que nós não sejamos a presa principal, ou ele teria vindo em pessoa. Nós éramos… um contratempo, eu acho. — Ela tinha um tom de voz tranquilo, mas estava claro que não gostava de ser tão subestimada. — E talvez um extra para ele enfiar no bolso, se não desse muito trabalho. Ainda assim, não é muito bom ficar mais perto dele do que o necessário.

— Rand? — perguntou Perrin. Ele quase podia sentir Zarine se inclinando para escutar. — Se não somos nós que ele está caçando, então é Rand?

— Talvez — respondeu Moiraine. — Ou talvez Mat. Não se esqueça de que ele também é ta’veren e que soou a Trombeta de Valere.

Zarine soltou um grito abafado.

— Ele soou a Trombeta? Alguém já encontrou?

A Aes Sedai a ignorou, inclinando-se na sela para olhar bem nos olhos de Perrin, o negro cintilante se impondo sobre o dourado reluzente.

— Mais uma vez, os acontecimentos me ultrapassam. Não gosto nada disso. E você também não deveria gostar. Se os acontecimentos me escapam, podem muito bem pisoteá-lo, e a todo o resto do mundo.

— Ainda faltam muitas léguas até Tear — comentou Lan. — A sugestão do Ogier é boa. — Ele já estava montado na sela.

Depois de um instante, Moiraine se endireitou e encostou os calcanhares nas costelas da égua. Antes que Perrin pudesse tirar a corda do arco e pegar as rédeas de Galope com Loial, ela já estava na metade da descida do monte. Que a queime, Moiraine! Vou encontrar respostas em algum lugar!


Encostado em um tronco caído, Mat aproveitava o calor da fogueira — as chuvas haviam desviado para o sul três dias antes, mas ele ainda sentia a umidade. Porém, naquele exato momento, o rapaz mal tinha consciência das chamas que dançavam. Perscrutava, pensativo, o pequeno cilindro polido que tinha nas mãos. Thom tocava a harpa, distraído, resmungando sozinho sobre a chuva e a umidade, sem olhar para Mat. Grilos cricrilavam na mata escura ao redor deles. Surpreendidos pelo pôr do sol entre uma aldeia e outra, decidiram parar em um arvoredo distante da estrada. Por duas noites, haviam tentado alugar um quarto para pernoitar. E por duas vezes um fazendeiro soltara os cachorros em cima deles.

Mat desembainhou a faca da cintura, hesitante. Sorte. Só explode às vezes, ela disse. Sorte. Com todo o cuidado, fez uma incisão ao longo do tubo. Era um tubo, e de papel, como ele imaginara ao encontrar pedaços de papel no chão, depois que os fogos de artifício foram disparados, em casa. Era feito de camadas de papel, mas do lado de dentro só havia algo que parecia poeira, ou talvez poeira misturada a minúsculas pedrinhas cinza-escuras. Ele puxou algumas com o dedo e as virou na palma da mão. Como, pela Luz, é que pedrinhas podem explodir?

— Que a Luz me queime! — vociferou Thom. — Ele atirou a harpa dentro do estojo para protegê-la do que Mat tinha na mão. — Está tentando nos matar, garoto? Nunca lhe disseram que essas coisas explodem com dez vezes mais força no ar do que no fogo? Fogos de artifício só perdem para o trabalho das Aes Sedai, garoto.

— Talvez — disse Mat —, mas Aludra não me pareceu uma Aes Sedai. Eu costumava pensar isso do relógio do Mestre al’Vere, que só podia ser obra das Aes Sedai, mas um dia abri o compartimento traseiro e vi que era cheio de pecinhas de metal. — Ele mudou de posição, incomodado com a lembrança. A Senhora al’Vere fora a primeira a encontrá-lo, aquele dia, junto com a Sabedoria, o pai e o Prefeito, e nenhum deles acreditara que ele só queria olhar. Eu poderia ter colocado todas a peças de volta. — Acho que Perrin poderia fazer um, se visse todas aquelas rodinhas, engrenagens e sei lá mais o quê.

— Você ficaria surpreso, garoto — retrucou Thom, seco. — Até um relojoeiro medíocre é um homem bastante rico, e merece ser. Mas um relógio não explode na sua cara!

— Nem isso aqui. Bem, agora já não tem mais serventia. — Ele atirou o punhado de papel e pedrinhas na fogueira, e Thom soltou um guincho. As pedrinhas faiscaram e soltaram pequeninas explosões, junto com um cheiro pungente de fumaça.

— Você está tentando nos matar. — A voz de Thom era instável e foi ficando mais alta e forte à medida que ele continuava falando. — Se eu decidir que quero morrer, vou até o Palácio Real quando chegarmos a Caemlyn e dou um beliscão na bunda da Morgase! — O longo bigode se agitou. — Não faça mais isso!

— Não explodiu — comentou Mat, franzindo o rosto para o fogo. Ele enfiou a mão no rolo com tecido revestido de óleo do outro lado dos troncos e pescou um fogo de artifício um tamanho maior. — Por que será que não fez barulho?

— Não me interessa por que não fez barulho! Não faça mais isso!

Mat olhou para ele e riu.

— Pare de tremer, Thom. Você não tem por que ficar com medo. Agora eu já sei o que tem dentro. Pelo menos, sei como é, mas… não precisa falar nada. Não vou abrir mais nenhum, Thom. De qualquer forma, é mais legal acendê-los.

— Não estou com medo, seu porqueiro bronco — rebateu Thom, com elaborada dignidade. — Estou é tremendo de ódio, por viajar com um grosseirão com cérebro de cabra que pode acabar matando nós dois por não ser capaz de pensar além do próp…

— Ei, o fogo!

Mat e Thom se entreolharam ao ouvir sons de cavalos se aproximando. Já era tarde para qualquer pessoa de bem estar viajando. No entanto, a Guarda da Rainha cuidava da segurança da estrada, ali tão perto de Caemlyn, e os quatro que cavalgavam em direção à fogueira iluminada decerto não pareciam ladrões. Um deles era uma mulher. Todos os homens usavam longas capas e pareciam criados dela, que era bonita, com olhos azuis, e usava um colar de ouro, um vestido de seda cinza e um manto de veludo com um grande capuz. Os homens desmontaram dos cavalos. Um deles segurou as rédeas da mulher, e outro, o estribo. Ela sorriu para Mat, tirando as luvas enquanto se aproximava da fogueira.

— Creio que esteja tarde, jovem mestre — disse —, e venho lhes incomodar para pedir indicações do caminho até uma estalagem, se conhecerem alguma.

Ele escancarou um sorriso e começou a se levantar. Já estava de cócoras quando ouviu um dos homens murmurar algo e outro revelar uma besta de debaixo do manto, já empunhada, o grampo com a flecha.

— Mate-o, seu idiota! — gritou a mulher, e Mat arremessou o fogo de artifício em direção às chamas e se jogou para apanhar o bastão. Houve uma enorme explosão e um clarão de luz.

— Aes Sedai! — gritou um dos homens.

— São fogos de artifício, imbecil! — respondeu a mulher, também gritando.

Mat rolou para o lado, levantou-se com o bastão nas mãos e viu a flecha da besta cravada no tronco caído, quase onde estava sentado, enquanto o arqueiro desabava com o cabo de uma das facas de Thom a lhe adornar o peito.

Só houve tempo de enxergar essa cena, pois outros dois homens atravessaram o fogo em sua direção, empunhando as espadas. Um deles de súbito tropeçou e caiu de joelhos, largando a espada para agarrar a faca cravada em suas costas, depois desabou de cara no chão. O último homem não viu a queda do companheiro. Ele obviamente esperava que ainda estivesse acompanhado, dividindo a atenção do oponente, quando deu um golpe empurrando a lâmina bem na direção do tronco de Mat. Quase com desprezo, o jovem de Dois Rios quebrou o punho do sujeito com uma extremidade do bastão, mandando a espada pelos ares, e rachou a testa dele com a outra. O homem revirou os olhos e desabou.

Pelo canto do olho, Mat viu a mulher caminhando na direção dele e apontou para ela com o dedo esticado, como se fosse uma faca.

— Você usa roupas muito boas para uma ladra, mulher! Sente aí até eu decidir o que vou fazer com você, ou eu…

Ela ficou tão surpresa quanto Mat ao ver a faca que de repente irrompeu em sua garganta, fazendo brotar uma flor vermelha de sangue, que começou a jorrar. Ele iniciou o movimento de dar um passo à frente, como se para amparar a queda da mulher, mas soube que seria inútil. O longo manto aterrissou por cima dela e a cobriu por inteiro, exceto a face e o cabo da faca de Thom.

— Que o queime — resmungou Mat. — Que o queime, Thom Merrilin! Uma mulher! Luz, poderíamos tê-la amarrado e entregado à Guarda da Rainha amanhã, em Caemlyn. Luz, talvez eu até deixasse ela ir embora. Ela não roubaria mais ninguém sem a ajuda desses três, e o único que sobreviver vai levar dias até conseguir enxergar direito e meses até conseguir erguer uma espada. Que o queime, Thom, não precisava matá-la!

O menestrel mancou até o ponto onde jazia a mulher e deu um chute para afastar o manto. A adaga caíra da mão dela. A lâmina tinha o tamanho de duas mãos e o dobro da espessura do polegar de Mat.

— Preferia que eu tivesse esperado ela cravar isso nas suas costas, garoto? — Ele recuperou a própria faca e limpou a lâmina no manto da mulher.

Mat percebeu que cantarolava “Ela Usava Uma Máscara Que Cobria a Face” e parou. Inclinou-se e escondeu o rosto da mulher com o capuz do manto.

— É melhor irmos andando — disse, baixinho. — Não quero ter que explicar isso se a gente topar com a Guarda da Rainha.

— E com ela nessas roupas? — completou Thom. — Não mesmo! Eles devem ter roubado a esposa de algum mercador ou a carruagem de alguma senhora da nobreza. — Ele amansou o tom de voz. — Rapaz, se vamos partir, é melhor tratar de selar seu cavalo.

Mat levou um susto e desviou os olhos da mulher morta.

— É verdade, é melhor, não é? — Ele não olhou de volta para o corpo.

Não sentia o mesmo remorso em relação aos homens. Na sua opinião, um homem que decidia roubar e matar merecia o que levava ao perder o jogo. Não se demorou muito a olhá-los, mas também não desviou os olhos quando pousaram em um dos ladrões. Foi só depois de selar o capão e amarrar seus pertences atrás do animal, enquanto chutava terra para apagar o fogo, que percebeu que encarava o sujeito que disparara a besta. Havia algo de familiar nas feições dele, nas sombras que as chamas fumegantes formavam em seu rosto. Sorte, disse a si mesmo. É sempre a sorte.

— O sujeito era um bom nadador, Thom — comentou, enquanto subia na sela.

— Que bobagem é essa, agora? — O menestrel também já estava montado no cavalo, muito mais preocupado em arrumar os estojos dos instrumentos na parte de trás da sela do que com os mortos. — Como é que você tinha certeza de que o homem sabia nadar?

— Ele chegou em terra firme navegando em uma jangadinha que saiu de Erinin no meio da noite. Acho que gastou toda a sorte que tinha.

Mat conferiu outra vez as amarras do rolo de fogos de artifício. Se esse idiota pensou que isso era obra de alguma Aes Sedai, imagine só o que teria pensado se eu disparasse todos ao mesmo tempo.

— Tem certeza, garoto? A chance de ser o mesmo homem… Ora, nem você apostaria nisso.

— Tenho certeza, Thom. — Elayne, vou torcer seu pescoço da próxima vez que encontrá-la. O de Egwene e o de Nynaeve também. — E tenho certeza de que vou despachar essa maldita carta assim que chegarmos em Caemlyn.

— Estou dizendo, garoto, não tem nada nessa carta. Eu comecei a jogar Daes Dae’mar quando era mais novo que você, sei reconhecer códigos e criptogramas mesmo sem saber o que significam.

— Bom, eu nunca joguei esse seu Grande Jogo, Thom, essa porcaria de Jogo das Casas, mas sei muito bem quando estou sendo seguido, e sei que não estou sendo seguido com tanto empenho e até tão longe só pelo dinheiro que tenho nos bolsos. Não fariam isso por menos que um baú cheio de ouro. Só pode ser a carta. — Que se queime, as mulheres bonitas sempre me trazem problemas. — Ainda quer dormir hoje à noite, depois disso tudo?

— Com o sono dos inocentes, garoto. Mas, se você quiser cavalgar, eu cavalgo.

O rosto de uma bela mulher flutuou na mente de Mat com uma adaga cravada na garganta. Que azar, era uma linda mulher.

— Então vamos cavalgar! — respondeu, feroz.

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