22 O Preço do Anel

Egwene mal havia saído dos aposentos de Verin quando Sheriam a encontrou. A Mestra das Noviças estava de testa franzida, preocupada.

— Se alguém não tivesse se lembrado de vê-la conversando com Verin, eu não a teria encontrado. — A Aes Sedai parecia um pouco irritada. — Venha, criança. Só estamos esperando você! Que papéis são esses?

Egwene os agarrou com um pouco mais de força. Tentou soar ao mesmo tempo submissa e respeitosa.

— Verin Sedai acha que eu devo estudá-los, Aes Sedai.

O que faria se Sheriam pedisse para vê-los? Que desculpa daria para se recusar a entregá-los, que explicação teria para as páginas que mencionavam as treze mulheres da Ajah Negra e os ter’angreal roubados?

Sheriam, no entanto, pareceu se esquecer dos papéis no instante em que perguntou por eles.

— Deixe isso para lá. Você está sendo chamada, todas estão aguardando. — Ela puxou Egwene pelo braço e a forçou a caminhar mais depressa.

— Chamada, Sheriam Sedai? Estão me esperando para quê?

Sheriam balançou a cabeça, exasperada.

— Você esqueceu que será elevada a Aceita? Quando for ao meu gabinete, amanhã, já estará usando o anel, embora eu duvide que isso vá torná-la mais mansa.

Egwene tentou parar de andar, mas a Aes Sedai a mandou seguir, entrando em um lance de escadas estreitas, que conduziam abaixo em espiral pelas paredes da biblioteca.

— Hoje à noite? Já? Mas estou morrendo de sono, Aes Sedai, e suja, e… pensei que ainda teria alguns dias. Para ficar pronta. Para me preparar.

— O tempo não espera por mulher alguma — retrucou Sheriam. — Há de ser o que a Roda tecer, quando a Roda tecer. Além do mais, como é que você iria se preparar? Já sabe tudo de que precisa. Mais do que sua amiga, Nynaeve, sabia. — Ela empurrou Egwene por uma porta minúscula ao pé da escadaria e a conduziu apressadamente por outro corredor, até uma rampa que descia em curva.

— Eu prestei atenção às aulas — protestou Egwene — e me lembro de todas, mas… será que não posso ter uma noite de sono primeiro? — A rampa sinuosa parecia não ter fim.

— O Trono de Amyrlin decidiu que não há razão para esperar. — Sheriam lançou um sorriso de soslaio a Egwene. — As palavras exatas foram “depois que se decide estripar um peixe, não há por que esperar que ele apodreça”. A essa hora, Elayne já passou pelos arcos, e a Amyrlin quer que você passe também, ainda hoje. Não que eu veja motivo para tanta pressa — acrescentou, quase para si mesma —, mas, quando a Amyrlin ordena, nós obedecemos.

Egwene se deixou ser levada pela rampa em silêncio, um nó se formando no estômago. Nynaeve estava longe de conversar abertamente sobre o que aconteceu quando foi elevada a Aceita. Tudo o que dizia sobre o assunto era um “odeio as Aes Sedai!”, acompanhado de uma careta. Quando a rampa enfim terminou em um corredor largo, bem abaixo da Torre no rochedo da ilha, Egwene tremia.

O corredor era simples e sem decoração, a pedra clara onde ele fora construído tinha sido alisada, mas fora isso estava intocada. Bem no final havia apenas uma porta dupla de madeira escura, feita de tábuas com bom acabamento e ajuste fino, além de alta e larga como o portão de uma fortaleza, e tão simples quanto o restante do ambiente. As grandes portas eram tão bem-feitas que Sheriam abriu uma delas sem dificuldade com um empurrão, puxando Egwene atrás de si e adentrando um grande aposento com teto abobadado.

— Já não era sem tempo! — reclamou Elaida.

Ela estava parada em um dos cantos, usando o xale de franjas vermelhas, ao lado de uma mesa na qual jaziam três grandes cálices de prata.

Lampiões em suportes altos iluminavam o aposento e o que havia no centro, embaixo da cúpula. Era um artefato formado por três arcos de prata arredondados, com altura suficiente para ultrapassar uma pessoa, e cujas bases se tocavam, interligadas por um círculo de prata, compondo uma mesma peça. Uma Aes Sedai estava sentada de pernas cruzadas na pedra nua que havia à frente de cada um dos pontos onde os arcos se apoiavam no círculo. As três usavam os xales. Alanna era da Ajah Verde, mas Egwene não conhecia a irmã Amarela e nem a Branca.

Envoltas pelo brilho tênue de saidar, as três Aes Sedai olhavam fixamente para os arcos, e, no interior da estrutura de prata, um brilho crescente cintilava em resposta. A estrutura era um ter’angreal, e qualquer que tivesse sido seu propósito na Era das Lendas, nesse momento era por onde as noviças passavam para se tornarem Aceitas. Ali dentro, Egwene teria que enfrentar seus medos. Três vezes. A luz branca no interior dos arcos já não cintilava, apenas pairava dentro deles, como se estivesse confinada. Mas ainda assim preenchia o espaço, tornando-o opaco.

— Calma, Elaida — respondeu Sheriam, muito tranquila. — Não vai demorar. — Ela se virou para Egwene. — As noviças recebem três chances. Você pode se recusar a entrar duas vezes, mas, na terceira recusa, será expulsa da Torre para sempre. Em geral, é assim que acontece, e você sem dúvida tem o direito de recusar, mas não creio que o Trono de Amyrlin ficará satisfeita se isso acontecer.

— Ela não deveria ter essa chance. — A voz de Elaida era como ferro, e seu rosto não era muito mais suave. — Não me interessa qual é seu potencial. Ela deveria ser expulsa da Torre. Ou ser obrigada a esfregar o chão pelos próximos dez anos.

Sheriam lançou à irmã Vermelha um olhar cortante.

— Você não foi tão inflexível em relação a Elayne. E exigiu participar, Elaida, talvez por causa de Elayne, e agora também fará sua parte por essa garota, como deve ser. Ou sairá daqui, e eu encontrarei outra.

As duas Aes Sedai se encararam, e Egwene não se surpreenderia se visse o brilho do Poder Único envolvê-las. Enfim, Elaida jogou a cabeça para trás e fungou alto.

— Se deve ser feito, façamos logo. Dê a essa infeliz a chance de recusar e acabar logo com tudo. Está tarde.

— Não vou recusar. — A voz de Egwene vacilou, mas ela a deixou mais firme e ergueu a cabeça. — Quero continuar.

— Bom — disse Sheriam. — Bom. Agora, vou lhe dizer duas coisas que mulher alguma ouve até chegar no lugar onde você se encontra. Depois que começar, deve ir até o fim. Caso se recuse a prosseguir, em qualquer momento, será expulsa da Torre como se tivesse se recusado a começar pela terceira vez. E segundo, buscar, se empenhar, significa enfrentar o perigo. — Ela parecia ter repetido aquela frase inúmeras vezes. Havia um lampejo de compaixão em seus olhos, mas o rosto era quase tão austero quanto o de Elaida. A compaixão assustou Egwene mais do que a austeridade. — Algumas mulheres entraram e nunca saíram. Quando o ter’angreal se aquietou, elas… não… estavam… lá. E nunca mais foram vistas. Se quiser sobreviver, precisa ser firme. Se hesitar, se falhar… — A expressão de Sheriam pronunciava as palavras não ditas. Egwene estremeceu. — Esta é sua última chance. Caso se recuse agora, conta apenas como a primeira. Ainda poderá tentar outras duas. Se aceitar agora, não há como voltar atrás. Não é uma vergonha recusar. Eu mesma não consegui na minha primeira vez que vim aqui. Escolha.

Elas nunca voltaram? Egwene engoliu em seco. Quero ser uma Aes Sedai. Mas antes tenho que me tornar Aceita.

— Eu aceito.

Sheriam assentiu.

— Então apronte-se.

Egwene apenas piscou, e então lembrou. Tinha que entrar sem roupas. Ela se agachou para depositar o embrulho de papéis que Verin tinha lhe entregado… e hesitou. Se os deixasse ali, Sheriam ou Elaida poderiam mexer neles enquanto ela estivesse dentro do ter’angreal. Poderiam descobrir o ter’angreal menor em sua bolsa. Se ela se recusasse a prosseguir, poderia escondê-los, talvez deixá-los com Nynaeve. Ela prendeu a respiração. Não posso recusar agora. Já comecei.

— Decidiu recusar, criança? — perguntou Sheriam, franzindo a testa. — Sabendo o que isso significa, a essa altura?

— Não, Aes Sedai — respondeu Egwene, mais do que depressa.

Rapidamente, ela se despiu e dobrou as roupas, depois as depositou sobre a bolsa e os papéis. Teria que ser suficiente.

Junto ao ter’angreal, Alanna falou de repente:

— Há uma espécie de… ressonância. — Ela não tirou os olhos dos arcos. — Quase um eco. Não sei de onde vem.

— Algum problema? — perguntou Sheriam, com rispidez. Também parecia surpresa. — Não vou mandar mulher nenhuma aí para dentro se houver algum problema.

Egwene olhou, ansiosa, para a pilha de roupas. Por favor, sim, Luz, um problema. Alguma coisa que me permita esconder esses papéis sem ter que me recusar a entrar.

— Não — respondeu Alanna. — Parece o zumbido de um picadinha voando em volta da nossa cabeça quando estamos tentando pensar, mas não chega a interferir. Não teria mencionado, mas nunca aconteceu antes, que eu saiba. — Ela balançou a cabeça. — Já passou.

— Talvez — disse Elaida, secamente — outras tenham pensado que ocorrências tão pequenas não valessem a pena ser mencionadas.

— Vamos em frente. — Pelo tom, Sheriam não toleraria mais distrações. — Venha.

Egwene lançou um último olhar às roupas e aos papéis escondidos e seguiu em direção aos arcos. A pedra sob seus pés estava gélida.

— Quem trazes contigo, Irmã? — inquiriu Elaida.

Em seu ritmo comedido, Sheriam respondeu:

— Alguém que se apresenta como candidata à Aceitação, Irmã.

As três Aes Sedai ao redor do ter’angreal não se moviam.

— Ela está pronta?

— Está pronta para deixar para trás o que era e, ao passar por seus próprios medos, ser Aceita.

— Ela conhece seus medos?

— Ela nunca os encarou, mas agora está disposta.

— Então que ela encare o que teme. — Mesmo com a formalidade, havia um toque de satisfação na voz de Elaida.

— A primeira vez — disse Sheriam — é pelo que foi. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Egwene respirou fundo e deu um passo à frente, adentrando o arco e o brilho. A luz a tragou por inteiro.


— Jaim Dawtry passou por aqui. Ele disse que o mascate trouxe uma notícia estranha de Baerlon.

Egwene ergueu a cabeça do berço que balançava. Rand estava parado diante da porta. Por um instante, ficou tonta. Ela olhou de Rand — meu marido — para a criança no berço — minha filha — e de volta para ele, admirada.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Não era seu pensamento, mas uma voz que poderia estar ou não dentro de sua cabeça, feminina ou masculina, impassível e irreconhecível. Por alguma razão, não parecia estranha.

O momento de assombro passou, e a única coisa a se perguntar era por que havia ficado admirada antes. É claro que Rand era seu marido — seu marido lindo e carinhoso —, e Joiya, sua filha — a garotinha mais linda e delicada de Dois Rios. Tam, pai de Rand, estava fora com as ovelhas, supostamente para deixar Rand trabalhar no celeiro, mas na verdade era para que ele pudesse ter mais tempo para passar com Joiya. Naquela tarde, os pais de Egwene viriam da aldeia. E talvez Nynaeve, para ver se ser mãe estava interferindo em seus estudos a fim de um dia substituí-la como Sabedoria.

— Que notícia? — perguntou. Voltou a embalar o berço, e Rand se aproximou e sorriu para a criança pequenina, toda enroladinha. Egwene riu, baixinho, para si mesma. Ele estava tão encantado com a filha que não ouvia o que metade das pessoas diziam, metade do tempo. — Rand? Que notícia é essa? Rand?

— O quê? — O sorriso dele desapareceu. — Uma notícia estranha. Guerra. Está acontecendo alguma guerra grande, envolvendo a maior parte do mundo, foi o que disse Jim. — Era mesmo uma notícia estranha: relatos de guerra raramente chegavam a Dois Rios até que a guerra estivesse terminada havia muito tempo. — Ele disse que todo mundo está lutando contra um povo chamado Shawkin, ou Sanchan, ou algo do tipo. Nunca ouvi falar.

Egwene sabia, ou achava que sabia… Mas independentemente do que fosse, já estava terminado.

— Está tudo bem? — perguntou ele. — Não é nada que vá nos incomodar por aqui, coração. As guerras nunca chegam a Dois Rios. Estamos muito longe de tudo e de todos.

— Não estou preocupada. Jaim disse mais alguma coisa?

— Nada que dê para acreditar. Ele parecia um Coplin falando. Disse que o mascate contou que esse povo usa Aes Sedai nas batalhas, mas que depois comentou que estão oferecendo mil marcos de ouro a quem lhes entregar uma Aes Sedai. E que matam quem as esconder. Não faz sentido. Bem, não há nada para nos preocupar. Está tudo muito longe daqui.

Aes Sedai. Egwene pôs a mão na cabeça. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Ela notou que Rand também havia levado uma das mãos à cabeça.

— São as dores de cabeça? — perguntou.

Ele assentiu, os olhos apertados.

— Aquele pó que Nynaeve me deu não tem funcionado.

Ela hesitou. Aquelas dores de cabeça a preocupavam. Vinham cada vez mais fortes nos últimos tempos. E o pior de tudo era algo que ela não percebera a princípio, algo que quase desejou jamais ter percebido. Quando a cabeça de Rand doía, coisas estranhas aconteciam logo em seguida. Relâmpagos no céu azul reduziram a pó o enorme toco de carvalho do qual ele removera a raiz dois dias antes, para ele e Tam abrirem um campo novo. Tempestades que Nynaeve não havia previsto ao escutar o vento. Incêndios na floresta. E, quanto maior a dor, pior era o que acontecia em seguida. Ninguém mais ligara aqueles acontecimentos a Rand, nem mesmo Nynaeve, e Egwene era muito grata por isso. Ela não queria pensar no que tudo aquilo poderia significar.

Isso é uma baita estupidez, disse a si mesma. Preciso saber, se quiser ajudá-lo.

Ela tinha um segredo próprio, que a assustava mesmo quando tentava desvendar o significado. Nynaeve estava ensinando a Egwene sobre as ervas, instruindo-a para um dia ocupar seu lugar como Sabedoria. As curas de Nynaeve com frequência funcionavam de forma quase milagrosa, feridas curadas sem sequer uma cicatriz, gente doente praticamente trazida de volta do túmulo. No entanto, Egwene já havia curado três pessoas cujos casos Nynaeve julgara sem solução. Por três vezes, ela se sentara para segurar a mão de alguém durante a última hora e vira a pessoa se levantar do leito de morte. Nynaeve a questionara com muita atenção a respeito do que fizera, que ervas usara e em que combinações. Até então, Egwene não tivera coragem de admitir que não tinha feito nada. Devo ter feito alguma coisa. Uma vez só poderia até ser culpa do acaso, mas três… Preciso descobrir o que foi. Preciso aprender. Aquilo disparou um alarme em sua cabeça, como se as palavras ecoassem em seu cérebro. Se pude fazer algo por eles, posso ajudar meu marido.

— Me deixe tentar, Rand — disse.

Enquanto permanecia de pé, ela viu, através da porta aberta, um arco de prata bem na frente da casa. Um arco cheio de luz branca. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme. Antes que pudesse se impedir, deu dois passos em direção à porta.

Então parou de repente e olhou para trás. Joiya balbuciava no berço, e Rand ainda pressionava a cabeça, olhando-a como se perguntasse aonde ela ia.

— Não — disse. — Não, é isso o que eu quero! É isso o que eu quero! Por que não posso ter, também? — Ela não compreendia as próprias palavras. É claro que era aquilo o que queria… e tinha.

— O que é que você quer, Egwene? — perguntou Rand. — Se for algo que eu possa dar a você, sabe que darei. Se eu não puder, eu fabricarei.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Ela deu outro passo em direção à porta. O arco de prata a chamava. Algo a aguardava do outro lado. Algo que ela queria mais do que tudo no mundo. Algo que ela deveria fazer.

— Egwene, eu…

Um baque ressoou atrás dela, que olhou para trás, por cima do ombro, e viu Rand de joelhos, curvado, com a cabeça apoiada nas mãos. A dor nunca o atingira com tanta força. O que acontecerá depois disso?

— Ah, Luz! — arfou ele. — Luz! Dói! Luz, dói mais do que nunca! Egwene?

Seja firme.

Aquilo estava à espera. Algo que ela precisava fazer. Precisava. Ela deu um passo. Foi difícil, mais difícil que qualquer coisa que já fizera na vida. Para fora, em direção ao arco. Atrás dela, Joiya ria.

— Egwene? Egwene, eu não consigo… — Ele parou, com um gemido alto de dor.

Firme.

Ela endireitou a postura e seguiu caminhando, mas não pôde conter as lágrimas que desciam por seu rosto. Os gemidos de Rand aumentaram até virarem gritos, sufocando as risadas de Joiya. Pelo canto do olho, Egwene viu Tam chegando, correndo o mais depressa que conseguia.

Ele não pode ajudar, pensou, e as lágrimas se transformaram em soluços de desalento. Ele não pode fazer nada. Mas eu posso. Eu posso.

Ela adentrou a luz… e foi arrebatada.


Tremendo e soluçando, Egwene saiu pelo mesmo arco que entrara, as lembranças voltando, jorrando como uma cascata ao encarar o rosto de Sheriam. Elaida derramou sem pressa o conteúdo de um cálice de prata em sua cabeça, e a água límpida e gelada lavou suas lágrimas. Ela continuava a chorar, pensava que jamais pararia.

— Você está lavada — enunciou Elaida — de qualquer pecado que possa ter cometido, e dos cometidos contra você. Você está sendo lavada de qualquer crime que tenha cometido, e dos cometidos contra você. Você vem a nós lavada e pura, de coração e alma.

Luz, pensou Egwene, enquanto a água caía pelo seu corpo, que assim seja. Será que a água pode lavar o que eu fiz?

— O nome dela era Joiya — disse a Sheriam, entre soluços. — Joiya. Nada pode valer o que eu acabei de… o que eu…

— Tornar-se Aes Sedai tem um preço — retrucou Sheriam, mas a compaixão havia retornado ao olhar da mulher, agora mais forte do que antes. — Sempre tem um preço.

— Isso foi real? Ou eu sonhei? — O choro consumiu o restante do que ela queria dizer. Eu abandonei Rand lá, para morrer? Abandonei minha filha?

Sheriam a envolveu com um dos braços e começou a conduzi-la ao redor do círculo de arcos.

— Toda mulher que vi sair dali fez a mesma pergunta. A resposta é que ninguém sabe. Já se especulou que talvez algumas que não voltaram tenham escolhido ficar por terem encontrado um lugar mais feliz, e viveram o resto da vida do outro lado. — A voz dela ficou mais severa. — Se isso for verdade, se elas ficaram por escolha própria, espero que não sejam nada felizes. Não tenho pena de quem foge das responsabilidades. — Ela suavizou um pouco o tom firme. — Eu, particularmente, não acredito que seja real. Mas o perigo é. Lembre-se disso. — Ela parou diante do próximo arco luminoso. — Está pronta?

Nervosa, Egwene assentiu, e Sheriam tomou-a pelo braço.

— A segunda vez é pelo que é. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Egwene estremeceu. Seja lá o que aconteça, não tem como ser pior que o anterior. Não tem como. Então adentrou a luz.


Ela olhou para o próprio vestido, de seda azul com pérolas costuradas, todo empoeirado e rasgado. Ergueu a cabeça e viu as ruínas de um grande palácio ao redor. O Palácio Real de Andor, em Caemlyn. Sabia daquilo, e quis gritar.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

O mundo não era como ela gostaria, e não havia forma de pensar naquilo sem ter vontade de chorar, mas suas lágrimas tinham secado havia muito tempo, e o mundo era o que era. Ruínas eram exatamente o que ela esperava ver.

Sem se preocupar em rasgar ainda mais o vestido, mas tão atenta aos sons quanto um rato, ela escalou uma das pilhas de cascalho e avistou as curvas das ruas da Cidade Interior. Em todas as direções, viu apenas ruínas e destruição, prédios que pareciam ter sido destroçados por homens insanos, colunas grossas de fumaça subindo de fogueiras que ainda ardiam. Havia gente nas ruas, bandos de homens armados em ronda, vasculhando. E Trollocs. Os homens se mantinham longe dos Trollocs, e os Trollocs rosnavam para eles e riam, soltando gargalhadas roucas e guturais. Mas eles se conheciam, trabalhavam juntos.

Um Myrddraal avançou pela rua a passos largos. O manto negro drapejava de leve com os passos, mesmo sob as rajadas de vento que carregavam poeira e lixo ao redor dele. Homens e Trollocs acovardaram-se diante daquele rosto que os encarava sem olhos.

— Cacem! — A voz soava como algo em decomposição havia muito tempo. — Não fiquem aí parados, tremendo! Encontrem-no!

Egwene escorregou de volta para a pilha de pedras amontoadas do modo mais silencioso que pôde.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Ela parou, temendo que o sussurro tivesse vindo do Filho das Sombras. De alguma forma, no entanto, tinha certeza de que não viera. Ela olhou por cima do ombro, quase com medo de ver o Myrddraal parado bem atrás dela, então correu para a frente e entrou no palácio em ruínas, escalando vigas de madeira caídas e espremendo-se entre blocos pesados de alvenaria enquanto abria caminho. Chegou a pisar no braço de uma mulher que saía de debaixo do monte de gesso e tijolos que já haviam constituído uma parede interna e talvez parte do piso superior. Mal percebeu o braço, e tampouco o anel da Grande Serpente em um dos dedos da mão. Ela aprendera a não enxergar os mortos enterrados na montanha de sucata em que os Trollocs e Amigos das Trevas haviam transformado Caemlyn. Nada podia fazer pelos mortos.

Forçando passagem entre um vão estreito, onde parte do teto havia desabado, ela chegou em um aposento meio soterrado sob o que ficava acima dele, antes de tudo aquilo. Rand estava no chão, com uma viga pesada comprimindo seu quadril, as pernas escondidas sob os blocos de pedra que preenchiam metade do recinto. Tinha o rosto coberto de poeira e suor. Quando ela se aproximou, ele abriu os olhos.

— Você voltou. — Ele proferiu as palavras com dificuldade, em um ruído rouco. — Eu pensei que… não importa. Você precisa me ajudar.

Cansada, ela se jogou no chão.

— Eu poderia levantar essa viga com Ar sem dificuldade, mas assim que ela se mover tudo vai desabar bem em você. Em nós dois. Não consigo dar conta de tudo isso, Rand.

Ele soltou uma risada amarga e dolorida, interrompida quase no instante em que começou. O suor cintilava em seu rosto, e ele falava com dificuldade.

— Eu mesmo poderia deslocar a viga. Você sabe disso. Eu poderia mover a viga e as pedras acima, todas elas. Mas preciso me entregar para fazer isso, e não posso confiar nela. Não posso confiar… — Ele hesitou, sem fôlego.

— Não estou entendendo — retrucou ela, devagar. — Se entregar? Em quem é que você não pode confiar?

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme. Ela esfregou as mãos na orelha com força.

— Na loucura, Egwene. Eu estou… na verdade… mantendo-a… afastada. — A risada sem fôlego fez a pele de Egwene se arrepiar. — Mas fazer isso requer toda a minha força. Se eu parar, mesmo por um instante, a loucura vai me consumir. Então não vou mais me importar com o que fizer. Você precisa me ajudar.

— Como, Rand? Já tentei tudo o que sei. Diga-me como, e eu farei.

Ele deixou a mão cair ao lado de uma adaga que jazia na poeira, a lâmina à mostra.

— A adaga — sussurrou. Com muito esforço, levou a mão de volta até o peito. — Aqui. No coração. Me mate.

Ela olhou para ele e para a adaga, como se ambos fossem serpentes venenosas.

— Não! Rand, não vou fazer isso. Não posso! Como é que você me pede uma coisa dessas?

Bem devagar, ele arrastou a mão de volta até a adaga. Mais uma vez, os dedos não a alcançaram. Ele se esticou, gemendo, e tocou a arma com a ponta dos dedos. Antes que ele pudesse tentar de novo, ela chutou o objeto para longe. Rand desabou em soluços.

— Por quê? — exigiu saber. — Por que está me pedindo para… matar você? Eu vou Curá-lo, farei qualquer coisa para tirá-lo daqui, mas não posso matá-lo. Por quê?

— Eles podem me obrigar, Egwene. — A respiração dele era tão angustiante que ela quis chorar. — Se me levarem… o Myrddraal… os Senhores do Medo… podem me levar para a Sombra. Se a loucura me dominar, não vou poder resistir. Não vou nem saber o que estão fazendo, até que seja tarde demais. Se houver a menor centelha de vida em mim quando eles me encontrarem, poderão levar tudo adiante. Por favor, Egwene. Pelo amor da Luz. Me mate.

— Eu… eu não consigo, Rand! Que a Luz me ajude, eu não consigo!

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Ela olhou por cima do ombro, e um arco de prata repleto de luz branca ocupou a maior parte do espaço entre os destroços.

— Egwene, me ajude.

Seja firme.

Ela se levantou e deu um passo em direção ao arco. Estava bem na sua frente. Mais um passo, e…

— Por favor, Egwene. Me ajude. Eu não consigo alcançar. Pelo amor da Luz, Egwene, me ajude!

— Não posso matar você — sussurrou. — Não posso. Me perdoe.

Ela deu um passo à frente.

— EGWENE, ME AJUDE!

A luz a reduziu a cinzas.


Ela saiu do arco cambaleante, sem perceber ou se importar com a nudez. Um tremor a percorreu, e ela cobriu a boca com as mãos.

— Eu não consegui, Rand — sussurrou. — Não consegui. Por favor, me perdoe. — Luz, ajude-o. Por favor, Luz, ajude Rand.

A água fria escorreu por sua cabeça.

— Você está sendo lavada e purificada do falso orgulho — entoou Elaida. — Você está sendo lavada e purificada da falsa ambição. Você vem a nós lavada e purificada, de coração e alma.

Quando a irmã Vermelha se virou, Sheriam tomou os ombros de Egwene com gentileza e a conduziu até o último arco.

— Mais um, criança. Mais um, então estará acabado.

— Ele disse que eles poderiam levá-lo para a Sombra — balbuciou Egwene. — Disse que o Myrddraal e os Senhores do Medo o obrigariam.

Sheriam tropeçou e olhou em volta depressa. Elaida estava quase de volta à mesa. As Aes Sedai em volta do ter’angreal encaravam o objeto, alheias a todo o resto.

— Algo muito desagradável de se dizer, criança — falou Sheriam, por fim, bem baixinho. — Venha. Só mais um.

— Eles podem? — insistiu Egwene.

— É costume não falar sobre o que ocorre dentro do ter’angreal — respondeu Sheriam. — Os medos de uma mulher pertencem apenas a ela própria.

— Eles podem?

Sheriam suspirou, olhou mais uma vez para as outras Aes Sedai, baixou a voz a um sussurro e disse, bem depressa:

— Isso é um fato que somente poucos conhecem, criança, mesmo dentro da Torre. Você não deveria saber disso agora, talvez nunca, mas vou lhe contar. A capacidade de canalizar traz… uma fraqueza. Aprendermos a nos abrir para a Fonte Verdadeira significa podermos… nos abrir para outras coisas. — Egwene estremeceu. — Fique calma, criança. Não é tão fácil assim. Esse tipo de coisa não é feito, até onde sei, e que a Luz permita, desde as Guerras dos Trollocs. Foram necessários treze Senhores do Medo, Amigos das Trevas capazes de canalizar, combinando o fluxo através de treze Myrddraal. Vê? Não é tão fácil assim. Não há Senhores do Medo hoje em dia. Esse é um segredo da Torre, criança. Se outros soubessem, jamais poderíamos convencê-los de que estão seguros. Apenas alguém capaz de canalizar pode ser dominado dessa forma. É a fraqueza de nossa força. Todos os outros estão seguros como fortalezas, apenas seus próprios atos e vontades podem entregá-los à Sombra.

— Treze — disse Egwene, baixinho. — A mesma quantidade de mulheres que deixaram a Torre. Liandrin, mais outras doze.

O rosto de Sheriam endureceu.

— Não há por que insistir nesse assunto. Esqueça. — A voz retornou ao volume normal. — A terceira vez é pelo que será. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Egwene encarou o arco reluzente, depois olhou um pouco adiante. Liandrin e outras doze. Treze Amigas das Trevas capazes de canalizar. Que a Luz nos ajude. Ela adentrou a luz. A luz a preenchia. Brilhava através dela. Queimava seus ossos, fazia sua alma arder. Ela brilhava, incandescente, sob a luz. Que a Luz me ajude! Não havia nada além de luz. E dor.


Egwene olhou para o espelho de corpo inteiro sem saber se estava mais surpresa com a placidez de idade indefinida de seu rosto ou com a estola listrada que pendia do pescoço. A estola do Trono de Amyrlin.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Treze.

Ela cambaleou, agarrou o espelho com força e quase caiu junto com ele no chão de azulejos azuis do quarto de vestir. Há algo errado, pensou. A estranheza não tinha nada a ver com a tontura súbita, ou pelo menos não era aquilo que ela achava que estava errado. Era outra coisa. Mas ela não fazia ideia do quê.

Havia uma Aes Sedai a seu lado, uma mulher com as mesmas maçãs do rosto salientes de Sheriam, mas de cabelos escuros e olhos castanhos e apreensivos, exibindo nos ombros a pequena estola de Curadora. Porém não era Sheriam. Egwene jamais a vira, no entanto, tinha certeza de que a conhecia tão bem quanto a si mesma. Hesitante, deu um nome à mulher. Beldeine.

— Está passando mal, Mãe?

A estola dela é verde. Significa que foi elevada da Ajah Verde. A Curadora sempre vem da mesma Ajah que a Amyrlin a quem serve. Isso quer dizer que, se eu sou a Amyrlin… se… também sou da Ajah Verde. O pensamento a abalou. Não por ser da Ajah Verde, mas por ter precisado chegar àquela conclusão. Luz, há algo errado comigo.

A saída só apa… A voz em sua cabeça enfraqueceu e terminou em um murmúrio.

Treze Amigos das Trevas.

— Estou bem, Beldeine — respondeu Egwene. O nome pareceu estranho em sua boca, como se estivesse repetindo-o havia anos. — Não podemos deixá-las esperando. — Deixar quem esperando? Ela não sabia, sabia apenas que se sentia infinitamente triste em acabar com aquela espera, sentia uma relutância sem fim.

— Eles ficarão ainda mais impacientes, Mãe. — A voz de Beldeine vacilou, como se ela sentisse a mesma hesitação que Egwene, mas por razão diferente.

A não ser que o palpite de Egwene estivesse errado, Beldeine estava apavorada por trás daquela calma aparente.

— Nesse caso, é melhor acabarmos logo com isso.

A mulher assentiu, depois respirou fundo e cruzou o tapete até o ponto em que o cajado de seu posto, com a lágrima da Chama Branca de Tar Valon na ponta, estava apoiado junto à porta.

— Creio que sim, Mãe. — Ela pegou o cajado, abriu a porta para Egwene e correu na frente. As duas partiram em procissão, a Curadora das Crônicas conduzindo o Trono de Amyrlin.

Egwene mal notou os corredores por onde passavam. Estava perdida nos próprios pensamentos. O que está acontecendo comigo? Por que não consigo me lembrar? Por que tudo de que eu… quase me lembro está errado? Ela tocou a estola com sete listras no ombro. Por que tenho quase certeza de que ainda sou uma noviça?

A saída só aparecerá… — Dessa vez, a frase terminou de repente.

Treze da Ajah Negra.

Ela deu um tropeção. Era um pensamento assustador, mas o calafrio que sentiu ia além do medo. Parecia… pessoal. Ela quis gritar, correr e se esconder. Sentiu-se como se alguém a estivesse perseguindo. Bobagem. A Ajah Negra foi destruída. Aquele também parecia um pensamento estranho. Parte dela se lembrava de algo chamado Grande Expurgo. Parte dela tinha certeza de que aquilo jamais acontecera.

Com os olhos fixos à frente, Beldeine não percebeu o tropeção. Egwene precisou apressar o passo para alcançá-la. Esta mulher está assustada até a raiz dos cabelos. Aonde, pela Luz, ela está me levando?

Beldeine parou diante de portas duplas altas, cuja madeira escura era marchetada com a Chama de Tar Valon, grande e prateada. Limpou as mãos no vestido, como se estivessem ficando suadas de repente. Então abriu uma das portas e conduziu Egwene pela subida de uma rampa reta, feita das mesmas pedras brancas rajadas de prata que formavam os muros de Tar Valon. Mesmo ali, elas pareciam brilhar.

A rampa levava a uma sala ampla e circular, com um teto abobado a pelo menos trinta passos de altura. Uma plataforma elevada se estendia na extremidade do aposento, toda rodeada por degraus, exceto pela rampa em que estavam e onde havia outras duas, todas com espaçamento igual ao redor do círculo. A Chama de Tar Valon estava marcada no chão, bem no centro, rodeada por espirais largas com as cores das sete Ajahs. Do lado oposto à rampa, encontrava-se uma cadeira de espaldar alto, pesada e ornamentada com entalhes de vinhas e folhas, pintada com as cores de todas as Ajahs.

Beldeine bateu forte com o cajado no chão. Sua voz soou trêmula.

— Ela chegou. A Vigia dos Selos. A Chama de Tar Valon. O Trono de Amyrlin. Ela chegou.

Com um farfalhar de saias, as mulheres de xale na plataforma levantaram-se de suas cadeiras. Vinte e uma cadeiras em grupos de três, cada trio pintado e estofado com a mesma cor das franjas dos xales das mulheres que nelas se sentavam.

O Salão da Torre, pensou Egwene enquanto caminhava até sua cadeira. A cadeira do Trono de Amyrlin. É isso o que é. O Salão da Torre, e as Votantes das Ajahs. Já estive aqui mil vezes. Mas não conseguia se lembrar de nenhuma delas. O que estou fazendo no Salão da Torre? Luz, elas vão me esfolar viva quando virem… Ela não tinha certeza do que elas veriam, mas rezava para que não o fizessem.

A saída só aparecerá…

A saída…

A…

A Ajah Negra aguarda. Aquela frase, ao menos, estava completa. Vinha de toda parte. Por que parecia que ninguém mais ouvia?

Acomodando-se na cadeira do Trono de Amyrlin, que também era o Trono de Amyrlin, ela percebeu que não tinha ideia do que fazer em seguida. As outras Aes Sedai se sentaram depois dela, todas exceto Beldeine, que continuou a seu lado com o cajado, engolindo em seco, nervosa. Todas pareciam esperar que Egwene fizesse algo.

— Comecem — disse, enfim.

Parecia o suficiente. Uma das Representantes Vermelhas se levantou. Egwene ficou chocada ao reconhecer Elaida. Ao mesmo tempo, soube que a mulher era a principal Votante Vermelha, além de sua maior e mais amarga inimiga. O olhar no rosto da mulher que a encarava do outro lado do recinto fez Egwene estremecer por dentro. Era duro, frio e… triunfante. Fazia promessas sobre as quais era melhor não pensar.

— Tragam-no — disse a Vermelha, em voz alta.

De uma das rampas, não a que Egwene havia usado para entrar, veio o ruído de botas batendo na pedra. Pessoas surgiram. Doze Aes Sedai rodeavam três homens. Dois deles eram guardas corpulentos portando a lágrima branca da Chama de Tar Valon no peito. Eles puxavam as correntes que prendiam o terceiro homem; este cambaleava, atordoado.

Egwene inclinou-se para a frente na cadeira. O homem acorrentado era Rand. Com os olhos semicerrados e a cabeça inclinada, parecia quase dormir, movendo-se apenas para onde as correntes o conduziam.

— Este homem — anunciou Elaida — proclamou-se o Dragão Renascido. — Houve um burburinho de repugnância, não como se a plateia estivesse surpresa, mas como se não fosse algo agradável de ouvir. — Este homem canalizou o Poder Único. — O burburinho cresceu, agora expressando nojo e um pouco de medo. — Há apenas uma penalidade para este caso, conhecida em todas as nações, mas anunciada apenas aqui, em Tar Valon, no Salão da Torre. Convoco o Trono de Amyrlin a pronunciar a sentença de amansamento para este homem.

Os olhos de Elaida brilharam para Egwene. Rand. O que eu faço? Luz, o que eu faço?

— Por que hesita? — inquiriu Elaida. — A sentença foi redigida há trezentos anos. Por que hesita, Egwene al’Vere?

Uma das Votantes Verdes ficou de pé, claramente irritada apesar da calma.

— Que vergonha, Elaida! Demonstre respeito pelo Trono de Amyrlin! Respeito pela Mãe!

— O respeito — retrucou Elaida, com frieza — pode ser perdido, bem como conquistado. E então, Egwene? Será que enfim demonstrará sua fraqueza, sua inaptidão para a posição que ocupa? Será que não pronunciará a sentença para este homem?

Rand tentou erguer a cabeça, mas não conseguiu.

Egwene lutou para se levantar. Sua mente girava, tentando se lembrar de que era o Trono de Amyrlin e de que tinha o poder de comandar todas aquelas mulheres. Sua mente gritava que era uma noviça, que não pertencia àquele lugar, que algo estava absurdamente errado.

— Não — disse, trêmula. — Não, eu não posso! Não vou…

— Ela está se traindo! — O grito de Elaida sufocou a tentativa de Egwene de falar. — A própria boca a condena! Levem-na!

Quando Egwene abriu a boca, Beldeine aproximou-se dela. Em seguida, o cajado da Curadora atingiu-lhe a cabeça.

Escuridão.

Primeiro, sentiu a cabeça doer. Havia algo duro sob suas costas, e estava frio. Depois vieram as vozes. Murmúrios.

— Ela ainda está inconsciente?

Era um ruído rouco, parecia uma lixa rapando um osso.

— Não se preocupe — disse uma mulher, em algum lugar muito, muito longe. Parecia inquieta e assustada, mas tentava não demonstrar isso. — Tudo será resolvido antes que ela perceba o que está acontecendo. Então ela será nossa, e nós decidiremos o que fazer. Talvez a entreguemos para vocês se divertirem.

— Depois que terminarem com ela.

— Naturalmente.

As vozes ao longe ficaram ainda mais distantes.

Ela roçou a mão na perna e tocou a pele nua e áspera. Abriu os olhos de leve. Estava despida, machucada, deitada em uma mesa tosca de madeira, dentro do que parecia ser uma despensa desativada. Farpas espetavam suas costas. Ela sentia um gosto metálico de sangue na boca.

Um grupo de Aes Sedai conversava entre si de um dos lados do aposento, as vozes baixas, porém urgentes. A dor de cabeça não deixava Egwene raciocinar direito, mas parecia importante contá-las. Treze.

Outro grupo, composto por homens de mantos negros e capuzes, juntou-se às Aes Sedai, que pareciam divididas entre se encolher e tentar dominá-los com a própria presença. Um dos homens virou a cabeça para olhar em direção à mesa. O rosto pálido e morto dentro do capuz não tinha olhos.

Egwene não precisou contar os Myrddraal. Ela sabia. Treze Myrddraal e treze Aes Sedai. Sem pensar duas vezes, soltou um grito de puro terror. Ainda assim, em meio ao medo que a dilacerava, tentou alcançar a Fonte Verdadeira, tentou desesperadamente agarrar saidar.

— Ela acordou!

— Não pode ser! Ainda não!

— Blindem-na! Rápido! Rápido! Cortem-na da Fonte!

— É muito tarde! Ela é forte demais!

— Prendam-na! Rápido!

Mãos tentaram agarrar seus braços e pernas. Mãos pálidas como lesmas que vivem debaixo das pedras, controladas por mentes detrás de rostos brancos e sem olhos. Se aquelas mãos tocassem sua carne, ela sabia que enlouqueceria. O Poder a preencheu.

As chamas irromperam da pele dos Myrddraal e se alastraram pelo tecido preto como se fossem adagas de fogo. Meios-homens ganiam enquanto queimavam como papel encerado. Pedaços de pedra do tamanho de punhos se desprenderam das paredes e foram lançadas pela sala, fazendo todos os golpeados soltarem ganidos e grunhidos. O ar se agitava, revolto, chiando, em um vendaval.

Lenta e dolorosamente, Egwene lançou-se para fora da mesa. O vento açoitava seus cabelos e a fazia cambalear, mas ela continuou a conduzi-lo enquanto andava em direção à porta. Uma Aes Sedai surgiu à sua frente, uma mulher ferida e sangrando, rodeada pelo brilho tênue do Poder. Uma mulher com a morte nos olhos negros.

A mente de Egwene deu um nome ao rosto. Gyldan. A maior confidente de Elaida, sempre de segredinhos nos corredores, à espreita durante as madrugadas. Egwene contraiu a boca. Ignorando as pedras e o vento, fechou o punho e socou Gyldan bem entre os olhos, com toda a força que tinha. A irmã Vermelha, ou melhor, a irmã Negra, se contorceu como se seus ossos derretessem.

Esfregando as juntas dos dedos, Egwene saiu, cambaleante, em direção ao corredor. Obrigada, Perrin, pensou, por me ensinar a fazer isso. Mas você não me contou como a nossa mão dói, também.

Ela fechou a porta com força contra o vento e canalizou. As pedras ao redor da entrada estremeceram, tiritaram e se arrumaram sobre a madeira. Não iria contê-las por muito tempo, mas qualquer coisa que as atrasasse por um minuto sequer já valia a pena. Minutos poderiam significar sua vida. Reunindo toda a força, ela se obrigou a sair correndo. Cambaleava, mas pelo menos estava correndo.

Precisava encontrar algumas roupas, decidiu. Uma mulher vestida tinha mais autoridade do que nua, e ela precisaria de toda a autoridade possível. O primeiro lugar onde procurariam por ela seria em seus aposentos, mas Egwene tinha um vestido, um par de sapatos extra e uma estola no gabinete, que não estava muito longe.

Era inquietante cruzar os corredores vazios. A Torre Branca já não tinha tanta gente quanto antes, mas sempre havia alguém por perto. O som mais alto era o baque de seus pés descalços nos azulejos.

Ela correu pela antessala do gabinete chegando ao cômodo interno, até que finalmente encontrou alguém. Beldeine estava sentada no chão, as mãos agarrando a cabeça, aos prantos.

Egwene parou, receosa, quando os olhos vermelhos de Beldeine encontraram os seus. Nenhum brilho de saidar envolvia a Curadora, mas Egwene ainda estava cautelosa. E confiante. Não era capaz de ver o próprio brilho, naturalmente, porém, o poder — o Poder — que se avolumava dentro dela era suficiente. Ainda mais quando somado ao seu segredo.

Beldeine esfregou uma das mãos no rosto molhado por lágrimas.

— Eu não tive escolha. Você precisa entender. Elas… elas… — Inspirando de forma trêmula e profunda, ela soltou tudo de uma vez: — Três noites atrás elas me pegaram enquanto eu dormia e me estancaram. — Ela elevou o tom de voz quase a um ganido. — Elas me estancaram! Não posso mais canalizar!

— Luz. — Egwene suspirou. A sobrecarga de saidar amorteceu o choque. — Que a Luz ajude e conforte você, minha filha. Por que não me contou? Eu teria… — Ela deixou a voz morrer, sabendo que não havia nada que pudesse ter feito.

— O que a senhora teria feito? O quê? Nada! Não há nada a se fazer. Mas elas disseram que poderiam reverter, com o poder do… o poder do Tenebroso. — Ela fechou os olhos, e as lágrimas escorreram. — Elas me machucaram, Mãe, e me fizeram… Ah, Luz, elas me machucaram! Elaida disse que me tornariam plena de novo, capaz de canalizar outra vez, se eu obedecesse. É por isso que… não tive escolha!

— Então Elaida é da Ajah Negra — comentou Egwene, com a voz severa. Havia um guarda-roupa estreito na parede, e dentro dele pendia um vestido de seda verde, guardado para quando ela não tinha tempo de retornar aos aposentos. Uma estola listrada estava pendurada ao lado do vestido. Mais do que depressa, ela começou a se vestir. — O que fizeram com Rand? Para onde o levaram? Responda, Beldeine! Onde está Rand al’Thor?

Beldeine abraçou o próprio corpo, os lábios trêmulos, os olhos frios virados para dentro, mas por fim se recompôs o suficiente para dizer:

— O Pátio dos Traidores, Mãe. Elas levaram Rand para o Pátio dos Traidores.

Calafrios dominaram Egwene. Calafrios de medo. Calafrios de raiva. Elaida não esperara uma hora sequer. O Pátio dos Traidores tinha apenas três propósitos: execuções, o estancamento de uma Aes Sedai e o amansamento de um homem capaz de canalizar. Mas todos os três requeriam uma ordem do Trono de Amyrlin. Quem está usando a estola lá fora? Elaida, não tinha dúvidas. Mas como ela conseguiu que a aceitassem tão depressa, sem que eu fosse julgada e sentenciada? Não pode haver outra Amyrlin até que eu seja destituída da estola e da função. E não vou facilitar para elas. Luz! Rand! Ela correu em direção à porta.

— O que a senhora pode fazer, Mãe? — gritou Beldeine. — O que a senhora pode fazer? — Não estava claro se ela se referia a Rand ou a si mesma.

— Mais do que qualquer um suspeita — respondeu Egwene. — Eu nunca segurei o Bastão dos Juramentos, Beldeine. — O arquejo da mulher a seguiu pela sala.

A memória de Egwene ainda brincava de esconde-esconde com ela. Não conhecia nenhuma mulher que tivesse conquistado o xale e o anel sem entoar os Três Juramentos com o Bastão firme nas mãos, o ter’angreal que gravava os juramentos nas mulheres de maneira tão profunda que era como se fossem incrustados em seus cernes. Nenhuma mulher se tornava Aes Sedai sem proferir os juramentos. Ainda assim, ela sabia que, de alguma forma que não era capaz de revelar, fizera exatamente aquilo.

Seus sapatos faziam estalidos rápidos no chão, enquanto ela corria. Pelo menos descobrira por que os corredores estavam vazios. Cada Aes Sedai, exceto talvez aquelas que deixara no depósito, cada Aceita, cada noviça, até mesmo as servas, todas estariam reunidas no Pátio dos Traidores, como manda a tradição, para assistir à consumação da vontade de Tar Valon.

E os Guardiões decerto estariam cercando o pátio, para o caso de alguém tentar libertar o homem que seria amansado. Os remanescentes dos exércitos de Guaire Amalasan já tinham tentado invadir o pátio, logo ao fim do que alguns chamavam de Guerra do Segundo Dragão, pouco antes da ascensão de Artur Asa-de-gavião dar novas preocupações a Tar Valon. E também os seguidores de Raolin Algoz-das-trevas, muitos anos antes. Se Rand tinha ou não seguidores, ela não conseguia lembrar, mas os Guardiões sempre se lembravam dessas coisas e tomavam as devidas precauções.

Se Elaida, ou qualquer outra, estivesse de fato usando a estola da Amyrlin, os Guardiões com certeza não permitiriam a entrada de Egwene no Pátio dos Traidores. Ela sabia que teria de entrar à força. Seria preciso agir rápido, não adiantaria nada se Rand fosse amansado enquanto ela ainda estivesse envolvendo os Guardiões em Ar. E até mesmo Guardiões cairiam se ela disparasse raios, fogo devastador ou se abrisse o chão sob seus pés. Fogo devastador?, pensou. Mas também não adiantaria nada se ela destruísse o poder de Tar Valon para salvar Rand. Tinha que salvar os dois.

Pouco antes de chegar ao Pátio dos Traidores, virou-se e começou a escalar escadas e rampas que se estreitavam a cada passo, até que abriu um alçapão com um tranco e foi até o topo inclinado de uma torre, um teto de azulejos quase brancos. De lá, era possível enxergar, depois dos tetos das outras torres, o grande átrio do Pátio dos Traidores.

O lugar estava lotado, exceto por um espaço vazio no meio. Pessoas observavam das janelas que tinham vista para o centro, aglomeravam-se nas sacadas e até no terraço, mas ela conseguiu distinguir o homem solitário, pequenino a distância, que se balançava nas correntes bem no meio do espaço vazio. Rand. Doze Aes Sedai o rodeavam, e outra, que Egwene sabia que devia estar usando uma estola de sete listras, mesmo sem ser capaz de enxergar, postou-se diante de Rand. Elaida. As palavras que ela talvez estivesse falando tomaram forma na cabeça de Egwene.

Este homem, abandonado pela Luz, tocou saidin, a metade masculina da Fonte Verdadeira. Por isso o detemos. Agindo de forma abominável, este homem canalizou o Poder Único, sabendo que saidin está maculado pelo Tenebroso, maculado pelo orgulho dos homens, maculado pelos pecados dos homens. Por isso o acorrentamos.

Egwene esforçou-se para afastar o restante da fala de seus pensamentos. Treze Aes Sedai. Doze irmãs e a Amyrlin, o número tradicional para o amansamento. O mesmo número de… Ela também afastou aquele pensamento. Não havia tempo para nada além do que era preciso fazer. Se ao menos pudesse descobrir como fazê-lo.

Àquela distância, pensou que talvez pudesse erguê-lo com Ar. Retirá-lo do círculo de Aes Sedai e trazê-lo flutuando até si. Talvez. Mesmo que tivesse força para isso, mesmo que não o deixasse cair e morrer no meio do caminho, seria um processo lento e o tornaria alvo fácil para os arqueiros, além do brilho de saidar que denunciaria sua localização para qualquer Aes Sedai que estivesse olhando. Aliás, também para qualquer Myrddraal.

— Luz — murmurou —, não há outra forma de fazer isso senão dando início a uma guerra dentro da Torre Branca. E eu o farei mesmo assim. — Ela reuniu o Poder, desenrolou o novelo, direcionou os fluxos.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Fazia tanto tempo que ela não ouvia aquelas palavras que levou um susto, escorregou nos azulejos lisos e quase não conseguiu se segurar na beirada. O chão ficava a cerca de cem passos abaixo. Ela olhou por cima do ombro.

Ali, no topo da torre, equilibrado nos azulejos inclinados, pairava um arco de prata tomado por um brilho luminoso. O arco cintilava e tremeluzia. Faixas de amarelo e vermelho vivo saltavam através da luz branca.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

O arco se enfraqueceu até ficar transparente… então retornou à forma sólida.

Em um frenesi, Egwene lançou um olhar na direção do Pátio dos Traidores. Tinha que dar tempo. Tinha que dar. Ela só precisava de alguns minutos, talvez dez, e de sorte.

Vozes lhe perfuravam a cabeça, não vozes desconhecidas que a mandavam ser firme, mas vozes de mulheres que ela quase acreditava conhecer.

— …não posso aguentar muito mais. Se ela não sair agora…

— Aguente! Aguente, que a queime, ou eu estripo todas vocês feito peixes!

— …enlouquecendo, Mãe! Não vamos conseguir.

As vozes se atenuaram e formaram um zumbido, mas a outra, irreconhecível, pronunciou-se mais uma vez.

A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.

Existe um preço para ser Aes Sedai.

A Ajah Negra a aguarda.

Com um grito de raiva e sofrimento, Egwene atirou-se dentro do arco que reluzia como uma névoa incandescente. Quase desejou errar o salto e ser arrastada para a morte.

A luz a destroçou, fibra por fibra, dilacerou-as em pedaços ainda menores, então dividiu os pedaços até partículas minúsculas. Tudo aquilo se desfez com a luz. Para sempre.

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