Egwene retornou à mesa e a seu chá. Pensou que talvez Elayne tivesse razão, que tivesse mesmo ido longe demais, mas não conseguiu se forçar a pedir desculpas. Então as três permaneceram sentadas, em silêncio.
Ailhuin retornou acompanhada de um homem, um sujeito esguio de meia-idade que parecia esculpido em madeira velha. Juilin Sandar deixou os tamancos na porta e pendurou o chapéu de palha cônico e liso em um pino. Do cinturão passado por cima do casaco marrom pendia uma adaga dentada quebra-espada muito parecida com a de Hurin, mas com ranhuras curtas de cada um dos lados da mais longa. Além disso, o homem carregava um cajado exatamente da sua altura, mas da espessura de um polegar. Era feito daquela madeira clara com ripas salientes que os boiadeiros usam para açular os bois. Os cabelos pretos eram cortados bem rente, e os olhos negros pareciam registrar cada detalhe do recinto. E de todas as presentes. Egwene podia apostar que ele examinara Nynaeve duas vezes, e, pelo menos para ela, a falta de reação da outra mulher era um sinal claro: estava óbvio que Nynaeve também notara.
Ailhuin fez um gesto para que o homem ocupasse um lugar à mesa. Ele virou as mangas do casaco, fez uma reverência para cada uma delas e sentou-se, o cajado apoiado em seu ombro. Não disse nada até a mulher grisalha preparar um bule de chá fresco e todos beberem um gole de suas canecas.
— Mãe Guenna me contou sobre o problema de vocês — disse, baixinho, pousando a caneca sobre a mesa. — Vou ajudar se puder, mas logo os Grão-lordes vão arrumar alguns problemas para eu resolver.
A mulher corpulenta bufou.
— Juilin, quando foi que você começou a pechinchar como um vendedor tentando fazer o cliente comprar linho a preço de seda? Não diga que sabe quando os Grão-lordes vão chamar você se não sabe de verdade.
— Não digo que sei quando — retrucou Sandar, abrindo um sorriso —, mas sei que vão, porque vi homens nos telhados à noite. Bem pelo canto do olho, pois eles sabem se esconder que nem peixes-agulhas num junco, mas percebi o movimento. Ninguém reportou nenhum roubo por enquanto, porém há ladrões aqui dentro das muralhas, pode apostar seu jantar nisso. Pode escrever. Em uma semana, serei convocado até a Pedra para dar conta da invasão de um bando de ladrões às casas dos mercadores, ou até mesmo à mansão de algum lorde. Os Defensores podem vigiar as ruas, mas sempre mandam buscar um caçador de ladrões quando é preciso ir atrás ladrões, e eu sempre sou o primeiro a ser chamado. Não estou tentando aumentar meu preço, mas, seja lá o que eu precise fazer por essas belas mulheres, é melhor que seja rápido.
— Acho que ele está falando a verdade — disse Ailhuin, com relutância. — Ele pode até dizer que a lua é verde e a água é branca, se achar que isso pode lhe render um beijo, mas mente menos que a maioria dos homens a respeito das outras coisas. Creio que seja o homem mais honesto que já nasceu no Maule.
Elayne levou a mão à boca, e Egwene se esforçou para não rir. Nynaeve permanecia imóvel e claramente impaciente.
Sandar fez uma careta para a mulher grisalha, então pareceu decidir ignorar o que ela dissera. Ele sorriu para Nynaeve.
— Admito que estou curioso a respeito dessas ladras. Já vi ladras mulheres e já vi quadrilhas, mas nunca ouvi falar de uma quadrilha de mulheres. E estou devendo uns favores à Mãe Guenna. — Seus olhos pareciam focados em Nynaeve mais uma vez.
— Quanto você cobra? — perguntou ela, ríspida.
— Para recuperar os itens roubados — respondeu o homem, sem perder tempo —, cobro a décima parte do valor do que eu recuperar. Para encontrar pessoas, cobro um marco de prata por indivíduo. Mãe Guenna disse que os objetos roubados são de pouco valor a não ser para as senhoras, por isso sugiro que fiquem com a primeira opção. — Ele sorriu outra vez. Tinha dentes muito brancos. — Eu não cobraria nada das senhoras, mas sei que a fraternidade vai fazer cara feia, então vou cobrar o mínimo possível. Um cobre ou dois, nada mais.
— Conheço um apanhador de ladrões — comentou Elayne. — De Shienar. Um homem muito respeitoso. Carrega uma espada junto da quebra-espada. Por que você não tem uma espada?
Sandar pareceu surpreso por um instante, e logo depois pareceu aborrecido consigo mesmo por ter se surpreendido. Também parecia não ter entendido a mensagem que ela tentara passar, ou decidiu ignorá-la.
— Vocês não são tairenas. Ouvi falar de Shienar, senhora. Histórias de Trollocs, e de como lá todos os homens são guerreiros. — Seu sorriso indicava que pensava que aqueles eram contos infantis.
— Tudo verdade — retrucou Egwene. — Ou verdade o bastante. Eu estive em Shienar.
Ele piscou para ela, então prosseguiu.
— Não sou um lorde ou um mercador rico, não sou sequer um soldado. Os Defensores não perturbam muito os estrangeiros por portarem espadas, a menos que desejem ficar muito tempo, é claro. Mas eu seria jogado numa cela na Pedra. Existem leis, senhora. — Ele deslizou a mão pelo cajado, num gesto inconsciente. — Eu me viro muito bem sem uma espada. — O homem concentrou o sorriso em Nynaeve mais uma vez. — Agora, se pudessem descrever os objetos…
Ele parou de falar quando a mulher que encarava colocou a bolsinha de moedas no canto da mesa e contou treze marcos de prata. Egwene achou que ela escolhera as moedas mais leves: a maioria era tairena, apenas uma andoriana. A Amyrlin dera a elas uma boa quantidade de ouro, mas mesmo assim o dinheiro não duraria para sempre.
Nynaeve encarou a bolsinha, pensativa, antes de amarrar as cordas e enfiá-la de volta na bolsa.
— Tem treze mulheres para o senhor encontrar, Mestre Sandar, e pagarei essa mesma quantia quando as localizar. Encontre as mulheres, e nós mesmas recuperaremos nossos pertences.
— Eu mesmo posso fazer isso, e cobrando menos — protestou o homem. — E não há necessidade de recompensa extra. Eu cobro o que cobro. Não tenha medo de que eu vá aceitar algum suborno.
— Não precisam temer isso — concordou Ailhuin. — Eu disse que o homem é honesto. Só não acreditem se ele disser que está apaixonado.
Sandar olhou feio para a mulher.
— Sou eu quem está pagando, Mestre Sandar — retrucou Nynaeve com firmeza —, então escolherei o que vou comprar. O senhor pode apenas localizar essas mulheres? — Ela aguardou que o homem assentisse, relutante, antes de prosseguir. — Pode ser que elas estejam juntas, ou não. A primeira é uma taraboniana. É um pouco mais alta que eu, bem clara, tem olhos escuros e cabelos cor de mel, que vivem presos em pequenas tranças, à moda de Tarabon. Alguns homens a consideram bonita, mas ela não tomaria isso como elogio. Tem uma língua cruel e irritadiça. A segunda é kandoriana. Tem cabelos compridos e negros, com uma mecha branca acima da orelha esquerda, e…
Ela não forneceu nenhum nome, e Sandar não perguntou. Era tão fácil mudar de nome. Como já faziam negócios, o homem tinha parado de sorrir. As treze mulheres foram descritas enquanto ele escutava com muita atenção, e, quando Nynaeve terminou, Egwene teve a certeza de que o homem seria capaz de repetir palavra por palavra.
— Pode ser que Mãe Guenna já tenha lhe informado — completou Nynaeve —, mas vou repetir. Essas mulheres são mais perigosas do que se pode imaginar. Mais de uma dúzia já morreu nas mãos delas, pelo menos que eu saiba, e não me surpreenderia se descobrisse que essas mortes são apenas uma gota de todo o sangue que elas têm nas mãos. — Sandar e Ailhuin piscaram, surpresos, ao ouvir aquilo. — Se descobrirem que está perguntando por elas, você vai morrer. Se capturarem você, farão com que diga onde estamos, e é provável que Mãe Guenna morra conosco. — A mulher grisalha parecia descrente. — Acredite em mim! — O olhar de Nynaeve exigia concordância. — Acredite em mim ou eu pego esse dinheiro de volta e encontro alguém mais inteligente!
— Quando eu era jovem — respondeu Sandar, com a voz grave —, uma ladra conseguiu enfiar a faca nas minhas costelas porque acreditei que uma bela mulher não seria tão rápida quanto um homem. Não cometo mais esse tipo de erro. Vou me comportar como se essas mulheres fossem todas Aes Sedai, e da Ajah Negra. — Egwene quase engasgou, e o homem abriu um sorriso arrependido enquanto guardava as moedas dentro da própria bolsa, que enfiou de volta por trás do cinturão. — Não tive a intenção de assustar a senhora. Não tem nenhuma Aes Sedai em Tear. Pode levar alguns dias, se elas não estiverem juntas. Treze mulheres juntas é fácil de se encontrar, mas separadas fica mais difícil. De qualquer forma, eu vou encontrá-las. E não vou afugentá-las antes que as senhoras saibam onde estão.
Depois que o homem pôs o chapéu, calçou os tamancos e saiu pela porta dos fundos, Elayne se pronunciou:
— Espero que ele não esteja confiante demais. Ailhuin, eu ouvi o que ele disse, mas… Será que ele entendeu mesmo que essas mulheres são perigosas?
— Sandar nunca deu uma de bobo, a não ser por um par de olhos ou por um belo tornozelo — respondeu a mulher grisalha. — E esse é um defeito de qualquer homem. Ele é o melhor caçador de ladrões de Tear. Não se preocupem. Vai encontrar essas suas Amigas das Trevas.
— Vai chover de novo antes de amanhecer. — Nynaeve estremeceu, apesar do calor do ambiente. — Sinto uma tempestade chegando. — Ailhuin apenas balançou a cabeça e começou a encher as tigelas de sopa de peixe para o jantar.
Depois de todas comerem e se lavarem, Nynaeve e Ailhuin sentaram-se à mesa para falar de ervas e curas. Elayne foi trabalhar em um pequeno bordado de diminutas flores brancas e azuis que começara a fazer no ombro de seu manto, depois foi ler uma cópia de Os Ensaios de Willim de Maneches que Ailhuin guardava na pequena prateleira de livros. Egwene tentou ler, mas nem os ensaios nem As Jornadas de Jain, o Viajante e nem os contos bem-humorados de Aleria Elffin conseguiram prender sua atenção por mais de algumas páginas. Ela tocou o ter’angreal de pedra sob o decote do vestido. Onde será que elas estão? O que será que querem no Coração? Ninguém além do Dragão — ninguém além de Rand — pode tocar Callandor, então o que é que elas querem? O quê? O quê?
Quando já era tarde, Ailhuin levou cada uma das moças a um quarto no andar de cima, mas depois que a mulher se recolheu as três se juntaram no quarto de Egwene, à luz de uma única lanterna. Egwene já estava apenas de roupas de baixo, e o cordão pendia de seu pescoço com os dois anéis. O de pedra rajada parecia muito mais pesado que o outro. Era isso o que as três faziam todas as noites desde a partida de Tar Valon, com a única exceção da noite que passaram com os Aiel.
— Podem me acordar daqui a uma hora — avisou às outras.
Elayne franziu o rosto.
— Tão pouco, dessa vez?
— Se sente incomodada? — perguntou Nynaeve. — Talvez esteja usando demais esse anel.
— Se eu não estivesse usando demais, ainda estaríamos em Tar Valon esfregando panelas e torcendo para encontrar uma irmã Negra antes que um Homem Cinza nos descobrisse — retrucou Egwene, ríspida. Luz, Elayne tem razão. Estou respondona como uma criança malcriada. Ela respirou fundo. — Talvez eu esteja mesmo incomodada. Talvez seja porque agora estamos muito perto do Coração da Pedra. Muito perto de Callandor. Muito perto da armadilha, seja ela qual for.
— Tome cuidado — pediu Elayne.
Nynaeve completou, mais baixinho:
— Tome muito cuidado, Egwene. Por favor. — Ela dava puxões curtos na trança.
Egwene se acomodou na cama de cabeceira baixa, as duas outras sentadas em dois banquinhos, uma de cada lado, enquanto trovões ressoavam no céu. O sono chegou bem devagar.
Ela estava outra vez nas planícies irregulares, como sempre começavam todos os sonhos. Flores e borboletas banhadas pela luz do sol primaveril, pássaros cantando e uma brisa suave. Ela usava seda verde com pássaros dourados bordados sobre os seios, além de sandálias de veludo verde. O ter’angreal parecia leve o bastante para flutuar para fora do vestido, mas o peso do anel da Grande Serpente o puxava para baixo.
Por simples tentativa e erro, ela aprendera algumas das regras de Tel’aran’rhiod. Mesmo aquele Mundo dos Sonhos, aquele Mundo Invisível, tinha suas regras, ainda que estranhas, e ela estava certa de que não conhecia nem um décimo delas. Também aprendera uma forma de ir aonde desejasse. Fechando os olhos, ela esvaziou a mente, como fazia para abraçar saidar, mas precisava preencher o vazio com algo diferente. Não era tão fácil, pois o botão de rosa insistia em se formar, e ela ficava sentindo a Fonte Verdadeira, desejando abraçá-la. Visualizou o Coração da Pedra, a mesma estrutura que vira em todos os outros sonhos, e o reproduziu com perfeição em todos os detalhes, dentro do vazio. As gigantescas colunas de pedra vermelha polida. As pedras do chão desgastadas pelo tempo. O domo muito acima de sua cabeça. A espada de cristal, intocável, girando lentamente no ar, o cabo para baixo. Quando a imagem parecia tão real que ela tinha a certeza de que poderia estender a mão e tocá-la, abriu os olhos e estava lá, no Coração da Pedra. Ou no Coração da Pedra que existia em Tel’aran’rhiod.
As colunas estavam lá, e Callandor. Ao redor da espada reluzente, quase tão turvas e imateriais quanto sombras, treze mulheres sentadas de pernas cruzadas observavam a espada girar. Liandrin, com os cabelos cor de mel, virou a cabeça, encarou Egwene com aqueles olhos grandes e escuros e abriu um sorriso com os lábios em forma de botão de rosa.
Ofegando, Egwene sentou-se na cama tão depressa que quase caiu para o lado.
— Qual é o problema? — inquiriu Elayne. — O que aconteceu? Você parece assustada.
— Você acabou de fechar os olhos — comentou Nynaeve, baixinho. — É a primeira vez, desde que começamos isso, que você volta sem que a gente precise acordá-la. Alguma coisa aconteceu, não foi? — Ela deu um puxão forte na trança. — Está tudo bem?
Como foi que eu voltei?, perguntou-se Egwene. Luz, não sei nem o que fiz. Ela sabia que estava apenas tentando adiar o que precisava dizer. Desamarrando o cordão em torno do pescoço, ela botou na palma da mão os dois anéis, o da Grande Serpente e o ter’angreal, que era maior e retorcido.
— Elas estão esperando por nós — explicou, por fim. Não era preciso explicitar quem. — E acho que sabem que estamos em Tear.
Do lado de fora, a tempestade desabava na cidade.
Com a chuva martelando no convés acima de sua cabeça, Mat encarava o tabuleiro de pedras na mesa entre ele e Thom, mas não conseguia se concentrar no jogo, embora tivessem apostado um marco de prata andoriano. Trovões ressoavam, e raios caíam do outro lado das pequenas janelas. Quatro lampiões iluminavam a cabine do capitão do Andorinha. Essa porcaria de navio pode até ser ágil que nem o pássaro, mas ainda está lento demais, maldição. A embarcação deu um leve solavanco, depois outro. O balanço pareceu mudar. Acho bom que ele não tenha nos enfiado em um desses malditos bancos de lama! Se aquele homem não estiver avançando o mais depressa possível com essa banheira lerda, vou enfiar aquele ouro pela goela dele! Ele soltou um bocejo — não dormia bem desde a partida de Caemlyn, estava preocupado demais para conseguir dormir direito — e depois outro. Então pôs uma pedra branca na interseção de duas linhas: com mais três jogadas, apanharia quase um quinto das pedras pretas de Thom.
— Você poderia ser um bom jogador, garoto — comentou o menestrel em voz baixa, com a boca no cachimbo, colocando a pedra seguinte —, se fizesse algum esforço. — O tabaco cheirava a folhas e nozes.
Mat pegou outra pedra da pilha em seu cotovelo, depois piscou os olhos e a posicionou. Nas mesmas três jogadas, as pedras de Thom teriam cercado mais de um terço das dele. Ele não previra o movimento, e estava sem saída.
— Você nunca perde? Já perdeu algum jogo?
Thom tirou o cachimbo da boca e passou a mão pelo bigode.
— Faz muito tempo que não. Morgase vencia de mim na metade das vezes. Dizem que bons comandantes e bons jogadores do Grande Jogo também são bons com as pedras. Morgase é a melhor, e não tenho dúvidas de que também pode liderar uma batalha.
— Não prefere jogar outra partida de dados? As pedras demoram muito.
— Gosto de ter a chance de ganhar mais de um lance em nove ou dez — retrucou o homem de cabelos brancos, seco.
Mat deu um salto e ficou de pé quando a porta se abriu com um estrondo, e o Capitão Derne entrou. O homem de rosto quadrado abanou o manto para afastá-lo dos ombros, sacudindo a chuva e resmungando xingamentos para si mesmo.
— Que a Luz me queime os ossos, não sei por que deixei vocês alugarem o Andorinha. Vocês ficam pedindo que eu vá mais depressa, não importa se é sob a noite mais escura ou a chuva mais pesada. Mais depressa. Sempre mais depressa, que maldição! Eu já poderia ter topado com cem atoleiros, a essa altura!
— Você queria o ouro — retrucou Mat, seco. — Disse que esse monte de ripas velhas era rápido, Derne. Quando é que chegaremos a Tear?
O capitão abriu um sorriso tenso.
— Estamos chegando no píer. E que me queime e que eu vire um maldito fazendeiro se chegar a levar qualquer porcaria capaz de falar! Agora, onde está o resto do meu ouro?
Mat correu até uma das janelas e deu uma espiada. Com ajuda dos desagradáveis clarões dos relâmpagos, pôde ver apenas um desembarcadouro de pedras todo molhado, quase nada mais. Pescou a segunda bolsa de ouro de dentro do bolso e lançou-a para Derne. Ninguém nunca ouviu falar em um homem do rio que não jogasse dados!
— Já não era sem tempo — grunhiu para o homem. A luz permita que eu não tenha chegado tarde demais.
Ele enfiara todas as mudas de roupas e os cobertores no alforje de couro. Levava a trouxa em um ombro e o rolo de fogos de artifício no outro, preso a uma corda. Seu manto cobria tudo, mas deixava um pedacinho exposto na frente ao corpo. Melhor ele se molhar do que os fogos de artifício. Ele poderia se secar e ficar novinho em folha, mas um teste com um balde provara que os fogos de artifício não. Acho que o pai de Rand estava certo. Mat sempre pensara que o Conselho da Aldeia não disparava fogos na chuva porque o espetáculo era mais bonito em noites limpas.
— Já não está na hora de vendermos essas coisas? — perguntou Thom, enquanto ajeitava o manto de menestrel nos ombros. O manto cobria a harpa e a flauta no estojo de couro, mas a trouxa de roupas e os cobertores iam pendurados nas costas, por fora do manto de retalhos.
— Só depois que eu descobrir como funcionam, Thom. Além do mais, pense só como vai ser divertido disparar todos eles.
O menestrel estremeceu.
— Desde que você não dispare todos ao mesmo tempo, garoto. E desde que não jogue na lareira durante o jantar. Não me surpreenderia, pelo jeito que vem se comportando com eles. Você teve sorte de o capitão aqui não nos ter atirado fora do navio dois dias atrás.
— Ele não faria isso. — Mat riu. — Não com a perspectiva de ganhar essa bolsa. Não é, Derne?
Derne brincava com a bolsa de ouro na mão.
— Eu não perguntei nada antes, mas agora você já me deu esse ouro e não vai tê-lo de volta. Que história é essa? Para que toda essa pressa?
— Uma aposta, Derne. — Bocejando, Mat apanhou o bastão, pronto para partir. — Uma aposta.
— Uma aposta! — Derne encarou a bolsa pesada. Havia outra idêntica àquela guardada em seu baú de dinheiro. — O vencedor deve levar um reino inteiro!
— Mais que isso — respondeu Mat.
A chuva caía com tanta força no convés que ele só conseguiu ver a prancha de desembarque quando um relâmpago estourou sobre a cidade. O rugido do aguaceiro mal o deixava ouvir os próprios pensamentos. No entanto, distinguia luzes em algumas janelas rua acima. Encontraria estalagens naquela área. O capitão não foi até o convés para vê-los partir, e ninguém da tripulação quisera ficar debaixo da chuva. Mat e Thom desembarcaram no píer de pedras sozinhos.
Mat xingou quando suas botas afundaram na lama da rua, mas não havia jeito. Avançou, caminhando a passos largos o mais rápido que podia, as botas e a ponta do bastão grudando no chão a cada passo. O ar era rançoso e cheirava a peixe, mesmo com a chuva.
— Vamos encontrar uma estalagem — disse, bem alto, para ser ouvido mesmo com o barulho da chuva —, e depois eu vou sair para procurar.
— Com esse tempo? — gritou Thom, em resposta. A chuva escorria por seu rosto, mas ele estava mais interessado em proteger os instrumentos do que a cara.
— Comar pode ter ido embora de Caemlyn antes de nós. Se ele estava em um bom cavalo em vez dos pangarés em que cavalgávamos, pode ter partido de Aringill talvez um dia inteiro antes de nós, e eu não sei quanto tempo conseguimos recuperar com aquele idiota do Derne.
— Foi uma travessia rápida — admitiu Thom. — O Andorinha merece o nome.
— Seja como for, Thom, com chuva ou sem chuva, tenho que encontrá-lo antes que ele encontre Egwene, Nynaeve e Elayne.
— Umas horas a mais não vão fazer diferença, garoto. Uma cidade do tamanho de Tear tem centenas de estalagens. Deve haver mais umas cem do lado de fora dos muros, e algumas são bem pequenas, com não mais que uma dúzia de quartos para alugar, tão minúsculas que você pode passar por elas sem nem perceber. — O menestrel ergueu um pouco mais o capuz do manto, resmungando sozinho. — Vamos levar semanas para vasculhar todas. Mas Comar também vai levar essas mesmas semanas. Podemos passar a noite longe da chuva. Pode apostar qualquer moeda que ainda tenha que Comar não vai ficar debaixo dela.
Mat sacudiu a cabeça. Uma estalagem minúscula com uma dúzia de quartos. Antes de deixar Campo de Emond, o maior prédio que ele já vira era a estalagem Fonte de Vinho, e duvidava de que Bran al’Vere tivesse mais que uma dúzia de quartos para alugar. Egwene morava com os pais e as irmãs nos quartos da frente do segundo andar. Que me queime, às vezes acho que nenhum de nós deveria ter deixado Campo de Emond. Mas Rand sem dúvida tinha que ter partido, e Egwene decerto teria morrido se tão tivesse ido para Tar Valon. E agora ela pode morrer por ter ido. Ele não acreditava que conseguiria viver na fazenda outra vez, as vacas e ovelhas sem dúvidas não jogariam dados. Porém, Perrin ainda tinha alguma chance de voltar para casa. Vá para casa, Perrin, se pegou pensando. Vá para casa enquanto ainda pode. Ele se recompôs. Idiota! Por que ele iria querer isso? Pensou em deitar-se na cama, mas afastou o pensamento. Ainda não.
Relâmpagos cruzaram o céu. Três raios cortantes dispararam ao mesmo tempo, lançando a luz forte em uma casa estreita que parecia ter um monte de ervas penduradas nas janelas, ao lado de uma loja bem fechada, que pela placa com desenhos de tigelas e pratos pertencia a um oleiro. Bocejando, ele encolheu os ombros debaixo da chuva que caía e tentou puxar as botas da lama grudenta com mais rapidez.
— Acho que posso deixar essa parte da cidade de lado, Thom — gritou. — Toda essa lama e esse cheiro de peixe. Dá para pensar que Nynaeve, Egwene ou, imagine só, Elayne escolheriam ficar por aqui? As mulheres gostam das coisas limpinhas e organizadas, Thom, além de bem cheirosas.
— Pode ser, garoto — resmungou o menestrel, depois tossiu. — Você ficaria surpreso com o que as mulheres são capazes de aguentar. Mas pode ser.
Segurando o manto para manter o rolo de fogos de artifício coberto, Mat apertou o passo.
— Ande, Thom. Quero encontrar Comar ou as garotas ainda hoje à noite. Ou ele ou elas.
O menestrel mancava atrás dele, tossindo de vez em quando.
Eles atravessaram os largos portões da cidade, que estavam sem guardas, por causa da chuva, e Mat ficou aliviado em sentir o chão pavimentado outra vez sob os pés. Havia uma estalagem a não mais de cinquenta passos. As janelas do salão iluminavam o meio da rua, e a música que vinha de dentro podia ser ouvida na noite lá fora. Até Thom percorreu mais depressa os últimos cinquenta passos sob a chuva, manco ou não.
A Lua Crescente tinha um senhorio cujo tamanho da cintura fazia o longo casaco azul ficar tão justo acima quanto abaixo do quadril, ao contrário da maioria dos homens ocupando as cadeiras de encosto baixo. Mat pensou que as calças largas do senhorio, amarradas nos tornozelos sobre os sapatos baixos, deviam ser grandes o suficiente para caber dois homens comuns, um em cada perna. As garçonetes usavam vestidos escuros de gola alta e aventais curtos e brancos. Havia um sujeito tocando um saltério entre as duas lareiras de pedra. Thom analisou o homem com um olhar crítico e sacudiu a cabeça.
O rotundo estalajadeiro, que atendia por Cavan Lopar, ficou mais que satisfeito em alugar os quartos. Ele franziu a testa para as botas enlameadas, mas a prata do bolso de Mat — o ouro estava começando a acabar — e o manto coberto de retalhos de Thom suavizaram a expressão na testa gorda do sujeito. Quando Thom disse que poderia se apresentar algumas noites por uma pequena quantia, os queixos de Lopar chacoalharam de prazer. Não sabia nada sobre um homem forte com uma mecha branca na barba, nem sobre três mulheres com descrições similares às que Mat fornecera. O rapaz deixou todos os pertences no quarto, exceto o manto e o bastão, mal notando que havia uma cama — dormir era tentador, mas ele não podia se permitir pensar naquilo. Depois engoliu um cozido de peixe picante e correu de volta para a chuva. Para sua surpresa, Thom foi junto.
— Achei que quisesse ficar no seco, Thom.
O menestrel deu um tapinha no estojo da flauta que ainda levava sob o manto. O restante das coisas estava no quarto.
— As pessoas falam com os menestréis, garoto. Posso descobrir alguma coisa que você não consiga. Quero proteger essas garotas tanto quanto você.
Havia outra estalagem a cerca de cem passos de distância, do lado oposto da rua encharcada de chuva, outras duas um pouco mais além, e depois mais outras. Mat entrava em todas que encontrava. Escondia-se por tempo suficiente para Thom fazer um floreio no manto e contar uma história, e depois o menestrel deixava alguém lhe pagar uma caneca de vinho enquanto Mat percorria o lugar, perguntando por três mulheres e um sujeito alto com uma mecha branca na barba preta e curta. Ele ganhou algumas moedas nos dados, mas não conseguiu descobrir nada, e tampouco Thom. Estava satisfeito em ver que o menestrel tomava apenas alguns golinhos de vinho em cada estalagem. O homem passara a viagem quase abstêmio, mas Mat não tinha certeza de que ele não afundaria no vinho outra vez quando chegasse a Tear. Depois de visitarem duas dezenas de salões, Mat começou a sentir as pálpebras pesarem. A chuva diminuíra um pouco, mas ainda caía firme e em pingos gordos, refrescando o vento. O cinza-escuro do céu anunciava a alvorada que se aproximava.
— Garoto — murmurou Thom —, se não voltarmos à Lua Crescente, vou dormir aqui mesmo, na chuva. — Ele parou para tossir. — Você percebeu que passou direto por três estalagens? Luz, estou tão cansado que não consigo pensar. Você tem algum plano para saber em que lugares entrar e não me contou?
Mat passou os olhos sonolentos por um homem alto que corria por uma esquina da rua, vestindo uma capa. Luz, estou mesmo cansado. Rand está a quinhentas léguas daqui, brincando de ser o maldito Dragão.
— O quê? Três estalagens? — Eles estavam parados quase diante de outra, O Copo de Ouro, segundo a placa que rangia ao vento. Não parecia em nada com um copo de dados, mas decidiu tentar mesmo assim. — Só mais uma, Thom. Se não encontrarmos ninguém aqui, voltamos e vamos pra cama. — A cama soava melhor do que um jogo de dados com uma aposta de cem marcos de ouro, mas ele se forçou a entrar.
Depois de dois passos para dentro do salão, Mat o avistou. O homem grande usava um casaco verde com listras azuis nas mangas bufantes, mas ainda assim era Comar, a barba preta cortada rente, a mecha branca acima do queixo e tudo o mais. Estava sentado em uma das estranhas cadeiras de encosto baixo diante de uma mesa no canto oposto do salão, sacudindo um copo de dados de couro e sorrindo para o homem à frente. O sujeito usava um longo casaco e calças largas e não estava sorrindo. Olhava as moedas na mesa como se desejasse tê-las de volta em sua bolsa. Outro copo de dados jazia ao lado do cotovelo de Comar.
Este suspendeu o copo na mão e começou a rir um instante antes de os dados pararem de girar.
— Quem é o próximo? — gritou, puxando o dinheiro da aposta para seu lado da mesa. Já havia uma pilha de prata considerável, ao seu lado. Ele meteu os dados no copo e começou a sacudi-los. — Tem mais alguém querendo testar a sorte? — Parecia não haver ninguém, mas ele continuava sacudindo o copo e gargalhando.
Foi fácil distinguir o estalajadeiro, embora eles não usassem aventais em Tear. O casaco era do mesmo tom de azul-escuro usado por todos os outros estalajadeiros com quem Mat falara. Era roliço, mas tinha pouco mais da metade da altura de Lopar e metade do número de queixos. O homem estava sentado sozinho a uma mesa, polindo uma caneca de peltre com movimentos ríspidos e encarando Comar do outro lado do salão, embora desviasse os olhos quando o andoriano olhava de volta. Alguns dos outros homens também olhavam de soslaio, carrancudos, para o sujeito de barba rajada. Mas não quando ele estava olhando.
Mat refreou o primeiro ímpeto, que foi o de correr até Comar, dar uma surra na cabeça do homem com o bastão e exigir saber o paradeiro de Egwene e das outras. Algo estava errado ali. Comar era o primeiro homem que ele via portando uma espada, mas a forma como os outros o encaravam indicava mais do que o medo de um espadachim. Até a garçonete que levou vinho para o homem — e recebeu um beliscão na bunda, em agradecimento — soltou uma risada nervosa.
Analise a coisa de todos os ângulos, pensou Mat, exausto. Metade dos problemas que eu arrumo é por não fazer isso. Preciso pensar. O cansaço parecia ter estufado sua cabeça com fios de lã. Ele fez um gesto para Thom, e os dois foram andando até o estalajadeiro, que os encarou, desconfiado, quando os dois se sentaram.
— Quem é o homem com a mecha na barba? — perguntou Mat.
— Não são da cidade, não é? — retrucou o estalajadeiro. — Ele também é estrangeiro. Nunca tinha visto o sujeito até hoje à noite, mas sei o que ele é. Um forasteiro que veio para cá e fez uma fortuna com comércio. Um mercador rico o bastante para usar uma espada. Isso não é motivo para ele tratar a gente desse jeito.
— Se nunca viu o homem antes — perguntou Mat —, como é que sabe que ele é um mercador?
O estalajadeiro o encarou como se ele fosse burro.
— Pelo casaco, camarada, e pela espada. Ele não pode ser um lorde ou um soldado, se for de fora da cidade, então só pode ser um mercador rico. — O homem sacudiu a cabeça diante da estupidez dos estrangeiros. — Eles vêm para os nossos lados, nos olham de cima e alisam nossas mulheres bem debaixo dos nossos narizes, mas esse aí não tem o direito de fazer nada disso. Se eu vou ao Maule, não fico apostando contra as moedas de algum pescador. Se for ao Tavar, não vou apostar nos dados com os fazendeiros que vendem as colheitas. — Ele começou a polir o peltre com ainda mais violência. — Que sorte tem esse homem. Deve ter feito a fortuna assim.
— Ele ganha, é? — Bocejando, Mat se perguntou como se sairia jogando dados com outro homem de sorte.
— Às vezes ele perde — resmungou o estalajadeiro —, quando a aposta é de alguns poucos pennies de prata. Às vezes. Mas deixe só a aposta chegar a um marco… Não foi menos de dez vezes que vi esse homem ganhar nas Coroas com três coroas e duas rosas. E mais ainda no Topo, como foram três seis e dois cincos. No Três, ele não lança nada menos que seis, e saem três seis e um cinco a cada lance no Compasso. Se tiver toda essa sorte, bom para ele, que a Luz brilhe sobre ele, mas que vá usar com outros mercadores, como é direito. Como é que um homem pode ter uma sorte dessas?
— Dados viciados — disse Thom, depois deu uma tossida. — Quando ele quer ter a certeza da vitória, usa dados que sempre mostram a mesma face. O homem é esperto o bastante para não tirar o maior lance, pois o povo começa a desconfiar quando alguém só tira o rei. — Ele ergueu uma sobrancelha para Mat. — Ele tira um resultado quase impossível de se vencer, mas isso não pode mudar o fato de que sempre mostram a mesma face.
— Já ouvi falar disso — respondeu o estalajadeiro, devagar. — Os illianenses fazem isso, pelo que ouvi. — O homem sacudiu a cabeça. — Mas eles dois estão usando o mesmo copo e os mesmos dados. Não pode ser.
— Traga aqui dois copos de dados — pediu Thom — e dois conjuntos de dados. Coroas ou pontos, não faz diferença, contanto que sejam iguais.
O estalajadeiro franziu o rosto, mas se afastou — cautelosamente levando consigo a caneca de peltre — e retornou com dois copos de couro. Thom despejou os cinco cubos de osso de um dos copos na mesa, diante de Mat. Fossem de pontos ou símbolos, todos os conjuntos de dados que Mat já vira eram feitos de osso ou madeira. Aqueles tinham pontos. Ele ergueu os dados, encarando o menestrel com uma carranca.
— Eu deveria estar enxergando alguma coisa?
Thom despejou os dados do outro copo na própria mão. Depois, em um movimento ligeiro e difícil de acompanhar, jogou-os de volta para dentro e apoiou o copo de cabeça para baixo na mesa, antes que os dados caíssem. Manteve a mão em cima do copo.
— Faça uma marca em cada um deles, garoto. Algo sutil, mas que você seja capaz de reconhecer.
Mat percebeu que trocava olhares intrigados com o estalajadeiro. Então os dois olharam o copo virado sob a mão do amigo. Ele sabia que Thom aprontaria algum truque, menestréis estavam sempre fazendo coisas impossíveis, como engolir fogo e puxar panos de seda do ar, mas não via como aquilo seria possível, se estava observando tão de perto. Desembainhou a faca de cintura e fez um pequeno arranhão em cada um dos dados, bem ao lado do círculo de seis pontos.
— Está bem — disse, devolvendo os dados à mesa. — Mostre o seu truque.
Thom estendeu a mão, apanhou os dados e os colocou na mesa outra vez, a um pé de distância.
— Procure as marcas, garoto.
Mat franziu a testa. A mão de Thom ainda estava no copo de couro de cabeça para baixo, o menestrel não o movimentara, nem levara os dados de Mat para perto dele. O rapaz pegou os dados… e piscou. Não havia qualquer marca neles. O estalajadeiro ofegou.
Thom virou a palma da mão livre, revelando cinco dados.
— Suas marcas estão nestes aqui. É isso que Comar está fazendo. É um truque infantil, muito simples, mas não imaginei que ele tivesse mãos tão leves.
— Acho que não quero mais jogar dados com você — comentou Mat, devagar. O estalajadeiro olhava os dados, mas não parecia ver uma solução. — Chame a Guarda, ou seja lá o nome que vocês dão aqui — sugeriu Mat. — Mande prendê-lo. — Em uma cela de prisão, ele não vai conseguir matar ninguém. Mas e se elas já estiverem mortas? Tentou não dar atenção àquilo, mas o pensamento persistia. Então eu mato ele e Gaebril também, custe o que custar! Mas elas não estão, que me queime! Não podem estar!
O estalajadeiro sacudia a cabeça.
— Eu? Eu, denunciar um mercador aos Defensores? Eles nem olhariam os dados dele. Bastaria uma palavra dele, e eu seria acorrentado para trabalhar com as dragas dos canais nas Garras do Dragão. Ele poderia me retalhar aqui mesmo, e os Defensores diriam que fiz por merecer. Pode ser que ele vá embora em breve.
Mat fez uma careta irônica.
— Se eu expuser o homem, será que basta? O senhor chama a Guarda, ou os Defensores, ou quem quer que seja?
— Você não entende. Você é estrangeiro. Mesmo que seja de fora, ele é um homem rico e importante.
— Espere aí — disse Mat, olhando para Thom. — Não vou deixar que ele alcance Egwene e as outras, custe o que custar. — Ele bocejou enquanto puxava a cadeira para trás.
— Espere, garoto — chamou Thom, com a voz baixa e premente. O menestrel se levantou da cadeira. — Que o queime, você não sabe em que está se metendo!
Mat acenou para que Thom ficasse e caminhou até Comar. Ninguém mais aceitara o desafio do homem barbado, e ele olhou com interesse quando o rapaz de Dois Rios apoiou o bastão na mesa e se sentou.
Comar analisou o casaco de Mat e abriu um sorriso asqueroso.
— Que apostar cobres, fazendeiro? Não perco meu tempo com… — Ele parou de falar quando Mat pôs uma coroa de ouro andoriana na mesa e bocejou, sem se esforçar para cobrir a boca. — Você fala pouco, fazendeiro, e poderia melhorar um pouco os modos, mas o ouro fala por si mesmo e não precisa demonstrar boas maneiras. — Ele sacudiu o copo de couro em sua mão e despejou os dados. Soltou risadinhas antes mesmo de os cubos de osso pararem, mostrando três coroas e duas rosas. — Não vai bater isso, fazendeiro. Será que tem mais algum ouro escondido nesses trapos que esteja disposto a perder? O que foi que você fez? Roubou seu mestre?
Ele estendeu o braço para recolher os dados, mas Mat os apanhou antes. Comar cravou os olhos nele, mas deixou-o ficar com o copo. Se os lances fossem iguais, jogariam outras rodadas até que um dos dois ganhasse. Mat sorria enquanto sacudia o copo. Não pretendia dar a Comar a chance de trocá-los. Se ambos jogassem os mesmos lances três ou quatro vezes seguidas — exatamente os mesmos, todas as vezes —, até mesmo os Defensores dariam ouvidos às reclamações. O salão inteiro veria, todos teriam que testemunhar a seu favor.
Ele jogou os dados na mesa. Quicaram de modo estranho. Ele sentiu algo… se remexer. Foi como se sua sorte estivesse enlouquecendo. O salão parecia se contorcer ao redor dele, repuxando os dados com fios. Por algum motivo, quis olhar para a porta, mas manteve os olhos nos dados. Eles pararam. Cinco coroas. Os olhos de Comar pareciam prestes a saltar das órbitas.
— Você perdeu — murmurou Mat. Se a sorte chegara a tal ponto, talvez fosse hora de forçar um pouco mais. Uma vozinha em sua cabeça o mandava pensar, mas ele estava cansado demais para escutar. — Acho que sua sorte está esgotada, Comar. Se você fez algum mal àquelas garotas, está tudo acabado.
— Mas eu nem encontrei… — começou a responder Comar, ainda encarando os dados, depois levantou a cabeça depressa. Estava pálido. — Como é que você sabe o meu nome?
Ele ainda não as encontrara. Sorte, doce sorte, fique comigo.
— Volte para Caemlyn, Comar. Diga a Gaebril que não conseguiu encontrar as garotas. Diga que estão mortas. Diga qualquer coisa, mas saia de Tear hoje à noite. Se eu o vir outra vez, mato você.
— Quem é você? — perguntou o homem corpulento, inseguro. — Quem… — No instante seguinte ele estava de pé, a espada desembainhada.
Mat empurrou a mesa para cima do homem, virando-a, e agarrou o bastão. Esquecera como Comar era grande. O homem barbado empurrou a mesa de volta para cima dele. Mat caiu com a cadeira, agarrado ao bastão, enquanto o sujeito atirava a mesa longe e avançava para golpeá-lo. Mat empurrou os pés contra o tronco do sujeito, para impedir que ele avançasse, e girou o bastão meio sem jeito, apenas para desviar a espada. Mas o golpe fez o bastão voar de suas mãos, e o rapaz se viu segurando o punho de Comar, a lâmina da espada a um palmo de seu rosto. Com um grunhido, ele rolou para trás e fazendo o máximo de força que pôde com as pernas, para arremessá-lo. O homem arregalou os olhos enquanto era arremessado por cima de Mat e desabava em uma mesa, de cara para cima. O rapaz de Dois Rios arrastou-se até o bastão, mas, quando o alcançou, Comar já não se movia.
O grandalhão jazia com os quadris e as pernas esparramados na mesa e o restante do corpo caído para baixo, a cabeça no chão. Os homens que estavam sentados à mesa tinham levantado, eles apertavam as mãos e se entreolhavam, nervosos, a uma distância segura. Um burburinho baixo e aflito preencheu o salão. Não era o som que Mat esperava.
A espada de Comar jazia a curta distância de sua mão. No entanto, o homem não se movia. Ele observou enquanto Mat chutava a espada para longe e se ajoelhava ao lado dele. Luz! Acho que a coluna dele está quebrada!
— Eu avisei que era melhor você ir, Comar. Sua sorte acabou.
— Idiota — sussurrou o grandalhão. — Você… acha… que eu… era o único… atrás delas? Elas não… vão… viver até… — Os olhos encaravam Mat, e a boca estava aberta, mas o homem não disse mais uma palavra. E não diria nunca mais.
Mat encarou o olhar vítreo do homem morto, tentando arrancar mais palavras dele com a força do pensamento. Quem mais, que o queime? Quem? Onde estão? Minha sorte. Que me queime, o que aconteceu com a minha sorte? Ele percebeu que o estalajadeiro puxava seu braço freneticamente.
— Você precisa ir. Tem que ir. Antes que os Defensores cheguem. Vou mostrar os dados a eles. Vou contar que foi um forasteiro, um homem alto, de cabelos vermelhos e olhos cinzentos. Ninguém vai sofrer. Um homem com quem sonhei ontem à noite. Ninguém real. Ninguém vai me contradizer. Ele ganhou o dinheiro de todo mundo com os dados. Mas você precisa ir. Precisa! — Todos no salão pareciam olhar para o outro lado.
Mat foi puxado para longe do homem morto e levado para fora. Thom já o aguardava sob a chuva. Ele agarrou o braço do garoto e saiu mancando apressado pela rua, arrastando um Mat cambaleante. O capuz do rapaz pendia nas costas, a chuva ensopava seus cabelos e escorria por seu rosto e pescoço, mas ele nem reparava. O menestrel continuava olhando por cima do ombro, examinando a rua atrás deles.
— Está quase dormindo, garoto? Não parecia com sono lá dentro. Vamos, garoto. Os Defensores vão prender todos os estrangeiros que estiverem num raio de duas ruas, não importa como o estalajadeiro descreva o homem.
— É a sorte — murmurou Mat. — Eu descobri tudo. Os dados. Minha sorte funciona melhor quando as coisas são… aleatórias. Que nem os dados. Não funciona muito com as cartas. É péssima com as pedras. Muito padrão. Tem que ser aleatório. Até mesmo encontrar Comar. Eu fui visitando todas as estalagens. E entrei numa por acaso. Thom, se eu quiser encontrar Egwene e as outras a tempo, preciso procurar sem nenhum padrão.
— Do que é que você está falando? O homem está morto. Se ele já tiver matado as três… bem, você as vingou. Se ele não tiver, você as salvou. Agora será que dá para andar mais depressa, maldição? Os Defensores não vão demorar a chegar, e não vão ser tão gentis como a Guarda da Rainha.
Mat se desvencilhou de Thom e apressou o passo, cambaleante, arrastando o bastão.
— Ele deixou escapar que ainda não tinha encontrado elas. Mas disse que não era o único. Thom, eu acredito nele. Olhei dentro dos olhos dele, e ele estava falando a verdade. Ainda preciso encontrá-las, Thom. E agora não sei nem quem está atrás delas. Preciso encontrá-las.
Sufocando um enorme bocejo com a mão, Thom puxou o capuz de Mat para protegê-lo da chuva.
— Hoje não, garoto. Preciso dormir, e você também.
Molhado. Meu cabelo está pingando no rosto. Sua mente estava confusa. Depois de um instante, percebeu que precisava dormir. E notou o quanto estava cansado apenas por precisar pensar para chegar a essa conclusão.
— Está bem, Thom. Mas vou voltar a procurar assim que o dia clarear. — Thom assentiu e tossiu, e os dois avançaram pela chuva de volta à Lua Crescente.
A aurora não demorou a chegar, mas Mat pulou da cama, e ele e Thom partiram para tentar vasculhar todas as estalagens no interior dos muros de Tear. Mat foi se deixando vagar para onde sua vontade e cada esquina o levassem, sem procurar por algum lugar específico e jogando uma moeda para decidir onde entrar. Por três dias e noites ele fez isso, e por três dias e noites a chuva caiu sem parar, às vezes trovejante, às vezes silenciosa, mas sempre jorrando.
A tosse de Thom piorou, e ele precisou parar de tocar flauta e contar histórias, e não carregaria a harpa por aí, com daquele tempo. No entanto, o homem insistia em ir junto, e as pessoas ainda conversavam com um menestrel. A sorte de Mat nos dados parecia ainda melhor depois que ele começara a perambular a esmo, embora jamais permanecesse na mesma taverna ou estalagem mais do que o tempo suficiente para ganhar algumas moedas. Nenhum dos dois ouviu qualquer coisa útil. Rumores de guerra com Illian. Rumores de invasão a Mayene. Rumores de invasão andoriana, o Povo do Mar encerrando os negócios, os exércitos de Artur Asa-de-gavião retornando dos mortos. Rumores de que o Dragão estava vindo. Os homens com quem Mat jogava eram pessimistas em relação a todos os boatos, parecia que procuravam os mais sombrios que pudessem encontrar e acreditavam em um pouco de cada um. Ele, no entanto, não ouviu sequer um sussurro que pudesse levá-lo a Egwene e às outras. Nenhum estalajadeiro vira qualquer mulher cujas descrições batessem com as delas.
Ele começou a ter pesadelos, sem dúvida causados pela preocupação. Egwene, Nynaeve e Elayne, além de um sujeito de cabelo brancos e bem curtos que usava um casaco de mangas bufantes e listradas como o de Comar. O homem gargalhava enquanto tecia uma teia ao redor delas. Só que algumas vezes era para Moiraine que o homem preparava a armadilha. Em outras, segurava uma espada de cristal no lugar da teia, uma espada que reluzia como o sol assim que ele a tocava. Ainda outras vezes, era Rand quem erguia a espada. Por alguma razão, ele sonhava bastante com Rand.
Mat tinha certeza de que tudo aquilo era porque ele não estava dormindo o suficiente, nem comendo, e mesmo assim não parava para comer quando se lembrava disso. Tinha uma aposta para ganhar, dizia a si mesmo, e pretendia conseguir, nem que lhe custasse a própria vida.