Jolien pôs a mão trêmula sobre o dorso de Dailin, onde antes estava a ferida. Soltou um arquejo surpreso ao tocar a pele macia, como se não acreditasse nos próprios olhos.
Nynaeve endireitou-se e secou as mãos no manto. Egwene teve que admitir que aquela lã boa dava uma toalha melhor que seda ou veludo.
— Eu mandei lavá-la e vesti-la — reclamou Nynaeve, ríspida.
— Sim, Sábia — respondeu Jolien, mais do que depressa, e ela, Chiad e Bain correram para obedecer.
Um riso curto escapou dos lábios de Aviendha, uma risada quase no limiar das lágrimas.
— Ouvi dizer que uma Sábia do ramo das Torres Dentadas é capaz de fazer isso, e também uma do ramo das Quatro Tocas, mas sempre achei que fossem apenas boatos. — Ela respirou fundo, recompondo-se. — Aes Sedai, tenho uma dívida com vocês. Minha água é sua, e você é bem-vinda sob a sombra do meu ramo. Dailin é minha irmã-segunda. — Ela percebeu o olhar confuso de Nynaeve e acrescentou: — Ela é filha da irmã de minha mãe. Temos quase o mesmo sangue, Aes Sedai. Tenho uma dívida de sangue com vocês.
— Se eu tiver que derramar algum sangue — retrucou Nynaeve, seca —, eu mesma farei isso. Se quiserem retribuir, digam se há algum navio em Jurene. A próxima vila ao sul?
— A aldeia onde os soldados hasteiam o estandarte do Leão Branco? — perguntou Aviendha. — Tinha um navio lá ontem, quando eu estava de vigia. As histórias antigas falam em navios, mas foi estranho ver um deles com meus próprios olhos.
— Queira a Luz que ele ainda esteja lá. — Nynaeve começou a guardar os papéis dobrados que continham os pós de ervas. — Fiz o que pude pela moça, Aviendha, e agora temos que partir. Ela precisa comer e descansar. E tente impedir qualquer um de enfiar uma espada nela.
— O que tem que acontecer acontece, Aes Sedai — respondeu a Aiel.
— Aviendha — começou Egwene —, como é que vocês fazem para cruzar os rios, já que sentem… o que sentem por eles? Tenho certeza de que há pelo menos um rio quase tão grande quanto o Erinin entre essas terras aqui e o Deserto.
— O Alguenya — confirmou Elayne. — A não ser que o tenham contornado.
— Vocês têm muitos rios. Alguns deles possuem essas coisas chamadas pontes, por onde tivemos que cruzá-los, e outros conseguimos passar a vau. Para atravessar os outros, Jolien conseguiu lembrar que a madeira flutua. — Ela bateu no tronco de um grande abeto. — Esses aqui são grandes, mas flutuam tão bem quanto um raminho. Encontramos madeira morta e construímos um… navio. Um navio pequeno, com dois ou três troncos amarrados, para cruzar o rio grande. — Ela contou como se não fosse nada de mais.
Egwene a encarou, impressionada. Se temesse alguma coisa da mesma forma que os Aiel obviamente temiam os rios, será que a enfrentaria da mesma forma que eles? Achava que não. E a Ajah Negra?, perguntou uma vozinha. Não tem mais medo delas? É diferente, respondeu. Não há bravura nenhuma nisso. Ou eu as caço ou fico parada como um coelhinho à espera do gavião. Ela repetiu para si mesma o velho ditado: É melhor ser o martelo do que o prego.
— Precisamos ir — comentou Nynaeve.
— Só um instante — pediu Elayne. — Aviendha, por que vieram até aqui e enfrentaram tantas dificuldades?
Aviendha sacudiu a cabeça, indignada.
— Não chegamos nem um pouco longe, fomos as últimas a partir. As Sábias me acossaram feito cães selvagens em volta de um novilho, afirmando que eu tinha outras obrigações. — De repente ela fez uma careta e apontou para as outras Aiel. — Elas ficaram para trás para zombar da minha desgraça, pelo que disseram, mas acho que as Sábias não teriam me deixado partir se elas não estivessem lá para me acompanhar.
— Procuramos o Prenunciado — completou Bain. Ela segurava Dailin enquanto Chiad vestia uma camisa de linho marrom na mulher adormecida. — Aquele Que Vem Com a Aurora.
— Ele vai nos guiar para fora da Terra da Trindade — acrescentou Chiad. — As profecias dizem que ele nasceu das Far Dareis Mai.
Elayne parecia perplexa.
— Pensei que tivessem dito que não era permitido que as Donzelas da Lança tivessem filhos. Tenho certeza de que foi isso que aprendi.
Bain e Chiad trocaram mais uma vez aquele olhar, como se Elayne tivesse chegado perto da verdade, mas tivesse entendido tudo errado.
— Se uma Donzela dá à luz um filho — explicou Aviendha, com muita calma —, entrega a criança às Sábias de seu ramo, que a entregam para outra mulher, de modo que ninguém pode saber de quem é a criança. — Ela também soava como se estivesse explicando que as pedras são duras. — Toda mulher deseja adotar uma criança dessas, na esperança de criar Aquele Que Vem Com a Aurora.
— Ou ela pode abrir mão da lança e se casar com o pai — completou Chiad.
Bain acrescentou:
— Às vezes uma mulher tem suas razões para abrir mão da lança.
Aviendha lançou às duas um olhar firme, mas prosseguiu como se elas não tivessem dito nada.
— Só que agora as Sábias disseram que ele será encontrado aqui, além da Muralha do Dragão. “Sangue do nosso sangue misturado com o sangue antigo, criado por um sangue ancestral que não é nosso.” Não compreendo, mas as Sábias falaram de uma forma que não deixou dúvidas. — Ela hesitou, claramente escolhendo bem as palavras seguintes. — Você já fez muitas perguntas, Aes Sedai. Também quero fazer uma. Precisam entender que procuramos sinais e presságios. Por que três Aes Sedai caminham por uma terra onde a única mão que não carrega uma faca o faz porque está fraca demais, pela fome, para pegar no cabo? Para onde vão?
— Tear — respondeu Nynaeve, mais do que depressa —, a não ser que fiquemos aqui conversando até o Coração da Pedra virar pó.
Elayne começou a ajustar a corda da trouxa e as tiras do alforje para voltar a caminhar, e Egwene fez o mesmo.
As Aiel se entreolharam. Jolien congelou enquanto fechava o casaco marrom acinzentado de Dailin.
— Tear? — perguntou Aviendha, em um tom de voz cauteloso. — Três Aes Sedai caminhando por uma terra conturbada a caminho de Tear. É muito estranho. Por que vão para Tear, Aes Sedai?
Egwene olhou para Nynaeve. Luz, um instante atrás elas estavam rindo, agora estão mais tensas do que nunca.
— Estamos caçando umas mulheres malignas — respondeu Nynaeve, também cautelosa. — Amigas das Trevas.
— Mensageiras das Sombras. — Jolien apertou a boca ao proferir aquelas palavras, como se tivesse acabado de morder uma maçã podre.
— Mensageiras das Sombras em Tear — disse Bain
Como se completasse a frase, Chiad acrescentou:
— E três Aes Sedai em busca do Coração da Pedra.
— Não disse que estávamos indo para o Coração da Pedra — retrucou Nynaeve, bruscamente. — Disse apenas que não queria ficar aqui enquanto tudo lá vira pó. Egwene, Elayne, estão prontas? — Ela se encaminhou para fora do bosque sem dizer qualquer outra palavra, com o cajado fazendo barulho ao bater no chão e dando longas passadas em direção ao sul.
Egwene e Elayne se despediram depressa e correram atrás dela. As quatro Aiel ficaram de pé, observando-as partir.
Quando as duas já estavam a certa distância das árvores, Egwene comentou:
— Meu coração quase parou quando você disse seu nome. Não ficou com medo de tentarem matar você ou talvez de tentarem levá-la prisioneira? A Guerra dos Aiel não foi há tanto tempo assim, e apesar de terem dito aquilo sobre não machucarem mulheres que não carregam lanças, para mim elas pareciam prontas para atirar aquelas lanças em qualquer coisa que fosse.
Elayne balançou a cabeça, pesarosa.
— Acabei de descobrir que sei muito pouco sobre os Aiel, mas uma das coisas que aprendi é que eles não encaram a Guerra dos Aiel como uma guerra. Pela maneira como se comportaram em relação a mim, acho que talvez pelo menos isso seja verdade. Ou talvez tenha sido porque pensaram que eu era Aes Sedai.
— Sei que elas são estranhas, Elayne, mas ninguém pode chamar três anos de batalhas de outra coisa que não guerra. Não me interessa o quanto lutam entre si, guerra é guerra.
— Não para eles. Milhares de Aiel cruzaram a Espinha do Mundo, mas parece que eles viam a si mesmos como apanhadores de ladrões ou carrascos, todos atrás do Rei Laman, de Cairhien, pelo crime de derrubar Avendoraldera. Para os Aiel, aquilo não foi uma guerra: foi uma execução.
Avendoraldera, de acordo com uma das aulas de Verin, fora uma muda da própria Árvore da Vida, trazida a Cairhien cerca de quinhentos anos antes como uma oferta de paz dos Aiel sem precedentes. Foi concedida junto com o direito de cruzar o Deserto, algo que antes era reservado apenas a mascates, menestréis e os Tuatha’an. Grande parte da riqueza de Cairhien fora construída com o comércio de marfim, perfumes, especiarias e principalmente seda com as terras além do Deserto. Nem mesmo Verin tinha ideia de como os Aiel haviam conseguido uma muda de Avendesora. Os livros antigos eram claros em afirmar que a árvore não dava sementes, mas ninguém podia afirmar com certeza, pois não se sabia onde encontrar a Árvore da Vida, a não ser por algumas histórias claramente equivocadas. A Árvore poderia muito bem não ter nada a ver com os Aiel, ou mesmo com o motivo pelo qual os Aiel chamavam os cairhienos de “compartilhadores de água” e por que insistiam que as carroças mercantes ostentassem um estandarte com a folha de três pontas de Avendesora.
Egwene supôs, ressentida, ser capaz de entender por que eles haviam começado a guerra — ainda que não pensassem que fosse uma — após o Rei Laman cortar o presente para fazer um trono sem igual no mundo inteiro. O Pecado de Laman, como fora chamado. Segundo Verin, não foram apenas os negócios de Cairhien pelo Deserto que acabaram com a guerra, os cairhienos que se aventuraram pelo Deserto também desapareceram. Além disso, Verin contou que diziam que eles eram “vendidos como animais” nas terras além do Deserto, mas nem mesmo ela conseguia entender como um homem ou uma mulher poderiam ser vendidos.
— Egwene — disse Elayne —, você sabe quem Aquele Que Vem Com a Aurora deve ser, não é?
Olhando para as costas de Nynaeve, ainda bem à frente delas, Egwene sacudiu a cabeça — Será que ela quer ir correndo daqui até Jurene? — e quase parou de caminhar.
— Não está falando de…?
Elayne assentiu.
— Acho que sim. Não sei muito sobre as Profecias do Dragão, mas já ouvi alguns versos. Me lembro de um assim: “Ele surgirá nas colinas do Monte do Dragão, nascido de uma donzela que não esposou marido.” Egwene, Rand parece mesmo um Aiel. Bem, ele também parece com os desenhos que vi de Tigraine, mas ela desapareceu antes de ele nascer, e acho muito difícil que fosse mãe dele. Acho que a mãe dele era uma Donzela da Lança.
Egwene franziu a testa e apertou o passo, pensando em tudo o que sabia sobre o nascimento de Rand. Ele fora criado por Tam al’Thor depois da morte de Kari al’Thor, mas, se o que Moiraine dissera fosse verdade, eles podiam não ser os seus pais verdadeiros. Nynaeve às vezes parecia saber algum segredo a respeito do nascimento dele. Mas aposto que não arrancaremos isso dela nem com uma forquilha!
Elas alcançaram a mulher mais apressada. Egwene a encarava com irritação enquanto pensava, e Nynaeve mantinha o olhar fixo à frente, em direção a Jurene e ao navio. Elayne, por sua vez, encarava as duas com uma expressão irritada, como se elas fossem crianças emburradas disputando a maior fatia de bolo.
Depois de avançarem um tempo em silêncio, Elayne soltou:
— Você conduziu tudo muito bem, Nynaeve. A Cura, e o resto também. Acho que não duvidaram que você fosse uma Aes Sedai. Ou que todas nós fôssemos, e isso graças à forma como você se comportou.
— Você fez um bom trabalho — completou Egwene, depois de um minuto. — Aquela foi a primeira vez que pude ver direito o que acontece durante uma Cura. Perto daquilo, os relâmpagos são simples como uma mistura de bolo de aveia.
Um sorriso surpreso se formou no rosto de Nynaeve.
— Obrigada — murmurou em resposta, dando um puxãozinho no cabelo de Egwene, como fazia quando ela era pequena.
Não sou mais uma garotinha. O instante passou com a mesma rapidez com que surgira, e as três continuaram a caminhar em silêncio. Elayne soltou um suspiro alto.
Não demorou muito para avançarem mais uma milha, talvez um pouco mais, apesar de terem dado a volta no rio para evitar os arvoredos ao longo da margem. Nynaeve insistiu em ficar bem longe das árvores. Egwene achava besteira pensar que poderia haver outros Aiel escondidos nos bosques, mas o desvio não aumentara muito a distância que tinham de percorrer, já que nenhum dos arvoredos era muito grande.
Ainda assim, Elayne vigiava as árvores, e foi ela quem gritou de repente:
— Cuidado!
Egwene virou a cabeça com um solavanco. Alguns homens saíam de um dos bosques, girando as fundas acima das cabeças. Ela tentou tocar saidar, mas algo a atingiu na cabeça, e a escuridão a dominou.
Egwene pôde sentir que balançava, sentir que algo se movia sob seu corpo. Não havia nada em sua cabeça além da dor que sentia. Tentou levar uma das mãos à têmpora, mas algo apertava seus pulsos, e ela não conseguia mexer as mãos.
— …melhor do que passar o dia inteiro lá, esperando escurecer — disse uma voz grave, masculina. — Quem sabe se outro navio apareceria? E não confio naquele barco. Está vazando.
— É bem melhor torcer para que Adden acredite que você viu os anéis antes de tomar a decisão — disse outro homem. — Ele no caso quer bons carregamentos, nem quer mulheres, eu acho.
O primeiro homem respondeu, resmungando algo rude sobre o que Adden podia fazer com o barco furado e as cargas.
Ela abriu os olhos. Sua visão estava tomada de pontinhos prateados, e achou que fosse vomitar no chão que balançava ao passar sob sua cabeça. Estava amarrada às costas de um cavalo, os punhos e tornozelos presos por uma corda que passava por debaixo da barriga do animal, a cabeça inclinada para baixo.
Ainda era dia. Ergueu o pescoço para olhar em volta. Havia tantos homens vestidos em roupas humildes ao seu redor que não pôde ver se Nynaeve e Elayne também haviam sido capturadas. Alguns dos homens usavam partes de armaduras — um capacete danificado aqui, uma placa peitoral amassada ali, um colete de escamas de metal que quase estourava de tão apertado —, mas a maioria estava apenas de casaco, e as peças pareciam não ver uma boa limpeza havia meses, se é que algum dia tinham sido limpas. Pelo cheiro, também parecia que os homens não se lavavam fazia alguns meses. Todos carregavam espadas, presas na cintura ou nas costas.
Foi tomada pela raiva e também pelo medo, mas sobretudo por uma ira incandescente. Não serei prisioneira. Não serei amarrada! Não serei! Tentou tocar saidar, e a dor quase arrancou seu escalpo. Por pouco não conteve um gemido.
O cavalo parou por um instante cheio de berros e do barulho de dobradiças enferrujadas, depois avançou um pouco mais, e os homens começaram a desmontar. Ao se afastarem, ela conseguiu ver um pouco do local. Estavam rodeados por uma paliçada de troncos erguida sobre um monte de terra grande e redondo, e homens com arcos montavam guarda em uma passarela de madeira com altura apenas o suficiente para poderem ver por cima dos troncos mal cortados. Uma choupana baixa e sem janelas, também de troncos, fora construída na vala escavada sob a gigantesca parede. Exceto por alguns galpões apoiados na paliçada, não havia qualquer outra estrutura. Além dos homens e cavalos que tinham acabado de entrar, o espaço aberto estava repleto de fogueiras, cavalos acorrentados e outros homens sujos. Devia haver pelo menos uns cem. Bodes, porcos e galinhas engaiolados enchiam o ar de guinchos, grunhidos e cacarejos, que se somavam às risadas e aos gritos de palavras de baixo calão, uma algazarra que fazia a cabeça de Egwene martelar ainda mais.
Seus olhos encontraram Nynaeve e Elayne, amarradas de cabeça para baixo sobre cavalos sem sela, assim como ela. Nenhuma das duas parecia ter acordado, e a ponta da trança de Nynaeve se arrastava pela terra enquanto o cavalo se mexia. Perdeu a pouca esperança que tinha de que uma delas pudesse estar livre para ajudar as outras a escaparem. Luz, não posso ser prisioneira outra vez. De novo não. Com cuidado, tentou alcançar saidar mais uma vez. A dor não foi tão intensa, foi apenas como se alguém tivesse atirado um pedregulho em sua cabeça, mas fez o vazio se despedaçar antes que ela conseguisse sequer pensar em uma rosa.
— Uma delas acordou! — gritou a voz de um homem, em pânico.
Egwene tentou relaxar o corpo e parecer inofensiva. Como, pela Luz, eu poderia parecer perigosa, amarrada aqui como um saco de batatas? Que me queime, preciso ganhar tempo. Eu preciso!
— Não vou fazer mal a vocês — disse ao sujeito de cara suada que veio correndo em sua direção. Ou tentou dizer. Não soube ao certo o quanto de fato conseguira falar antes de ser atingida na cabeça outra vez e da escuridão dominá-la em uma onda de náusea.
Na vez seguinte, foi mais fácil acordar. Sua cabeça não doía tanto quanto antes, mas seus pensamentos pareciam girar em turbilhão. Pelo menos meu estômago não… Luz, é melhor nem pensar nisso. Havia um gosto de vinho azedo e algo amargo na boca. Faixas de luz entravam pelas rachaduras horizontais de uma parede tosca, mas ela estava no escuro, deitada de costas. Na terra, imaginou. A porta também não parecia muito bem encaixada, mas a construção parecia firme.
Ela conseguiu se erguer e se apoiar nas mãos e joelhos, surpresa em descobrir que não estava amarrada. Exceto pela única parede de troncos brutos, as outras todas pareciam feitas de pedra bruta. A luz que entrava pelas rachaduras era suficiente para que visse Nynaeve e Elayne estiradas na terra. O rosto da Filha-herdeira estava sujo de sangue. Nenhuma das duas se movia, exceto pelo leve movimento da respiração em seus peitos. Egwene ficou na dúvida entre tentar acordá-las naquele instante ou tentar descobrir o que havia do outro lado daquela parede. Só uma espiadinha, disse a si mesma. É melhor ver o que está nos vigiando antes de acordá-las.
Disse a si mesma que não era porque estava com medo de não conseguir acordá-las. Ao espiar por uma das frestas perto da porta, pensou no sangue no rosto de Elayne e tentou se lembrar exatamente do que Nynaeve fizera com Dailin.
O cômodo ao lado era grande — devia ocupar todo o restante da construção de troncos que vira — e não tinha janelas, mas estava bem iluminado por lampiões de ouro e prata que pendiam de pregos cravados às paredes e dos troncos que formavam o teto alto. Não havia lareira. Sobre o chão de terra batida, mesas e cadeiras rústicos misturavam-se a baús decorados em ouro e com entalhes em marfim. Um carpete com desenhos de pavão estendia-se ao lado de uma enorme cama de dossel com colunas de entalhes elaborados e desenhos de ouro, coberta por uma pilha de cobertores sujos.
Cerca de doze homens estavam no recinto, de pé ou sentados pelo lugar, mas todas as atenções estavam voltadas para um sujeito grande e de cabelos claros, que seria bonito se tivesse o rosto mais limpo. Ele estava de pé diante de uma mesa de pés canelurados e volutas douradas, uma das mãos no cabo da espada e um dos dedos da outra empurrando algo que ela não conseguia distinguir em pequenos círculos no tampo da mesa.
A porta externa se abriu, revelando a noite do lado de fora, e um homem franzino e sem a orelha esquerda adentrou o aposento.
— Ele nem chegou ainda — disse o sujeito rude. Também faltavam dois dedos na sua mão esquerda. — Gosto nada de tratar com esse tipo.
O sujeito grande e louro não deu atenção a ele, apenas continuou movendo o que havia na mesa.
— Três Aes Sedai — murmurou, depois deu risada. — Os preços por Aes Sedai são bons, basta ter estômago para tratar com o comprador certo. Se conseguir arriscar ter as tripas arrancadas pela boca ao tentar vender gato por lebre. Não é tão seguro quanto cortar a garganta da tripulação de um navio mercante, hein, Coca? Não é tão fácil, não acha?
Um burburinho nervoso se elevou entre os outros homens, e aquele com quem o louro falara, um sujeito forte de olhos ardilosos, se debruçou para a frente, ansioso.
— Elas são Aes Sedai, Adden. — Egwene reconheceu aquela voz: o homem que resmungou as sugestões rudes. — Devem ser, Adden. Temos os anéis para provar, estou dizendo! — Adden pegou algo da mesa, um pequeno círculo dourado que cintilava à luz do lampião.
Egwene arquejou e esfregou os dedos. Levaram o meu anel!
— Gosto nada disso — resmungou o homem franzino e sem orelha. — Aes Sedai. Qualquer uma delas poderia nos matar a todos. Que a Sorte me espicace! Você, no caso, é mesmo um bestalhão, Coca, eu devia era cortar essa sua garganta. E se alguma delas acordar antes de ele chegar, hein?
— Elas vão demorar horas para acordar. — Quem afirmou foi um sujeito gordo, com a voz rouca e um sorriso de desprezo que não tinha um dos dentes. — Minha vovó que me ensinou sobre aquele troço que demos para elas. Vão dormir até amanhã, e ele vai chegar muito antes disso.
Egwene mexeu a língua na boca e sentiu o gosto de vinho azedo e o amargor. Seja lá o que for isso, sua vovó mentiu. Ela deveria é ter estrangulado você no berço! Antes que esse tal de “ele” chegasse, esse homem que achava que podia comprar uma Aes Sedai — que nem um maldito Seanchan! —, Nynaeve e Elayne já estariam acordadas. Ela rastejou até Nynaeve.
Pelo que podia perceber, ela estava dormindo, então apenas começou a sacudi-la. Para sua surpresa, a amiga arregalou os olhos.
— O quê…?
Ela tapou a boca de Nynaeve com a mão a tempo de impedi-la de falar.
— Somos prisioneiras — sussurrou. — Tem mais de doze homens do outro lado daquela parede, e mais ainda do lado de fora. Muitos mais. Deram alguma coisa para fazer a gente dormir, mas não tiveram muito sucesso. Já conseguiu lembrar?
Nynaeve afastou a mão de Egwene.
— Consegui. — A voz era baixa e soturna. Ela fez uma careta, apertou a boca e de repente soltou uma risada quase silenciosa. — Raiz de dorme-bem. Os idiotas nos deram a raiz misturada com vinho. Vinho quase avinagrado, pelo gosto. Rápido, você se lembra de alguma coisa do que eu ensinei? O que faz a raiz de dorme-bem?
— Faz passar a dor de cabeça, para podermos dormir — respondeu Egwene, também baixinho. E sua voz soava quase tão taciturna quanto baixa, até que percebeu o que dizia. — Provoca um pouco de sonolência, mas só. — O gordo não prestara muita atenção aos ensinamentos da vovó. — Eles só ajudaram a tratar a dor da pancada que levamos.
— Exatamente — respondeu Nynaeve. — E, depois que acordarmos Elayne, vamos lá agradecê-los de um jeito que eles não vão esquecer. — Ela se levantou e agachou ao lado da mulher de cabelos dourados.
— Acho que vi mais de cem lá fora, quando nos trouxeram para cá — sussurrou Egwene, atrás de Nynaeve. — Tenho certeza de que você não vai se importar se eu usar o Poder como arma, dessa vez. E parece que tem alguém vindo nos comprar. Pretendo dar uma lição nesse sujeito que vai fazê-lo andar sob a Luz até o último dia da vida! — ameaçou. Nynaeve ainda estava agachada ao lado de Elayne, mas nenhuma das duas se movia. — Qual é o problema?
— Ela está muito ferida, Egwene. Acho que quebrou a cabeça, mal está respirando. Egwene, ela está morrendo, assim como Dailin.
— Você não pode fazer alguma coisa? — Egwene tentou se lembrar de todos os fluxos que Nynaeve combinara para curar a Aiel, mas conseguia se recordar no máximo de uma trama em cada três. — Você precisa!
— Eles levaram as minhas ervas — resmungou Nynaeve, furiosa, a voz trêmula. — Não vou conseguir! Não sem as ervas! — Egwene ficou chocada ao perceber que Nynaeve estava à beira das lágrimas. — Que a Luz queime a todos, eu não consigo sem…! — De repente, ela agarrou os ombros de Elayne, como se desejasse erguer a mulher inconsciente e sacudi-la. — Que a queime, garota. — A voz dela soava rouca. — Não trouxe você até aqui para morrer! Devia ter deixado você esfregando panelas! Devia ter amarrado você num saco e entregado para Mat levar até a sua mãe! Não vou deixar você morrer nas minhas mãos! Está ouvindo? Não vou deixar! — Saidar de repente brilhou ao redor dela, e os olhos e a boca de Elayne se escancararam.
Egwene pôs a mão por cima da boca de Elayne no que pensou ser bem a tempo de abafar qualquer som, mas, ao tocar a mulher inconsciente, a contracorrente da Cura de Nynaeve a agarrou como palha em um redemoinho. Ela congelou até os ossos, e o calor causticante que vinha de fora parecia queimar sua carne. O mundo inteiro desapareceu em uma sensação de arremetida, queda, voo e giro.
Quando finalmente terminou, ela respirava com dificuldade e encarava Elayne, que a olhava de volta por trás das mãos com que Egwene cobrira a sua boca. O que restava da dor de cabeça de Egwene se fora. Mesmo o ricochete do que Nynaeve fizera parecia ter sido suficiente para aquilo. O murmúrio de vozes no outro cômodo não ficara mais alto. Se Elayne, ou mesmo Egwene, tinha feito algum barulho, Adden e os outros não repararam.
Nynaeve estava de quatro no chão, com a cabeça baixa, trêmula.
— Luz! — murmurou. — Fazer isso assim… foi como arrancar… minha própria pele. Ah, Luz! — Ela olhou para Elayne. — Como está se sentindo, garota?
Egwene tirou as mãos da boca de Elayne.
— Cansada — murmurou Elayne. — E com fome. Onde estamos? Vi uns homens com fundas…
Em poucas palavras¸ Egwene contou o que acontecera. O rosto de Elayne começou a ficar sério muito antes de a história terminar.
— E agora — acrescentou Nynaeve, a voz firme como ferro — vamos mostrar a esses grosseirões o que acontece quando mexem com a gente. — Saidar brilhou em volta dela mais uma vez.
Elayne ainda estava se levantando, cambaleante, mas o brilho tênue também a envolveu. Egwene estava quase alegre quando tocou a Fonte Verdadeira.
Quando olharam outra vez pela rachadura, para saber exatamente com o que teriam de lidar, viram que três Myrddraal haviam chegado.
Os trajes negros como a morte pendiam, anormalmente imóveis. Todos os homens, exceto Adden, haviam se afastado o máximo possível, até encostarem nas paredes, e mantinham os olhares fixos no chão de terra. De frente para o Myrddraal, do outro lado da mesa, Adden encarava de volta aquele olhar sem olhos, mas o suor escorria em bicas, limpando parte da terra em seu rosto.
O Desvanecido pegou um anel que estava em cima da mesa. Egwene percebeu que aquele era de um aro de ouro muito mais grosso que os anéis da Grande Serpente.
Com o rosto espremido na rachadura entre dois troncos, Nynaeve arquejou baixinho e apalpou as costas do vestido.
— Três Aes Sedai — sibilou o Meio-homem. Sua satisfação soava como corpos mortos se transformando em cinzas. — E uma delas levava isso. — O anel desabou com um baque pesado quando o Myrddraal o jogou de volta na mesa.
— São elas que procuro — disse outro, com a voz rouca. — Será bem recompensado, humano.
— Temos que pegá-los de surpresa — disse Nynaeve, baixinho. — Que tipo de cadeado tem na porta?
Egwene mal conseguia ver o cadeado do lado de fora da porta, uma coisa de ferro presa a uma corrente forte o bastante para conter um touro enfurecido.
— Fiquem a postos — disse.
Ela afinou um fluxo de Terra até torná-lo mais fino que um fio de cabelo, torcendo para os Meios-homens não perceberem uma canalização tão pequena, e o combinou às menores partículas da corrente de ferro.
Um dos Myrddraal ergueu a cabeça. Outro se inclinou por cima da mesa, na direção de Adden.
— Sinto uma comichão, humano. Tem certeza de que elas estão dormindo? — Adden engoliu em seco e assentiu com a cabeça.
O terceiro Myrddraal se virou para encarar a porta do quarto onde Egwene e as outras estavam agachadas.
A corrente caiu no chão, o Myrddraal que estava virado para ela soltou um rosnado, e a porta de fora foi escancarada. Era a morte, coberta em véus negros, vindo da noite.
O recinto irrompeu em brados e gritos enquanto os homens agarravam as espadas para enfrentar as lanças Aiel. Os Myrddraal desembainharam lâminas mais negras que as roupas que usavam e também lutaram por suas vidas. Certa vez, Egwene vira seis gatos lutando entre si, mas ali havia centenas. Mesmo assim, em questão de segundos fez-se silêncio total. Ou quase total.
Todos os humanos que não usavam véus negros jaziam mortos, atravessados por lanças, e Adden estava pregado à parede por uma delas. Dois Aiel também estavam caídos, imóveis, entre a confusão de mortos e de mobília revirada. Os três Myrddraal estavam de costas uns para os outros, as espadas negras nas mãos. Um deles apertava um dos lados do corpo, como se estivesse ferido, embora não houvesse sinal de ferimento. Outro exibia um corte comprido no rosto pálido, mas não sangrava. Cinco Aiel com os rostos cobertos pelos véus estavam agachados, andando em círculos ao redor dos Desvanecidos. Do lado de fora, gritos e sons metálicos informavam que outros Aiel ainda lutavam noite adentro, mas ali os sons eram mais baixos.
Enquanto os rodeavam, os Aiel batiam as lanças nos pequenos broquéis de couro. Drum-drum-DRUM-drum… drum-drum-DRUM-drum… drum-drum-DRUM-drum. Os Myrddraal se viraram, os rostos sem olhos pareciam confusos, incomodados, pois o medo que seu olhar causava em todos os humanos não parecia afetar aqueles.
— Dance comigo, Homem das Sombras — gritou um Aiel de repente, em tom de deboche. Parecia um jovem homem.
— Dance comigo, Sem-olhos. — Era uma mulher.
— Dance comigo.
— Dance comigo.
— Acho — começou Nynaeve, se endireitando — que está na hora. — Ela abriu a porta, e as três mulheres envoltas no tênue brilho de saidar saíram do cômodo.
Parecia que, para os Myrddraal, os Aiel tinham deixado de existir. Da mesma forma, parecia que os Myrddraal haviam sumido, para os Aiel. Estes olhavam para Egwene e as outras por cima dos véus, como se não soubessem ao certo o que viam. Ela ouviu uma das mulheres arquejar. O olhar sem olhos dos Myrddraal era diferente. Egwene quase sentia que os Meios-homens sabiam que iam morrer. Os Meios-homens sabiam identificar uma mulher que abraçava a Fonte Verdadeira quando viam uma. Ela também tinha certeza do desejo que sentiam pela morte dela, mesmo que para isso tivessem que pagar com a própria vida, e um desejo ainda mais forte de arrancar a alma dela da carne e transformar ambas em brinquedos para a Sombra, um desejo de…
Ela acabara de adentrar o recinto, mas parecia encarar aquele olhar por horas.
— Não tolerarei mais isso — rosnou, e liberou um fluxo de Fogo.
Chamas irromperam em meio aos três Myrddraal, espalhando-se em todas as direções, e eles guincharam como lascas de ossos em uma máquina de moer carne. Mas ela esquecera que não estava sozinha, que Elayne e Nynaeve estavam com ela. Ao mesmo tempo em que as chamas consumiam os Meios-homens, o próprio ar pareceu suspendê-los acima do chão e esmagá-los em uma bola de fogo e escuridão, uma bola que ficava cada vez menor. Os gritos provocaram calafrios em Egwene, e algo pulou das mãos de Nynaeve. Era uma barra fina de luz branca que fazia o sol do meio-dia parecer escuro, uma barra de fogo que fazia o metal incandescente parecer gélido, ligando as mãos dela aos Myrddraal. E eles cessaram de existir como se jamais tivessem passado por ali. Nynaeve deu um salto, assustada, e o brilho tênue que a envolvia desapareceu.
— O que… o que foi isso? — perguntou Elayne.
Nynaeve sacudiu a cabeça. Parecia tão atônita quanto Elayne.
— Eu não sei… eu… estava com tanta raiva, com tanto medo do que eles queriam fazer… Não sei o que foi isso.
Fogo devastador, pensou Egwene. Não sabia como, mas tinha certeza de que era. Relutante, soltou saidar. Fez saidar soltá-la. Não sabia o que era mais difícil. E não vi nada do que ela fez!
Os Aiel tiraram os véus. Um pouco depressa, pensou Egwene, como se quisessem mostrar a ela e às outras duas que não estavam mais prontos para a luta. Três dos Aiel eram homens, um deles mais velho, com mais do que algumas mechas grisalhas nos cabelos vermelho-escuros. Eram altos os homens Aiel e, jovens ou velhos, tinham a mesma certeza tranquila no olhar, os mesmos movimentos graciosos e perigosos que Egwene associava aos Guardiões. A morte cavalgava em seus ombros, e eles sabiam disso e não tinham medo. Uma das mulheres era Aviendha. Os gritos e brados do lado de fora começavam a morrer.
Nynaeve começou a caminhar em direção aos Aiel caídos.
— Não é preciso, Aes Sedai — disse o homem mais velho. — Eles foram feridos pelo aço dos Homens das Sombras.
Ainda assim, Nynaeve se inclinou para conferir cada um deles, erguendo os véus para puxar as pálpebras e sentir o pulso em suas gargantas. Quando levantou o véu da segunda pessoa, empalideceu. Era Dailin.
— Que queime! Que queime! — Não estava claro se ela se referia a Dailin, ao homem de cabelos grisalhos, a Aviendha ou ao povo Aiel como um todo. — Eu não curei essa mulher só para ela morrer desse jeito!
— A morte chega para todos — começou Aviendha, mas, quando Nynaeve se virou para ela, a mulher se calou.
Os Aiel se entreolharam, como se não soubessem ao certo se Nynaeve faria a eles o que fizera aos Myrddraal. Não havia medo em seus olhos, pareciam apenas cientes da possibilidade.
— O aço dos Homens das Sombras mata — explicou Aviendha —, não fere. — O homem mais velho a encarou com uma leve surpresa nos olhos. Egwene concluiu que para ele, assim como para Lan, aquele leve tremor das pálpebras era o equivalente aos olhos arregalados de assombro de qualquer outro homem. Aviendha acrescentou: — Elas sabem pouco sobre certas coisas, Rhuarc.
— Sinto muito — pediu Elayne, com a voz clara — por termos interrompido sua… dança. Talvez tivesse sido melhor não interferirmos.
Egwene a encarou, surpresa, depois percebeu o que ela estava fazendo. Tranquilizando-os e dando uma chance para Nynaeve acalmar os nervos.
— Vocês estavam cuidando muito bem das coisas — continuou. — Talvez tenhamos ofendido vocês, nos metendo.
O homem grisalho, Rhuarc, soltou uma risada grave.
— Aes Sedai, de minha parte, afirmo que fico feliz por… seja lá o que tenham feito. — Por um instante, ele não parecia totalmente certo, mas no momento seguinte suavizou a expressão. Tinha um bom sorriso e um rosto forte e quadrado. Era bonito, ainda que um tanto velho. — Teríamos conseguido matar todos eles, mas três Homens das Sombras… Eles decerto matariam três dos nossos, talvez todos, e não posso afirmar que daríamos conta de todos. Para os jovens, a morte é uma inimiga com quem desejam medir forças. Para nós, que somos um pouco mais velhos, ela é uma velha amiga, uma velha amante, mas não estamos ávidos para encontrá-la tão cedo.
Nynaeve pareceu relaxar com o discurso do homem, como se conhecer um Aiel que não estivesse ansioso para morrer tivesse aliviado a tensão dela.
— Eu é que deveria agradecer — disse —, e agradeço. Mas admito que fiquei surpresa em vê-los. Aviendha, você esperava nos encontrar aqui? Como?
— Eu segui vocês. — A Aiel não parecia constrangida. — Para ver o que iriam fazer. Vi os homens levarem vocês, mas estava longe demais para ajudar. Tinha certeza de que vocês me veriam se eu me aproximasse demais, então me mantive cerca de cem passos atrás. Quando percebi que não conseguiriam se salvar, já era tarde demais para tentar qualquer coisa sozinha.
— Tenho certeza de que fez o que pôde — respondeu Egwene, fraca. Ela estava a apenas cem passos da gente? Luz, os bandidos não viram nadinha.
Aviendha interpretou aquelas palavras como um incentivo para falar mais.
— Eu sabia onde Coram devia estar, e ele sabia onde estavam Dhael e Luaine, que sabiam… — Ela parou, franzindo o rosto para o homem mais velho. — Não esperava encontrar o chefe de um clã, muito menos do meu próprio, entre os que vieram. Rhuarc, quem lidera os Aiel Taardad, com você aqui?
Rhuarc deu de ombros, como se aquilo não tivesse importância.
— Os chefes dos ramos se revezam e tentam decidir se de fato desejam ir para Rhuidean, quando eu morrer. Eu não teria vindo, mas Amys, Bair, Melaine e Seana me perseguiram como gatas-bravas atrás de uma cabra-selvagem. Os sonhos diziam que eu devia ir. Elas perguntaram se eu queria mesmo morrer velho e gordo em cima de uma cama.
Aviendha riu, como se escutasse uma grande piada.
— Ouvi dizer que um homem encurralado entre a esposa e uma Sábia deseja em vez disso enfrentar dez inimigos. Um homem encurralado entre a esposa e três Sábias, e cuja própria mulher é uma Sábia, deve desejar tentar matar o Cega-vista.
— O desejo passou pela minha cabeça. — Ele franziu a testa para algo no chão. Eram três anéis da Grande Serpente, reparou Egwene, e um anel de ouro muito mais pesado, feito para o dedo largo de um homem. — Ainda passa. Tudo precisa mudar, mas eu não seria parte dessa mudança se pudesse me afastar dela. Três Aes Sedai viajando para Tear.
Os outros Aiel se entreolharam, mas pareciam não querer que Egwene e as outras percebessem.
— Você falou de sonhos — começou Egwene. — As suas Sábias sabem o que significam os sonhos que têm?
— Algumas sabem. Se quiser saber mais a respeito, precisa falar com elas. Talvez contem a uma Aes Sedai. Nada contam aos homens, exceto o que os sonhos dizem que devemos fazer. — De repente, ele pareceu cansado. — E costuma ser o que queremos evitar, se possível.
Ele se inclinou para pegar o anel masculino. Nele havia o desenho de um grou voando sobre uma lança e uma coroa. Egwene já sabia o que era. Já o vira muitas vezes antes, balançando em um cordão de couro preso ao pescoço de Nynaeve. A mais velha das Aceitas pisou nos outros anéis para tirá-lo das mãos do homem. Seu rosto estava vermelho, cheio de raiva e de emoções demais para que Egwene as desvendasse. Rhuarc não se moveu para pegar o anel de volta, mas continuou falando com o mesmo tom cansado.
— E uma delas leva um anel de que ouvi falar quando menino. O anel dos reis de Malkier. Eles cavalgaram com os shienaranos contra os Aiel, no tempo de meu pai. Eram bons na dança das lanças. Mas Malkier sucumbiu à Praga. Dizem que apenas um rei, ainda criança, sobreviveu, e ele corteja a morte que levou sua terra como outros homens cortejam belas mulheres. Isso é de fato muito estranho, Aes Sedai. De tudo de estranho que achei que veria quando Melaine me arrastou para fora da minha própria fortaleza, para o outro lado da Muralha do Dragão, nada foi mais estranho do que isso. O caminho que você abre para mim é um onde jamais pensei que meus pés andariam.
— Não abro caminho algum para você — retrucou Nynaeve, ríspida. — Só quero prosseguir na minha jornada. Esses homens tinham cavalos. Vamos levar três e seguir viagem.
— À noite, Aes Sedai? — inquiriu Rhuarc. — Sua viagem é tão premente que precisa atravessar essas terras perigosas no escuro?
Nynaeve relutou visivelmente antes de responder.
— Não. — Em um tom mais firme, acrescentou: — Mas pretendo partir assim que o sol nascer.
Os Aiel carregaram os mortos para fora da paliçada, mas nem Egwene nem suas companheiras queriam usar a cama nojenta onde Adden dormira. Pegaram os anéis e dormiram a céu aberto, sob seus próprios mantos e os cobertores que pegaram emprestados dos Aiel.
Quando a aurora começou a clarear o céu a leste, os Aiel prepararam um café da manhã feito de carne dura e seca, que Egwene hesitou em comer até Aviendha explicar que era carne de bode, além de um pão ázimo quase tão difícil de mastigar quanto a carne fibrosa e um queijo branco de gosto ácido com nervuras azuis, duro o bastante para fazer Elayne resmungar que os Aiel deveriam treinar mastigando pedras. Mas a Filha-herdeira comeu tanto quanto Egwene e Nynaeve juntas. Depois de escolher os melhores para Egwene e as outras duas, os Aiel soltaram os cavalos. Só cavalgavam se fosse extremamente necessário, explicou Aviendha, e soou como se preferisse correr com bolhas nos pés. Os animais que escolheram eram quase tão altos e corpulentos quanto cavalos de batalha, com pescoços imponentes e olhos ferozes. Um garanhão preto para Nynaeve, uma égua ruana para Elayne e uma égua cinza para Egwene.
Ela decidiu chamar a cinza de Bruma, na esperança de que um nome suave talvez a amansasse, e de fato Bruma pareceu caminhar mais tranquila em direção ao sul, enquanto o sol formava uma borda vermelha acima do horizonte.
Todos os Aiel que haviam sobrevivido à luta as acompanharam a pé. Outros três haviam morrido, além dos que os Myrddraal mataram. No momento eram dezenove, ao todo. Andavam a passos largos, acompanhando os cavalos sem dificuldade. No início, Egwene tentou fazer com que Bruma andasse devagar, mas os Aiel acharam aquilo muito engraçado.
— Aposto uma corrida de dez milhas — disse Aviendha — e veremos quem vai ganhar, eu ou o seu cavalo.
— Eu aposto uma de vinte! — gritou Rhuarc, gargalhando.
Egwene achou que eles estavam falando sério, e, quando ela e as outras duas deixaram os cavalos andarem a passos mais ligeiros, os Aiel não deram sinal algum de que ficariam para trás.
Quando avistaram os telhados de palha de Jurene a distância, Rhuarc falou:
— Vá em paz, Aes Sedai. Que vocês sempre encontrem água e sombra. Talvez nos vejamos outra vez, antes que cheguem as mudanças. — Ele soou taciturno. Enquanto os Aiel se viravam de volta na direção sul, Aviendha, Chiad e Bain ergueram as mãos em despedida. Não pareciam reduzir a marcha, apesar de não acompanharem mais os cavalos. Na verdade, seguiam até um pouco mais depressa. Egwene suspeitou que pretendiam manter o ritmo até chegarem aonde que quer quisessem ir.
— O que ele quis dizer com isso? — perguntou. — “Talvez nos vejamos outra vez, antes que cheguem as mudanças”?
Elayne sacudiu a cabeça.
— Não importa o que ele quis dizer — retrucou Nynaeve. — Estou feliz por terem chegado ontem à noite, mas também estou feliz por terem partido. Espero que a gente encontre um navio aqui.
Jurene era um lugar pequeno, uma aldeia de casas de madeira de um só andar, mas o estandarte do Leão Branco de Andor se agitava sobre a cidade em um mastro alto. Cinquenta Guardas da Rainha montavam guarda, vestidos em casacos vermelhos com golas brancas e compridas sob as reluzentes placas peitorais. Foram alocados ali, como explicou o capitão, para fornecer um abrigo seguro para os refugiados que desejassem partir para Andor, mas a cada dia chegavam menos. A maioria seguia para aldeias mais ao sul do rio, perto de Aringill. Tinha sido uma boa coisa as três mulheres chegarem na hora em que chegaram, pois esperavam receber ordens de retornar a companhia para Andor a qualquer dia. Os poucos habitantes de Jurene provavelmente iriam com eles, deixando o que restara para os bandidos e os soldados cairhienos das Casas em conflito.
Elayne manteve o rosto escondido no capuz do manto de lã pesada, mas nenhum dos soldados pareceu associar a garota de cabelos louro-acobreados à Filha-herdeira. Alguns lhe pediram para fazer companhia, e Egwene não tinha certeza de que Elayne ficou satisfeita ou chocada. Ela respondeu aos homens que lhe perguntaram que não tinha tempo para eles. De um jeito estranho, era bom ter a atenção deles. Ela decerto não tinha desejo algum de beijar qualquer um daqueles sujeitos, mas era agradável ser lembrada de que pelo menos alguns homens a achavam tão bela quanto Elayne. Nynaeve deu um tapa no rosto de um dos sujeitos. Aquilo quase provocou uma risada em Egwene, e Elayne abriu um sorriso. Egwene pensou que Nynaeve levara um beliscão, e, apesar da carranca, a amiga também não parecia totalmente incomodada.
As três não estavam usando os anéis. Nynaeve não precisara de muito para convencê-las de que Tear era um lugar onde elas não gostariam de ser confundidas com Aes Sedai, ainda mais se a Ajah Negra estivesse por lá. Egwene guardara o seu na bolsa, junto com o ter’angreal de pedra, e volta e meia tateava para se lembrar de que ainda estavam lá. Nynaeve pendurara o seu no cordão que carregava o pesado anel de Lan, aninhado entre os seios.
Havia um navio em Jurene, preso ao único píer de pedras às margens do Erinin. Não era o navio que Aviendha avistara, ao que parecia, mas ainda assim era um navio. A visão da embarcação deixou Egwene consternada. Duas vezes maior que o Garça Azul, o Flechador desmentia o nome com uma proa tão redonda quanto o capitão.
O sujeito proeminente piscou para Nynaeve e coçou a orelha quando ela perguntou se a embarcação era rápida.
— Rápida? Estou cheio dessas madeiras excelentes de Shienar e de tapetes de Kandor. Quem precisa ser rápido com um carregamento desses? Os preços só vão subir. Sim, creio que haja navios mais velozes atrás de mim, mas eles não atracarão por aqui. Eu mesmo não teria atracado se não tivesse encontrado larvas na carne. Que ideia idiota achar que teriam carne para vender em Cairhien. O Garça Azul? É, vi Ellisor preocupado com alguma coisa ao norte do rio hoje de manhã. Ele não vai zarpar tão cedo, eu acho. É isso que dá seguir em um navio veloz.
Nynaeve pagou as passagens — e em dobro, por causa dos cavalos — com uma expressão que fez Egwene e Elayne evitarem falar com ela até bem depois que o Flechador já estivesse longe de Jurene.