46 Uma Mensagem das Sombras

Durante a caminhada rumo à Cidade Interna, Mat estava não estava nem um pouco seguro de que sua tentativa daria certo. Se o que tinha ouvido fosse verdade, daria, mas era da veracidade da informação que ele tinha dúvidas. Evitou a praça oval diante do Palácio, mas vagou pelas laterais da imensa estrutura e de seus gramados, percorrendo ruas que serpenteavam com os contornos das colinas. Os domos dourados do Palácio reluziam, debochados e inacessíveis. Ele já completara quase uma volta, estava chegando outra vez à praça, quando a viu. Uma encosta íngreme coberta de flores baixas se erguia da rua até uma muralha branca de pedra bruta. Inúmeros galhos de árvores frondosas se projetavam do alto do muro, e ele conseguia ver os topos de outras, mais além, em um dos jardins do Palácio Real.

Um muro feito para parecer um barranco, pensou, e um jardim do outro lado. Talvez Rand estivesse falando a verdade.

Uma olhadela casual para os dois lados revelou que a rua sinuosa estava vazia. Ele teria que se apressar, pois as curvas não permitiam que ele enxergasse muito longe, e a qualquer instante alguém poderia aparecer. Ele escalou a encosta de quatro, bem depressa, sem se preocupar com os sulcos que suas botas deixavam nas fileiras de flores brancas e vermelhas. A pedra bruta da muralha fornecia apoio para as mãos, enquanto as saliências e os calombos davam bons calços para os pés, mesmo para um homem de botas.

Que descuido fazerem uma coisa tão fácil de escalar, pensou enquanto subia. Por um instante Mat foi transportado de volta para casa, com Rand e Perrin, para uma viagem que tinham feito para além das Colinas de Areia, nos limites das Montanhas da Névoa. Quando retornaram a Campo de Emond, despertaram a ira de todos os que puderam descer as mãos nos três, e ele foi o que mais sofreu, já que todos presumiram que a ideia fora dele. Haviam passado três dias escalando os paredões e dormindo ao relento. Comeram ovos tirados direto dos ninhos de cristas-vermelhas, tetrazes de asa cinzenta roliços, que os rapazes matavam com arcos ou estilingues, e coelhos que capturavam em armadilhas. Passaram o tempo todo rindo de como não tinham medo da má sorte das montanhas e de como talvez até pudessem encontrar algum tesouro. Ele trouxera uma pedra estranha da expedição, onde a cabeça de um peixe grande fora gravada, além de uma pena branca que caíra do rabo de uma águia-das-neves e um pedaço de pedra branca do tamanho de sua mão, que mais parecia a escultura da orelha de um homem. Ele achou que parecia uma orelha, mas Rand e Perrin não, e Tam al’Thor disse que podia ser.

Seus dedos deslizaram de um sulco mais raso, e ele se desequilibrou e perdeu o apoio do pé esquerdo. Com uma exclamação surpresa, por pouco não falhou ao segurar no muro e se içar até o topo. Ficou parado ali um pouco, ofegante. Não teria sido uma queda grande, mas seria suficiente para quebrar a cabeça. Idiota, ficando distraído desse jeito. Quase me matei nesse barranco. Aquilo já foi há muito tempo. Sua mãe já devia ter jogado todas aquelas coisas fora. Com uma última olhada para garantir que ninguém o vira — a curva da rua lá embaixo ainda estava vazia —, ele saltou para dentro dos muros do Palácio.

O jardim era grande, com caminhos de pedra ao longo dos vastos gramados entre as árvores e videiras robustas que subiam pelos caramanchões. E flores se espalhavam por todos os lados. Flores brancas cobriam as pereiras, e mais flores brancas e rosa pontilhavam as macieiras. Rosas de todas as cores, como raios-de-sol dourados, glória-de-emond púrpura e muitas outras que ele não conseguia identificar. Algumas nem pareciam verdadeiras. Uma delas tinha botões dourados e escarlate que mais pareciam pássaros, e outra não era muito diferente de um girassol, só que os botões amarelos tinham mais de dois pés de comprimento e brotavam em galhos do tamanho de um Ogier.

Ele ouviu o barulho de botas andando nas pedras e se agachou atrás de uma moita junto ao muro no mesmo instante em que dois guardas passavam marchando, os colarinhos brancos visíveis por cima das placas peitorais. Os dois nem olharam na direção dele, que sorriu para si mesmo. Sorte. Com só um tantinho de sorte, eles não vão nem chegar a me ver até eu entregar essa maldita carta a Morgase.

Ele deslizou pelo jardim como uma sombra, como se caçasse coelhos, ficando imóvel atrás de um arbusto ou do tronco de uma árvore toda vez que ouvia o barulho de botas. Outra dupla de soldados passou, o segundo tão perto que ele poderia ter dado dois passos e beliscado os traseiros dos dois. Enquanto os homens desapareciam por entre as flores e árvores, ele arrancou um fulgor-das-estrelas vermelho intenso e enfiou a flor de pétalas curvas nos cabelos com um grande sorriso. Aquilo era tão divertido quanto roubar tortas de maçã no Dia do Sol, e ainda mais fácil. As mulheres sempre vigiavam atentamente os tabuleiros, mas os soldados idiotas jamais erguiam os olhos das pedras.

Não demorou muito até que ele encostasse no muro branco do próprio Palácio e começasse a se esgueirar à procura de uma porta, escondido por trás de uma fileira de rosas brancas que cresciam sobre uma cerca de ripas. Logo acima de sua cabeça havia várias janelas amplas em forma de arco, mas ele achou que seria um pouco mais difícil se explicar caso fosse pego subindo uma janela do que andando por um corredor. Outros dois soldados apareceram, e ele ficou imóvel: passariam a três passos de onde estava. Ele ouvia vozes da janela logo acima, a conversa dos dois homens era alta o bastante para ele distinguir as palavras.

— …a caminho de Tear, Grande Mestre. — O homem soava assustado e obsequioso.

— Deixe que elas acabem com os planos dele, se puderem. — Esta voz era mais grave e forte, de um homem acostumado a comandar. — Vai ser bem feito para ele, ter os planos frustrados por três garotas sem treinamento. Sempre foi um tolo, e ainda é. Tem alguma notícia do garoto? É ele quem pode destruir todos nós.

— Não, Grande Mestre. Ele desapareceu. Mas, Grande Mestre, uma das garotas é cria de Morgase.

Mat deu meio giro, depois parou. Os soldados estavam se aproximando. Não pareciam ter visto o susto que ele levou entre os espessos galhos de rosas. Circulando, seus idiotas! Passem logo para eu ver quem é esse maldito homem! Ele perdera um trecho da conversa.

— …tem estado muito impaciente desde que recuperou a liberdade — dizia a voz grave. — Nunca entendeu que os melhores planos precisam de tempo para amadurecer. Quer o mundo todo em um dia só, e Callandor também. Que o Grande Senhor o leve! Ele pode pegar a garota e tentar fazer uso dela. E isso pode acabar prejudicando meus próprios planos.

— Como quiser, Grande Mestre. Devo ordenar que ela seja trazida de Tear?

— Não. Se aquele tolo descobrisse, encararia como uma jogada contra ele. E quem é que sabe o que ele anda vigiando, além da espada? Faça ela ter uma morte discreta, Comar. Não deixe que a morte atraia qualquer atenção. — A risada do homem era encorpada e retumbante. — Aquelas relaxadas ignorantes da Torre vão ter dificuldade em devolvê-la, depois desse novo desaparecimento. Isso pode funcionar tão bem quando o outro plano. Providencie isso depressa. Rápido, antes que ele próprio tenha tempo de levá-la.

Os dois soldados estavam quase lado a lado com ele. Mat tentou fazer os homens andarem mais rápido com a força da mente.

— Grande Mestre — começou o outro homem, indeciso —, talvez isso seja difícil. Sabemos que ela está a caminho de Tear, mas a embarcação onde ela viajava foi encontrada em Aringill, e as três moças já tinham deixado o navio antes disso. Não sabemos se ela pegou outro navio ou se está cavalgando em direção ao sul. E talvez não seja fácil encontrá-la depois que ela chegar a Tear, Grande Mestre. Talvez se o senhor…

— Será que só restaram idiotas nesse mundo? — perguntou a voz grave e severa. — Acha que posso circular em Tear sem que ele saiba? Não pretendo lutar com ele, não agora, ainda não. Traga a cabeça da garota, Comar. Traga todas as três cabeças, ou você acabará rezando para que eu arranque a sua!

— Sim, Grande Mestre. Será como o senhor quiser. Sim. Sim.

Os soldados passaram esmigalhando as pedras, sem olhar para os lados. Mat só esperou até os dois virarem de costas e saltou para agarrar o amplo peitoril de pedras, erguendo-se o bastante para enxergar pela janela.

Ele mal notou o carpete taraboniano franjado no chão, que devia valer uma gorda bolsa de prata. Uma das portas largas e entalhadas estava se fechando. Um homem alto, com ombros largos e o peitoral apertado no casaco bordado de seda verde, encarava a porta com olhos azul-escuros. A barba preta era baixa e tinha uma mecha branca sobre o queixo. No geral, o homem parecia resistente, além de acostumado a dar ordens.

— Sim, Grande Mestre — disse de repente, e Mat quase largou o peitoril. — Ele pensara que aquele era o homem da voz grave, mas foi a voz servil que escutou. Nada servil agora, mas a mesma voz. — Será como o senhor quiser, Grande Mestre — disse o homem, amargo. — Eu mesmo arranco as cabeças das mocinhas. Assim que as encontrar! — Ele saiu pela porta pisando firme, e Mat se soltou.

Passou um instante ali, agachado atrás das cercas de rosas. Alguém dentro do Palácio queria Elayne morta, depois acrescentara Egwene e Nynaeve aos planos. O quê, sob a Luz, elas estão fazendo, indo para Tear? Só podiam ser elas.

Ele puxou a carta da Filha-herdeira do forro do casaco e franziu o rosto. Talvez, com isso nas mãos, Morgase acreditasse nele. Ele podia descrever um dos homens. Mas o tempo de avançar na surdina chegara ao fim. O grandalhão poderia estar a caminho de Tear antes mesmo que ele conseguisse encontrar Morgase, e então nada do que ela fizesse seria garantia de impedi-lo.

Respirando fundo, Mat oscilou entre duas cercas de rosas, ao custo de apenas alguns furos provocados pelos espinhos, e partiu pelo caminho de pedras atrás dos soldados. Erguia a carta de Elayne bem diante de si, para que o lírio dourado do selo ficasse claramente visível, e foi repassando na mente o que queria dizer. Quando tinha tentado se esconder, os guardas pipocavam como cogumelos depois da chuva, mas bastou querer falar com um para percorrer quase toda a extensão do jardim sem ver sequer uma alma. Passou por diversas portas. Não seria muito bom adentrar o Palácio sem permissão, pois a Guarda poderia fazer as besteiras antes e escutar depois. Entretanto, quando começava a cogitar entrar por uma das portas, ela foi aberta por um jovem oficial sem capacete, com um nó dourado no ombro.

A mão do homem tocou o cabo da espada na mesma hora, e ele já tinha puxado quase um pé de aço antes que Mat pudesse empurrar a carta na direção dele.

— Elayne, a Filha-herdeira, envia esta carta à sua mãe, a Rainha Morgase, capitão. — Ele ergueu a carta de modo que o lírio do selo ficasse evidente.

Os olhos escuros do oficial examinaram o entorno, como se procurassem por outras pessoas, mas sem deixar de observar Mat.

— Como foi que conseguiu entrar nesse jardim? — Ele não desembainhou o restante da espada, mas também não a guardou. — Elber está nos portões principais. Ele é um paspalho, mas jamais deixaria alguém ficar vagando pelo interior do Palácio.

— Um gordo com olhos de rato? — Mat maldisse a própria língua, mas o oficial assentiu com vigor, e também quase sorriu, mas não pareceu reduzir a vigilância ou a desconfiança. — Ele ficou com raiva quando soube que eu vinha de Tar Valon e nem me deu chance de mostrar a carta ou mencionar o nome da Filha-herdeira. Disse que me prenderia se eu não fosse embora, por isso pulei o muro. Prometi que entregaria esta carta à Rainha Morgase em pessoa, compreende, capitão? Eu prometi, e sempre cumpro minhas promessas. Está vendo este selo?

— O maldito muro do jardim, outra vez — resmungou o oficial. — Deviam triplicar a altura. — O homem encarou Mat. — Tenente da Guarda, não capitão. Sou o Tenente da Guarda Tallanvor. Reconheço o selo da Filha-herdeira. — A espada enfim deslizou de volta para dentro da bainha. Ele esticou a mão, e não era a mão da espada. — Pode me dar a carta, que eu entrego para a Rainha. Depois de lhe mostrar a saída. Tem gente que não seria tão gentil se o encontrasse vagando por aí.

— Eu prometi entregar a carta em mãos — respondeu Mat. Luz, nunca pensei que não me deixariam fazer isso. — Eu prometi. À Filha-herdeira.

Mat mal percebeu que a mão de Tallanvor tinha se mexido antes que a espada do oficial estivesse colada em seu pescoço.

— Vou levar você até a Rainha, caipira — disse Tallanvor, baixinho. — Mas saiba que arranco a sua cabeça num piscar de olhos se você sequer pensar em machucá-la.

Mat abriu seu melhor sorriso. A lâmina levemente curva parecia bem afiada contra a lateral do seu pescoço.

— Sou um andoriano leal — disse — e um súdito fiel da Rainha, que a Luz a ilumine. Ora, se eu estivesse aqui durante o inverno, sem dúvida teria seguido Lorde Gaebril.

Tallanvor o encarou com a boca contraída, depois enfim guardou a espada. Mat engoliu em seco e controlou o impulso de tocar a garganta para conferir se estava cortada.

— Tire a flor do cabelo — comandou Tallanvor, embainhando a espada. — Está achando que veio aqui para paquerar?

Mat puxou o fulgor-das-estrelas do cabelo e seguiu o oficial. Seu idiota, botar uma flor no cabelo? Preciso parar de bancar o paspalho.

Ele não o seguia, exatamente, pois Tallanvor mantinha a atenção nele mesmo enquanto o conduzia pelo caminho. O resultado foi uma espécie de estranha procissão, com o oficial de um lado, mais na frente, porém meio virado, para o caso de Mat tentar qualquer coisa. De sua parte, Mat tentava parecer tão inocente quanto um bebê espalhando água na banheira.

As coloridas tapeçarias nas paredes haviam rendido uma boa prata aos tecelões, bem como os tapetes do piso de azulejos, mesmo ali nos corredores. Havia ouro e prata por toda parte, em pratos e travessas, tigelas e canecas, gravados em baús e armários baixos de madeira polida, tão belos quanto tudo o que ele vira na Torre. Serviçais saíam de todos os cantos, de libré vermelho com colarinho branco, abotoaduras e o Leão Branco de Andor no peito. Ele ficou imaginando se Morgase jogava dados. Que pensamento típico de um cabeça-de-lã. Rainhas não jogam dados. Mas, quando eu lhe entregar essa carta e contar que alguém no Palácio quer matar Elayne, aposto que ela vai me dar uma bolsa cheinha. Ele se permitiu a pequena fantasia de ser nomeado como lorde. Sem dúvida o homem que revelasse uma trama de assassinato da Filha-herdeira poderia esperar uma recompensa dessas.

Tallanvor o conduziu por tantos corredores e pátios que ele começou a se perguntar se conseguiria encontrar o caminho de volta sozinho. Foi quando de repente reparou que um dos pátios abrigava mais do que serviçais. Rodeado por um corredor com colunas, o pátio tinha um lago redondo no centro, com peixes brancos e amarelos que nadavam sob folhas flutuantes de lírios e lótus brancos. Homens de casacos coloridos, bordados em ouro ou prata, e mulheres em amplos vestidos ainda mais elaborados montavam guarda ao lado de uma mulher de cabelos louro-acobreados sentada na borda elevada do lago, passando os dedos pela água e olhando com pesar para os peixes que subiam até seus dedos à procura de alimento. Um anel da Grande Serpente envolvia o terceiro dedo de sua mão esquerda. Havia um homem negro e alto ao lado dela, a seda vermelha do casaco quase encoberta pelos arabescos e folhas de ouro bordados por cima, mas foi a mulher que atraiu o olhar de Mat.

Não era preciso ver a fina coroa de rosas douradas em seus cabelos ou a estola que pendia de seu vestido branco rajado de vermelho, toda bordada com os Leões de Andor, para Mat saber que estava olhando para Morgase, pela Graça da Luz, Rainha de Andor, Defensora do Reino, Protetora do Povo, Grão-trono da Casa Trakand. Ela tinha o rosto e a beleza de Elayne, mas era o que Elayne seria quando amadurecesse. Todas as outras mulheres no pátio ficavam em segundo plano, desbotadas diante de sua presença.

Eu dançaria uma jiga com ela, e também roubaria um beijo dela ao luar, não importa quantos anos tenha. Ele se sacudiu. Não se esqueça de quem ela é!

Tallanvor abaixou-se sobre um dos joelhos, um punho pressionado na pedra branca do pátio.

— Minha Rainha, trago um mensageiro que porta uma carta de Lady Elayne.

Mat olhou a postura ajoelhada do homem e optou por fazer uma reverência profunda.

— Da Filha-herdeira… hã… minha Rainha. — Ele ergueu a carta enquanto se curvava, de modo a exibir a cera dourada do selo. Depois que ela ler e souber que Elayne está bem, eu conto a ela. Morgase virou os olhos azul-escuros para ele. Luz! Assim que ela ficar de bom humor.

— Traz uma carta de minha filha ardilosa? — A voz dela era fria, mas com indício do calor que poderia ser despertado. — Isso deve significar que ela está viva, pelo menos! Onde ela está?

— Em Tar Valon, minha Rainha — conseguiu responder. Luz, adoraria uma competição para ver quem pisca primeiro, ela ou a Amyrlin. Ele pensou melhor e decidiu que preferia não ver nada daquilo. — Pelo menos estava quando eu saí de lá.

Morgase acenou, impaciente, com a mão, e Tallanvor se ergueu para pegar a carta de Mat e entregar a ela. Por um instante, a mulher olhou o selo de lírio com a cara fechada, depois o rompeu com um giro rápido dos punhos. Murmurava sozinha enquanto lia, sacudindo a cabeça a cada duas linhas.

— Ela não pode contar mais nada, não é mesmo? — resmungou. — Vamos ver se ela vai se manter firme… — De repente seu rosto se iluminou. — Gaebril, ela foi elevada a Aceita. Menos de um ano na Torre, e já foi elevada. — O sorriso foi embora tão depressa quanto surgira, e ela contraiu os lábios. — Quando eu puser as mãos nessa garota desgraçada, ela vai desejar que ainda fosse noviça.

Luz, pensou Mat, será que nada vai deixá-la de bom humor? Ele decidiu que teria que dizer de uma vez, mas desejou que ela não parecesse prestes a cortar fora a cabeça de alguém. — Minha Rainha, por acaso eu escutei…

— Fique quieto, garoto — disse calmamente o sujeito negro de casaco com detalhes dourados. Era um homem bonito, quase tão bem-apessoado quanto Galad e de aparência quase tão juvenil quanto ele, apesar do branco rajado em suas têmporas. Mas o homem precisava ser medido em uma escala maior: era mais alto que Rand e tinha os ombros quase do tamanho dos de Perrin. — Vamos ouvir o que você tem a dizer em um instante. — Ele estendeu a mão por cima do ombro de Morgase e puxou a carta das mãos dela. O olhar da rainha se virou para ele, e Mat pôde ver sua irritação, mas o homem negro pousou a mão forte no ombro de Morgase, sem nunca tirar os olhos do que estava lendo, e a raiva da rainha se dissolveu. — Parece que ela deixou a Torre outra vez — disse. — A serviço do Trono de Amyrlin. A mulher se atropelou mais uma vez, Morgase.

Mat não teve dificuldade em segurar a língua. Sorte. Estava presa no céu da boca. Às vezes, não sei se isso é bom ou ruim. O homem negro era o dono da voz grave, o “Grande Mestre” que queria a cabeça de Elayne. Ela o chamou de Gaebril. O conselheiro dela quer matar Elayne? Luz! E Morgase olhava para ele como um cãozinho amoroso com a mão do dono sobre o ombro.

Gaebril virou os olhos quase negros para Mat. O homem tinha um olhar poderoso e uma aparência astuta.

— O que pode nos dizer disso, garoto?

— Nada… hã… milorde. — Mat pigarreou. O olhar do homem era pior que o da Amyrlin. — Fui a Tar Valon visitar minha irmã. Ela é uma noviça. Else Grinwell. Sou Thom Grinwell, milorde. Lady Elayne soube que eu pretendia passar em Caemlyn no caminho de volta. Sou de Comfrey, milorde, uma pequena aldeia ao norte de Baerlon. Nunca tinha visto um lugar maior que Baerlon até visitar Tar Valon, e ela, Lady Elayne, quer dizer, ela me deu essa carta para trazer. — Ele pensou que Morgase tinha olhado para ele quando o ouviu dizer que vinha do norte de Baerlon, mas ele sabia que lá havia uma aldeia chamada Comfrey, recordava-se de ouvir alguém mencionar.

Gaebril assentiu, mas disse:

— Você sabe aonde Elayne estava indo, garoto? Ou a serviço de quê? Fale a verdade, e não terá nada a temer. Minta, e será levado a interrogatório.

Mat não precisou fingir a expressão de preocupação.

— Milorde, essa foi a única vez que vi a Filha-herdeira. Ela me entregou a carta… e um marco de ouro! E me mandou trazer a carta para a Rainha. Não sei mais do seu conteúdo do que ouvi aqui.

Gaebril pareceu ponderar, o rosto escuro não dava sinal de que acreditava ou não em qualquer palavra.

— Não, Gaebril — começou Morgase, de repente. — Muitos já foram levados a interrogatório. Posso ver a necessidade, pois você me alertou, mas não por isso. Não um garoto que só trouxe uma carta cujo conteúdo ele nem conhece.

— Como a minha Rainha mandar, assim deve ser — respondeu o homem negro. O tom era respeitável, mas ele tocou o rosto dela de uma forma que a fez ruborizar e abrir os lábios, como se esperasse um beijo.

Morgase deu uma respiração vacilante.

— Diga, Thom Grinwell, minha filha parecia bem quando você a viu?

— Parecia, minha Rainha. Ela sorriu, gargalhou e revelou a língua insolente, quer dizer…

Morgase deu uma risada suave pela expressão que ele fez.

— Não tenha medo, rapaz. Elayne tem mesmo a língua insolente, e até demais, para o próprio bem. Fico feliz por ela estar bem. — Aqueles olhos azuis o analisavam profundamente. — Um jovem que deixa a própria aldeia costuma encontrar dificuldade para retornar. Acho que você vai viajar para muito longe antes de ver Comfrey outra vez. Talvez até retorne a Tar Valon. Se isso acontecer e se você vir minha filha, diga a ela que costumamos nos arrepender do que é dito em momentos de raiva. Não vou tirá-la da Torre Branca antes da hora. Diga a ela que penso bastante no período que passei lá e que sinto falta das conversas tranquilas com Sheriam, em seu gabinete. Conte a ela que eu disse isso, Thom Grinwell.

Mat deu de ombros, constrangido.

— Sim, minha Rainha. Mas… hã… eu não pretendo voltar a Tar Valon. Uma vez na vida de um homem já é mais do que suficiente. Meu pai precisa da minha ajuda para tocar a fazenda. Minhas irmãs vão ficar presas com a ordenha, se eu não voltar.

Gaebril soltou uma risada profunda, revelando seu divertimento.

— Então está ansioso para ordenhar vacas, garoto? Talvez deva ver um pouco do mundo, antes que tudo mude. Aqui! — Ele exibiu uma bolsa e a jogou. Ao apanhá-la, Mat sentiu as moedas sob o couro lavado. — Se Elayne pôde dar a você um marco de ouro para transportar essa carta, eu darei dez por trazê-la até aqui a salvo. Veja o mundo antes de voltar para as suas vacas.

— Sim, milorde. — Mat ergueu a bolsa e conseguiu abrir um sorriso fraco.

O homem negro, no entanto, já o dispensara com um gesto e se virara para Morgase com as mãos nos quadris.

— Acho que chegou a hora, Morgase, de lançar aquela pústula na fronteira de Andor. Por seu casamento com Taringail Damodred, você tem direito a reivindicar o Trono do Sol. A Guarda da Rainha pode tornar essa reivindicação tão forte quanto qualquer outra. Talvez eu até possa ajudá-los com algumas pequenas coisas. Escute.

Tallanvor tocou o braço de Mat, e os dois se afastaram, curvando-se em mesuras. Mat achou que ninguém percebera. Gaebril ainda falava, e cada lorde e lady parecia prestar muita atenção às palavras dele. Morgase escutava com a testa franzida, mas assentia tanto quanto todos os outros.

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