A Roda do Tempo gira, e as Eras vêm e vão, deixando memórias que se transformam em lendas. As lendas desvanecem em mitos, e até o mito já está há muito esquecido quando a Era que lhes deu origem retorna. Em uma Era, chamada por alguns de a Terceira Era, uma Era ainda por vir, uma Era há muito passada, um vento se ergueu nas Montanhas da Névoa. O vento não era o início. O girar da Roda do Tempo não tem inícios nem fins. Mas era um início.
O vento varria extensos vales, vales sombrios onde a bruma da manhã pairava, suspensa no ar, uns repletos de árvores perenes, outros nus, onde capim e flores silvestres em breve brotariam. Silvava por ruínas semienterradas e monumentos destruídos, todos tão esquecidos quanto aqueles que os haviam erguido. Gemia nas passagens, fissuras abertas pelo tempo entre picos cobertos de neve que jamais derretia. Nuvens espessas agarravam-se ao cume das montanhas, fazendo a neve e o nevoeiro branco se tornarem um.
Nas planícies, o inverno estava terminando ou prestes a terminar, embora ali nas alturas ainda resistisse, forrando as encostas com largos retalhos brancos. Apenas as árvores perenes mantinham as folhas, todas as outras permaneciam nuas, marrons e cinzentas, junto ao solo pedregoso ainda congelado. Não havia som além das rajadas cortantes de vento sobre a neve e as pedras. A terra parecia à espera. À espera de uma explosão.
Sentado em seu cavalo, bem no meio de uma mata de pinheiros e folhas-de-couro, Perrin Aybara tremia e apertava o manto forrado de pele ainda mais no corpo, o máximo que podia com um arco longo em uma das mãos e um enorme machado em forma de meia-lua no cinto. Era um bom machado de aço frio. Fora Perrin quem bombeara o fole no dia em que mestre Luhhan o fabricara. O vento balançava o manto, puxando o capuz para trás dos cachos desgrenhados, penetrando pelo casaco. Perrin agitava os dedos dos pés dentro das botas para se aquecer e se remexia sobre a sela de cepilho alto, mas de fato não prestava atenção ao frio. Observando os cinco companheiros, ele se perguntou se também sentiam aquilo. Não a espera por que haviam sido enviados até lá, mas algo mais.
Galope, seu cavalo, se mexia e sacudia a cabeça. Ele nomeara o garanhão castanho por conta das pernas ágeis, mas no momento Galope parecia sentir a irritação e impaciência do cavaleiro. Estou cansado de toda essa espera, de ficar aqui sentado enquanto Moiraine nos mantém sob rédeas curtas. Que a Luz queime aquela Aes Sedai! Quando isso vai terminar?
Sem pensar, farejou o vento. O cheiro de cavalo predominava no ar, junto com o de homens e de suor masculino. Um coelho passara por aquelas árvores não fazia muito tempo, correndo, impulsionado pelo medo, mas a raposa em seu encalço não o matara ali. Ele percebeu o que estava fazendo e parou. Achei que meu nariz ficaria entupido com todo esse vento. Quase desejou que de fato estivesse. E eu não deixaria Moiraine fazer nada a respeito.
Estava desconfiado de algo. Recusava-se a pensar no assunto. Não mencionou a sensação aos companheiros.
Os outros cinco homens permaneciam sentados em suas selas, arcos curtos a postos, os olhos esquadrinhando tanto o céu quanto as encostas com árvores escassas abaixo. Pareciam imperturbáveis pelo vento que agitava os mantos como estandartes. O cabo de uma espada de duas mãos aparecia por uma abertura no manto sobre o ombro de cada um dos homens. A visão das cabeças desnudas, completamente raspadas, a não ser pelos rabos de cavalo, fez Perrin sentir ainda mais frio. Para eles, aquele tempo já era plena primavera. Tiveram toda a brandura removida a marteladas, em uma forja mais dura que ele jamais vira. Eram shienaranos, vindos das Terras da Fronteira com a Grande Praga, onde ataques de Trollocs poderiam ocorrer bem no meio da noite, onde até um mercador ou fazendeiro poderia ter que pegar em arcos ou espadas. E aqueles homens não eram fazendeiros, mas soldados, quase desde o nascimento.
Às vezes, ele refletia sobre a forma como aqueles homens respondiam a ele e seguiam sua liderança. Era como se o considerassem detentor de algum direito especial, algum conhecimento inacessível a eles. Ou talvez apenas sejam meus amigos, pensou, com sarcasmo. Não eram altos como ele, nem tão grandes, pois os anos como aprendiz de ferreiro lhe renderam braços e ombros com o dobro do tamanho da maioria, mas Perrin passara a se barbear todos os dias para acabar com as piadas acerca de sua pouca idade. Eram amistosas, mas ainda assim eram piadas. Não queria que começassem outra vez apenas por ele mencionar uma desconfiança.
Com um susto, Perrin lembrou-se de que também deveria estar atento. Conferindo a flecha encaixada no arco longo, observou o vale que corria pelo oeste e se estendia a distância, o chão entremeado com faixas amplas de neve, resquícios da estação fria. A maioria das árvores dispersas lá embaixo ainda tentavam agarrar o céu com os galhos rígidos do inverno, mas havia bastante árvores perenes, pinheiros, folhas-de-couro, abetos, azevinhos e até um pouco de madeira-verde nas encostas do vale e na parte baixa para dar cobertura a qualquer um que soubesse tirar proveito delas. Porém, ninguém iria até ali sem um propósito específico. As minas eram todas muito distantes ao sul, e mais distantes ainda ao norte. A maioria das pessoas acreditava que as Montanhas da Névoa traziam mau agouro, e poucos adentravam-nas se pudessem evitar. Os olhos de Perrin brilhavam como ouro polido.
A desconfiança cresceu dentro dele. Não!
Ele era capaz de deixá-la de lado, mas a sensação não o abandonava. Como se cambaleasse à beira de um precipício. Como se tudo o mais cambaleasse. Ele se perguntou se haveria algo desagradável nas montanhas ao redor. Talvez houvesse uma forma de saber. Em lugares como aquele, onde os homens raramente pisavam, quase sempre havia lobos. Ele parou antes que o pensamento se formasse por completo em sua mente. É melhor continuar imaginando. Melhor do que isso. Eles não eram muitos em número, mas tinham batedores. Se houvesse algo por perto, os outros encontrariam. Esta é a minha forja. Cuidarei dela e deixarei que cuidem das deles.
Ele enxergava mais longe que os outros, por isso foi o primeiro a avistar o cavaleiro que vinha da direção de Tarabon. Mesmo a seus olhos, a criatura a cavalo era somente um pontinho de cores brilhantes, percorrendo um caminho sinuoso em meio as árvores a distância, ora à vista, ora escondido. O cavalo é malhado, pensou. E já não era sem tempo! Abriu a boca para anunciar a aproximação: era uma mulher, como todos os outros cavaleiros haviam sido. Então Masema resmungou de súbito, como um xingamento:
— Corvo!
Perrin olhou rapidamente para cima. Um pássaro grande e negro sobrevoava as árvores, a menos de cem passos de distância. Sua presa devia ser alguma carniça abatida na neve ou um animal menor, mas Perrin não quis correr o risco. O pássaro não pareceu tê-los visto, mas o cavaleiro que se aproximava logo estaria ao alcance de seus olhos. Assim que avistou o corvo, elevou o arco, ergueu a flecha, puxando-a até o rosto, a bochecha, a orelha. Então a soltou, em movimentos suaves. Tinha leve consciência do som das cordas dos arcos atrás de si, mas sua atenção estava voltada para o pássaro negro.
De súbito, o corvo rodopiou ao encontrar a flecha de Perrin, e uma chuva de penas negras rolou do céu, enquanto duas outras flechas passavam como raios pelo ponto onde ele estivera. Com os arcos meio erguidos, os outros shienaranos varriam o céu, tentando ver se o animal estava acompanhado.
— Os corvos precisam reportar o que viram — perguntou-se Perrin, baixinho — ou… ele… vê o que eles veem? — Não tinha intenção de que alguém o escutasse, mas Ragan, o shienarano mais jovem, menos de dez anos mais velho que ele, respondeu, encaixando outro arco na flecha curta.
— Precisam reportar. Geralmente a um Meio-homem. — Nas Terras da Fronteira, dava-se uma recompensa pelos corvos. Ninguém por lá jamais ousou presumir que qualquer um deles fosse apenas um pássaro. — Luz, se o Veneno dos Corações visse o que os corvos veem, estaríamos todos mortos antes de chegarmos às montanhas. — A voz de Ragan era calma. Aquele era um assunto corriqueiro para um soldado shienarano.
Perrin estremeceu, mas não de frio, e algo rosnou nas profundezas de sua mente, um desafio até a morte. Veneno dos Corações. Nomes diferentes em terras diferentes, como Veneno das Almas e Presa-do-coração, Senhor do Túmulo e Senhor do Crepúsculo, mas era chamado de Pai das Mentiras e Tenebroso em todas elas, tudo para evitar pronunciar o nome verdadeiro e atrair sua atenção. O Tenebroso costumava usar corvos e gralhas-pretas. Nas cidades, usava ratos. Perrin tirou outra flecha da aljava em seu quadril, pendurada para equilibrar o peso do machado do outro lado.
— Isso deve ter o tamanho de um porrete — disse Ragan, admirado, olhando o arco de Perrin —, mas atira bem. Não quero nem ver o que faria a um homem de armadura. — Os shienaranos estavam usando apenas uma malha leve sob os casacos simples, mas em geral lutavam de armadura, tanto homens quanto cavalos.
— Muito comprido para usar cavalgando — comentou Masema, com uma expressão debochada. A cicatriz triangular em seu rosto escuro tornava o sorriso de desprezo ainda mais contorcido. — Uma boa placa peitoral detém até uma pilha de flechas, a não ser a curta distância. Além disso, se o primeiro lançamento falhar, você pode acabar sendo estripado pelo sujeito em quem tentou atirar.
— É justamente isso, Masema. — Ragan relaxou um pouco quando notou que o céu continuava vazio. O corvo devia estar sozinho. — Com esse arco de Dois Rios, aposto que não é preciso ficar tão perto.
Masema abriu a boca.
— Mas que droga! Parem de falatório, suas duas lavadeiras! — ralhou Uno. Com uma grande cicatriz na parte inferior da face esquerda e aquele olho faltando, ele tinha as feições duras mesmo para um shienarano. Adquirira um tapa-olho pintado no caminho para as montanhas, durante o outono. O olho carrancudo estampado em vermelho vivo não tornava mais fácil encará-lo. — Se vocês dois chamejados não conseguem prestar atenção no que devem fazer, vou ver se um turno de guarda extra hoje à noite dá uma acalmada nos dois. — Ragan e Masema encolheram-se sob o olhar do homem, que lhes lançou uma última careta de censura e virou-se para Perrin, com uma expressão mais suave. — Já está vendo alguma coisa? — Seu tom era um pouco mais áspero do que talvez usasse com um comandante acima dele por ordem do Rei de Shienar ou do Senhor de Fal Dara, mas ainda assim havia algo nele que indicava que estava pronto para fazer o que Perrin sugerisse.
Os shienaranos sabiam que ele podia enxergar muito longe, mas, assim como faziam com a cor de seus olhos, pareciam encarar aquilo com naturalidade. Não sabiam de nada, nem da metade, mas o aceitavam como era. Como pensavam que era. Pareciam aceitar tudo e todos. O mundo estava mudando, diziam. Tudo girava nas rodas da sorte e da transformação. Se um homem tinha os olhos de uma cor jamais vista pelos olhos dos outros homens, que lhes importava naquele momento?
— Ela está vindo — disse Perrin. — Vai aparecer agora. Ali. — Ele apontou, e Uno esticou-se para a frente, o olho verdadeiro semicerrado, até que finalmente assentiu, hesitante.
— Há algum troço se mexendo lá embaixo.
Alguns dos outros assentiram e murmuraram também. Uno cravou o olhar neles, que voltaram a examinar o céu e as montanhas.
De súbito, Perrin percebeu o que significavam as cores brilhantes nas roupas da cavaleira a distância. Uma saia de um verde vivo aparecia por detrás de um manto vermelho.
— Ela é do Povo Errante — disse, atônito. Não sabia de ninguém mais que se vestia com cores tão brilhantes e combinações tão estranhas, não por escolha própria.
As mulheres que eles haviam encontrado e guiado para o interior das montanhas diversas vezes eram de todos os tipos: uma pedinte maltrapilha enfrentando uma nevasca a pé, uma mercadora que levava sozinha uma fileira de cavalos de carga carregados, uma lady vestida em seda e finas peles, montada em um palafrém com rédeas de borlas vermelhas e sela trabalhada em ouro. A pedinte partiu com uma bolsa cheia de prata, mais do que Perrin pensou que poderiam dar, mas a senhora lhes deixou uma bolsa de ouro ainda mais gorda. Mulheres completamente diferentes, todas sozinhas, vindas de Tarabon, Ghealdan e até de Amadícia. Mas ele jamais imaginara encontrar uma Tuatha’an.
— Uma chamejada de uma latoeira? — exclamou Uno.
Os outros ecoaram sua surpresa.
O rabo de cavalo de Ragan balançou, acompanhando a cabeça.
— Uma latoeira não se meteria com isso. Ou ela não é latoeira ou não é quem devemos encontrar.
— Latoeiros — grunhiu Masema. — Covardes inúteis.
Uno espremeu o único olho até parecer o furo de ponteira de uma bigorna. Ao lado do outro, o vermelho pintado no tapa-olho, compunha a expressão cruel.
— Covardes, Masema? — retrucou, muito calmo. — Se você fosse mulher, teria os colhões de cavalgar até aqui, sozinha e sem uma droga de uma arma? — Não restava dúvida de que ela estaria desarmada, se fosse Tuatha’an. Masema manteve a boca fechada, mas a cicatriz em seu rosto continuou retesada e pálida.
— Que me queime se eu fizesse isso — disse Ragan. — E que me queime se você fizesse uma coisa dessas também, Masema.
O outro shienarano ajeitou o manto e examinou o céu atentamente.
Uno bufou com desdém.
— Queira a Luz que aquele maldito comedor de carniça estivesse sozinho — murmurou.
Lentamente, a égua felpuda marrom e branca veio serpenteando mais para perto, abrindo caminho pelo chão aberto entre extensos montes de neve. A mulher de roupas alegres parou brevemente para observar algo no chão, depois ajeitou o capuz do manto na cabeça e afundou os calcanhares no cavalo, seguindo adiante a passos lentos. O corvo, pensou Perrin. Pare de olhar o pássaro e ande logo, mulher. Talvez você traga as notícias que enfim vão nos tirar daqui. Isso se Moiraine tiver intenção de que partamos antes da primavera. Que a queime! Por um instante ele não soube dizer se pensava na Aes Sedai ou na latoeira, que parecia não ter pressa alguma.
Se seguisse reto por onde ia, a mulher entraria no outro lado da moita, a uma distância de cerca de trinta passos. Com os olhos fixos no solo onde o cavalo malhado pisava, ela não dava sinal de vê-los por entre as árvores.
Perrin cutucou os flancos do cavalo com os calcanhares, e o garanhão deu um salto para a frente, espalhando neve com os cascos. Atrás dele, Uno deu o comando, baixinho:
— Adiante!
Galope estava na metade do caminho quando a mulher pareceu reparar neles e parou a égua com um tranco, assustada. Ela os observou formarem um círculo ao seu redor. O bordado azul de doer os olhos, em um ponto chamado labirinto taireno, tornava seu manto vermelho ainda mais espalhafatoso. A mulher não era jovem, os cabelos descobertos pelo capuz revelavam um tufo grisalho, mas seu rosto exibia poucas linhas além do franzido de desaprovação que lançou diante das armas do grupo. Se ficou alarmada por encontrar homens armados no coração de montanhas desoladas, no entanto, não deu sinal. Suas mãos repousavam tranquilas sobre o cepilho alto da sela gasta, mas bem conservada. E a mulher não cheirava a medo.
Pare com isso!, Perrin disse a si mesmo. Preparou um tom de voz suave, para não assustá-la.
— Meu nome é Perrin, boa senhora. Se precisar de ajuda, farei o que puder. Se não, vá com a Luz. Mas, a não ser que os Tuatha’an tenham alterado suas rotas, a senhora está longe dos carroções.
Ela os examinou por um instante antes de falar. Havia certa amabilidade em seus olhos escuros, o que não era de se surpreender em alguém do Povo Errante.
— Procuro uma… mulher.
A pausa foi pequena, mas aconteceu. Ela não buscava qualquer mulher, mas uma Aes Sedai.
— Essa mulher tem nome, boa senhora? — perguntou Perrin. Ele fizera a mesma pergunta muitas vezes nos últimos dois meses para que precisasse de resposta, mas era melhor ter certeza.
— O nome dela é… às vezes, o nome dela é Moiraine. Eu me chamo Leya.
Perrin assentiu.
— Nós a levaremos até ela, Senhora Leya. Temos uma fogueira e, com sorte, algo quente para comer. — Porém, ele não ergueu as rédeas de imediato. — Como foi que nos encontrou? — Também fizera aquela pergunta antes, todas as vezes que Moiraine o mandara aguardar, em um local designado por ela, alguma mulher que sabia que chegaria. A resposta seria a mesma de sempre, mas ele precisava perguntar.
Leya deu de ombros e respondeu, hesitante.
— Eu… sabia que, se viesse para cá, alguém me encontraria e me levaria até ela. Eu… só… sabia. Trago notícias.
Perrin não perguntou que notícias eram. As mulheres revelavam a informação que traziam apenas para Moiraine.
E a Aes Sedai nos conta o que escolhe contar, pensou. Aes Sedai nunca mentiam, mas todos sabiam que a verdade que uma delas contava nem sempre era a verdade que você pensava ouvir. Agora já é muito tarde para ter receio disso. Não é mesmo?
— Por aqui, Senhora Leya — disse, apontando para o alto da montanha. Os shienaranos, com Uno na liderança, começaram a subir em fila indiana atrás de Perrin e Leya. O homens das Terras da Fronteira ainda analisavam o céu e a terra, e os dois últimos prestavam muita atenção à retaguarda.
Eles andaram por algum tempo em total silêncio, a não ser pelos sons dos cascos dos cavalos, que às vezes esmagavam pedaços de gelo, ou pisoteavam pedrinhas nos trechos de terra batida. De vez em quando, Leya lançava olhares a Perrin, seu arco, machado e rosto, mas nada dizia. Ele mudava de posição, constrangido com o exame minucioso, e evitava olhá-la. Sempre tentava fazer com que os estranhos não tivessem a menor chance de notar seus olhos.
— Fiquei surpreso em ver alguém do Povo Errante, presumindo que a senhora seja — disse, por fim.
— É possível opor-se ao mal sem praticar a violência. — A voz mostrava a simplicidade de alguém que anunciava uma verdade óbvia.
Perrin grunhiu com amargura e murmurou uma desculpa no mesmo instante.
— Deve ser isso mesmo, Senhora Leya.
— A violência fere tanto a vítima quanto quem a pratica — prosseguiu Leya, com a voz calma. — Por isso fugimos dos que nos fazem mal. Por nossa segurança, sim, mas também para protegê-los do mal que eles mesmos praticam. Se praticarmos a violência para nos opor ao mal, em breve não seremos diferentes daquilo que desejamos combater. É com a força de nossa crença que combatemos a Sombra.
Perrin não pôde evitar uma bufada de desdém.
— Senhora, espero que jamais tenha que enfrentar Trollocs com a força de sua crença. A força das espadas deles iria dilacerá-la bem aí, onde está.
— É melhor morrer do que… — começou ela, mas a raiva fez Perrin interrompê-la. Raiva de que ela de fato preferisse morrer a machucar alguém, mesmo que vil.
— Se a senhora correr, eles vão caçá-la, matá-la e comer seu cadáver. Ou talvez nem esperem até virar um cadáver. De todo modo, a senhora estará morta, e o mal terá vencido. E existem homens tão cruéis quanto Trollocs. Amigos das Trevas e outros. Mais do que eu acreditaria, alguns anos atrás. Deixe só os Mantos-brancos decidirem que vocês, latoeiros, não caminham na Luz e veja quantos a força da sua crença é capaz de salvar.
A mulher lançou a Perrin um olhar penetrante.
— E nem assim você está satisfeito com suas armas.
Como é que ela sabia disso? Ele sacudiu a cabeça, irritado, balançando os cabelos bagunçados.
— O Criador fez o mundo — resmungou —, e não eu. Tenho que viver da melhor forma possível no mundo, do jeito que ele é.
— Tão triste para alguém tão jovem — disse a mulher, com delicadeza. — Por que tanta tristeza?
— Eu deveria estar de vigia, não de conversa — respondeu Perrin, secamente. — A senhora não vai me agradecer se eu errar o caminho. — Fincou os calcanhares em Galope, que avançou o suficiente para cortar qualquer conversa que viesse a surgir, mas sentia o olhar da mulher. Triste? Não estou triste, só… Luz, eu não sei. Tem que haver uma saída melhor, apenas isso. A desconfiança brotou outra vez em seus pensamentos, mas, concentrado em ignorar o olhar de Leya atrás de si, ele também ignorou a sensação incômoda.
O grupo subiu a colina e desceu até um vale com uma floresta e um córrego largo cuja água fria batia nas patas dos cavalos. A distância, de um dos lados da montanha, erguiam-se duas formas esculpidas. Perrin imaginava que deviam ser as formas de um homem e de uma mulher, embora o vento e a chuva as tivessem deixado indecifráveis havia muito. Nem Moiraine tinha certeza do que eram ou de quando o granito fora esculpido.
Peixes-cobrelos e pequenas trutas disparavam em fuga dos cascos dos cavalos, lampejos prateados a saltitar na água límpida. Um cervo que pastava ergueu a cabeça, hesitou ao ver o grupo saindo do riacho e correu para o meio das árvores, e um grande gato-da-montanha, cinza com listras e pontos pretos, levantou-se do chão, frustrado por ter que dar fim à tocaia. O animal observou os cavalos por um instante e, com um movimento do rabo, sumiu atrás do cervo. No entanto, ainda se via pouca vida nas montanhas. Apenas um punhado de pássaros empoleirados em galhos ou bicando o chão onde a neve havia derretido. Outros voltariam a voar dentro de algumas semanas, mas ainda não. Eles não avistaram mais corvos.
Era fim de tarde quando Perrin os conduziu por entre duas montanhas muito íngremes, com picos cobertos de neve e envoltos em nuvens, e contornou um riacho menor que corria sobre pedras cinza, formando uma série de cachoeiras diminutas. Um pássaro cantou no alto das árvores, e outro respondeu mais adiante.
Perrin sorriu. Canto de campainha-azul. Um pássaro das Terras da Fronteira. Ninguém trilhava aquele caminho sem ser visto. Ele esfregou o nariz, sem olhar para a árvore de onde o primeiro “pássaro” chamara.
O caminho se estreitava enquanto o grupo avançava em meio a folhas-de-couro raquíticas e alguns poucos carvalhos retorcidos. O terreno plano ao lado do córrego reduziu-se a ponto de só permitir a passagem de um homem a cavalo por vez, e o próprio córrego já comportava apenas a travessia de um homem alto.
Perrin ouviu Leya falando sozinha atrás de si. Quando olhou por cima do ombro, viu-a lançando olhares preocupados para as escarpas dos dois lados da montanha. Árvores esparsas elevavam-se perigosamente acima deles. Parecia impossível não caírem. Os shienaranos avançavam com facilidade, enfim começando a relaxar.
De súbito, uma depressão oval abriu-se entre as montanhas diante deles, com as laterais íngremes, mas não tanto quanto a passagem estreita. O córrego nascia de uma pequena fonte no lado oposto. O olhar aguçado de Perrin avistou um homem com um rabo de cavalo shienarano no alto dos galhos de um carvalho à esquerda. Se tivesse imitado o canto de uma gralha-de-asa-vermelha, em vez de um campainha-azul, não estaria sozinho, e a entrada do grupo não teria sido tão fácil. Alguns poucos homens poderiam proteger aquela passagem contra um exército. Se um exército viesse, alguns poucos teriam que ser suficientes.
Por entre as árvores que circundavam o vale espalhavam-se cabanas não visíveis à primeira vista, de forma que o grupo reunido em torno das fogueiras na base da depressão oval parecia estar desprotegido. Havia menos pessoas à vista do que cabanas. E outras poucas escondidas, Perrin sabia. A maioria virou-se ao ouvir o som de cavalos, e algumas acenaram. O vale cheirava a homens e cavalos, a comida cozida e madeira queimada. Um grande estandarte branco pendia frouxamente de um poste alto próximo a eles. Um vulto com no mínimo a metade da altura a mais que todos os outros, sentado em um tronco, lia, absorto, um livro que parecia pequeno nas mãos gigantescas. Ele não desviou a atenção da leitura, nem mesmo quando a única pessoa que não tinha um rabo de cavalo gritou.
— Você a encontrou, foi? Pensei que passaria a noite fora dessa vez. — Era uma voz feminina, mas a mulher usava calças e casaco masculinos e tinha o cabelo bem curto.
Uma rajada de vento remoinhou para dentro do vale, agitando mantos e balançando o estandarte. Por um instante, a criatura representada pareceu cavalgar o vento. Uma serpente de quatro patas com escamas douradas e escarlates, a juba dourada como a de um leão e cinco garras douradas nas pontas de cada uma das patas. Um estandarte lendário. Um estandarte que a maioria dos homens não reconheceria se visse, mas cujo nome era temido.
Perrin acenou com uma das mãos, conduzindo todos para o interior do vale.
— Bem-vinda ao acampamento do Dragão Renascido, Leya.