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A mulher que entrou, toda vestida em renda branca e prata, fechou a porta atrás de si e recostou-se para examiná-lo com os olhos mais negros que Mat já vira. Era tão bonita que ele quase se esqueceu de respirar, os cabelos negros como a noite presos por uma fina faixa de lã prateada. Parecia tão graciosa parada quanto qualquer outra mulher dançando. Ele chegou a pensar que a conhecia, mas descartou a ideia sem pestanejar. Homem nenhum esqueceria uma mulher como aquela.

— Ficará mais apresentável, suponho, depois de recuperar o peso — disse —, mas, por ora, talvez possa vestir algo.

Por um instante, Mat continuou a encará-la. Então, de repente, percebeu que estava nu. Enrubescido, cambaleou até a cama, enrolou o cobertor no corpo como um manto e desabou, sentando no canto do colchão.

— Me desculpe por… quer dizer… hã… eu não esperava… eu… — Ele respirou fundo. — Peço desculpas por me encontrar desse jeito.

Ainda sentia as bochechas quentes. Por um instante, desejou que Rand, independentemente do que tivesse se tornado, ou até mesmo Perrin, estivessem ali para ajudá-lo. Os dois sempre se entenderam bem com as mulheres. Até as garotas que sabiam que Rand era quase prometido a Egwene olhavam para ele, e todas pareciam considerar gentil e atraente o jeito lento de Perrin. Por mais que se esforçasse, ele sempre conseguia fazer papel de bobo na frente das garotas. E acabava de repetir o feito.

— Eu não teria vindo visitá-lo desse jeito, Mat, mas estava aqui na… Torre Branca… — Ela sorriu, como se achasse o nome engraçado. — …Por outro motivo, e queria ver todos vocês. — O rosto de Mat enrubesceu outra vez, e ele apertou o cobertor em torno de si, mas ela não parecia estar de provocação. Mais graciosa que um cisne, ela deslizou até a mesa. — Você está com fome. Isso já era esperado, dada a forma como elas fazem as coisas. Coma tudo o que lhe derem. Ficará surpreso com a rapidez com que vai recuperar o peso e a resistência.

— Desculpe — disse Mat, tímido —, mas eu a conheço? Não quero ofender, mas você me é… familiar.

Ela o encarou até ele começar a se remexer, constrangido. Uma mulher como aquela esperava ser lembrada.

— Talvez você já tenha me visto — respondeu ela, por fim. — Em algum lugar. Meu nome é Selene. — Ela inclinou a cabeça de leve, parecia esperar que ele reconhecesse o nome.

O nome parecia querer despertar uma lembrança. Ele achava que já o ouvira antes, mas não sabia dizer quando ou onde.

— Você é Aes Sedai, Selene?

— Não. — A palavra saiu suave, mas com uma ênfase surpreendente.

Pela primeira vez, ele a examinou, agora em condições de enxergar além de sua beleza. Ela tinha quase a altura dele, era esguia e, ele suspeitou pelos movimentos, forte. Não soube dizer qual seria sua idade, talvez fosse um ano ou dois mais velha que ele, ou quem sabe dez, mas tinha o rosto liso. O colar de pedras brancas e prata trançada combinava com o cinturão, mas ela não usava o anel da Grande Serpente. A ausência não deveria tê-lo surpreendido, nenhuma Aes Sedai responderia que não era Aes Sedai, mas surpreendeu. Ela tinha certo ar, uma autoconfiança, uma segurança de que seu próprio poder fazia frente ao de qualquer rainha, e algo a mais que o fazia pensar em Aes Sedai.

— Você não é uma noviça, é? — Ele ouvira que as noviças vestiam branco, mas não acreditava que ela fosse uma. Ela faz Elayne parecer desprezível. Elayne. Outro nome que vagava em sua cabeça.

— Tampouco isso — respondeu Selene, contorcendo a boca. — Digamos que sou alguém cujos interesses coincidem com os seus. Essas… Aes Sedai querem usá-lo, mas no geral acho que você vai gostar. E aceitar. Você não precisa de convencimento para perseguir a glória.

— Me usar? — Ele lembrou que já havia pensado isso, mas a respeito de Rand, que as Aes Sedai pretendiam usar Rand, não ele. Não tenho serventia para elas. Luz, não posso ter! — O que está querendo dizer? Não sou importante. Não sirvo para ninguém além de mim mesmo. Que tipo de glória?

— Sabia que isso o atrairia. Você, acima de todos.

O sorriso da mulher deixou Mat tonto. Ele esfregou os cabelos com uma das mãos. O cobertor deslizou, e ele o recuperou depressa, antes que caísse.

— Escute, elas não têm interesse em mim. — E quanto a eu ter soado a Trombeta? — Sou só um fazendeiro. — Talvez elas pensem que estou atrelado a Rand de alguma forma. Não, Verin disse… Ele não tinha certeza do que Verin dissera, nem Moiraine, mas achava que a maioria das Aes Sedai não sabia absolutamente nada sobre Rand. Queria manter as coisas desse jeito, pelo menos até que já estivesse bem longe. — Um simples sujeito do interior. Só quero conhecer um pouco mais do mundo e voltar para a fazenda do meu pai. — O que ela quis dizer com glória?

Selene sacudiu a cabeça, como se tivesse ouvido os pensamentos dele.

— Você é mais importante do que sabe, por enquanto. Sem dúvida mais importante do que essas tais Aes Sedai sabem. Você pode obter glória, se souber o suficiente para não confiar nelas.

— Você sem dúvida fala como se não confiasse nelas. — Tais? Um pensamento lhe veio à mente, mas ele não conseguiu dizê-lo em voz alta. — Você é…? Você é…? — Não era o tipo de coisa da qual simplesmente se acusa alguém.

— Uma Amiga das Trevas? — completou Selene, com ar jocoso. Soava alegre, não irritada. Soava desdenhosa. — Um desses seguidores patéticos de Ba’alzamon que pensam que ele lhes dará poder e imortalidade? Não sigo ninguém. Existe um homem ao lado de quem eu poderia caminhar, mas não sigo ninguém.

Mat riu, nervoso.

— É claro que não. — Sangue e cinzas, uma Amiga das Trevas não se denominaria como tal. Ela deve ter uma faca envenenada, se for. Ele teve a vaga lembrança de uma mulher vestida em trajes nobres, uma Amiga das Trevas com uma adaga mortal na mão magra. — Eu não ia dizer nada disso. Você parece… parece uma rainha. Era isso que eu ia dizer. É uma Lady?

— Mat, Mat, precisa aprender a confiar em mim. Ah, eu também vou usá-lo. Sua natureza é desconfiada demais para eu tentar negar, ainda mais depois de ter carregado aquela adaga. Mas ser usado por mim lhe trará riqueza, poder e glória. Não vou obrigá-lo. Sempre acreditei que os homens se saem melhor quando convencidos, em vez de forçados. Essas Aes Sedai sequer imaginam como você é importante, e ele vai tentar dissuadi-lo ou matá-lo, mas eu posso dar o que você deseja.

— Ele? — disse Mat, depressa. — Matar? Luz, é de Rand que elas estão atrás, não de mim. Como é que ela sabe da adaga? Imagino que a Torre inteira saiba. — Quem é que quer me matar?

Selene contraiu a boca, como se tivesse falado demais.

— Você sabe o que quer, Mat, e eu sei disso tanto quanto você. Deve escolher em quem vai confiar para obter tudo isso. Eu admito que vou usá-lo. Essas Aes Sedai jamais o farão. Eu o conduzirei à riqueza e à glória. Elas o manterão acorrentado até morrer.

— Você fala bastante — observou Mat —, mas como é que vou saber se o que diz é verdade? Como vou saber se posso confiar mais em você do que nelas?

— Escutando o que dizem e o que não dizem. Será que elas vão lhe contar que seu pai veio até Tar Valon?

— Meu pai esteve aqui?

— Um homem chamado Abell Cauthon, e outro chamado Tam al’Thor. Atormentaram todos até conseguirem ser ouvidos, pelo que soube, querendo saber onde estavam você e seus amigos. Siuan Sanche os mandou de volta para Dois Rios de mãos vazias, sem sequer saberem se vocês estavam vivos. Será que elas contarão isso sem que você pergunte? Talvez nem se perguntar, pois você pode tentar fugir de volta para casa.

— Meu pai pensa que estou morto? — inquiriu Mat, devagar.

— Ele pode ser informado de que está vivo. Posso conseguir isso. Pense bem em quem vai confiar, Mat Cauthon. Será que mesmo agora elas lhe contarão que Rand al’Thor está tentando fugir e que há uma tal de Moiraine no encalço dele? Será que lhe contarão que a Ajah Negra infesta a preciosa Torre Branca? Será que contarão ao menos como pretendem usar você?

— Rand está tentando fugir? Mas… — Talvez ela soubesse que Rand se declarou o Dragão Renascido, talvez não, mas ele não diria nada. A Ajah Negra! Sangue e malditas cinzas! — Quem é você, Selene? Se não é Aes Sedai, o que é?

O sorriso dela guardava segredos.

— Apenas lembre-se de que há outra escolha. Você não precisa ser uma marionete da Torre Branca ou uma presa para os Amigos das Trevas de Ba’alzamon. O mundo é mais complexo do que imagina. Faça o que essas Aes Sedai desejam agora, mas lembre-se de que tem outras escolhas. Está bem?

— Creio que não tenho muita escolha — respondeu, sombrio. — Então acho que está bem.

O olhar de Selene se aguçou. A cordialidade deslizou de sua voz como uma cobra trocando a pele.

— Acha? Não vim até aqui e falei com você desse jeito para você achar, Matrim Cauthon. — Ela estendeu a mão magra.

A mão estava vazia, e ela permanecia de pé no meio do quarto, mas ele recuou como se ela estivesse bem em cima dele com uma adaga. Em verdade, não sabia por quê, exceto por uma certa ameaça nos olhos da mulher, algo que ele tinha certeza de que era real. Sentiu a pele começar a formigar, e a dor de cabeça voltou.

De repente, o formigamento e a dor desapareceram juntos, e Selene virou a cabeça como se escutasse algo atrás das paredes. Sua testa se franziu de leve, e ela baixou a mão. Seu rosto voltou ao normal.

— Conversaremos outra vez, Mat. Tenho muito a lhe dizer. Lembre-se de suas escolhas. Lembre-se de que há muitas mãos para matá-lo. Posso sozinha lhe garantir sua vida, e tudo o mais que busca, se fizer como eu disser. — Ela deslizou pela porta, tão silenciosa e delicadamente quanto entrara.

Mat soltou um longo suspiro. O suor escorria por seu rosto. Quem, pela Luz, é ela? Uma Amiga das Trevas, talvez. Exceto por demonstrar tanto desprezo por Ba’alzamon quanto pelas Aes Sedai. Amigos das Trevas falavam de Ba’alzamon da mesma forma com que outras pessoas se referem ao Criador. E ela não pedira para ele guardar segredo da sua visita das Aes Sedai.

Está certo, pensou, amargo. Com licença, Aes Sedai, mas essa mulher veio me visitar. Não era Aes Sedai, mas acho que talvez tenha começado a usar o Poder Único em mim. Ela me disse que não era Amiga das Trevas, mas falou que vocês pretendem me usar, e que a Ajah Negra está na sua torre. Ah, e ela disse que sou importante. Não sei como. Posso ir agora?

A ideia de ir embora parecia melhor a cada minuto. Desajeitado, ele deslizou para fora da cama e caminhou, vacilante, até o guarda-roupa, ainda enrolado no cobertor. Suas botas estavam no chão, dentro do armário, e o manto pendia de um pino, sob o cinturão, com a bolsa e a faca de cintura na bainha. Era apenas uma faca comum com uma lâmina pesada, mas servia tão bem quanto qualquer adaga. As outras roupas, dois casacos de lã robustos, três pares de calças, meia dúzia de camisas de linho e roupas de baixo, tinham sido escovadas ou lavadas e dobradas com cuidado sobre as prateleiras que ocupavam um dos lados do guarda-roupa. Ele sentiu a bolsa que pendia do cinturão, mas estava vazia. O conteúdo estava amontoado sobre uma prateleira, junto ao que fora esvaziado dos bolsos.

Ele separou uma pena de gavião vermelha, uma pedra lisa e listrada de cujas cores gostara, a navalha e o canivete com cabo de osso e livrou a bolsa de couro lavado de alguns rolos extras de cordas de arcos. Quando a abriu, descobriu que a memória para aquele assunto estava boa até demais.

— Dois marcos de prata e um punhado de cobres — resmungou. — Não vou muito longe com isso. — Esse dinheiro já parecera uma pequena fortuna para ele, mas isso fora antes de deixar Campo de Emond.

Ele se inclinou para espiar dentro da prateleira. Onde estão? Começou a temer que as Aes Sedai os tivessem jogado fora, da mesma forma que sua mãe faria se os encontrasse. Onde…? Sentiu uma explosão de alívio. Bem no fundo, atrás do acendedor e do bolo de corda para armadilhas e afins, estavam seus dois copos de dados de couro.

Os dados chacoalharam quando ele puxou os copos, mas mesmo assim ele abriu as tampas redondas de encaixe justo. Estava tudo dentro dos conformes. Cinco dados entalhados com símbolos, para jogar coroas, e cinco marcados com pontinhos. Os dados com pontinhos serviam para vários outros jogos, mas os homens pareciam jogar coroas mais do que qualquer outra coisa. Com esses, os dois marcos que tinha nas mãos seriam suficientes para levá-lo bem longe de Tar Valon. Longe das Aes Sedai e de Selene.

A porta foi aberta, imediatamente após uma batida de aviso. Ele deu meia-volta. O Trono de Amyrlin e a Curadora das Crônicas estavam entrando. Ele as reconheceria mesmo sem a estola larga e listrada da Amyrlin e a estola azul e menor da Curadora. Tinha visto as duas apenas uma única vez, muito longe de Tar Valon, mas jamais se esqueceria das duas mulheres mais poderosas entre as Aes Sedai.

A Amyrlin ergueu as sobrancelhas ao vê-lo de pé ali, com o cobertor pendendo dos ombros e a bolsa e os copos de dados nas mãos.

— Creio que você não precisará disso por algum tempo, filho — disse, em um tom seco. — Guarde-os e volte para a cama antes que caia de cara no chão.

Ele hesitou. Tinha as costas rígidas, mas os joelhos escolheram aquele momento para fraquejar, e as duas Aes Sedai ficaram olhando para ele, olhos negros e azuis encarando-o do mesmo modo, como se parecessem ler cada um de seus pensamentos rebeldes. Ele obedeceu à ordem, envolvendo o cobertor no corpo com ambas as mãos. Deitou-se reto feito uma tábua, sem saber ao certo o que mais poderia fazer.

— Como está se sentindo? — perguntou a Amyrlin bruscamente, pondo uma das mãos na testa de Mat. Arrepios percorreram sua pele. Será que ela fizera algo com o Poder Único ou será que o mero toque de uma Aes Sedai provocava calafrios?

— Estou bem — respondeu. — Ora, já estou pronto para ir. Preciso só me despedir de Egwene e Nynaeve e depois paro de encher vocês. Quer dizer, depois eu me vou… hã… Mãe. — Moiraine e Verin nunca pareceram dar muita atenção ao palavreado dele, mas, de qualquer modo, aquela era o Trono de Amyrlin.

— Bobagem — retrucou a Amyrlin. Ela puxou a cadeira de espaldar alto para perto da cama, sentou-se e dirigiu-se a Leane. — Os homens sempre se recusam a admitir que estão doentes, até ficarem doentes o bastante para dar o dobro de trabalho às mulheres. Depois, afirmam que estão bem cedo demais, e o resultado é o mesmo.

A Curadora lançou um olhar a Mat e assentiu.

— Sim, Mãe, mas este aqui não pode alegar que está bem, já que mal consegue ficar de pé. Pelo menos comeu tudo o que tinha na bandeja.

— Eu ficaria surpresa se ele deixasse migalhas suficientes para atrair um tentilhão. E ainda sente fome, se eu não estiver enganada.

— Posso mandar alguém trazer uma torta, Mãe. Ou alguns bolos.

— Não, acho que ele já comeu bastante por ora. Colocar tudo para fora não lhe fará nada bem.

Mat fechou a cara. Parecia que ficar doente o tornava invisível às mulheres, a não ser que estivessem de fato falando com ele. E elas o tratavam como se fosse pelo menos dez anos mais novo. Nynaeve, sua mãe, suas irmãs, o Trono de Amyrlin, todas agiam assim.

— Não estou com a menor fome — anunciou. — Estou bem. Se me deixarem vestir minhas roupas, mostro a vocês como estou bem. Vou dar o fora daqui antes que percebam. — As duas olhavam para ele, que pigarreou. — Hã… Mãe.

A Amyrlin soltou um grunhido.

— Você comeu uma refeição para cinco, e comerá três ou quatro como essas por mais alguns dias, ou morrerá de fome. Acabou de ser Curado de um elo com o mal que matou todos os homens, mulheres e crianças em Aridhol, e esse mal não enfraqueceu durante os dois mil anos que passou aguardando pelo resgate. Estava matando você da mesma forma que os matou. Não é como prender uma espinha de peixe no dedo, garoto. Nós quase o matamos tentando salvá-lo.

— Não estou com fome — insistiu. Seu estômago roncou alto, denunciando-o.

— Eu compreendi você muito bem da primeira vez que o vi — disse a Amyrlin. — Soube desde o início que você fugiria feito um pássaro pescador assustado se pensasse que alguém está tentando prendê-lo. Por isso, tomei precauções.

Ele olhou as duas, desconfiado.

— Precauções?

Elas o encararam de volta com serenidade. Os olhares das mulheres eram como pregos cravando-o na cama.

— Seu nome e descrição estão a caminho dos guardas da ponte — disse a Amyrlin — e dos arrais. Não vou tentar prendê-lo dentro da Torre, mas você não poderá deixar Tar Valon até se recuperar. Se tentar se esconder na cidade, a fome eventualmente o trará de volta para cá, ou, se não trouxer, nós o encontraremos antes que morra de inanição.

— Por que querem tanto me manter aqui? — inquiriu. Ouviu a voz de Selene. Querem usar você. — Por que se importam se eu morrer de fome? Sou capaz de me alimentar.

A Amyrlin soltou um risinho pouco satisfeito.

— Com dois marcos de prata e um punhado de cobre, meu filho? Seria preciso de fato muita sorte nos dados para comprar toda a comida necessária pelos próximos dias. Não Curamos alguém para depois deixá-los jogar nosso trabalho fora, morrendo enquanto ainda precisam de cuidados. Além do mais, talvez você ainda precise de mais Cura.

— Mais? A senhora disse que havia me Curado. Por que eu precisaria de mais?

— Meu filho, você carregou aquela adaga por meses. Creio que conseguimos remover todos os traços, mas, se tivermos deixado escapar a menor partícula, ainda pode ser fatal. E quem é que sabe que efeitos esse objeto pode ter causado, por ficar em sua posse por tanto tempo? Daqui a seis meses ou um ano, pode ser que ainda deseje uma Aes Sedai por perto para Curá-lo de novo.

— Quer que eu passe um ano aqui? — perguntou, incrédulo, num tom alto.

Leane mexeu os pés e o olhou com rispidez, mas o rosto tranquilo da Amyrlin não se alterou.

— Talvez não tanto tempo, meu filho. Porém, o suficiente para termos certeza. Sem dúvida você quer o mesmo. Entraria num barco sem saber se a calafetagem é segura ou se o assoalho está firme?

— Nunca me interessei por barcos — resmungou Mat. Talvez fosse verdade. Aes Sedai nunca mentiam, mas havia “talvez” e “porém” demais naquelas promessas. — Estou longe de casa há muito tempo, Mãe. Meus pais provavelmente pensam que estou morto.

— Se quiser escrever uma carta para eles, posso garantir que chegue até Campo de Emond.

Mat esperou por algo mais, mas nada veio.

— Obrigado, Mãe. — Ele ensaiou uma pequena risada. — Estou bem surpreso por meu pai não ter vindo procurar por mim. Ele é o tipo de homem que faria isso. — Não tinha certeza, mas achou que a Amyrlin hesitou levemente antes de responder.

— Ele veio. Leane conversou com ele.

A Curadora se pronunciou no mesmo instante.

— Ainda não sabíamos onde você estava, Mat. Eu disse isso a ele, e ele foi embora antes das nevascas. Dei algum ouro para ajudar na viagem de volta para casa.

— Sem dúvida — prosseguiu a Amyrlin — ele ficará feliz em ter notícias suas. E sua mãe também, decerto. Pode me entregar a carta assim que escrevê-la, eu cuidarei dela.

Elas contaram, mas ele tivera que perguntar. E não mencionaram o pai de Rand. Talvez por pensarem que eu não me importaria, e talvez porque… Que me queime, não sei. Quem é que sabe, quando se trata das Aes Sedai?

— Eu estava viajando com um amigo, Mãe. Rand al’Thor. A senhora se lembra dele. Sabe se ele está bem? Aposto que o pai dele também está preocupado.

— Até onde sei — disse a Amyrlin, muito calma —, o rapaz está bem, mas quem pode garantir? Eu o vi apenas uma vez, quando encontrei vocês em Fal Dara. — Ela se virou para a Curadora. — Talvez seja bom trazer um pedaço de torta, Leane. E algo para a garganta, se o rapaz continuar falando assim. Pode providenciar isso?

A Aes Sedai alta saiu, murmurando:

— Como a senhora ordenar, Mãe.

Quando a Amyrlin se virou de volta para Mat, ela sorria, mas tinha os olhos azuis como gelo.

— Há certas coisas perigosas de se conversar, talvez mesmo na frente de Leane. Uma língua solta pode matar mais homens do que muitas tempestades.

— Perigosas, Mãe? — Ele de súbito sentiu a boca seca, mas resistiu ao impulso de lamber os lábios. Luz, quanto será que ela sabe sobre Rand? Se pelo menos Moiraine não guardasse tantos segredos. — Mãe, não sei de nada perigoso. Mal consigo me lembrar da metade do que sei.

— Você se lembra da Trombeta?

— Que trombeta é essa, Mãe?

Ela levantou-se e partiu para cima dele tão depressa que Mat mal a viu se mover.

— Se ficar de brincadeiras comigo, garoto, farei você chorar pedindo pela mamãe. Não tenho tempo para brincadeiras, e nem você. Então… você… se lembra?

Ele agarrou o cobertor com força em volta do corpo. Precisou engolir antes de responder:

— Eu me lembro, Mãe.

Ela pareceu relaxar, pelo menos um pouco, e o rapaz encolheu os ombros, nauseado. Sentia como se acabasse de receber permissão para erguê-los de um cepo de decapitação.

— Bom. Muito bom, Mat. — Ela se sentou devagar, examinando-o. — Você sabia que está ligado à Trombeta? — Em choque, ele repetiu a palavra “ligado” apenas movendo os lábios, e ela assentiu. — Imaginei que não soubesse. Você foi o primeiro a soar a Trombeta de Valere, depois que ela foi encontrada. Por você, ela invocará heróis mortos de volta dos túmulos. Para qualquer outro, é apenas uma trombeta, enquanto você viver.

Ele respirou fundo.

— Enquanto eu viver — repetiu, com a voz inexpressiva, e a Amyrlin assentiu. — Vocês poderiam ter me deixado morrer. — Ela assentiu outra vez. — Então qualquer outro poderia soar a Trombeta. — Mais uma anuência. — Sangue e cinzas! Querem que eu soe a Trombeta para vocês. Quando a Última Batalha chegar, querem que eu invoque os heróis mortos das tumbas para lutar contra o Tenebroso. Sangue e malditas cinzas!

Ela pousou o cotovelo em um dos braços da cadeira e apoiou o queixo na mão. Não desviou os olhos dele.

— Preferia a outra opção?

Ele franziu a testa, depois lembrou qual era a outra opção. Se mais alguém tivesse que soar a Trombeta…

— Querem que eu soe a Trombeta? Então soarei a Trombeta. Nunca disse que não faria isso, disse?

A Amyrlin soltou um suspiro exasperado.

— Você me lembra do meu tio, Huan. Ele não se comprometia com nada. Também gostava de jogar e preferia a diversão ao trabalho. Morreu salvando crianças de uma casa em chamas. Não parou de retornar à casa até todas serem salvas. Será que você é como ele, Mat? Estará presente na hora do incêndio?

Ele não conseguia olhá-la nos olhos. Encarava os próprios dedos, que puxavam o cobertor com irritação.

— Não sou um herói. Farei o que for preciso, mas não sou um herói.

— Muitos a quem chamamos de heróis fizeram apenas o que tinham que fazer. Acho que já basta. Por enquanto. Não deve falar com ninguém a respeito da Trombeta, meu filho. Ou de sua ligação com ela.

Por enquanto?, pensou. Não vai conseguir mais nada, nem agora nem nunca.

— Não pretendo espalhar essa porcar… — Ela arqueou uma sobrancelha, e ele baixou a voz outra vez. — Não pretendo contar a ninguém. Queria que ninguém soubesse. Por que a senhora quer manter isso em segredo? Não confia nas suas Aes Sedai?

Por um instante ele pensou que fora longe demais. O rosto da mulher enrijeceu, e ela lançou um olhar capaz de decepar o cabo de machado.

— Se eu pudesse deixar isso somente entre nós dois — respondeu, com frieza —, deixaria. Quanto mais pessoas sabem de algo, mais a informação se espalha, mesmo com a melhor das intenções. A maioria acredita que a Trombeta de Valere não passa de uma lenda, e os que sabem a verdade creem que os Caçadores ainda não a encontraram. Mas Shayol Ghul sabe que ela foi encontrada, e isso significa que pelo menos alguns Amigos das Trevas também sabem. Mas eles não sabem onde ela está, e, se a Luz nos iluminar, também não sabem que você a soou. Quer ter Amigos das Trevas no seu encalço? Meios-homens ou outras criaturas da sombra? Eles querem a Trombeta. Você precisa estar ciente disso. Ela servirá tão bem para a Luz quanto para a Sombra. Mas, se for para servir a eles, precisam levá-lo ou matá-lo. Quer arriscar isso?

Mat desejou ter outro cobertor, e também um edredom de penas de ganso. O quarto de repente esfriara demais.

— Está dizendo que Amigos das Trevas podem me perseguir até aqui? Pensei que a Torre Branca fosse capaz de mantê-los longe. — Ele se lembrou do que Selene dissera sobre a Ajah Negra, e imaginou o que a Amyrlin diria a respeito.

— Excelente razão para ficar, não acha? — Ela se levantou, alisando a saia. — Descanse, meu filho. Logo estará se sentindo bem melhor. — Fechou a porta com delicadeza ao passar.

Por um bom tempo, Mat ficou deitado, encarando o teto. Mal notou quando uma serviçal entrou com a fatia de torta e outra jarra de leite, levando a bandeja com os pratos vazios ao sair. Seu estômago roncou alto com o aroma cálido de maçãs e especiarias, mas ele também não deu atenção. A Amyrlin pensava que o controlava como uma ovelha em um redil. E Selene… Pela Luz, quem é ela? O que será que ela quer? Selene tinha razão em relação a certas coisas, porém, a Amyrlin afirmara que pretendia usá-lo, e como. De certa forma. Ela deixara informações demais de fora para o gosto dele, informações que poderiam ser sobre algo mortal. A Amyrlin queria algo, Selene queria algo, e ele era a corda que cada uma puxava para si. Pensou que preferia enfrentar Trollocs a estar no meio daquelas duas.

Tinha de haver um meio de sair de Tar Valon sem que nenhuma das duas o agarrasse. Depois de atravessar o rio, estaria longe das mãos da Aes Sedai, de Selene e também dos Amigos das Trevas. Tinha certeza. Tinha de haver um meio. Ele só precisava pensar em todas as possibilidades.

A torta esfriou na mesa.

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