Dedicado a
James Oliver Rigney
(1920–1988)
Ele me ensinou a sempre perseguir um sonho e, ao conquistá-lo, vivê-lo.
Os velhos olhos de Pedron Niall examinaram sua sala de audiências particular, mas aqueles olhos escuros, enevoados por pensamentos, não viram coisa alguma. Tapeçarias esfarrapadas, antigos estandartes de batalhas dos inimigos de sua juventude, se fundiam aos painéis de madeira escura assentados às paredes de pedra, que, mesmo ali, no coração da Fortaleza da Luz, eram robustas. A única cadeira do recinto, pesada, de espaldar alto, quase um trono, estava invisível a seus olhos, assim como as poucas mesas espalhadas que completavam o mobiliário. Até o homem de manto branco, com sua avidez mal contida, ajoelhado sobre o sol desenhado nas amplas tábuas no chão, escapou por um instante aos pensamentos de Niall, embora poucos fossem tão rápidos em deixar de lado as notícias que ele trazia.
Jaret Byar teve tempo de se lavar antes de ser levado até Niall, mas tanto o elmo como a armadura estavam sem brilho por causa da viagem e maltratados pelo uso. Olhos escuros e profundos brilhavam com uma luz febril e premente, que parecia ter consumido todo e qualquer pedaço de carne. Ele não portava espada, uma vez que armas não eram permitidas na presença de Niall, mas parecia prestes a cometer uma violência, como um cão esperando ser solto da coleira.
Duas fogueiras em lareiras compridas, nas duas extremidades do aposento, afastavam o frio do fim do inverno. Era uma sala simples e de um estilo militar, na verdade, tudo bem-feito, mas nada extravagante, exceto pelo sol desenhado no chão. A mobília da sala de audiências do Senhor Capitão Comandante dos Filhos da Luz era escolhida pelo homem que assumia o cargo. O sol dourado no piso ficara gasto após gerações de suplicantes, então fora pintado novamente e se gastara mais uma vez. Nele havia ouro suficiente para comprar qualquer estado de Amadícia, junto com o título de nobreza que o acompanhava. Niall passou dez anos caminhando naquele ouro, mas jamais pensou nele duas vezes, não mais do que pensou no sol radiante que adornava seu peitoral por cima da túnica branca. Pedron Niall não se interessava por ouro.
Enfim, ele voltou os olhos para a mesa a seu lado, repleta de mapas, cartas e relatórios espalhados. Três desenhos frouxamente enrolados jaziam entre a desordem. Pegou um, relutante. Não importava qual: todos retratavam a mesma cena, embora por mãos diferentes.
A pele de Niall era fina como pergaminho gasto, contraída e retesada pela idade sobre um corpo que parecia todo feito de ossos e nervos, mas nada havia de frágil nele. Nenhum homem havia ocupado aquela posição antes de ter os cabelos brancos, muito menos um homem mais fraco que as pedras do Domo da Verdade. Ainda assim, ele de súbito se deu conta da velhice da mão que segurava o desenho, e percebeu que precisava ser rápido. O tempo estava se esgotando. Seu tempo estava se esgotando. Tinha que ser suficiente. Ele teria que fazer o pouco que lhe restava ser suficiente.
Obrigou-se a desenrolar o pergaminho grosso pela metade, o suficiente para ver o rosto que despertara seu interesse. Os rabiscos de carvão estavam um pouco borrados por conta da viagem nos alforjes, mas o rosto estava nítido. Um jovem de olhos cinza e cabelos ruivos. Parecia alto, mas era difícil ter certeza. À exceção dos cabelos e olhos, o rapaz poderia fixar-se em qualquer cidade sem causar grande alvoroço.
— Este… garoto se proclama o Dragão Renascido? — murmurou Niall.
O Dragão. O nome o fez sentir o frio do inverno e da idade. O nome que Lews Therin Telamon usava quando condenou cada homem capaz de canalizar o Poder Único, naquela hora e para sempre, à insanidade e à morte, ele mesmo inclusive. Fazia mais de três mil anos que o orgulho das Aes Sedai e a Guerra da Sombra tinham posto um fim à Era das Lendas. Três mil anos, mas a profecia e a lenda avivavam a lembrança dos homens, traziam ao menos a essência daquela memória, embora os detalhes escapassem. Lews Therin Telamon, o Fratricida. O homem que iniciara a Ruptura do Mundo, quando loucos capazes de liberar o poder que regia o universo derrubaram montanhas e afundaram terras antigas sob os oceanos, quando toda a terra se alterou e todos os que sobreviveram fugiram como bestas diante de fogo. Não terminou até que o último homem Aes Sedai tombasse morto, e uma raça humana dispersa começasse a tentar reconstruir tudo a partir dos escombros, pelo menos onde havia vestígios de escombros. O acontecimento foi marcado na memória pelas histórias que as mães contavam aos filhos. E, segundo as profecias, o Dragão iria renascer.
Niall não tinha intenção de que o tom fosse interrogativo, mas Byar entendeu assim.
— Sim, meu Senhor Capitão Comandante, é isso mesmo. A loucura do rapaz é pior do que a de qualquer falso Dragão de que já ouvi falar. Milhares já se declararam a favor dele. Tarabon e Arad Doman estão em guerra civil, além de estarem em guerra entre si. As lutas se estendem por toda a Planície de Almoth e a Ponta de Toman, tarabonianos contra domaneses contra Amigos das Trevas, clamando pelo Dragão, pelo menos até o inverno chegar e resfriar quase tudo. Nunca vi algo se alastrar tão depressa, meu Senhor Capitão Comandante. Foi como lançar um archote sobre um monte de feno. A neve talvez os tenha enfraquecido, mas com a primavera as chamas explodirão ainda mais fortes do que antes.
Niall o interrompeu com o dedo em riste. Já era a segunda vez que o deixava contar aquela história, a voz queimando cheia de raiva e ódio. Algumas partes Niall ficara sabendo por outras fontes, e alguns pontos conhecia mais do que Byar, mas a cada vez que escutava, irritava-se outra vez.
— Geofram Bornhald e mil Filhos mortos. Obra das Aes Sedai. Você tem certeza, Filho Byar?
— Certeza absoluta, meu Senhor Capitão Comandante. Depois de um conflito no caminho para Falme, vi duas das bruxas de Tar Valon. Nos custaram mais de cinquenta homens antes que cravássemos nossas flechas nelas.
— Você tem certeza… tem certeza de que eram Aes Sedai?
— O chão explodiu sob nossos pés. — A voz de Byar era firme e confiante. Jaret Byar tinha pouca imaginação. A morte era parte da vida de um soldado, independentemente de como ela viesse. — Surgiram raios do céu azul que atingiram nosso grupo. Meu Senhor Capitão Comandante, o que mais poderiam ser?
Niall assentiu com uma careta de desgosto. Não havia homens Aes Sedai desde a Ruptura do Mundo, mas as mulheres que ainda reivindicavam o título eram ruins o bastante. Elas tagarelavam sobre seus Três Juramentos: não pronunciar palavras que não fossem verdadeiras, não fabricar armas para um homem matar outro, usar o Poder Único como arma apenas contra Amigos das Trevas e criaturas da Sombra. No entanto, haviam finalmente revelado que esses juramentos eram mentiras. Ele sempre soubera que ninguém poderia querer o poder que elas tinham para outra coisa que não desafiar o Criador, o que significava servir ao Tenebroso.
— E você não sabe nada a respeito dos invasores de Falme, que mataram metade de uma das minhas legiões?
— O Senhor Capitão Bornhald disse que eles se autodenominam Seanchan, Senhor Capitão Comandante — afirmou Byar, impassível. — Disse que eram Amigos das Trevas. E a investida dele dominou as forças inimigas, ainda que tenha lhe custado a vida. — Sua voz ganhou intensidade. — Há muitos refugiados de lá. Todos com quem falei concordaram que os forasteiros foram derrotados e fugiram. Foi o Senhor Capitão Bornhald quem os venceu.
Niall deu um leve suspiro. Eram quase as mesmas palavras que Byar havia usado nas duas primeiras vezes que falara a respeito do exército que supostamente surgira do nada para invadir Falme. Um bom soldado, pensou Niall, como Geofram Bornhald sempre disse, mas não um homem capaz de pensar.
— Meu Senhor Capitão Comandante — começou Byar, de repente —, o Senhor Capitão Bornhald ordenou que eu ficasse longe da batalha. Eu estava ali para observar os acontecimentos e relatá-los ao senhor. E também para contar ao filho dele, Lorde Dain, como ele morreu.
— Sim, sim — disse Niall, com impaciência. Estudou o rosto encovado de Byar por um instante, para depois acrescentar: — Ninguém duvida de sua coragem e honestidade. É exatamente o tipo de coisa que Geofram Bornhald faria, lançar-se em uma batalha mesmo temendo que todos os seus homens morressem. — E não o tipo de coisa que sua imaginação lhe permitiria pensar.
Não havia mais o que descobrir com aquele homem.
— Você agiu bem, Filho Byar. Tem minha permissão para levar a notícia da morte de Geofram Bornhald a seu filho. Dain Bornhald está com Eamon Valda perto de Tar Valon, segundo o último informe. Pode se juntar a eles.
— Obrigado, meu Senhor Capitão Comandante. Obrigado. — Byar se levantou e fez uma mesura enfática. Porém, hesitou ao endireitar o corpo. — Meu Senhor Capitão Comandante, nós fomos traídos. — O ódio o fez falar entre dentes.
— Por esse Amigo das Trevas que mencionou antes, Filho Byar? — Ele não conseguia esconder a rispidez da própria voz. Os planos feitos ao longo de um ano jaziam arruinados entre os corpos de mil Filhos, e Byar só queria falar sobre aquele homem. — O tal jovem ferreiro que você viu apenas duas vezes, o tal Perrin de Dois Rios?
— Sim, meu Senhor Capitão Comandante. Não sei como, mas sei que ele é o culpado. Eu sei.
— Verei o que pode ser feito a respeito, Filho Byar. — Byar abriu a boca mais uma vez, mas Niall levantou a mão, interrompendo-o. — Está dispensado.
O homem de rosto abatido não teve escolha a não ser fazer outra mesura e sair.
Quando a porta se fechou atrás dele, Niall largou-se na cadeira de espaldar alto. O que haveria provocado o ódio de Byar pelo tal Perrin? Havia muitos Amigos das Trevas para alguém gastar tanta energia odiando um em particular. Amigos das Trevas demais, espalhados pelo mundo, escondidos por trás de palavras amáveis e sorrisos abertos, servindo ao Tenebroso. Ainda assim, um nome a mais na lista não faria mal algum.
Ele mudou de posição na cadeira dura, tentando dar algum conforto aos velhos ossos. Considerou vagamente, não pela primeira vez, que uma almofada talvez não fosse luxo demais. E não pela primeira vez, afastou o pensamento. O mundo despencava para o caos, e não havia tempo para se render à idade.
Deixou todos os sinais que prenunciavam o desastre correrem por sua mente. Tarabon e Arad Doman estavam em guerra, enquanto Cairhien passava por uma guerra civil, e um princípio de confronto ganhava contorno entre Tear e Illian, que já eram velhas inimigas. Talvez aquelas guerras não significassem nada sozinhas, pois os homens lutavam sempre, mas em geral ocorria uma de cada vez. E, além do falso Dragão em algum lugar da Planície de Almoth, outro assolava Saldaea, e um terceiro atingia Tear. Três de uma só vez. Todos devem ser falsos Dragões. Têm que ser!
Além disso, havia pequenas coisas, algumas talvez apenas rumores infundados, mas que, somadas ao resto… Aiel vistos bem a oeste, em Murandy e Kandor. Apenas dois ou três em cada lugar, mas, fossem um ou mil, era a primeira vez em todos os anos desde a Ruptura que os Aiel saíam do Deserto. Eles haviam posto os pés para fora daquele deserto ermo apenas durante a Guerra dos Aiel. Dizia-se que os Atha’an Miere, o Povo do Mar, andavam abrindo mão de negócios para ir em busca de sinais e presságios — quais exatamente, não diziam — e viajavam em navios com metade da tripulação ou mesmo sem ninguém. Illian convocara a Grande Caçada à Trombeta pela primeira vez em quase quatrocentos anos e enviara os Caçadores em busca da lendária Trombeta de Valere, que, segundo as profecias invocaria os heróis mortos de seus túmulos para lutar em Tarmon Gai’don, a Última Batalha contra a Sombra. Segundo rumores, os Ogier, sempre tão reclusos que a maioria do povo comum pensava que eram apenas uma lenda, haviam convocado reuniões entre cada um de seus pousos remotos.
E o mais impressionante de tudo, para Niall, era que as Aes Sedai pareciam ter revelado suas intenções. Diziam que elas haviam enviado algumas irmãs à Saldaea, para enfrentar o falso Dragão Mazrim Taim. Por mais raro que aquilo fosse entre os homens, Taim era capaz de canalizar o Poder Único. O que era, por si só, algo a temer e desprezar. Mas poucos pensavam que um homem como aquele poderia ser derrotado sem a ajuda das Aes Sedai. Era melhor deixá-las ajudarem do que enfrentar os horrores inevitáveis quando ele enlouquecesse, como sempre acontecia. Porém, parecia que Tar Valon enviara outras Aes Sedai para apoiar o outro falso Dragão em Falme. Nada mais fazia sentido.
O padrão o arrepiou até os ossos. O caos se multiplicava, acontecimentos dos quais jamais se ouvira passavam a ocorrer repetidas vezes. O mundo inteiro parecia estar em um redemoinho, se remexendo, prestes a entrar em ebulição. Estava muito claro para ele. A Última Batalha se aproximava.
Todos os seus planos estavam destruídos, planos que garantiriam que seu nome fosse repetido entre os Filhos da Luz por uma centena de gerações. No entanto, inquietude era sinônimo de oportunidades, e ele tinha novos planos, com novos objetivos. Se fosse capaz de manter as forças e a determinação para levá-los até o fim. Luz, deixe-me continuar vivo por tempo suficiente.
Uma batida respeitosa na porta o tirou dos pensamentos sombrios.
— Entre! — ordenou, com rispidez.
Um servo de casaco e calças de tecido branco e dourado fez uma mesura e entrou. Com os olhos baixos, anunciou que Jaichim Carridin, Ungido pela Luz, Inquisidor da Mão da Luz, viera a mando do Senhor Capitão Comandante. Carridin surgiu logo atrás do homem, sem esperar que Niall respondesse. O homem dispensou o servo com um gesto.
Antes que a porta se fechasse por completo, Carridin se abaixou, apoiando-se em um dos joelhos, e fez um floreio com o manto branco. Por trás do sol na frente do manto, jazia o cajado escarlate da Mão da Luz, símbolo do grupo que muitos chamavam de Questionadores, embora não diante de um deles.
— Como o senhor ordenou minha presença, meu Senhor Capitão Comandante — disse, com a voz grave —, retornei de Tarabon.
Niall o analisou por um instante. Carridin era alto, já estava na meia-idade e tinha cabelos levemente grisalhos, mas era forte e vigoroso. Os olhos escuros e profundos pareciam, como sempre, perspicazes. E não piscavam sob o exame silencioso do Senhor Capitão Comandante. Poucos homens tinham uma consciência tão tranquila ou tanta serenidade. Carridin permanecia ajoelhado, aguardando com calma, como se fosse parte do cotidiano receber uma ordem ríspida para deixar o comando e retornar a Amador sem demora, sem explicações. No entanto, também dizia-se que Jaichim Carridin podia ser mais impassível que uma pedra.
— Levante-se, Filho Carridin. — Enquanto o homem se erguia, Niall acrescentou: — Recebi notícias inquietantes de Falme.
Carridin ajeitou as dobras do manto enquanto respondia. Sua voz beirava o limite do respeito apropriado, quase como se conversasse de igual para igual, não com o homem a quem havia jurado obediência até a morte.
— Meu Senhor Capitão Comandante se refere às notícias trazidas pelo Filho Jaret Byar, segundo no comando do Senhor Capitão Bornhald.
O canto do olho esquerdo de Niall tremulou, um prenúncio conhecido de fúria. Supostamente apenas três homens estavam cientes de que Byar estava em Amador, e ninguém além de Niall sabia de onde ele viera.
— Não seja tão astuto, Carridin — respondeu. — Seu desejo em saber tudo pode um dia levá-lo às mãos de seus próprios Questionadores.
Ao ouvir aquele nome, Carridin não esboçou reação além de um leve comprimir dos lábios.
— Meu Senhor Capitão Comandante, a Mão persegue a verdade em todos os lugares, para servir à Luz.
Para servir à Luz. Não para servir aos Filhos da Luz. Todos os Filhos serviam à Luz, mas Pedron Niall se perguntava com frequência se os Questionadores de fato se consideravam parte dos Filhos.
— E que verdade você traz para mim a respeito do que ocorreu em Falme? — perguntou Niall.
— Amigos das Trevas, Senhor Capitão Comandante.
— Amigos das Trevas? — A risada de Niall não esboçou qualquer alegria. — Há algumas semanas, recebi relatórios seus informando que Geofram Bornhald era um servo do Tenebroso por ter contrariado suas ordens e deslocado soldados para a Ponta de Toman. — A voz ganhou um tom brando perigoso. — Agora quer que eu acredite que Bornhald, um Amigo das Trevas, levou mil Filhos da Luz à morte em uma luta contra outros Amigos das Trevas?
— Se ele era ou não Amigo das Trevas, jamais saberemos — retrucou Carridin, impassível —, pois morreu antes de ser questionado a respeito. As tramas da Sombra são obscuras, e com frequência parecem insensatas aos que caminham na Luz. Mas que a invasão de Falme foi arquitetada por Amigos das Trevas, disso não tenho dúvidas. Amigos das Trevas e Aes Sedai, em prol de um falso Dragão. Foi o Poder Único que destruiu Bornhald e seus homens, estou certo disso, Senhor Capitão Comandante. Assim como foi o Poder Único que destruiu os exércitos que Tarabon e Arad Doman enviaram a Falme para combater os Amigos das Trevas.
— E quanto às histórias de que os invasores de Falme cruzaram o Oceano de Aryth?
Carridin negou com a cabeça.
— Meu Senhor Capitão Comandante, o povo vive inventando rumores. Alguns alegam que era o exército enviado por Artur Asa-de-gavião para cruzar o oceano, mil anos atrás, voltando para reivindicar a terra. Ora, alguns alegam terem visto Asa-de-gavião em pessoa, em Falme. E mais metade dos heróis lendários. O oeste está fervilhando, de Tarabon a Saldaea, e uma centena de rumores novos brotam todos os dias, cada um mais ultrajante que o outro. Esses tais Seanchan eram apenas mais uma escória de Amigos das Trevas reunidos para defender um falso Dragão, só que dessa vez com o apoio declarado das Aes Sedai.
— Que provas você tem disso? — Niall fez a voz soar como se duvidasse daquilo. — Tem algum prisioneiro?
— Não, Senhor Capitão Comandante. Como o Filho Byar sem dúvida lhe informou, Bornhald fez com que se dispersassem. E certamente ninguém que interrogamos admitiria ter lutado por um falso Dragão. Quanto às provas… eu as trago em duas partes. O Senhor Capitão Comandante me permite?
Niall gesticulou com impaciência.
— A primeira parte é negativa — prosseguiu Carridin. — Poucos navios tentaram cruzar o Oceano de Aryth, e a maioria jamais retornou. Os que tentaram voltaram antes que acabassem a água e a comida. Nem mesmo o Povo do Mar cruza Aryth, e eles navegam para qualquer terra onde haja negócios, mesmo que fiquem depois do Deserto Aiel. Meu Senhor Capitão Comandante, se há terras do outro lado do oceano, elas são muito distantes, e o oceano é muito vasto. Cruzá-lo com um exército seria tão impossível quanto voar.
— Talvez — respondeu Niall, devagar. — Faz sentido, sem dúvida. Qual é a segunda parte?
— Senhor Capitão Comandante, muitos dos que interrogamos mencionaram monstros lutando ao lado dos Amigos das Trevas e mantiveram a palavra até o fim do interrogatório. O que poderiam ser, além de Trollocs e outras criaturas da Sombra que conseguiram dar um jeito de escapar da Praga? — Carridin estendeu as mãos, como se aquilo fosse uma prova conclusiva. — A maioria das pessoas pensa que Trollocs não passam de mentiras e histórias de viajantes, e quase todo o restante acredita que foram todos mortos nas Guerras dos Trollocs. Caso vissem um Trolloc, como o descreveriam, se não como um “monstro”?
— Sim. Sim, talvez você esteja certo, Filho Carridin. Talvez, é o que eu digo. — Não daria a Carridin a satisfação de saber que concordava. Deixe-o suar um pouco. — Mas e ele? — Niall apontou para os desenhos enrolados. Se bem conhecia Carridin, o Inquisidor tinha algumas cópias em seus próprios aposentos. — Ele é muito perigoso? É capaz de canalizar o Poder Único?
O Inquisidor apenas deu de ombros.
— Talvez seja, talvez não. Se quisessem, as Aes Sedai sem dúvida fariam o povo acreditar que até um gato é capaz de canalizar. Quanto a ser perigoso… qualquer falso Dragão é perigoso até ser abatido, e um com o apoio de Tar Valon é dez vezes mais. Porém é menos agora do que será daqui a meio ano, se não for controlado. Os prisioneiros que interroguei nunca o tinham visto, nem faziam ideia de onde está agora. Suas forças estão divididas. Duvido que haja mais de duzentos homens reunidos em um só lugar. Tanto tarabonianos quanto domaneses poderiam cuidar dele, se não estivessem tão ocupados lutando um contra o outro.
— Nem um falso Dragão é o bastante para fazê-los esquecer quatrocentos anos de disputa pela posse da Planície de Almoth — comentou Niall, secamente. — Como se algum deles tivesse força para manter o domínio sobre ela.
O rosto de Carridin não se alterou, e Niall se perguntou como ele conseguia permanecer tão calmo. Essa calma não vai durar muito, Questionador.
— Isso não tem importância, Senhor Capitão Comandante. O inverno mantém todos em seus acampamentos, exceto por alguns conflitos e ataques isolados. Quando o tempo esquentar o suficiente para as tropas se deslocarem… Bornhald levou apenas metade de sua legião à morte, na Ponta de Toman. Com a outra metade, caçarei este falso Dragão até a morte. Um cadáver não oferece perigo a ninguém.
— E se você enfrentar o mesmo que Bornhald parece ter enfrentado? Aes Sedai canalizando o Poder para matar?
— A bruxaria delas não as protege de flechadas, nem de uma facada na escuridão. Morrem tão rápido quanto qualquer um. — Carridin sorriu. — Eu prometo, terei sucesso antes do verão.
Niall assentiu. O homem estava confiante. Sem dúvidas pensava que as perguntas mais perigosas já teriam chegado, se estivessem a caminho. Você deveria ter se lembrado, Carridin, de que fui considerado um excelente estrategista.
— Por que — continuou o interrogatório, muito calmamente — você não levou suas próprias forças até Falme? Com os Amigos das Trevas na Ponta de Toman, invadindo o lugar com um exército, por que tentou deter Bornhald?
Carridin piscou, mas manteve a voz firme.
— No início eram apenas rumores, Senhor Capitão Comandante. Rumores tão bárbaros que ninguém podia acreditar. No momento em que descobri a verdade, Bornhald já havia entrado em batalha. Estava morto, e as forças dos Amigos das Trevas, dispersas. Além do mais, eu estava incumbido de levar a Luz à Planície de Almoth. Não podia desobedecer às ordens por conta de alguns rumores.
— Incumbido? — perguntou Niall, a voz se erguendo enquanto ficava de pé. Carridin era uma cabeça mais alto que ele, mas o Inquisidor recuou um passo. — Incumbido? Você estava incumbido de tomar a Planície de Almoth! Uma porcaria que não pertence a ninguém, exceto por palavras e papéis, e sua única tarefa era tomá-la. A nação de Almoth teria revivido, governada pelos Filhos da Luz, sem precisar adular um rei idiota. Amadícia e Almoth, seria fácil agarrar Tarabon. Em cinco anos, teríamos tanta influência lá quanto temos aqui em Amadícia. E você estragou tudo!
Enfim o sorriso se foi.
— Senhor Capitão Comandante — protestou Carridin —, como eu poderia prever os acontecimentos? Mais um falso Dragão. Tarabon e Arad Doman finalmente entraram em guerra, após tanto tempo rosnando uma para a outra. E Aes Sedai revelaram suas verdadeiras faces depois de três mil anos de disfarces! Mesmo assim, entretanto, nem tudo está perdido. Posso encontrar e destruir esse falso Dragão antes que seus seguidores se reúnam. E, quando os tarabonianos e domaneses estiverem enfraquecidos, poderão ser expulsos da planície sem…
— Não! — gritou Niall. — Seus planos terminam por aqui, Carridin. Talvez eu deva entregá-lo a seus próprios Questionadores agora mesmo. O Grão-inquisidor não faria objeção. Está rangendo os dentes, doido para apontar um culpado por tudo o que aconteceu. Ele jamais entregaria um dos seus, mas duvido que protestaria se eu mencionasse seu nome. Alguns dias de interrogatório e você confessaria qualquer coisa. Chamaria a si mesmo de Amigos das Trevas, inclusive. Em uma semana, teria uma bela visão da sombra do machado do carrasco.
O suor brotava na testa de Carridin.
— Senhor Capitão Comandante… — Ele hesitou e engoliu em seco. — Senhor Capitão Comandante parece afirmar que há outra maneira. Basta dizer qual, e juro obedecê-lo.
Agora, pensou Niall. Jogue os dados agora. Uma comichão percorreu sua pele, como se ele estivesse em plena batalha e de súbito percebesse que cada homem a cem passos de distância era um inimigo. Capitães Comandantes não eram executados pelo machado do carrasco, no entanto mais de um morrera de forma inesperada, para então ser rapidamente pranteado e rapidamente substituído por homens de ideias menos controversas.
— Filho Carridin — começou, com a voz firme —, você deverá garantir que esse falso Dragão não morra. E, caso qualquer Aes Sedai se oponha a ele em vez de protegê-lo, pode lançar mão da velha “facada na escuridão”.
O Inquisidor ficou boquiaberto. Contudo, recuperou-se depressa, lançando a Niall um olhar especulativo.
— Matar Aes Sedai é um dever, mas… permitir que um falso Dragão saia por aí? Isso… isso seria… traição. E blasfêmia.
Niall respirou fundo. Podia sentir as facas invisíveis à espreita em meio às sombras. Mas era tarde demais para recuar.
— Não é traição fazer o que precisa ser feito. E mesmo a blasfêmia pode ser tolerada em prol de uma causa. — Essas duas frases, por si só, eram suficientes para matá-lo. — Você sabe como reunir seguidores, Carridin? Sabe qual é a maneira mais rápida? Não? Solte um leão, um leão raivoso, no meio da rua. Quando todos forem tomados pelo pânico, quando todos estiverem com as calças borradas, diga calmamente que você resolverá o problema. Depois mate o leão e ordene que pendurem a carcaça onde todos possam ver. Antes que tenham tempo de pensar, dê outra ordem, e ela será obedecida. Então, se continuar a dar ordens, eles continuarão a obedecê-las, pois você será o homem que salvou suas vidas, e quem melhor para liderá-los?
Carridin moveu a cabeça, confuso.
— O senhor planeja… tomar tudo, Senhor Capitão Comandante? Não só a Planície de Almoth, mas também Tarabon e Arad Doman?
— O que tenho em mente é problema meu. O seu é obedecer conforme o juramento que fez. Espero ter notícias de mensageiros em cavalos velozes partindo para as planícies hoje à noite. Estou certo de que você sabe como emitir as ordens de modo que ninguém suspeite do que não deve. Se tiver que destruir alguém, que sejam tarabonianos e domaneses. Não seria nada bom se eles matassem meu leão. Não, sob a Luz, devemos forçar a paz entre eles.
— Como meu Senhor Capitão Comandante ordenar — disse Carridin, com a voz suave. — Eu escuto e obedeço. — Suave demais.
Niall deu um sorriso frio.
— Caso seu juramento não tenha força o bastante, saiba de uma coisa. Se esse falso Dragão morrer antes que eu ordene, ou se for levado pelas bruxas de Tar Valon, você acordará uma bela manhã com uma adaga cravada no coração. E se qualquer… acidente… me acontecer, ou mesmo que eu morra de velhice, você não durará um mês.
— Senhor Capitão Comandante, eu jurei obedecer…
— Jurou, mesmo — interrompeu-o Niall. — Lembre-se disso. Agora vá!
— Como meu Senhor Capitão Comandante ordenar. — Dessa vez a voz de Carridin não mostrava tanta firmeza.
A porta se fechou atrás do Inquisidor. Niall esfregou as mãos. Sentia frio. Os dados estavam rolando, e não havia como dizer que face mostrariam ao parar. A Última Batalha decerto estava próxima. Não a lendária Tarmon Gai’don, com o Tenebroso se libertando para enfrentar o Dragão Renascido. Não, ele estava certo. Os Aes Sedai da Era das Lendas podem ter aberto um buraco na prisão do Tenebroso em Shayol Ghul, mas Lews Therin Fratricida e seus Cem Companheiros a selaram outra vez. O contra-ataque havia maculado a metade masculina da Fonte Verdadeira para sempre e os deixado todos loucos, e assim teve início a Ruptura. Mas um desses antigos Aes Sedai era capaz de fazer sozinho o que dez bruxas de Tar Valon dos dias atuais juntas jamais conseguiriam. Os selos que eles fizeram aguentariam.
Pedron Niall era um homem de lógica calculista, e havia chegado a uma conclusão sobre como seria Tarmon Gai’don. Hordas de Trollocs marchariam da Grande Praga em direção ao sul, como nas Guerras dos Trollocs dois mil anos antes, sob o comando de Myrddraal, os Meios-homens, e talvez até de novos Senhores do Medo humanos surgidos entre os Amigos das Trevas. A humanidade, dividida entre nações em guerra, não poderia oferecer resistência. Mas ele, Pedron Niall, uniria os homens sob o estandarte dos Filhos da Luz. Novas lendas surgiriam para contar como Pedron Niall lutara em Tarmon Gai’don e vencera.
— Primeiro — murmurou —, solte um leão raivoso no meio da rua.
— Um leão raivoso?
Niall deu meia-volta, e um homenzinho ossudo com um nariz enorme aquilino deslizou por detrás de um dos estandartes pendurados. Houve apenas o vaivém de um painel se fechando quando o estandarte caiu de volta na parede.
— Eu lhe mostrei essa passagem, Ordeith — rosnou Niall —, para que você entrasse quando eu o chamasse sem que metade da fortaleza tomasse conhecimento, e não para que escutasse minhas conversas particulares.
Ordeith fez uma reverência suave ao cruzar o aposento.
— Escutar, Grande Senhor? Eu jamais faria tal coisa. Cheguei neste instante e não pude deixar de ouvir suas palavras finais. Nada mais que isso. — O sujeito tinha um sorriso meio zombeteiro que Niall jamais vira deixar seu rosto, mesmo quando não havia razão para desconfiar de que alguém o estivesse observando.
Um mês antes, em pleno inverno, o homenzinho desengonçado chegara a Amadícia, em farrapos e quase congelado, e dera um jeito de levar na lábia todas as camadas de sentinelas até chegar a Pedron Niall em pessoa. Parecia saber coisas sobre os eventos na Ponta de Toman que não constavam nos relatórios extensos, embora obscuros, de Carridin, e muito menos nas histórias de Byar ou em qualquer outro comunicado ou rumor que tivesse chegado a Niall. Seu nome era falso, naturalmente. Na língua antiga, Ordeith significava “amargura”. Contudo, quando Niall o questionou a respeito, o homem disse apenas: “Quem fomos está perdido aos homens, e a vida é amarga.” Mas o sujeito era sagaz. Fora ele quem havia ajudado Niall a perceber o padrão que emergia nos eventos.
Ordeith andou até a mesa e pegou um dos desenhos. Ao desenrolá-lo, revelou o rosto do jovem rapaz e abriu ainda mais o sorriso, quase fazendo uma careta.
Niall ainda estava irritado com o homem que entrara sem ser chamado.
— Você acha engraçado um falso Dragão, Ordeith, ou ele o assusta?
— Um falso Dragão? — perguntou Ordeith, baixinho. — Sim. Sim, é claro, deve ser. Quem mais poderia ser? — Ele soltou uma risada estridente que deu nos nervos de Niall. Às vezes, o homem pensava que Ordeith era no mínimo um pouco louco.
Mas, louco ou não, o sujeito é esperto.
— O que quer dizer, Ordeith? Parece que você o conhece.
Ordeith levou um susto, como se tivesse se esquecido da presença do Senhor Capitão Comandante.
— Que eu o conheço? Ah, sim, eu o conheço. Seu nome é Rand al’Thor. Ele é de Dois Rios, no interior de Andor, e é um Amigo das Trevas tão enterrado na Sombra que faria a alma do senhor se encolher de medo.
— Dois Rios — comentou Niall, pensativo. — Alguém mencionou outro Amigo das Trevas de lá, outro jovem. É estranho pensar que Amigos das Trevas venham de um lugar como aquele. Mas a verdade é que eles estão em toda parte.
— Outro, Grande Senhor? — perguntou Ordeith. — De Dois Rios? Seria Matrim Cauthon ou Perrin Aybara? A idade desses dois é próxima à dele, e a maldade não fica muito atrás.
— O nome mencionado foi Perrin — respondeu Niall, franzindo a testa. — Três deles, você disse? De Dois Rios sai apenas lã e tabaco. Duvido que haja lugar mais isolado do resto do mundo ainda habitado por homens.
— Em uma cidade, os Amigos das Trevas precisam esconder sua natureza. Afinal, têm que se relacionar com outras pessoas e estranhos que vêm de fora e partem para contar o que viram. No entanto, em aldeias tranquilas, afastadas do mundo, onde poucos forasteiros aparecem… que melhor lugar há para todos serem Amigos das Trevas?
— Como é que você sabe os nomes de três Amigos das Trevas, Ordeith? Três Amigos das Trevas vindos do fim do mundo. Você guarda muitos segredos, Amargura, e tira da manga mais surpresas que um menestrel.
— Como pode um homem contar tudo o que sabe, Grande Senhor? — retrucou o homenzinho, com delicadeza. — Até terem alguma utilidade, seriam apenas tagarelices. Eu lhe direi uma coisa, Grande Senhor. Esse Rand al’Thor, esse Dragão, tem raízes profundas em Dois Rios.
— Falso Dragão! — reforçou Niall, com rispidez, e o outro se curvou.
— É claro, Grande Senhor. Eu falei errado.
De repente, Niall percebeu que o desenho nas mãos de Ordeith estava amassado e rasgado. Mesmo ao manter o semblante tranquilo, exceto por um sorriso irônico, as mãos dele se contorciam convulsivamente enquanto seguravam o pergaminho.
— Pare com isso! — ordenou Niall. Ele tomou o desenho de Ordeith e o desamassou o quanto foi possível. — Eu não tenho imagens desse homem sobrando para permitir que uma delas seja destruída assim. — O desenho estava quase todo borrado, e um rasgo atravessara o peito do rapaz, mas, por milagre, o rosto estava intacto.
— Peço perdão, Grande Senhor. — Ordeith fez uma mesura profunda, sem jamais abandonar o sorriso. — Eu odeio os Amigos das Trevas.
Niall examinou o rosto desenhado a carvão. Rand al’Thor, de Dois Rios.
— Talvez eu deva fazer planos para Dois Rios. Quando a neve derreter. Talvez.
— Como o Grande Senhor quiser — respondeu Ordeith em tom inexpressivo.
A careta no rosto de Carridin, que percorria os corredores da Fortaleza a passos largos, fez os outros homens o evitarem, embora poucos buscassem a companhia de Questionadores. Os servos, apressados em suas tarefas, tentavam desaparecer por entre as paredes de pedra, e até os homens que ostentavam insígnias douradas nos mantos brancos decidiam pegar outro corredor ao se deparar com ele.
Ele abriu a porta de seus aposentos com um tranco e a fechou com força atrás de si, sem sentir nada da satisfação habitual ao ver os finos carpetes de Tarabon e Tear em exuberantes tons de vermelho, dourado e azul, os espelhos chanfrados de Illian, a longa mesa folheada a ouro e repleta de entalhes intrincados que ficava no centro da sala. Um mestre artesão de Lugard havia trabalhado nela por quase um ano. Ele mal reparou na mesa.
— Sharbon! — Seu camareiro não apareceu. O homem devia estar aprontando os quartos. — Que a Luz o queime, Sharbon! Onde foi que você se meteu?
Ele viu um movimento pelo canto do olho e se virou, pronto para fazer Sharbon murchar com seus xingamentos. Os próprios xingamentos murcharam quando um Myrddraal deu outro passo em sua direção, com a graça sinuosa de uma serpente.
Tinha a forma de um homem, não maior que a maioria, mas a semelhança terminava ali. As roupas e o manto negros, que quase não se agitavam quando ele se mexia, faziam a pele branca como uma larva parecer ainda mais pálida. E ele não tinha olhos. Aquele olhar sem olhos encheu Carridin de medo, como já fizera com milhares de outros.
— O que… — Carridin parou para molhar os lábios e tentar ajustar o tom de voz. — O que você está fazendo aqui? — Ainda soava estridente.
Os lábios lívidos do Meio-homem se arreganharam em um sorriso.
— Posso caminhar por onde houver sombra. — Sua voz era como o farfalhar de uma cobra por cima de folhas mortas. — Gosto de observar todos que me servem.
— Eu sir…
Era inútil. Com dificuldade, Carridin desviou os olhos daquele rosto liso, pálido e desbotado e virou as costas. Um arrepio o percorreu por dar as costas a um Myrddraal. Ele via tudo com nitidez no espelho da parede à sua frente. Tudo, menos o Meio-homem. O Myrddraal era um borrão indistinto. Nada confortável de encarar, mas melhor que enfrentar aquele olhar. Carridin recobrou um pouco de força na voz.
— Eu sirvo ao…
Ele parou e de repente se deu conta de onde estava. No coração da Fortaleza da Luz. Bastaria um rumor de que sussurrara as palavras que estava prestes a proferir para entregá-lo à Mão da Luz. O Filho mais baixo na hierarquia o mataria ali mesmo se o ouvisse. Estava sozinho, exceto pelo Myrddraal e, talvez, Sharbon — Onde está esse desgraçado? Seria bom ter alguém com quem compartilhar o olhar do Meio-homem, mesmo que precisasse se livrar dele em seguida —, mas ainda assim baixou a voz e disse:
— Eu sirvo ao Grande Senhor das Trevas, assim como o senhor. Ambos servimos.
— Se deseja ver dessa forma. — O Myrddraal riu, um som que fez Carridin estremecer até os ossos. — Ainda assim, quero saber por que está aqui e não na Planície de Almoth.
— Eu… vim até aqui por ordem do Senhor Capitão Comandante.
O Myrddraal se irritou.
— As palavras do seu Senhor Capitão Comandante são esterco! A ordem foi encontrar e matar o humano chamado Rand al’Thor. Isso antes de qualquer coisa. Antes de qualquer coisa! Por que não está obedecendo?
Carridin respirou fundo. Aquele olhar em suas costas era como o fio de uma faca raspando sua coluna.
— As coisas… mudaram. Algumas questões já não estão tanto sob meu controle quanto antes.
Um arranhão forte e áspero o fez virar a cabeça em um impulso.
O Myrddraal arrastava uma das mãos pela superfície da mesa, arrancando lascas finas de madeira.
— Nada mudou, humano. Você renunciou a seus juramentos à Luz e fez novos, e é a esses que deve obedecer.
Carridin assustou-se com os cinzéis que arruinavam a madeira polida e engoliu em seco.
— Não compreendo. Por que de repente é tão importante matar esse homem? Pensei que o Grande Senhor das Trevas pretendesse usá-lo.
— Está me questionando? Eu deveria arrancar sua língua. Seu papel não é questionar. Nem entender. Seu papel é obedecer! Sua obediência deverá servir de exemplo aos cães. Está entendendo? Ajoelhe-se, cão, e obedeça a seu mestre.
A raiva subiu rastejando por cima do medo, e Carridin tateou o lado do corpo com a mão, mas sua espada não estava lá. Estava no quarto ao lado, onde a deixara antes de atender ao chamado de Pedron Niall.
O Myrddraal foi mais rápido que uma víbora dando o bote. Carridin abriu a boca para gritar assim que a mão esmagou seu pulso. Os ossos quase se partiram, enviando ondas de dor pelo braço inteiro. No entanto, o grito jamais saiu de sua boca, pois o Meio-homem agarrou seu queixo com a outra mão e fechou sua mandíbula à força. Seus calcanhares se elevaram, depois os dedos dos pés deixaram o chão. Grunhindo e gorgolejando, ele balançava, suspenso pelo punho do Myrddraal.
— Ouça bem, humano. Você encontrará esse jovem e o matará o mais rápido possível. Não pense que pode me enganar. Há outros Filhos que me contarão se você se desviar de seu propósito. Mas lhe darei um incentivo. Se Rand al’Thor não estiver morto dentro de um mês, levarei alguém do seu sangue. Um filho, uma filha, uma irmã, um tio. Você só saberá quem quando o escolhido gritar até a morte. Se ele viver por mais um mês depois disso, levarei mais um. E então outro, e outro. E, quando não houver mais ninguém de seu sangue, se ele ainda estiver vivo, levarei você a Shayol Ghul. — Ele sorriu. — Passará anos à beira da morte, humano. Está me entendendo agora?
Carridin emitiu um som que era metade gemido, metade lamúria. Pensou que fosse quebrar o pescoço.
Com um rosnado, o Myrddraal o arremessou do outro lado do aposento. Carridin bateu na parede e deslizou até o tapete, atordoado. Com a cara no chão, lutou para respirar.
— Está me entendendo, humano?
— Eu… eu ouço e obedeço — conseguiu dizer Carridin, com a cara enfiada no tapete. Não houve resposta.
Ele virou a cabeça, encolhendo-se pela dor no pescoço. Não havia mais ninguém no recinto. Meios-homens cavalgavam as sombras como cavalos, diziam as lendas, e desapareciam quando se viravam de lado. Nenhuma parede era capaz de detê-los. Carridin quis chorar. Levantou-se, maldizendo a fisgada de dor no pulso.
A porta se abriu, e Sharbon adentrou depressa, um homem roliço com um cesto nos braços. Ele parou e encarou Carridin.
— Mestre, o senhor está bem? Perdoe-me por não estar aqui, mestre, mas fui comprar frutas para seu…
Com a mão boa, Carridin acertou o cesto que Sharbon segurava, fazendo as maçãs de inverno mirradas rolarem pelo tapete, e deu um tapa no rosto do homem.
— Perdoe-me, mestre — sussurrou Sharbon.
— Traga papel, caneta e tinta — rosnou Carridin. — Ande logo, seu idiota! Preciso enviar algumas ordens. — Mas quais? Quais? Enquanto Sharbon corria para obedecê-lo, Carridin encarou as marcas no tampo da mesa e estremeceu.
E muitos serão seus caminhos, e muitos saberão seu nome, pois muitas vezes ele renascerá entre nós, sob diversas formas, como foi e sempre será, tempo sem fim. Sua vinda será como a ponta afiada do arado, revirando e sulcando nossas vidas a começar do ponto onde jazemos em silêncio. O destruidor de elos, o forjador de correntes. O fazedor de futuros, o desmoldador do destino.