9

A luz vinda da solitária janela da cela formava um desenho no reboco da parede oposta à cama de Nicole. As barras da janela criavam a imagem de um quadrado com um plano para jogo-da-velha, uma matriz quase perfeita de trêspor-três. A luz na cela avisava Nicole de que estava na hora de ela se levantar. Ela cruzou o quarto desde o catre de madeira onde dormia, e lavou o rosto na pia.

Depois, respirou fundo e tentou reunir suas forças para enfrentar o dia.

Nicole estava razoavelmente certa de que sua mais recente prisão, na qual estava havia já uns cinco meses, ficava em algum ponto do Novo Éden na área de plantio entre Hakone e San Miguel. Tivera os olhos tapados ao ser transferida a última vez. Nicole concluíra rapidamente, no entanto, que estava em área rural.

Ocasionalmente um forte odor de animais entrava na cela pela janela de quarenta centímetros quadrados bem junto ao teto e, além do mais, ela não conseguia ver nenhuma espécie de iluminação entrando pela janela quando era noite no Novo Éden.

Estes últimos meses foram os piores, pensou Nicole, ao ficar nas pontas dos pés para empurrar algumas gramas de arroz de sabor artificial pela janela.

Nada de conversa, nada de leitura, nada de exercício. Duas refeições por dia de arroz e água. O pequeno esquilo vermelho que a visitava todo dia de manhã apareceu do lado de fora. Nicole podia ouvi-lo. Ela recuou para o fundo da cela a fim de poder vê-lo comer o arroz.

“Você é minha única companhia, meu belo amigo”, disse ela em voz alta.

O esquilo parou de comer e ficou ouvindo, sempre alerta ante a possibilidade de algum perigo. “E nunca entendeu uma só palavra do que eu digo.”

O esquilo não se demorou. Assim que acabou de comer sua ração de arroz, foi-se embora, deixando Nicole sozinha. Por vários minutos, ela ficou olhando para a janela, para onde estivera o esquilo, imaginando o que teria acontecido com sua família.

Até seis meses antes, quando seu julgamento por sedição fora “indefinidamente adiado”, na última hora, Nicole podia ter uma visita por semana, durante uma hora. Mesmo sendo a conversa testemunhada por um guarda e qualquer menção sobre política ou acontecimentos do momento estritamente proibida, ela aguardara sofregamente suas sessões semanais com Ellie ou Patrick. Geralmente, era Ellie quem vinha. Por meio de frases muito cuidadosamente redigidas por parte dos dois filhos, Nicole deduzia que Patrick estava envolvido em alguma espécie de trabalho governamental e só tinha tempo ocasionalmente.

Nicole ficara a princípio zangada e, a seguir, deprimida, ao saber que Benjy tinha ido parar em uma instituição e não teria permissão para vê-la. Ellie tentara garantir-lhe que Benjy estava bem, dadas as circunstâncias. Haviam falado muito pouco sobre Katie. Nem Ellie e nem Patrick souberam como explicar a Nicole que sua irmã mais velha não mostrara realmente o menor interesse em visitar a mãe.

A gravidez de Ellie era sempre um tópico tranqüilo de conversar, durante aquelas primeiras visitas. Nicole vibrava ao tocar na barriga da filha ou ao conversar sobre os sentimentos especiais de uma futura mãe. Ellie contava como o bebê era ativo. Nicole compartilhava a experiência e comparava com as suas próprias (“Grávida de Patrick”, disse Nicole certa vez, “nunca me sentia cansada.

Você por outro lado foi um pesadelo para sua mãe — sempre dando pontapés no meio da noite, quando eu queria dormir”); se Ellie não se sentia bem, Nicole receitava alimentos ou atividades físicas que a ajudaram em circunstâncias semelhantes.

A última visita de Ellie tivera lugar dois meses antes da data prevista para o nascimento do bebê. Nicole fora removida para sua nova cela na semana seguinte, e não falara mais a um único ser humano, desde então. Os biomas mudos que atendiam Nicole jamais davam qualquer indicação de haver ouvido suas perguntas. Uma vez, em um ataque de frustração, ela gritava com a Tiasso que lhe dera seu banho semanal. “Não compreende? Minha filha estava para ter um bebê, meu neto, algum dia da semana passada. Eu preciso saber se eles estão bem!”

Nas celas anteriores, Nicole sempre tivera permissão para ler. Novos livrodiscos lhe eram trazidos da biblioteca sempre que pedia, de modo que os dias entre as visitas passavam de forma mais ou menos rápida. Ela relera quase todos os romances históricos de seu pai, além de alguma poesia, história, e alguns de seus livros médicos mais interessantes. Nicole ficara particularmente fascinada pelos paralelos entre a sua vida e as de suas duas heroínas de infância, Joana d’Arc e Eleonor de Aquitânia. Ela amparava sua própria força notando que nenhuma das duas mulheres permitira que suas posições básicas se alterassem a despeito de longos e difíceis períodos na prisão.

Logo que se mudou, quando a Garcia que a atendia na nova cela não devolveu seu ledor eletrônico junto com seus outros pertences pessoais, Nicole pensou que fosse apenas um simples engano. No entanto, depois de pedir o aparelho várias vezes, e este continuar a não aparecer, compreendeu que agora lhe era negado o privilégio da leitura.

O tempo passava muito lentamente para Nicole em sua nova cela. Durante várias horas por dia, ela deliberadamente caminhava de um lado para outro, tentando manter ativos seu corpo e sua mente. Tentou organizar essas sessões de caminhada, mantendo-se afastada de pensamentos a respeito de sua família, que ela sabia causarem inevitavelmente sensações de solidão e depressão sempre mais fortes, e voltando-se para conceitos e idéias filosóficas mais gerais. Muitas vezes, na conclusão de tais sessões, ela focalizava algum acontecimento passado de sua vida, tentando extrair dele algum significado mais profundo.

Durante uma dessas sessões, Nicole rememorou com clareza uma seqüência de acontecimentos que tiveram lugar quando ela tinha 15 anos. Àquela altura, ela e seu pai viviam confortavelmente aconchegados em Beauvois e Nicole estava fazendo mais do que bonito na escola. Ela resolvera entrar no concurso nacional que escolheria três mocinhas para desempenhar Joana d’Arc em quadros vivos que comemorariam os 750 anos do martírio da donzela em Rouen.

Nicole atirou-se no concurso com uma paixão e uma vontade que tanto emocionavam quanto preocupavam seu pai. Depois de ganhar o concurso regional em Tours, Pierre chegou mesmo a parar de trabalhar em seus romances por seis semanas a fim de ajudar sua amada filha a preparar-se para as finais em Rouen.

Nicole ficou em primeiro lugar, tanto na parte atlética quanto nas partes intelectuais do concurso. Até mesmo tirou nota alta na avaliação de interpretação. Ela e o pai estavam certos de que seria escolhida. Mas quando as vencedoras foram anunciadas, Nicole ficara entre as segundas colocadas.

Durante anos, pensou Nicole enquanto caminhava em sua cela no Novo Éden, pensei que havia fracassado. O que meu pai dissera sobre a França ainda não estar pronta para uma Joana d’Arc cor de cobre não teve importância. Em minha mente, eu fracassara. Fiquei arrasada. Minha auto-estima na verdade não se recuperou até as Olimpíadas, e aí passaram-se só uns poucos dias antes que Henry tomasse a me derrubar.

O preço foi terrível, continuou Nicole. Durante anos fiquei totalmente absorvida comigo mesma em razão de minha falta de auto-estima. Só muito mais tarde é que finalmente fiquei contente comigo mesma. E só então me tornei capaz de me dar aos outros. Parou por um momento em seus pensamentos. Por que será que tantos de nós passamos por essa mesma experiência? Por que a juventude será tão egoísta, por que haveremos de ter primeiro de encontrar a nós mesmos, para só depois compreender quanta coisa mais existe na vida? Quando a Garcia que sempre trazia suas refeições incluiu um pouco de pão fresco e algumas cenouras cruas no jantar, Nicole desconfiou de que alguma mudança estava para acontecer em seu regime. Dois dias mais tarde, a Tiasso entrou em sua cela com uma escova de cabelo, maquilagem, um espelho, e até um pouco de perfume. Nicole tomou um longo e farto banho e refrescou-se pela primeira vez em meses. Quando o bioma pegou a banheira de madeira e se preparou para sair, ele entregou-lhe um bilhete. “Você terá uma visita amanhã de manhã”, estava escrito.

Nicole não conseguiu dormir. De manhã, falou sem parar, como uma menina, conversando com seu amigo esquilo, discutindo suas esperanças e preocupações quanto ao encontro que se anunciava. Ajeitou várias vezes o rosto e os cabelos, antes de proclamar que nenhum dos dois tinha solução. O tempo passou muito devagar.

Finalmente, logo antes do almoço, ela ouviu passos humanos vindos pelo corredor na direção de sua cela. Nicole correu para a porta, esperando. “Katie”, gritou ela, quando viu a filha aparecer na última curva do corredor.

“Olá, Mamãe”, disse Katie abrindo a porta com a chave e entrando na cela.

As duas mulheres abraçaram-se por vários segundos. Nicole tentou reter as lágrimas que jorravam de seus olhos.

Elas sentaram-se na cama de Nicole, única peça de mobiliário do cômodo, e conversaram amigavelmente por vários minutos a respeito da família. Katie informou a Nicole que ela tinha uma netinha nova (“Nicole des Jardins Turner”, disse ela, “você deveria estar orgulhosa”) e depois puxou umas vinte fotografias.

As fotos incluíam instantâneos do bebê com seus pais, Ellie e Benjy em um parque em algum lugar, Patrick de uniforme, e até mesmo algumas de Katie de vestido de noite. Nicole estudou-as uma a uma, os olhos se enchendo de lágrimas a todo momento. “Ah, Katie”, exclamou várias vezes.

Quando acabou, Nicole agradeceu profusamente a filha por ter trazido as fotos. “Pode ficar com elas, Mamãe”, disse Katie, pondo-se de pé e caminhando até a janela. Abrindo a bolsa, ela tirou cigarros e isqueiro.

“Querida”, disse Nicole, hesitante, “será que poderia não fumar aqui? A ventilação é péssima. O cheiro iria durar várias semanas.”

Katie encarou a mãe por alguns momentos, depois guardou os cigarros e o isqueiro na bolsa. Nesse momento, um par de Garcias apareceu carregando uma mesa e duas cadeiras.

“O que é isso?” perguntou Nicole.

Katie sorriu. “Nós vamos almoçar juntas. Mandei preparar algo de especial para esta ocasião — frango com molho de cogumelos em vinho”.

A comida, que cheirava deliciosamente, logo depois foi trazida à cela por uma terceira Garcia e colocada na mesa coberta ao lado da louça e da prata de ótima qualidade. Havia até uma garrafa de vinho e dois copos de cristal.

Foi difícil para Nicole lembrar-se de suas boas maneiras. O frango estava tão delicioso, os cogumelos tão macios, que ela comeu a refeição inteira sem falar.

De vez em quando, ao tomar um gole de vinho, Nicole murmurava “mmmm”, ou “fantástico”, porém basicamente não disse nada enquanto seu prato não foi completamente limpo.

Katie, que se habituara a comer muito pouco, mordiscou a comida e olhou para a mãe. Quando Nicole acabou, Katie chamou uma Garcia para remover os pratos e trazer café. Fazia quase dois anos desde que Nicole bebera uma boa xícara de café.

“Então, Katie”, disse Nicole com um sorriso caloroso, depois de agradecer pelo almoço, “e você? O que anda fazendo?” Katie deu uma gargalhada grosseira. “A merda de sempre. Agora sou “Diretora de Entretenimento” de todo o conjunto Vegas… Programo os números a serem apresentados… As coisas vão indo muito bem apesar…” Katie interrompeuse a tempo, lembrando-se de que sua mãe não sabia que houvesse uma guerra no segundo habitat.

“Encontrou um homem que aprecie os seus atributos?” perguntou Nicole, com tato.

“Ninguém que fique.” Katie ficou meio constrangida com a própria resposta e repentinamente ficou agitada. “Escute aqui, Mamãe”, disse ela inclinando-se sobre a mesa. “Não vim aqui para discutir minha vida amorosa…

Tenho uma proposta para você, ou melhor, a família tem uma proposta para você, que todos nós apoiamos.”

Nicole encarou a filha com expressão de perplexidade. Pela primeira vez, notou que Katie envelhecera muito nos dois anos desde que a vira pela última vez, “Não compreendo”, disse Nicole. “Que espécie de proposta?”

“Bem, como talvez você já saiba, o governo vem preparando o caso contra você já faz tempo. Agora já estão prontos para o julgamento. A acusação é sedição, que implica obrigatoriamente pena de morte. O promotor nos disse que as provas contra você são avassaladoras, e que com certeza será condenada. No entanto, em virtude de seus serviços passados à colônia, se você se declarar culpada da acusação menor de ‘sedição involuntária’, ele esquecerá…”

“Mas eu não sou culpada de nada”, disse Nicole com firmeza. “Eu sei, Mamãe”, replicou Katie, com um traço de impaciência. “Porém nós — Ellie, Patrick e eu — concordamos em que é muito provável que você seja condenada. O promotor prometeu que se você simplesmente se declarar culpada da acusação menor, você será imediatamente transferida para um ambiente mais agradável com permissão para ter visitas da família, inclusive sua netinha nova… Ele chegou mesmo a sugerir que talvez pudesse interceder para que Benjy fosse morar com Ellie e Robert…”

Nicole ficara muito perturbada. “E todos vocês acham que eu deveria aceitar essa barganha e me reconhecer culpada, muito embora tenha inabalavelmente proclamado minha inocência desde que fui presa?”

Katie acenou com a cabeça. “Não queremos que você morra. Especialmente sem que haja motivo”.

“Não haja motivo”, os olhos de Nicole de repente soltaram faíscas. “Você acha que eu estaria morrendo sem motivo?” Ela se afastou da mesa, levantou-se e começou a caminhar pela cela. “Eu estaria morrendo pela justiça”, disse Nicole, mais para si mesma do que para Katie, “ao menos assim o penso, e não há uma única alma neste mundo que me compreenda.”

“Mas, Mamãe”, exclamou Katie, “do que é que ia adiantar? Seus filhos é sua neta ficariam para sempre privados de sua companhia, Benjy iria ficar para sempre naquela instituição nojenta…”

“E então aparece essa barganha”, interrompeu-a Nicole, elevando a voz, “uma versão mais insidiosa do pacto de Fausto com o diabo… Abandone seus princípios, Nicole, e reconheça sua culpa, muito embora você jamais tenha transgredido. E não venda sua alma por alguma mera recompensa terrena. Não, isso seria muito fácil de rejeitar… Pedem-lhe que faça esse acordo porque sua família pode beneficiar-se dele… Será que algum apelo mais tentador poderá jamais ser feito a uma mãe?”

Os olhos de Nicole estavam em fogo. Katie pegou a bolsa, tirou um cigarro e o acendeu com mão trêmula. “E quem é que me vem aqui com tal proposta?”

continuou Nicole. Agora já estava gritando. “Quem me traz comida deliciosa e vinho e retratos de minha família para me amolecer para o golpe de faca autoinfligido que sem dúvida me há de matar com muito mais dor do que a cadeira elétrica? Ora, a minha filha, o amado fruto do meu ventre.”

Nicole de repente avançou e agarrou Katie. “Não banque o Judas para eles, Katie”, disse Nicole sacudindo a filha assustada. “Você é muito melhor do que isso. Com o tempo, se eles me condenarem e executarem com essas acusações falsas, você há de apreciar o que estou fazendo.”

Katie livrou-se das mãos da mãe e cambaleou para trás. Tirou uma baforada do cigarro. “Isso é só bafo, Mamãe”, disse ela um momento depois. “Bafo de merda, do princípio ao fim… Você está apenas sendo mais direita e santa do que os outros, como de hábito… Olhe, eu vim aqui para ajudá-la, para oferecer-lhe uma possibilidade de continuar viva. Será que nem por uma vez você será capaz de ouvir o que os outros dizem, na droga da sua vida?”

Nicole fixou Katie por vários segundos. Sua voz estava mais suave quando tornou a falar. “Eu estive ouvindo você, Katie, e não gostei do que ouvi. E estive também a observá-la… Não creio nem por um momento que você tenha vindo aqui hoje para me ajudar. Isso seria totalmente incoerente com tudo o que tenho visto do seu caráter nestes últimos anos. Tem de haver algum ganho para você nisso tudo…

“E tampouco acredito que de forma alguma você represente Ellie e Patrick.

Se assim fosse, eles teriam vindo com você. Devo confessar que por algum tempo, antes fiquei confusa e sentindo que talvez estivesse causando dor excessiva a meus filhos… Mas nestes últimos minutos percebi com muita clareza o que estava acontecendo por aqui… Katie, minha querida Katie…”

“Não me toque de novo”, gritou Katie, quando Nicole se aproximou dela.

Os olhos de Katie estavam rasos de lágrimas. “E poupe-me sua piedade de ser superior…”

A cela ficou momentaneamente em silêncio. Katie terminou seu cigarro e tentou se recompor. “Olhe”, disse ela finalmente, “não me importo merda nenhuma com o que você sinta por mim, isso não é importante, mas por que, Mamãe, por que não pode pensar em Patrick e Ellie e até mesmo na pequena Nicole? Será que ser santa é tão importante para você que eles tenham de sofrer por isso?”

“Com o tempo”, respondeu Nicole, “você há de compreender.”

“Com o tempo”, disse Katie com raiva, “você estará morta. Muito em breve… Será que você compreende que no momento em que eu sair daqui e disser a Nakamura que você não topou o trato, a data do seu julgamento será marcada?

E que você não tem a menor chance, não tem a menor porra de chance nenhuma?”

“Você não pode me assustar”, Katie. “Não posso assustá-la, não posso tocá-la, não posso sequer apelar para seu critério de julgamento. Como todos os santos bons, você só escuta suas próprias vozes.”

Katie respirou fundo. “Então, acho que isto é o fim… Adeus, mamãe.” A despeito de si mesma, Katie sentiu novamente lágrimas nos olhos. Nicole chorava abertamente. “Adeus, Katie”, disse ela. “Eu te amo.”

Загрузка...