5

Novamente Richard perdeu a noção do tempo. Em algum momento durante os últimos dias (ou seriam semanas?) em que vivera dentro daquela teia alienígena, ele havia mudado de posição. Durante os primeiros cochilos, a rede havia também removido suas roupas e agora Richard estava deitado de costas, sustentado por um segmento extremamente denso naquela teia fina que envolvia seu corpo.

Sua mente não indagava mais, conscientemente, como ele estaria conseguindo sobreviver. De algum modo, sempre que sentia fome ou sede, suas necessidades eram rapidamente satisfeitas. Seus desejos sempre desapareciam em poucos minutos. A respiração era fácil, muito embora ele estivesse totalmente cercado pela teia viva.

Richard passava muitas de suas horas conscientes estudando a criatura à sua volta. Olhando com cuidado, ele podia ver que aqueles elementos minúsculos estavam sempre em movimento. O desenho da teia à sua volta se alterava muito constantemente, mas definitivamente ia mudando. Richard fez uma gráfico mental das trajetórias dos gânglios que conseguia ver. A certa altura, três gânglios diferentes migraram para a vizinhança dele e formaram um triângulo em frente à sua cabeça.

A teia desenvolveu um ciclo reconhecível de interação com Richard. Ela mantinha seus milhares de filamentos presos a ele de quinze a vinte horas de cada vez, depois o soltava inteiramente por várias horas. Richard dormia sem sonhar sempre que não estava preso à teia. Se acaso acordava livre, ficava enervado e apático. Porém cada vez que os fios começavam a se enrolar nele novamente, sentia uma nova onda de energia. Seus sonhos eram ativos e vividos se ele adormecia ligado à teia. Richard jamais fora de muito sonhar antes, e muitas vezes rira das preocupações de Nicole com seus sonhos. Mas à medida que suas imagens em sonho se tornavam mais complexas, e em alguns casos mais bizarras, Richard começou a apreciar as razões pelas quais Nicole prestaria tanta atenção a elas. Certa noite, ele sonhou que era novamente adolescente e estava no teatro vendo uma montagem de Como quiserem em Stratford-on-Avon, sua cidade natal. A moça loura e linda que estava interpretando Rosalind desceu do palco e estava sussurrando em seu ouvido.

“Você é Richard Wakefield?” perguntou ela, no sonho.

“Sou”, respondeu ele.

A atriz começou a beijar Richard, primeiro lentamente, depois mais apaixonadamente, com uma língua viva que saltitava fazendo cócegas pelo interior de sua boca. Ele sentiu uma onda avassaladora de desejo e então despertou abruptamente, estranhamente embaraçado tanto por sua nudez quanto por sua ereção. E agora o que era tudo isso? ficou imaginando Richard, ecoando uma frase que muitas vezes ouvira de Nicole.

Em algum estágio de seu cativeiro suas lembranças de Nicole ficaram muito mais nítidas, mais claramente delineadas. Richard descobriu, para surpresa sua, que na ausência de outros estímulos ele era capaz, se se concentrasse, de recordar conversas inteiras com Nicole, inclusive detalhes, como o tipo de expressão facial que ela usara para pontuar suas frases. No prolongado período dentro da teia, Richard muitas vezes sofreu de solidão, com as lembranças vividas fazendo-o sentir falta ainda maior de sua amada mulher.

Suas lembranças das crianças eram igualmente nítidas. Ele sentia falta de todas, e especialmente de Katie. Lembrava-se de sua última conversa com aquela sua filha especial, vários dias antes do casamento, quando ela tinha aparecido em casa para buscar umas roupas. Katie estava deprimida e necessitada de apoio, porém Richard não fora capaz de dá-lo. Simplesmente não havia ligação nenhuma, pensou Richard. A imagem recente de Katie como uma jovem mulher sexy foi substituída por outra, de uma menina de dez anos, sem medo, a saltar pelas praças de Nova York. A superimposição das duas imagens provocou uma profunda sensação de perda em Richard. Jamais me senti à vontade com Katie depois que ela despertou, compreendeu ele com um suspiro. Eu continuava querendo a minha menininha.

A clareza de suas lembranças de Nicole e Katie convenceu Richard de que algo extraordinário estava acontecendo à sua memória. Descobriu que também podia lembrar-se do resultado exato de cada quarta-de-final, semifinal e final de todas as Copas do Mundo entre 2174 e 2190. Richard soubera toda essa informação inútil como rapaz, pois fora um apaixonado fã de futebol. No entanto, durante os anos antes do lançamento da Newton, quando tantas coisas novas estavam atulhando seu cérebro, muitas vezes fora incapaz, até mesmo durante discussões sobre futebol com os amigos, de lembrar-se sequer de que países haviam jogado nesta ou naquela partida crucial da Copa do Mundo.

À medida que as imagens de sua memória continuavam a tornar-se cada vez mais nítidas, Richard descobriu que estava também rememorando as emoções associadas às imagens. Era quase como se ele estivesse revivendo integralmente as experiências. Em uma longa rememoração, ele se lembrou não só dos avassaladores sentimentos de amor e adoração que sentira por Sarah Tydings quando a vira pela primeira vez atuando em um palco, como também a emoção e vibração de seu namoro e até mesmo a paixão desenfreada de sua primeira noite de amor. Esta o deixara sem respiração então e agora, muitos anos mais tarde, envolto por uma criatura alienígena semelhante a uma teia de neurônios, a reação de Richard foi igualmente forte.

Em breve, tudo parecia como se Richard não tivesse mais controle sobre as lembranças ativadas em seu cérebro. A princípio, ou assim achava ele, havia pensado propositadamente em Nicole ou nos filhos ou até mesmo em seu namoro com a jovem Sarah Tydings, só para se sentir feliz. Agora, disse ele um dia durante uma conversa imaginária com aquela teia suave, depois de haver refrescado minha memória — só Deus sabe com que objetivo — parece que você está lendo tudo o que há nela.

Durante muitas horas, gostou da leitura forçada de sua memória, em particular dos trechos que cobriam sua vida em Cambridge e na Academia Espacial, quando seus dias eram preenchidos pela alegria constante do novo conhecimento… Física quântica, a explosão cambriana, probabilidade e estatísticas, até mesmo o vocabulário de há muito esquecido de suas lições de alemão, lembraram-no de quanto sua felicidade na vida se devera à excitação de aprender. Outra lembrança particularmente prazerosa fez sua mente pular de peça em peça, cobrindo todas as montagens teatrais de Shakespeare que vira entre os dez e os dezessete anos. Todo mundo precisa de um herói, pensou Richard depois de rever aquela colagem de cenas, como um incentivo para a realização do melhor de si mesmo. O meu herói foi definitivamente William Shakespeare.

Algumas lembranças foram dolorosas, em particular as de sua infância.

Em uma delas, Richard estava novamente com oito anos, sentado em um banquinho à pequena mesa da sala de jantar da família. A atmosfera estava tensa. Seu pai, bêbado e zangado com o mundo, lançava olhares odientos a todos eles, enquanto comiam em silêncio. Richard acidentalmente derramou um pouquinho de sopa e segundos mais tarde a mão do pai atingiu-o no rosto com força bastante para derrubá-lo do banco e atirá-lo em um canto da sala, onde ficou tremendo de medo e choque. Havia anos que ele não se lembrava daquele episódio, mas não pôde reter as lágrimas ao rememorar o quanto ficara indefeso e amedrontado perto daquele pai neurótico e agressivo.

Certo dia, de repente, Richard começou a lembrar-se de detalhes de sua longa odisséia em Rama II, e uma dor de cabeça fortíssima quase o cegou. Viu-se em uma sala desconhecida, deitado no chão, cercado por três ou quatro octoaranhas. Dúzias de sondas e outros instrumentos haviam sido implantados nele, e alguma espécie de teste estava sendo realizado.

“Parem, parem”, gritou Richard, destruindo a imagem na memória com sua intensa agitação. “Minha cabeça está me matando.”

Miraculosamente, a dor de cabeça começou a ceder e novamente Richard viu-se em meio às octoaranhas em sua memória. Lembrou-se dos dias e dias de testes por que passara e as minúsculas criaturas vivas que foram inseridas em seu corpo. Lembrou-se também de um peculiar conjunto de experimentações sexuais quando fora sujeitado a toda espécie de estímulo externo e recompensado quando ejaculava. Richard ficou surpreendido com essas novas lembranças às quais jamais tivera acesso antes, nem um só vez, desde que despertara do coma no qual sua família o havia encontrado em Nova York. Agora me lembro de outras coisas também a respeito das octoaranhas, refletiu excitado. Elas falavam entre si em cores que se enrolavam em torno de suas cabeças. Eram basicamente amistosas, porém determinadas a aprender tudo o que pudessem a meu respeito. Elas…

A imagem mental desapareceu e a dor de cabeça de Richard voltou. Os fios da teia acabavam de ser desligados. Richard estava exausto e adormeceu rapidamente.


Depois de dias e dias de uma lembrança após a outra, a leitura cessou abruptamente. A mente de Richard deixou de ser motivada por alguma força externa atuante. Os fios da teia permaneciam desligados por longos períodos de tempo.

Uma semana se passou sem incidentes. Na segunda, no entanto, um gânglio esférico bem diferente, muito maior e mais densamente enrolado do que os novelos normais da teia viva, começou a se desenvolver a uns vinte centímetros da cabeça de Richard. O gânglio cresceu até ficar mais ou menos do tamanho de uma bola de basquete. Pouco depois, o imenso novelo emitiu centenas de filamentos que se inseriram em torno da circunferência da caveira de Richard. Finalmente, pensou Richard, ignorando a dor causada pela invasão dos fios em seu cérebro, agora vamos ver o porquê de tudo isto.

Começou imediatamente a ver uma espécie de imagens, tão difusas que não lhe era possível identificar nada em particular. A qualidade das imagens mentais de Richard melhorou muito rapidamente, no entanto, quando ele concebeu inteligentemente um meio rudimentar de comunicação com a teia. Tão logo a primeira imagem apareceu em sua mente, Richard concluiu que a teia que vinha lendo o produto de sua memória havia dias, agora estava tentando escrever alguma coisa em seu cérebro. Mas a teia, ficava claro, não tinha meios para medir a qualidade das imagens que Richard estava recebendo. Lembrando-se de suas visitas a seu médico oculista quando menino e os modelos de comunicação que resultavam na especificação definitiva das lentes para seus óculos, Richard usou os dedos para indicar se cada mudança feita pela teia em seu processo de transmissão o melhorara ou piorara. Desse modo, em breve Richard pôde “ver” o que o alienígena estava tentando mostrar-lhe.

As primeiras imagens foram de um planeta, tomadas de uma nave espacial. O mundo coberto de nuvens com duas luas pequenas e uma estrela amarela distante e solitária como sua fonte de luz e calor quase que com certeza seria o planeta natal daquelas teias sésseis. A seqüência de imagens que se seguiu mostrou a Richard várias paisagens do planeta.

A neblina era onipresente no mundo natal dos sésseis. Sob a neblina, na maioria das imagens, havia uma superfície marrom, sem rochas, estéril. Só os litorais, onde a terra estéril se encontrava com as ondas do líquido verde de mares e lagos, sugeriam alguma vida. Em um desses oásis viu não só várias aves como também uma fascinante mistura de outras coisas vivas. Richard poderia ter passado dias examinando apenas uma. daquelas imagens, mas não tinha controle sobre a sua seqüência. A teia tinha algum objetivo para sua comunicação, estava convencido, e o primeiro conjunto de imagens era apenas uma introdução.

Todo o resto das imagens apresentava ou uma ave, um melão maná, um myrmigato, uma teia séssil ou alguma combinação desse mesmo quarteto. As cenas eram tomadas do que Richard supôs ser a “vida normal” em seu planeta natal, e abrangia o tema geral da simbiose entre as espécies. Em várias das imagens, as aves eram mostradas defendendo as colônias subterrâneas de myrmigatos e sésseis de invasões pelo que pareciam ser pequenos animais e plantas. Outras retratavam os myrmigatos cuidando das aves recém-chocadas ou transportando grandes quantidades de melões manás para um abrigo de aves.

Richard ficou perplexo quando viu várias imagens que mostravam pequeníssimos melões manás incrustados dentro das criaturas sésseis. Por que razão haveriam os myrmigatos de botar seus ovos ali? indagou-se. Para proteção?

Ou seriam essas estranhas teias uma espécie de placenta pensante?

Uma impressão clara deixada em Richard pela seqüência de imagens era a de que os sésseis eram, em um sentido hierárquico, a espécie dominante das três.

Todas as imagens sugeriam que tanto os myrmigatos quanto as aves rendiam homenagens às criaturas que constituíam as malhas. Será que essas teias, de algum modo pensam tudo o que há de importante para as aves e o myrmigatos? perguntou-se Richard. Que incrível relacionamento simbiótico!… Como seria possível que elas se desenvolvessem?

Havia um total de vários milhares de imagens na seqüência. Depois de ser repetida duas vezes, os filamentos soltaram-se de Richard e voltaram ao gânglio gigante. Nos dias seguintes, Richard foi, em essência, deixado sozinho, com as ligações com seus hospedeiros reduzidas às necessárias para sua sobrevivência.


Quando uma trilha se formou na teia, e Richard pôde ver a porta pela qual entrara várias semanas antes, pensou que fosse ser libertado. Seu entusiasmo momentâneo, no entanto, foi rapidamente abafado. Mal fez ele sua primeira tentativa de se mexer, a tela séssil apertou seu contato em todas as partes de seu corpo.

Então, qual é o objetivo da trilha? Enquanto Richard olhava, um trio de myrmigatos entrou vindo do corredor. A criatura do meio tinha duas pernas partidas e seu segmento posterior estava amassado, como se houvesse sido atropelado por um carro pesado ou um caminhão. Seus dois companheiros carregavam o myrmigato incapacitado para dentro da teia e depois partiram.

Dentro de segundos a teia começou a se enrolar em torno do recém-chegado.

Richard estava a cerca de dois metros do myrmigato aleijado, e a área entre ele e o ferido continuava vazia de fios ou novelos. Richard jamais vira qualquer espaço vazio dentro da massa viva. Então, minha educação vai continuar. O que será que devo aprender agora? Os sésseis são médicos dos myrmigatos, assim como os myrmigatos são médicos da aves?

A teia não restringiu suas atenções às partes danificadas do myrmigato.

De fato, durante um longo período desperto, Richard observou a teia envolver inteiramente a criatura em um casulo apertado. Ao mesmo tempo, o grande gânglio logo perto de Richard mudou-se para perto do casulo. Mais tarde, depois de um cochilo, Richard notou que o gânglio estava de volta a seu lado. O casulo do outro lado da grande falha na teia já estava quase que completamente desenrolado. O pulso de Richard bateu duas vezes mais forte quando o casulo desapareceu completamente e não restava o menor traço do myrmigato.

Richard não teve muito tempo para se indagar a respeito do que poderia ter acontecido ao myrmigato. Em poucos minutos, os filamentos do gânglio grande já estavam novamente agregados à sua cabeça e outra sessão de imagens era apresentada a seu cérebro. Na primeira imagem, Richard viu cinco soldados humanos acampados na margem do fosso dentro do habitat das aves. Estavam comendo sua refeição. A seu lado, estava um imponente conjunto de armas, inclusive duas metralhadoras.

As imagens que se seguiram mostravam humanos atacando todo o segundo habitat. Duas das primeiras cenas foram particularmente cruentas. Na primeira, uma ave jovem fora decapitada em pleno ar e estava caindo no chão.

Um par de humanos satisfeitos congratulava-se mutuamente na parte inferior do mesmo quadro. A segunda imagem retratava um grande buraco quadrado em um dos setores do prado da região verde. Dentro do buraco eram vistos os restos de várias aves mortas. Um humano com um carrinho de mão contendo mais dois cadáveres de aves estava se aproximando da grande vala comum, vindo da esquerda.

Richard ficou arrasado pelo que estava vendo. Afinal, o que são essas imagens? perguntou-se. E por que razão eu deveria vê-las agora? Ele reviu rapidamente todos os acontecimentos recentes em seu mundo séssil e concluiu, bastante chocado, que o myrmigato ferido deveria ter efetivamente visto tudo o que lhe estava sendo mostrado, e a criatura de teia havia de algum modo removido as imagens da mente do myrmigato e as transferido para o cérebro de Richard.

Uma vez compreendido o que estava vendo, Richard prestou maior atenção às imagens em si. Ficou absolutamente indignado com a invasão e a matança que presenciava. Em uma das imagens subseqüentes, três soldados humanos eram vistos invadindo um complexo de apartamentos das aves dentro do cilindro marrom. Não houve sobreviventes.

Essas pobres criaturas estão condenadas, disse Richard de si para si, e é preciso que elas o saibam…

Repentinamente, formaram-se lágrimas nos olhos de Richard e a mais profunda tristeza que jamais conheceu acompanhou sua tomada de consciência de que membros de sua própria espécie estavam exterminando sistematicamente as aves. Não! gritou ele silenciosamente. Parem, por favor, parem. Será que não vêem o que estão fazendo? Essas aves também são exemplo que proclama o milagre da elevação de elementos químicos até o nível da consciência. Elas são como nós. São nossos irmãos.

Nos segundos que se seguiram, os muitos contatos e interações que Richard tivera com aquelas criaturas de aspectos de pássaro inundaram sua memória e expulsaram as imagens implantadas. Elas salvaram a minha vida, pensou ele, fixando na mente o longo vôo através do Mar Cilíndrico. Sem qualquer proveito para elas mesmas. Que humano, refletiu ele amargamente, teria feito semelhante boa ação por uma ave? Richard raramente soluçara em sua vida. Porém, sua dor pelas aves dominou-o. Enquanto chorava, todas as suas experiências desde que entrara no habitat das aves passaram por sua mente. Richard rememorou em particular a repentina mudança de tratamento em relação a ele e sua subseqüente transferência para o reino dos myrmigatos. Depois veio o tour guiado e eventualmente minha instalação aqui… é óbvio que eles vêm tentando se comunicar comigo… Mas por quê?

Naquele mesmo instante, Richard teve uma epifania de tal força que as lágrimas novamente inundaram seus olhos. Por que elas estão desesperadas, respondeu a si mesmo. Elas estão implorando que eu as salve.

Загрузка...