Yukiko estava com uma blusa de seda preta, calças brancas e uma boina preta e branca, e cruzou a sala de estar para falar com o irmão. “Queria que você viesse, Kenji”, disse ela. “Vai ser a maior demonstração em favor da paz que o mundo jamais viu.”
Kenji sorriu para a irmã mais moça. “Eu gostaria de ir, Yuki”, respondeu.
“Porém, só tenho mais dois dias antes de partir, e quero passá-los com mamãe e papai.”
A mãe deles entrou pela porta do outro lado da sala. Como sempre, parecia aflita, e carregava uma valise grande. “Agora está tudo arrumado direito”, disse ela. “Mas ainda assim gostaria que você mudasse de idéia. Hiroshima vai estar um hospício. A Asahi Shimbun diz que estão esperando um milhão de visitantes, quase a metade de estrangeiros.”
“Obrigada, mamãe”, disse Yukiko, pegando a valise. “Como sabe, Satoko e eu vamos ficar no Hotel Hiroshima Prince, não precisa se preocupar. Nós nos comunicaremos todos os dias de manhã, antes de as atividades começarem, E estarei em casa na segunda à tarde.”
A jovem abriu a valise e enfiou a mão dentro de um compartimento especial, de onde tirou uma pulseira de brilhantes e um anel de safira. Colocou os dois. “Não acha que devia deixar essas coisas em casa?”, perguntou a mãe aflita. “Lembre-se de que vão estar lá todos esses estrangeiros; suas jóias podem ser tentação forte demais para eles.”
Yukiko riu-se com a gargalhada que Kenji adorava. “Mamãe, você só vive se preocupando. Só pensa nas coisas ruins que poderiam acontecer… Nós vamos a Hiroshima para as cerimônias comemorando o terceiro centenário da bomba atômica que foi jogada lá. Nosso primeiro-ministro vai estar lá, bem como três dos integrantes do Conselho Central do COG. Muitos dos músicos mais famosos do mundo vão tocar todas as noites. Vai ser o que papai chama uma experiência enriquecedora — e você só pensa em quem poderia roubar minhas jóias.”
“Quando eu era moça, ninguém ouvia falar de duas meninas, que ainda nem terminaram a universidade, viajarem pelo Japão sozinhas…”
“Mamãe, nós já discutimos tudo isso antes”, interrompeu Yuki. “Estou com quase 22 anos. No ano que vem, depois de conquistar meu diploma, não vou mais morar aqui em casa, vou morar sozinha, talvez até em outro país. Não sou mais criança. E Satoko e eu somos perfeitamente capazes de tomar conta uma da outra.”
Yukiko olhou para o relógio. “Agora tenho que ir. Ela provavelmente já está me esperando na estação do metrô.”
Chegando graciosamente perto da mãe, deu-lhe um beijo rotineiro. Depois, abraçou com força o irmão. “Que tudo lhe vá bem, ani-san”, sussurrou-lhe ao ouvido. “Tome conta de você mesmo e de sua linda mulher em Marte. Todos nós sentimos muito orgulho de você.”
Kenji jamais conhecera Yukiko muito bem. Afinal, ele era quase doze anos mais velho do que ela. Yuki só tinha quatro anos quando o sr. Watanabe foi indicado para a posição de presidente da divisão americana da Robótica Internacional. A família atravessara o Pacífico para ir morar em um subúrbio de San Francisco. Kenji não prestava muita atenção à irmãzinha naquele tempo. Na Califórnia, ele estivera muito mais interessado em sua nova vida, particularmente quando começou a freqüentar a universidade na UCLA.
O casal Watanabe e Yukiko voltaram ao Japão em 2232, deixando Kenji em seu segundo ano de História na universidade. Ele tivera muito pouco contato com Yukiko desde então. Durante suas visitas anuais à família em Kioto, ele sempre fazia planos de passar algumas horas só com Yukiko, mas afinal isso nunca acontecia. Ou ela estava por demais envolvida com a própria vida, ou seus pais programavam um número excessivo de eventos sociais, ou então o próprio Kenji não tinha tempo.
Kenji ficou vagamente entristecido, parado junto à porta, vendo Yukiko se afastar. Vou deixar este planeta, pensou ele, e no entanto nunca tive tempo para conhecer minha própria irmã.
A sra. Watanabe falava monotonamente atrás dele, expressando seus sentimentos de que sua vida fora um fracasso porque nenhum de seus filhos lhe tinha o menor respeito e ainda se mudavam para outro lugar. Agora seu único filho, que se casara com uma moça da Tailândia só para embaraçá-los, ia se mandar para morar em Marte e ela não o veria por cinco anos. Quanto à sua filha do meio casada com um banqueiro, essa pelo menos lhe havia dado duas netas, que eram tão desinteressantes e entediantes quanto seus pais…
“Como está Fumiko?”, disse Kenji, interrompendo a mãe. “Será que terei a oportunidade de vê-la e minhas sobrinhas antes de partir?”
“Eles virão de Kobe amanhã de noite, para jantar, embora eu não tenha idéia do que hei de dar-lhes para comer… Você sabia que Tatsuo e Fumiko não estão sequer ensinando as duas meninas a comer com os pauzinhos? Já pensou?
Uma criança japonesa não saber comer com os pauzinhos? Nada é sagrado?
Abrimos mão de nossa identidade para ficarmos ricos. Eu estava dizendo a seu pai…”
Kenji desculpou-se e afastou-se do queixoso monólogo da mãe, indo refugiar-se no escritório do pai. Fotografias emolduradas enchiam as paredes da sala, o documentário da vida pessoal e profissional de um homem bem-sucedido.
Duas das fotos traziam lembranças especiais para Kenji. Em uma delas, ele e o pai seguravam um grande troféu outorgado pelo clube de campo aos vencedores do torneio pai-filho de golfe. Na outra, um radiante sr. Watanabe estava entregando uma grande medalha ao filho, quando Kenji tirou o primeiro lugar no aproveitamento acadêmico do ginásio.
O que Kenji esquecera até ver a foto de novo era que Toshio Nakamura, filho do maior amigo e sócio comercial de seu pai, fora o segundo em ambos os casos. Em ambas as fotos, o jovem Nakamura, quase uma cabeça mais alto do que Kenji, trazia o rosto sombreado por um franzido intenso e zangado na testa. Isso foi muito antes dos problemas dele, refletiu Kenji, relembrando a manchete “Preso Excutivo de Osaka”, que proclamara, havia quatro anos, o indiciamento de Toshio Nakamura. O artigo que se seguia explicava que o sr.
Nakamura, àquele tempo já vice-presidente do Grupo de Hotéis Tomozawa, fora acusado de crimes muito sérios, que iam do suborno ao lenocínio ou tráfico de escravas brancas. Dentro de quatro meses, Nakamura já estava condenado a vários anos de detenção. Kenji ficara assombrado. Mas o que será que teria acontecido a Nakamura? indagara-se ele muitas vezes, durante esses últimos quatro anos.
Ao lembrar-se de seu rival de meninice, Kenji sentiu muita pena de Keiko Murosawa, a mulher de Nakamura, por quem Kenji sentira uma afeição muito especial, quando tinha dezesseis anos em Kioto. Kenji e Nakamura, na verdade, tinham competido pelo amor de Keiko durante quase um ano. Quando ela finalmente deixou claro que preferia Kenji a Nakamura, Toshio ficara furioso.
Tinha até confrontando Kenji certa manhã no Templo Ryoanji, ameaçando-o fisicamente.
Eu mesmo poderia ter-me casado com Keiko, pensou ele, se tivesse ficado no Japão. Ele olhou pela janela para o jardim de musgo. Chovia lá fora, e de repente lembrou-se de um momento particularmente pungente em uma tarde chuvosa, durante sua adolescência. Kenji tinha caminhado até a casa dela tão logo seu pai lhe contara as novidades. Um concerto de Chopin saudara seus ouvidos no momento em que entrou na rua que levava à casa. A sra. Murosawa atendera à porta e falara energicamente com ele. “Agora Keiko está estudando”, disse ela a Kenji. “Só acabará daqui a mais de uma hora.”
“Por favor, sra. Murosawa”, disse o rapazinho de dezesseis anos, “é muito importante.”
A mãe estava a ponto de fechar a porta quando a própria Keiko viu Kenji pela janela. Parando de tocar, ela veio correndo, com seu sorriso radioso lançando um banho de alegria sobre o jovem. “Oi, Kenji, o que é que há?”
“Uma coisa muito importante”, disse ele misteriosamente. “Você pode dar um pequeno passeio comigo?”
A sra. Murosawa resmungou sobre o recital que estava para acontecer, mas Keiko a convenceu que podia deixar de estudar por um dia. A mocinha agarrou um guarda-chuva e juntou-se a Kenji na frente da casa. Tão logo ficaram fora da vista de suas janelas, ela deslizou o braço para prender-se ao dele, como fazia sempre que os dois caminhavam juntos.
“Então, meu amigo”, disse Keiko, quando eles tomaram seu caminho normal para as colinas por trás de seu bairro de Kioto. “O que há de tão importante?”
“Não quero lhe dizer agora”, respondeu Kenji. “Não aqui, de qualquer modo. Quero esperar até estarmos no lugar certo.”
Kenji e Keiko riram e conversaram fiado enquanto se encaminhavam para a Trilha dos Filósofos, um lindo caminho que serpenteava por vários quilômetros ao longo do sopé das colinas orientais. O caminho tornou-se famoso por causa do filósofo do século XX Nishida Kitaro, que supunha-se fazia uma caminhada todo dia de manhã. Ela passava por alguns dos mais belos pontos de Kioto, inclusive o Ginkaku (o Pavilhão de Prata), e o favorito de Kenji, o velho templo budista chamado Honen-In.
Atrás do Honen-In, para um lado, havia um pequeno cemitério, com umas setenta ou oitenta lápides e sepulturas. Antes, naquele mesmo ano, Keiko e Kenji, enquanto se aventuravam sozinhos, haviam descoberto que o cemitério abrigava alguns dos mais importantes cidadãos de Kioto no século XX, inclusive o célebre romancista Junichiro Tanizaki e o médico/poeta Iwao Matsuo. Depois de sua descoberta, Kenji e Keiko fizeram do cemitério seu ponto regular de encontro.
Certa vez, depois de ambos terem lido As irmãs Makioka, a obra-prima de Tanizaki sobre a vida em Osaka na década de 1930, eles haviam rido e discutido por mais de uma hora — sentados na lápide do autor — sobre qual das duas irmãs Makioka mais se parecia com Keiko.
No dia em que o sr. Watanabe informou Kenji de que a família iria mudarse para a América, já começara a chover quando ele e Keiko chegaram ao HonenIn, e Kenji dobrou à direita por um pequeno atalho e procurou um velho portão protegido por um telhadinho de palha. Como Keiko já sabia, eles não entraram no templo; ao invés disso, subiram os degraus que levavam ao cemitério. Kenji, no entanto, não parou no túmulo de Tanizaki, preferindo subir para um outro, mais ao alto.
“É aqui que está enterrado o dr. Iwao Matsuo”, disse Kenji, pegando seu computador portátil. “Vamos ler alguns de seus poemas.”
Keiko sentou-se bem perto de seu amigo e os dois ajeitaram-se debaixo do guarda-chuva dela sob a chuva leve, enquanto Kenji recitou três poemas. “Tenho ainda um último poema”, acrescentou depois Kenji, “um poema especial escrito por um amigo do dr. Matsuo.”
Certo dia no mês de junho, Depois de uma fresca taça de sorvete, Nós nos despedimos.
Ambos ficaram em silêncio por algum tempo depois de Kenji recitar o haicai, de memória, uma segunda vez. Keiko ficou alarmada e até mesmo um pouco assustada quando a expressão de seriedade de Kenji não se alterou. “O poema fala de uma despedida”, disse ela suavemente.
“Você está me dizendo que…”
“Não por escolha, Keiko”, interrompeu-a Kenji. Depois de hesitar um pouco, disse: “Meu pai foi destacado para ir para a América. Nós nos mudamos para lá no mês que vem”, disse ele, afinal.
Kenji jamais vira uma expressão de abandono igual à do lindo rosto de Keiko. Quando ela levantou o olhar para ele, com aqueles olhos terrivelmente tristes, ele pensou que seu coração fosse arrebentar. Abraçou-a estreitamente então na tarde chuvosa, ambos chorando, e ele jurou que só amaria a ela para sempre.
4 A garçonete mais jovem, a de quimono azul-claro com o obi antiquado, empurrou o biombo deslizável e entrou na salinha. Carregava uma bandeja com cerveja e saque.
“Osake onegai shimasu”, disse o pai de Kenji polidamente, segurando seu copo para saque enquanto a moça o servia.
Kenji tomou um gole de sua cerveja fria. A garçonete mais velha voltou então, sem ruído, com um pequeno prato de hors d’oeuvres. Ao centro havia alguma espécie de crustáceo com um molho leve, porém Kenji seria incapaz de identificar seja o molusco, seja o molho. Não comera mais de meia dúzia dessas refeições kaiseki nos dezessete anos desde que deixara Kioto.
“Campai”, disse Kenji, batendo com sua caneca no copinho de saque do pai. “Obrigado, meu pai. Sinto-me honrado em estar jantando aqui com o senhor.”
Kicho era o mais famoso restaurante da região Kansai, talvez até de todo o Japão. Era também assustadoramente caro, já que preservava integralmente as tradições de serviço individualizado, salas de jantar privadas e pratos especiais de cada estação, feitos exclusivamente de ingredientes da mais alta qualidade. Cada prato era um deleite para os olhos, tanto quanto para o paladar. Quando o sr. Watanabe informou ao filho que iriam jantar sozinhos, apenas eles dois, Kenji jamais imaginara que seria no Kicho.
Estavam conversando sobre a expedição a Marte. “Quantos dos outros colonizadores são japoneses?”, indagou o pai.
“Muitos. Quase trezentos, se me lembro bem. Havia várias candidaturas de alto nível do Japão. Só a América tem um contingente maior.”
“Você conhece alguns dos outros japoneses pessoalmente?
“Dois ou três. Yasuko Horikawa esteve algum tempo na minha turma no curso secundário em Kioto. O senhor se lembra dela. Muitíssimo inteligente.
Dentuça, óculos grossos. Ela é, ou deveria dizer era, química da Dai-Nippon.”
O sr. Watanabe sorriu. “Creio que me lembro dela”, disse. “Não esteve lá em casa na noite em que Keiko tocou piano?”
“Acho que sim”, respondeu Kenji muito à vontade. Riu-se. “Mas tenho dificuldade em me lembrar de qualquer coisa além de Keiko, naquela noite.”
O sr. Watanabe esvaziou seu copo de saque. A garçonete mais moça, discretamente ajoelhada em um canto do tatame da salinha, aproximou-se da mesa para tornar a enchê-lo. “Kenji, estou preocupado com os criminosos”, disse o sr. Watanabe depois que a moça se afastou.
“Do que é que está falando, meu pai?”
“Li uma longa reportagem em uma revista dizendo que a AEI recrutara várias centenas de condenados para serem parte da Colônia Lowell. O artigo enfatizava o fato de todos os criminosos terem tido fichas perfeitas durante seus períodos de detenção, além de qualificações de alto nível. Mas que necessidade havia de se levar todos esses condenados?” Kenji tomou um gole de sua cerveja. “Na verdade, meu pai, houve alguma dificuldade no processo de recrutamento. Primeiro, tivemos uma previsão pouco realista sobre quantas pessoas iriam candidatar-se, e por isso criamos critérios de seleção muito difíceis. Em segundo lugar, o período mínimo de cinco anos foi um erro. Principalmente para os jovens, a decisão de fazer o que quer que seja por período tão longo parece um compromisso arrasador. O mais importante, porém, é que a imprensa solapou seriamente todo o processo da criação de quadros. Na época em que estávamos buscando candidaturas, houve miríades de artigos em revistas e ‘especiais’ de televisão sobre o desaparecimento das colônias marcianas há centenas de anos. As pessoas ficaram com medo de que a história se repetisse, e que elas também pudessem vir a ser abandonadas permanentemente em Marte.”
Kenji fez uma ligeira pausa, porém o sr. Watanabe não pronunciou qualquer comentário. “Além do quê, como o senhor bem sabe, o projeto tem tido uma série de crises financeiras. Foi durante um desses apertos orçamentários no ano passado que começamos a pensar em condenados de alta capacidade como um modo de resolver alguns de nossos problemas de pessoal e de orçamento. Embora devessem receber salários apenas modestos, vários outros incentivos levavam os sentenciados a se candidatarem. A escolha significava a concessão de perdão completo, e portanto liberdade quando voltassem à Terra ao fim de cinco anos.
Além do mais, os ex-prisioneiros teriam plena cidadania na Colônia Lowell, como todo mundo, sem ter mais de tolerar a onerosa monitoração de todas as suas atividades…”
Kenji parou quando dois pequenos pedaços de peixe grelhado, delicados, bonitos e arranjados em um ninho de folhas variadas, foram postos na mesa. O sr. Watanabe pegou um dos pedaços com seus pauzinhos e deu uma dentadinha.
“Oishii desu’“ comentou ele, sem olhar para o filho.
Kenji estendeu a mão para pegar seu pedaço de peixe. Aparentemente, a conversa sobre os condenados estava terminada. Kenji olhou por cima de seu pai, onde podia ver o belo jardim pelo qual era famoso o restaurante. Um fiozinho de água descia por degraus polidos e corria ao lado de meia dúzia de árvores anãs. O assento defronte à janela era sempre o lugar de honra em uma refeição tradicional japonesa. O sr. Watanabe insistira em que Kenji tivesse a vista para o jardim neste último jantar.
“Não puderam atrair colonos chineses?”, perguntou o pai, depois que haviam terminado o peixe.
Kenji sacudiu a cabeça. “Só uns poucos, de Cingapura e da Malásia. Tanto o governo da China quanto do Brasil proibiram seus cidadãos de se candidatar. A decisão brasileira já era esperada — seu império sul-americano está virtualmente em guerra com o CDG — mas esperávamos que os chineses amolecessem sua posição. Acho que cem anos de isolamento não morrem com facilidade.”
“Não se pode realmente culpá-los”, retrucou o sr. Watanabe. “Sua nação passou por horríveis sofrimentos durante o Grande Caos. Todo o capital estrangeiro sumiu da noite para o dia e sua economia entrou imediatamente em colapso.”
“Conseguimos recrutar alguns africanos negros, talvez uns cem ao todo, e um punhado de árabes. Mas a maior parte dos colonizadores vem de países que contribuem significativamente para a AEI, o que era mais ou menos de se esperar.”
Kenji ficou repentinamente embaraçado. Toda a conversa, desde que os dois chegaram ao restaurante, versava exclusivamente sobre ele e suas atividades. Durante os pratos que se seguiram, Kenji fez perguntas ao pai a respeito de seu trabalho na Robótica Internacional. O sr. Watanabe, que a essa altura era o principal executivo operacional da corporação, sempre se iluminava de orgulho quando falava de “sua” companhia. Tratava-se da maior manufatura de robôs para fábricas e escritórios do mundo inteiro. As vendas anuais da RI, como sempre era chamada, colocava-a entre os cinqüenta principais fabricantes do mundo.
“Faço 62 anos no ano que vem”, disse o sr. Watanabe, que vários copos de saque haviam tornado mais comunicativo, “e pensava poder me aposentar. Mas Nakamura diz que seria um erro. Diz que a companhia ainda precisa de mim…”
Antes que servissem as frutas, Kenji e seu pai estavam novamente discutindo a projetada expedição a Marte. Kenji explicou que Nai e a maioria dos outros colonizadores asiáticos que viajariam na Pinta ou na Nina já se encontravam no centro de treinamento japonês no sul de Kiushu. Ele iria juntar-se a sua mulher tão logo deixasse Kioto, e após mais dez dias de treinamento, eles e os outros passageiros da Pinta seriam transportados para uma estação espacial OTB (Orbita Terrena Baixa), onde teriam uma semana de treino de imponderabilidade. A última etapa de sua viagem junto à Terra seria um passeio a bordo de um rebocador espacial, de OTB até a estação espacial geossincrônica em GTB-4, onde no momento a Pinta estava sendo montada enquanto era submetida aos últimos testes e também sendo equipada para a longa viagem até Marte.
A garçonete mais moça trouxe-lhes dois copos de conhaque. “Aquela sua mulher é realmente uma criatura magnífica”, disse o sr. Watanabe, tomando um golezinho do licor. “Sempre julguei que as mulheres tai fossem as mais bonitas do mundo.”
“Ela também é bonita por dentro”, acrescentou logo Kenji, sentindo falta repentinamente de sua nova esposa. “E também é muito inteligente.”
“Seu inglês é excelente”, comentou o pai, “mas sua mãe diz que o japonês dela é horrível.”
Kenji encrespou-se. “Nai tentou falar japonês — que, aliás, ela jamais estudou — porque mamãe se recusou a falar em inglês. Foi tudo feito deliberadamente para fazer Nai sentir-se pouco à vontade…”
Kenji controlou-se. Seus comentários em defesa de Nai não eram adequados à ocasião.
“Gomen nasai”, disse ele ao pai.
O sr. Watanabe tomou um bom gole de seu conhaque. “Bem, Kenji, esta será a última vez que ficamos juntos sozinhos por pelo menos cinco anos.
Apreciei muitíssimo nosso jantar e nossa conversa.” Fez uma pausa. “Há, porém, mais um item que gostaria de discutir com você.”
Kenji mudou de posição (não estava mais acostumado a ficar sentado no chão de pernas cruzadas por períodos de quatro horas) e esticou bem o corpo, tentando ficar com a mente clara. O tom usado pelo pai já lhe dizia que aquele “mais um item” era sério.
“Meu interesse nos criminosos em sua Colônia Lowell não vem apenas de mera curiosidade”, começou o sr. Watanabe, mas parou um pouco para organizar seus pensamentos antes de continuar. “Nakamura-san veio ao meu escritório no final da semana passada, no fim do expediente, e disse-me que a segunda candidatura de seu filho para a Colônia Lowell também fora recusada.
Perguntou-me se eu podia pedir a você para dar uma olhada no assunto.”
O assunto atingiu Kenji como um raio. Jamais fora informado de que seu rival de infância tivesse se candidatado à Colônia Lowell, e agora lá estava seu pai…
“Não estive envolvido no processo de seleção de candidaturas de condenados”, respondeu Kenji lentamente. “Essa é uma divisão completamente diferente do projeto.”
O sr. Watanabe não disse nada por alguns segundos. “Nossos contatos nos informam”, continuou, depois de terminar seu conhaque, “que a única oposição à candidatura vem de um psiquiatra, um sr. Ridgemore, da Nova Zelândia, que considera, apesar da excelente ficha de Toshio durante seu período de detenção, que o filho de Nakamura continua a achar que não fez nada de errado… Eu creio que você foi pessoalmente responsável pelo recrutamento do dr.
Ridgemore para a equipe da Colônia Lowell.”
Kenji ficou estarrecido. Seu pai não estava fazendo um pedidozinho qualquer. Ele fizera pesquisas exaustivas sobre todo o quadro. Mas por quê? perguntava-se Kenji. Por que razão está ele tão interessado?
“Nakamura-san é um engenheiro brilhante”, disse o sr. Watanabe. “É pessoalmente responsável por muitos dos produtos que nos colocaram como líderes em nossa área. Porém, seu laboratório não tem sido muito inovador ultimamente. De fato, sua produtividade começou a cair mais ou menos ao tempo da prisão e condenação de seu filho.”
O sr. Watanabe inclinou-se na direção de Kenji, apoiando os cotovelos na mesa. “Nakamura-san perdeu a confiança em si mesmo. Ele e a mulher têm de visitar Toshio naquele apartamento de detenção uma vez por mês, um permanente lembrete de como a família Nakamura caiu em desgraça. Se o filho pudesse ir para Marte, talvez…”
Kenji compreendeu muito bem o que lhe pedia seu pai. Emoções de há muito reprimidas ameaçavam entrar em erupção. Kenji ficou zangado e confuso.
Estava a ponto de dizer a seu pai que tal pedido era “impróprio” quando o velho Watanabe tornou a falar.
“Tudo tem sido igualmente duro para Keiko e a menininha. Aiko está com quase sete anos. Um fim de semana sim, um não, elas disciplinadamente tomam o trem para Ashiya…”
Por mais que tentasse, Kenji não pôde evitar que lhe viessem lágrimas aos olhos. A imagem de Keiko, alquebrada e deprimida, levando a filha até a área restrita a cada duas semanas para visitar o pai, foi mais do que pôde suportar.
“Falei pessoalmente com Keiko na semana passada”, acrescentou o pai, “a pedido de Nakamura. Estava muito deprimida, mas pareceu ficar um pouco mais animada quando disse que ia pedir-lhe que intercedesse por seu marido.” Kenji respirou fundo e olhou para o rosto inexpressivo do pai. Já sabia o que iria fazer, mesmo sabendo que era realmente “impróprio” — não errado, só impróprio. Mas não valia a pena torturar-se por uma decisão que já vinha implícita no pedido.
Kenji terminou seu conhaque. “Diga a Nakamura-san que procurarei o dr.
Ridgemore amanhã”, disse ele.
E se minha intuição estiver errada? Então terei desperdiçado uma hora, no máximo noventa minutos, pensou Kenji ao desculpar-se na reunião familiar com sua irmã Fumiko e suas filhas, e correr para a rua. Virou imediatamente no sentido da colina. Faltava mais ou menos uma hora para o sol se pôr. Ela vai estar lá, disse ele para si mesmo. Esta será minha única oportunidade de me despedir.
Kenji dirigiu-se primeiro ao pequeno templo Anraku-Ji. Entrou no hondo esperando encontrar Keiko em seu lugar favorito, em frente ao altar lateral de madeira que homenageava duas freiras budistas do século XII, anteriormente integrantes do harém da corte, que haviam se suicidado quando o Imperador GoToba lhes ordenou que repudiassem os ensinamentos do Santo Honen. Keiko não estava lá. Nem do lado de fora, onde as duas mulheres estavam enterradas, nos limites da floresta de bambus. Kenji começou a pensar que se enganara. Keiko não estava lá, talvez estivesse muito envergonhada.
Sua única outra esperança era a de que Keiko estivesse esperando por ele no cemitério ao lado de Honen-In, onde dezessete anos antes ele lhe dissera que ia embora do Japão. O coração de Kenji deu um salto quando tomou o caminho que levava ao templo. Ao longe, à direita, ele vislumbrou uma figura de mulher.
Ela usava um vestido preto simples e estava de pé ao lado do túmulo de Junichiro Tanizaki.
Embora ela estivesse virada para o lado oposto e ele não tivesse visão muito clara no crepúsculo, Kenji ficou certo de que a mulher era Keiko. Ele correu pelos degraus do cemitério e finalmente parou a uns cinco metros da mulher de preto.
“Keiko”, disse ele, recuperando o fôlego, “fico tão contente…”
“Watanabe-san”, disse formalmente a figura, virando-se, de cabeça baixa e os olhos no chão. Ela curvou-se profundamente, como se fosse uma empregada.
“Domo arrigato gozaimasu”, repetiu ela duas vezes. Finalmente levantou-se, mas continuou a não olhar para Kenji.
“Keiko”, disse ele suavemente. “É só o Kenji. Estou sozinho. Por favor, olhe para mim.”
“Não posso”, respondeu ela com voz quase inaudível. “Mas posso agradecer pelo que fez por Aiko e por mim.” Curvou-se novamente. “Domo arrigato gozaimasu.”
Kenji curvou-se impulsivamente e pôs a mãos sob o queixo de Keiko, levantando delicadamente seu rosto até poder ver-lhe a face. Keiko ainda era bonita, mas Kenji ficou chocado ao ver tamanha tristeza permanentemente esculpida naquelas feições delicadas. “Keiko”, murmurou ele, e as lágrimas da moça cortaram-lhe o coração como pequenas facas.
“Tenho de ir”, disse ela. “Eu lhe desejo felicidades.” Afastou-se do toque dele e tornou a curvar-se. Depois ergueu-se e, sem olhar para ele, desceu lentamente o caminho para as sombras do crepúsculo.
Os olhos de Kenji seguiram-na até que desaparecesse na distância. Foi só então que se deu conta de que tinha estado encostado na lápide de Tanizaki. Ele ficou olhando por vários segundos para os dois caracteres Kanji, Ku e Jaku, na pedra cinza. Um dizia “Vazio”; o outro, “Solidão”.