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Seu veículo parou a várias centenas de quilômetros do Hangar. A unidade tinha forma estranha, completamente plana embaixo mas com lados e cobertura arredondados. As três fábricas no Hangar — uma em cada extremidade e outra no meio — pareciam pelo lado de fora cúpulas geodésicas. Erguiam-se sessenta ou setenta quilômetros acima da base da estrutura. Entre essas fábricas a cobertura era muito mais baixa, só uns oito ou dez quilômetros acima da base plana, de modo que a aparência geral do alto do Hangar era como o que se poderia esperar do dorso de um camelo de três corcovas, se uma tal criatura houvesse existido.

A Águia, Nicole e Richard pararam para observar um veículo do tipo estrela-do-mar que, segundo a Águia, já fora recondicionado e estava agora pronto para sua próxima viagem. A estrela-do-mar saíra da corcova esquerda e o veículo, pequeno em comparação com o Hangar ou Rama mas mesmo assim com dez quilômetros do centro até a ponta de cada raio, começara a girar tão logo ficara livre do Hangar. Enquanto o metrô ficava “estacionado” a uns quinze quilômetros de distância, a estrela-do-mar aumentou sua média de rotações para dez revoluções por minuto. Tão logo o nível de giros se estabilizou, a estrela-domar partiu célere para a esquerda dos observadores.

“O que deixa apenas Rama, desse conjunto”, disse a Águia. “A roda gigantesca que era a primeira de sua fila na Estação Intermediária partiu há quatro meses. Só necessitava reparos mínimos.”

Richard queria fazer uma pergunta mas controlou-se. Já notara durante o vôo desde o Nodo que a Águia apresentava voluntariamente quase todas as informações que tinha permissão para compartilhar. “Rama tem sido um desafio e tanto”, continuou a Águia. “E ainda não temos certeza sobre quando a terminaremos.”

O metrô aproximou-se da cúpula direita do Hangar e apareceram luzes no ponto das cinco horas, tomando a cúpula como um mostrador. Examinando mais detalhadamente, Richard e Nicole perceberam que algumas pequenas portas haviam sido abertas. “Vão precisar de seus trajes”, disse a Águia. “Seria um feito monumental de engenharia conseguir desenhar esse local imenso com meio ambiente variável.”

Nicole e Richard vestiram-se enquanto o metrô atracava em ancoradouro muito semelhante ao do centro de transportes. “Estão me ouvindo?”, disse a Águia, testando o sistema de comunicação.

“Muito bem, câmbio”, respondeu Richard de dentro de seu capacete. Ele e Nicole olharam-se e riram, lembrando-se de seus dias como cosmonautas da missão Newton.

A Águia conduziu-os ao longo de um corredor comprido e largo. No final dobraram à direita e entraram em um grande balcão uns dez quilômetros acima de um piso de fábrica maior do que qualquer um pudesse imaginar. Nicole sentiu seus joelhos tremerem quando olhou aquele abismo gigantesco. Apesar da imponderabilidade, ondas de vertigem correram tanto por Richard quanto por Nicole. Ambos viraram-se para longe da visão ao mesmo tempo, focalizando seus olhares um no outro, enquanto tentavam apreender o que acabavam de ver.

“Uma vista e tanto”, comentou a Águia.

Como descrição insatisfatória é um colosso, pensou Nicole. Muito lentamente ela tornou a baixar os olhos para aquele espetáculo assombroso.

Desta vez, agarrou o balaústre com ambas as mãos, a fim de conseguir manter seu equilíbrio.

A fábrica abaixo deles continha todo o Hemicilindro Norte de Rama, do porto onde haviam atracado a Newton e entrado até o final da Planície Central e as margens do Mar Cilíndrico. Não havia mar, nem cidade de Nova York, mas havia naquela fábrica encapsulada quase a mesma área de todo o estado americano de Rhode Island.

A cratera e a abóbada da extremidade norte de Rama continuavam intactas, inclusive sua proteção exterior. Esses segmentos de Rama estavam depositados à direita de Richard, Nicole e a Águia, quase que atrás deles em relação à plataforma de onde olhavam. Montados no balaústre havia uma dúzia de telescópios, cada um com uma resolução diferente, através dos quais os três podiam ver as conhecidas escadas e escadarias, lembrando três varas de um guarda-chuva, com os 30 mil degraus necessários para se descer até a Planície Central de Rama (ou para subir de volta dela).

O resto do Hemicilindro Norte estava desmontado e espalhado em pedaços, não diretamente ligados à abóboda ou uns aos outros, porém mesmo assim colocados com os setores adjacentes em seu alinhamento correto. Cada pedaço tinha mais ou menos oito quilômetros quadrados e suas bordas ficavam consideravelmente acima do nível do chão, em função da curvatura.

“Fica mais fácil fazer o trabalho inicial com essa disposição”, explicou a Águia. “Uma vez fechado o cilindro, fica mais difícil entrar e sair com todo o equipamento.”

Pelos telescópios, Richard e Nicole podiam ver que duas áreas diferentes da Planície Central pululavam de atividade. Não dava nem para começar a contar o número de robôs indo de um lado para o outro do chão da fábrica ali abaixo deles. Nem lhes era possível determinar exatamente o que estava sendo feito, em muitos casos. Era engenharia em escala jamais sequer sonhada por seres humanos.

“Trouxe-os aqui primeiro para que tivessem uma visão geral”, disse a Águia. “Mais tarde, desceremos para a fábrica e vocês poderão ver mais detalhes.”

Richard e Nicole olharam para ele, atônitos. Rindo-se, o homem-águia continuou. “Se observarem com cuidado, verão que duas vastas regiões da Planície Central, uma perto do Mar Cilíndrico e outra cobrindo uma área que quase atinge a ponta das escadas, foram completamente esvaziadas. É onde se trabalha na reconstrução. Entre essas duas áreas, Rama tem exatamente o mesmo aspecto que tinha quando vocês a deixaram. Temos uma diretiva geral de engenharia aqui — só alteramos as regiões que serão usadas na missão seguinte.”

Richard animou-se. “Está dizendo que essa espaçonave é usada repetidamente? E que para cada missão só são feitas as alterações necessárias?”

A Águia concordou.

“Então aquele conglomerado de arranha-céus que chamamos de Nova York poderia ter sido construído para uma missão muito anterior e simplesmente deixado ali porque nenhuma alteração foi exigida?”

A Águia não disse nada em resposta à indagação retórica de Richard, e apontou para a área ao norte da Planície Central. “Aquele é que será seu hábitat, ali. Acabamos de terminar a infra-estrutura, o que vocês chamariam de ‘instalações básicas’, inclusive água, energia, esgoto e controle ambiental da camada superior. Há bastante margem para flexibilidade de desenho no resto do processo. É por isso que os trouxemos aqui.”

“O que é aquele edifício coberto com uma abóbada ao sul da área que foi esvaziada?”, perguntou Richard, ainda aparvalhado com a idéia de que Nova York poderia ter sido uma espécie de sobra, de resto de alguma missão mais antiga de Rama.

“Aquele é o centro de controle”, respondeu a Águia. “O equipamento que administra seu hábitat será colocado ali. Normalmente o centro de controle é oculto abaixo da área em que se vive, na carapaça de Rama, mas em seu caso os desenhistas resolveram colocá-lo na Planície.”

“O que é aquela grande região do lado de lá?”, disse Nicole, apontando para a área vazia logo ao norte de onde o Mar Cilíndrico estaria localizado se Rama houvesse sido completamente remontada.

“Não tenho permissão para dizer-lhe para o que serve”, respondeu a Águia. “Na verdade, estou surpreso de sequer ter tido permissão para mostrarlhes que existe. Na verdade, nossos viajantes de retorno ignoram totalmente o que seu veículo contém fora de seu próprio habitat. O plano oficial, é claro, determina que cada espécie fique dentro de seu próprio módulo.”

“Olhe só aquela elevação ou morro no centro”, disse Nicole a Richard, levando sua atenção para a outra região. “Deve ter quase dois quilômetros de altura.”

“E tem o feitio de uma rosca com buraco no meio. Quero dizer, o centro foi cavado.”

Podiam ver que as paredes externas do que bem poderia ser um segundo hábitat já estavam bem adiantadas. Nenhuma parte de seu interior seria visível do chão da fábrica.

“Você pode nos dar ao menos uma pista sobre o que ou quem vai morar ali?”, perguntou Nicole.

“Vamos embora”, disse a Águia com firmeza. “Está na hora de nós descermos.”

Richard e Nicole largaram os telescópios, deram uma rápida espiada sobre o plano geral de seu próprio hábitat (que não estava nem de longe tão adiantado quanto o outro) e seguiram a Águia pelo corredor. Após uma caminhada de uns cinco minutos, eles chegaram ao que a Águia lhes disse ser um elevador.

“Vocês têm de se prender muito bem nos assentos”, disse-lhes seu guia, “porque a viagem é rápida.”

A aceleração de sua bizarra cápsula oval era forte e instantânea. Menos de dois minutos mais tarde, a desaceleração foi igualmente abrupta. Tinham chegado ao piso da fábrica. “Essa coisa viaja a trezentos quilômetros por hora?”, perguntou Richard, após alguns rápidos cálculos mentais.

“A não ser que esteja com pressa”, respondeu a Águia.

Richard e Nicole seguiram o homem-pássaro até pisar na fábrica propriamente dita. Era imensa. Sob certos aspectos era mais assombrosa do que a própria Rama, porque metade da gigantesca espaçonave estava espalhada pelo chão à sua volta. Ambos lembravam-se da avassaladora sensação que tiveram viajando em seus elevadores de cadeiras em Rama, ao olhar para o Mar Cilíndrico e para os misteriosos chifres na Abóbada Sul. Voltaram-lhes aquelas mesmas sensações de reverência e temor, até mesmo ampliadas quando Richard e Nicole olharam para a atividade que tinha lugar em torno e acima deles na fábrica.

O elevador os depositara ao nível do chão perto de um dos segmentos de seu habitat. A carapaça de Rama estava defronte deles. Verificaram sua espessura quando cruzaram a saída do elevador. “Cerca de duzentos metros de espessura”, notou Richard para Nicole, respondendo uma pergunta que se faziam desde os primeiros dias em Rama. “O que ficará debaixo de nosso hábitat, na carapaça?”, indagou Nicole.

A Águia levantou três de seus quatro dedos, indicando que estavam fazendo perguntas de Terceiro Nível de informação. Ambos os humanos riram.

“Você vai viajar conosco?”, perguntou Nicole à Águia, uns momentos mais tarde.

“De volta ao seu sistema solar?… Não, não posso”, respondeu ela. “Mas confesso que seria interessante.”

A Águia conduziu-os a uma área de intensa atividade. Várias dúzias de robôs estavam trabalhando em uma grande estrutura cilíndrica, de cerca de sessenta metros de altura. “Essa é a principal oficina de reciclagem de fluidos”, disse a Águia. “Todos os líquidos que vão para ralos ou esgotos em seu habitat eventualmente vão parar aqui. Água purificada é mandada de volta à colônia por canos, enquanto os outros elementos químicos são retidos para outros usos possíveis. A unidade será selada e impregnável. Usa tecnologia muito além de seu nível de desenvolvimento.”

A Águia levou-os ao topo de uma escada, por onde entraram no habitat propriamente dito, e os conduziu por um tour detalhadíssimo. Em cada setor a Águia mostrava-lhes as características principais daquela área em particular e depois, sem interrupção, pedia a um robô que os transportasse até o próximo setor adjacente.

“O que, exatamente, você quer que nós façamos aqui?”, indagou Nicole, ao fim de várias horas, quando a Águia se preparava para levá-los a mais outra parte de seu futuro lar.

“Nada de específico”, respondeu. “Esta será sua única visita a Rama.

Queríamos que sentissem um pouco o tamanho da área em que vão viver, no caso de considerarem isso conveniente para o processo do desenho. Temos uma maquete em escala de um vinte avos por cento no Módulo de Habitação — todo o resto de nosso trabalho será realizado lá.” E, olhando para Nicole e Richard, continuou: “Podemos partir quando quiserem.”

Nicole sentou-se em uma caixa metálica cinzenta e olhou à sua volta. Só o número e a variedade de robôs eram o suficiente para deixá-la tonta. Sentira-se assombrada desde o momento em que entraram no balcão sobre a fábrica e agora sentia-se completamente anestesiada. Estendeu uma mão para Richard.

“Sei que deveria estudar o que estou vendo, querido, mas nada mais faz sentido. Estou completamente saturada.”

“Eu também”, confessou Richard. “Jamais pensaria que fosse possível haver alguma coisa mais espantosa e assombrosa do que Rama, porém não há dúvida de que esta fábrica o é.”

“Já tentou imaginar, desde que chegamos aqui”, disse Nicole, “o que deve ser a fábrica que construiu isto aqui? Melhor ainda, imagine como seria a linha de montagem para construir o Nodo.”

Richard riu-se. “Podemos continuar essa linha de comentários até uma regressão infinita. Se o Nodo for realmente uma fábrica, como parece ser, pertence por certo a um nível de máquina muito mais alto do que o de Rama.

Rama foi provavelmente desenhada aqui. E é controlada, tenho o palpite, pelo Nodo. Mas o que criou e controla o Nodo? Teria sido uma criatura como nós, resultante de uma evolução biológica? E será que ainda existe, em qualquer sentido que nós possamos compreender, ou terá se transformado em alguma outra espécie de entidade, contentando-se em deixar sua influência ser sentida pela existência dessas espantosas máquinas que criou?”

Richard sentou-se ao lado da mulher. “É demais até para mim. Acho que eu também me saturei… Vamos voltar para as crianças.”

Nicole inclinou-se e tocou-o. “Você é um homem muito esperto, Richard Wakefield. E fique sabendo que essa é uma das razões pelas quais o amo.”

Um grande robô parecendo uma empilhadeira veio pesadamente até perto deles, carregando umas chapas de metal enroladas. Richard ainda uma vez sacudiu a cabeça deslumbrado. “Obrigado, querida”, disse ele após uma pausa.

“E você sabe que eu também a amo.”

Levantaram-se juntos e fizeram um sinal à Águia, para avisar que estavam prontos para ir embora.

Na noite seguinte, de volta a seu apartamento no Módulo de Habitação, tanto Richard quanto Nicole continuaram acordados trinta minutos depois de fazerem amor. “O que foi, querido?”, perguntou Nicole. “Há alguma coisa errada?”

“Tive uma nova crise de ausência hoje. Durou quase três horas”, disse Richard.

“Nossa”, disse Nicole, sentando-se na cama. “Mas está bem agora? Quer que eu busque o escandidor, para ver se consigo esclarecer alguma coisa pela sua biometria?”

“Não”, respondeu Richard, sacudindo a cabeça. “Minhas ausências jamais registram nada em suas máquinas. Mas esta realmente me perturbou.

Compreendi o quanto fico incapacitado durante as mesmas. Mal consigo continuar funcionando, menos ainda poderia ajudar você ou as crianças em qualquer tipo de crise. Elas me assustam.”

“Lembra-se do que precipitou esta?”

“De jeito nenhum. É como sempre. Estava pensando em nossa viagem ao Hangar, e particularmente sobre aquele outro habitat. Sem querer, comecei a lembrar-me de algumas poucas cenas desconexas de minha odisséia e, de repente, era tudo neblina. Não tenho a certeza de que pudesse tê-la reconhecido, nos primeiros cinco minutos.”

“Sinto muito, querido”, disse Nicole.

“É quase como se alguém estivesse monitorando meus pensamentos. E quando atinjo certa parte de minha memória, bam! alguém me dá alguma espécie de aviso.”

Richard e Nicole ficaram em silêncio por quase um minuto.

“Quando fecho os olhos”, disse Nicole, “ainda vejo todos aqueles robôs correndo de um lado para outro dentro de Rama.”

“Eu também.”

“E no entanto tenho grande dificuldade em acreditar que aquilo foi uma cena real e não alguma coisa que tenha sonhado ou visto no cinema”, sorriu Nicole. “Temos vivido uma vida absolutamente inacreditável nestes últimos quatorze anos, não temos?”

“Se temos”, disse Richard, virando-se para um lado, para sua posição normal de adormecer. “E quem sabe? A parte mais interessante ainda pode estar por vir.”

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