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“Sra. Wakefield.”

A voz parecia vir de longe, muito longe. Penetrava ligeiramente em seu consciente, mas não chegava realmente a despertá-la de seu sono. “Sra.

Wakefield.”

Desta vez fora mais alta. Nicole tentou lembrar-se de onde estava, antes de abrir os olhos. Mexeu o corpo e a espuma reorientou-se a fim de fornecer o máximo de conforto. Lentamente sua memória começou a enviar sinais para o resto de seu cérebro. Novo Éden. Dentro de Rama. Voltamos ao sistema solar, lembrou-se ela. Será que estou sonhando?

Finalmente, abriu os olhos, e teve dificuldade em focalizá-los durante vários segundos. Então, a figura reclinada sobre ela alcançou sua resolução. Era sua mãe, vestida com um uniforme de enfermeira!

“Sra. Wakefield”, disse a voz. “Agora é hora de acordar e preparar-se para o encontro marcado.”

Durante um momento, Nicole ficou em estado de choque. Onde estava? O que fazia sua mãe ali? E então lembrou-se. Os robôs, pensou ela. Mamãe é um dos cinco tipos de robôs humanos. Um robô Anawi Tiasso é um especialista em saúde e boa forma física.

O braço do robô ajudou Nicole a equilibrar-se e sentar-se em seu leito. O quarto não mudara nada durante o longo tempo que passara dormindo. “Onde estamos?”, indagou Nicole enquanto se preparava para sair do leito.

“Já completamos o principal perfil de desaceleração e entramos em seu sistema solar”, respondeu a pretíssima Anawi Tiasso. “A inserção na órbita de Marte ocorrerá em seis meses.”

Seus músculos não apresentavam qualquer sensação estranha. Antes de deixar o Nodo, a Águia a informara de que cada um dos compartimentos para sono incluía componentes eletrônicos especiais que não só exercitariam regularmente a musculatura e outros sistemas biológicos, a fim de evitar qualquer atrofia, como também estariam monitorando a saúde de todos os órgãos vitais. Nicole desceu a escada, e quando chegou ao chão esticou-se toda.

“Como se sente?”, indagou o robô. Era Anawi Tiasso número 017, e seu número era bem visível no ombro direito de seu uniforme.

“Nada mal. Nada mal, 017”, garantiu Nicole, enquanto examinava o robô.

A semelhança com sua mãe era notável. Richard e ela haviam visto todos os protótipos antes de deixar o Nodo, mas só as Benitas Garcia se haviam tornado operacionais duas semanas antes de eles adormecerem. Todo o resto dos robôs do Novo Éden havia sido construído e testado durante o longo vôo. Parece mesmo com a minha mãe, admirou-se Nicole, respeitando o trabalho dos artistas ramaianos desconhecidos. Fizeram todas as alterações que eu sugeri no protótipo.

Ao longe, ouviu passos que se dirigiam a elas. Nicole virou-se. Aproximava-se uma segunda Anawi Tiasso, igualmente usando uniforme branco de enfermeira. “A número 009 também foi destacada para auxiliar com o procedimento de iniciação”, anunciou o robô Tiasso a seu lado.

“Destacada por quem?”, perguntou Nicole, lutando por lembrar-se de suas discussões com a Águia a respeito dos procedimentos para despertar.

“Pelo plano de missão pré-programado”, respondeu a número 017. “Uma vez que todos vocês humanos estejam vivos e alertas, recebemos nossas instruções de vocês.”

Richard acordou mais rapidamente, mas foi bastante desajeitado ao descer a pequena escada, sendo necessário que as duas Tiassos o sustentassem para evitar que caísse. Richard ficou visivelmente encantado por encontrar a mulher. Depois de um longo abraço e de um beijo, ficou olhando Nicole por vários segundos. “Não piorou nada com o tempo”, disse ele brincando. “Seu cabelo ficou um pouco mais grisalho, mas ainda há uns bons punhados de saudável cabelo preto em vários pontos.”

Nicole sorriu. Como era bom falar de novo com Richard!

“Por falar nisso”, perguntou ele logo depois, “quanto tempo ficamos nesses caixões malucos?”

Nicole deu de ombros. “Não sei; ainda não perguntei. A primeira coisa que fiz foi fazer você acordar.”

Richard voltou-se para as duas Tiassos. “Será que as simpáticas senhoras sabem há quanto tempo nós deixamos o Nodo?”

“Vocês dormiram por dezenove anos de tempo de viajantes”, respondeu Tiasso 009.

“O que quer ela dizer com ‘tempo de viajante’?”, indagou Nicole.

Richard sorriu. “É uma expressão relativista, querida. O tempo não significa nada a não ser que você tenha um quadro de referências. Dentro de Rama passaram-se dezenove anos, porém esses anos só se enquadram em…

“Deixe para lá”, interrompeu Nicole. “Não dormi todo esse tempo para receber logo ao acordar uma aula de relatividade. Você me explica mais tarde, na hora do jantar. Nesse meio tempo, temos uma questão mais importante: em que ordem devemos acordar as crianças?”

“Tenho outra sugestão”, retrucou Richard após um momento de hesitação.

“Sei que está ansiosa para acordar as crianças, e eu também. No entanto, por que não as deixamos dormir por mais algumas horas? Por certo não lhes fará mal… E você e eu temos muito que discutir. Podemos começar nossas preparações para o encontro marcado, definir o que pretendemos fazer quanto à educação das crianças, talvez até mesmo usar um pouco de tempo para nos conhecermos de novo…”

Nicole estava ansiosa para conversar com as crianças, porém seu lado lógico compreendia o mérito da sugestão de Richard. A família elaborara apenas um plano rudimentar para o que aconteceria quando despertasse, basicamente em razão da insistência da Águia de que havia número muito grande de incertezas para que se pudesse especificar com exatidão as circunstâncias. Seria bem mais fácil fazer planos antes que as crianças acordassem…

“Está bem”, disse finalmente Nicole, “desde que eu tenha a certeza de que todos estão bem…”, e olhou para a primeira Tiasso.

“Todos os dados monitorados indicam que os seus filhos venceram o longo período de sono sem qualquer irregularidade significativa”, disse a biota.

Nicole tornou a virar-se e estudou com cuidado o rosto de Richard. Ele envelhecera um pouco, porém não tanto quanto ela esperara.

“Onde está sua barba?”, disse ela repentinamente, quando sua mente registrou que ele estava muito bem barbeado.

“Barbeamos os homens ontem, enquanto dormiam”, respondeu Tiasso 009. “Também cortamos os cabelos e demos banho em todos. Segundo o plano de missão pré-programado.

Os homens? pensou Nicole. Ficou momentaneamente perplexa. Mas é claro; Benjy e Patrick agora já são homens!

Ela tomou a mão de Richard e os dois foram depressa até o leito de Patrick. O rosto que viram pela janela era espantoso. Seu pequeno Patrick não era mais um menino. Suas feições se haviam alongado consideravelmente e os contornos arredondados das faces haviam desaparecido. Nicole fixou o filho por mais de um minuto.

“Sua idade corresponde a mais ou menos dezesseis ou dezessete anos”, esclareceu Tiasso 017, respondendo ao olhar indagador de Nicole. “O sr.

Benjamin O’Toole permanece um ano e meio mais velho. É claro que essas idades são apenas aproximadas. Como a Águia lhes explicou antes de partirem do Nodo, pudemos retardar um pouco as enzimas-chaves de envelhecimento em cada um de vocês — porém nem todos na mesma escala. Quando dizemos que o sr. Patrick O’Toole tem agora dezesseis ou dezessete anos, estamos nos referindo apenas ao relógio pessoal, interno, biológico, dele. A idade citada é uma espécie de média entre crescimento, amadurecimento e processos subsistêmicos de envelhecimento.”

Nicole e Richard pararam junto a cada um dos outros leitos, olhando as crianças pelas janelinhas durante vários minutos. Nicole sacudiu repetidamente a cabeça expressando sua perplexidade. “Para onde foram os meus filhotes?”, disse ela ao ver que até mesmo a pequena Ellie se tinha transformado em uma adolescente durante a longa viagem.

“Nós sabíamos que isso ia acontecer”, comentou Richard sem emoção, o que não ajudava em nada a Nicole mãe a enfrentar o sentimento de perda que estava vivenciando.

“Saber é uma coisa”, disse Nicole; “mas ver e vivenciar o fato é completamente outra. Este não é um caso típico de mãe que repentinamente se dá conta de que seus meninos e meninas já cresceram. O que aconteceu a nossos filhos é verdadeiramente arrasador. Seu desenvolvimento mental e social foi interrompido pelo equivalente a dez ou doze anos. Nós agora temos crianças pequenas andando por aí em corpos adultos. Como poderemos prepará-los para encontrar outros humanos em seis meses?” Nicole estava atônita. Teria uma parte dela se recusado a acreditar na Águia quando esta descrevera o que iria acontecer à sua família? Talvez. Tratavase de mais um evento inacreditável até mesmo em uma vida que havia muito tempo já abandonara qualquer compreensão. Porém, como mãe deles, tenho muito o que fazer, e quase não tenho tempo. Por que não planejamos tudo isso antes de deixar o Nodo?

Enquanto Nicole lutava com sua forte reação emocional à visão de seus filhos repentinamente já crescidos, Richard conversava com as duas Tiassos, que respondiam todas as perguntas dele com facilidade. Ele estava profundamente impressionado com a capacidade física e mental dos dois robôs. “Todos vocês têm uma riqueza assim tão grande de informações guardada em suas memórias?”, perguntou ele às duas no meio da conversa.

“Só nós, Tiassos, temos dados históricos detalhados de saúde sobre a sua família”, respondeu 009. “Todos os biomas humanos têm acesso a um grande leque de fatos básicos. No entanto, certa porção desse conhecimento será removida aos primeiros contatos com outros humanos. Nesse instante, os recursos de memória de biomas de todo tipo serão parcialmente eliminados.

Qualquer acontecimento ou parte de dados pertencentes à Águia, ao Nodo ou quaisquer situações ocorridas antes de vocês despertarem desaparecerão de nossos bancos de dados depois do encontro com os outros humanos. Apenas as suas informações pessoais de saúde serão disponíveis para esses períodos anteriores de tempo — e tais dados estarão localizados nos Tiassos.”

Nicole já vinha pensando sobre o Nodo antes destes últimos comentários.

“Vocês ainda estão em contato com a Águia?”, indagou de repente.

“Não”, respondeu a o 17 desta vez. “É bastante seguro supor que a Águia, ou pelo menos algum representante da Inteligência Nodal, continue monitorando periodicamente nossa missão, porém não há mais qualquer tipo de interação com Rama a partir do momento em que deixamos o Hangar. Vocês, nós e Rama estaremos sozinhos até que os objetivos desta missão sejam alcançados.”

Katie postou-se defronte do espelho grande e estudou seu corpo nu. Mesmo depois de um mês ele ainda era novidade para ela. Gostava muito de tocar em si mesma, e particularmente de correr os dedos pelos seios e observar os mamilos incharem-se reagindo ao estímulo. E gostava de fazê-lo ainda mais à noite, quando estava debaixo dos lençóis. Então ela podia esfregar-se em toda parte até ondas de arrepios percorrerem seu corpo e ela sentir vontade de gritar de prazer.

Sua mãe já lhe explicara o fenômeno, mas pareceu um tanto contrafeita quando Katie quis discuti-lo uma segunda e uma terceira vez. “A masturbação é uma coisa muito íntima, queridinha”, dissera Nicole, em voz baixa, certa noite antes do jantar, “que geralmente só discutimos, se é que chegamos a discuti-la, com os amigos mais íntimos.”

Ellie não ajudava. Katie jamais vira a irmã tentando examinar-se, nem uma vez sequer. Provavelmente ela não faz isso nunca. E por certo não tem a menor vontade de falar no assunto.

“Já acabou com o chuveiro?”, ouviu Katie quando Ellie gritou do outro quarto. Cada uma das meninas tinha seu próprio quarto de dormir, mas compartilhavam um só banheiro.

“Já”, gritou Katie por sua vez. Ellie entrou no banheiro, pudicamente enrolada em uma toalha, e olhou rapidamente para a irmã, de pé, inteiramente nua, em frente ao espelho. A menina mais moça ia começar a dizer alguma coisa, mas aparentemente mudou de idéia, pois deixou cair a toalha e entrou depressa para o chuveiro.

Katie ficou observando Ellie através da porta transparente. Primeiro olhou o corpo de Ellie, depois olhou de novo para o espelho, comparando todos os aspectos anatômicos possíveis. Katie preferia seu próprio rosto e cor de pele — ela era de longe o membro mais claro da família, a não ser pelo pai — mas o corpo de Ellie era melhor.

“Por que será que meu corpo é tão parecido com o de um menino?”, Katie perguntou a Nicole certa noite, duas semanas mais tarde, depois de acabar de ler um cubo de dados que continha uns figurinos muito antigos.

“Não posso explicar exatamente”, respondeu Nicole, levantando os olhos de sua própria leitura. “A genética é um assunto complicadíssimo, muito mais complexo do que Gregor Mendel imaginou a princípio.”

Nicole riu de si mesma, ao se dar conta, logo depois, que Katie não podia de modo algum compreender o que acabara de dizer. “Katie”, continuou ela, em tom menos pedante, “cada criança é uma combinação única das características de seu pai e sua mãe. Tais características identificadoras são guardadas em moléculas chamadas de genes. Há literalmente bilhões de modos diferentes pelos quais os genes de um par de pais podem expressar-se… é por isso que os filhos de um casal não são todos idênticos.”

A testa de Katie franziu-se. Tinha esperado uma resposta diferente. Nicole percebeu logo. “Além do que”, acrescentou em tom reconfortante, “seu corpo não lembra o de um menino de todo. ‘Atlético’ seria um termo que o descreveria melhor.”

“Seja como for”, respondeu Katie, apontando para sua irmã, que estava estudando muito no canto da sala de estar, “eu certamente não me pareço com Ellie. O corpo dela é realmente atraente — os seios dela são ainda maiores e mais redondos do que os seus.”

Nicole riu com naturalidade. “Ellie tem realmente um corpo imponente.

Mas o seu é tão bom quanto o dela — só que diferente.” Nicole voltou à sua leitura, julgando que a conversa havia terminado.

“Não encontrei muitas mulheres com meu tipo de corpo nestas revistas”, insistiu Katie, após um breve silêncio. Estava mostrando seu computador portátil, porém Nicole não estava mais prestando atenção. “Sabe, mamãe, acho que a Águia cometeu algum engano nos controles do meu leito, e eu devo ter recebido alguns hormônios que eram destinados a Patrick ou Benjy.”

“Katie, querida”, respondeu Nicole, finalmente compreendendo que a filha estava obcecada com seu corpo; “é virtualmente certo que você se tornou a pessoa que seus genes foram programados para ser quando foi concebida. Você é uma moça linda e inteligente, e ficaria mais feliz se gastasse seu tempo pensando em seus muitos atributos excelentes, ao invés de descobrir alguma imperfeição em você mesma e querer ser alguma outra pessoa.”

Desde o momento do despertar que muitas das conversas de mãe e filha tinham seguido mais ou menos o mesmo rumo. Para Katie, parecia que sua mãe não tentava compreendê-la e estava sempre com uma lição ou um epigrama já prontos. “Há muito mais riquezas na vida do que apenas sentir-se bem”, era um refrão recorrente que soava nos ouvidos de Katie. Por outro lado, os elogios que a mãe fazia a Ellie sempre lhe pareciam exagerados. “Ellie é tão boa aluna, apesar de ter começado muito tarde”, “Ellie sempre ajuda, mesmo quando ninguém pede”, ou “Por que você não pode ter um pouquinho mais de paciência com Benjy, como Ellie tem?”

Primeiro era Simone, e agora Ellie, dizia Katie a si mesma certa noite, quando estava deitada, nua, em sua cama, depois que ela e a irmã haviam brigado e a mãe só repreendera a ela. Eu nunca tive chance com a mamãe. Somos diferentes demais. O melhor é nem tentar.

Seus dedos passavam por todo o seu corpo, estimulando seu desejo, e Katie suspirou por antecipação. Ao menos há certas coisas para as quais eu não preciso de mamãe, concluiu.


“Richard”, disse Nicole uma noite na cama, quando estavam a apenas seis semanas de distância de Marte.

“Mrnmmmm”, respondeu ele lentamente, quase dormindo.

“Estou preocupada com Katie. Estou muito satisfeita com o progresso feito pelas outras crianças, até mesmo Benjy, que Deus o abençoe. Mas preocupo-me de verdade com Katie.”

“Exatamente o que é que a está incomodando?”, disse Richard, soerguendo o corpo e apoiando-se em um cotovelo.

“Principalmente suas atitudes. Katie é incrivelmente auto-referente. E também é de pavio curto e sem paciência com as outras crianças, até mesmo com Patrick, que positivamente a adora. Ela discute comigo o tempo todo, muitas vezes em uma espécie de disputa tola. E creio que ela passa tempo demais sozinha no quarto.”

“Ela só está entediada”, respondeu Richard. “Lembre-se, Nicole, que fisicamente ela é uma moça de vinte e poucos anos. Era hora de ela sair com rapazes, afirmar sua independência. Não há ninguém aqui, na verdade, que esteja à altura dela… E você tem de admitir que às vezes nós a tratamos como se tivesse uns doze anos.”

Nicole não disse nada. Richard inclinou-se e tocou-lhe o braço. “Nós sempre soubemos que Katie era a mais tensa de todas as crianças. Infelizmente, ela parece muito comigo.”

“Mas você pelo menos canaliza sua energia para projetos que valham a pena. Katie é tão prontamente destrutiva quanto construtiva… Falando sério, Richard, eu gostaria que você tivesse uma conversa com ela. De outro modo, temo que tenhamos problemas sérios quando encontrarmos os outros humanos.”

“E o que quer que eu diga a ela?”, respondeu Richard após um breve silêncio. “Que a vida não é feita de um momento excitante após outro?… E por que razão deveria eu pedir-lhe que não se retirasse para seu mundo de fantasia em seu próprio quarto? É provável que ele seja mais interessante do que este.

Infelizmente, não há nada de muito excitante para uma mulher jovem como Katie em parte alguma do Novo Éden, neste momento.” “Esperava que você fosse um pouco mais compreensivo”, respondeu Nicole um tanto amuada. “Preciso de sua ajuda, Richard… e Katie reage melhor a você.”

Novamente Richard ficou em silêncio. “Está bem”, acabou dizendo, em tom frustrado, e tornando a deitar-se. “Levarei Katie para esquiar na água amanhã — ela adora — e pedirei que ela ao menos tenha um pouco mais de consideração com os outros membros da família.”


“Muito bom. Ótimo”, disse Richard, quando acabou de ler todo o material no caderno eletrônico de Patrick. Desligando a força, ele olhou para o filho, que estava sentado defronte do pai, um pouco nervoso. “Você aprendeu álgebra muito depressa, e positivamente tem um dom para a matemática. Quando chegarem os outros humanos no Novo Éden, você estará quase pronto para cursos universitários — pelo menos em matemática e ciência.”

“Mas mamãe diz que ainda estou muito atrasado com o meu inglês”, respondeu Patrick. “Ela diz que minhas redações parecem de criança.”

Nicole ouviu a conversa e aproximou-se, vindo da cozinha. “Patrick, querido, Garcia 041 diz que você não leva suas redações a sério. Sei que você não pode aprender tudo do dia para a noite, mas não quero que fique embaraçado quando encontrarmos os outros humanos.”

“Mas eu gosto mais de matemática e ciência”, protestou Patrick. “Nosso robô Einstein disse que poderia ensinar-me cálculo em três ou quatro semanas — se eu não tivesse de estudar tantas outras matérias.”

A porta da frente abriu-se de repente e Katie e Ellie entraram brincando.

O rosto de Katie estava brilhando e vivo. “Desculpem o atraso, mas tivemos um dia ótimo.” Voltou-se para Patrick e acrescentou: “Eu guiei o barco sozinha, e atravessei todo o lago Shakespeare. Deixamos Garcia na margem.”

Ellie não estava tão entusiasmada quanto a irmã. Na verdade, parecia um pouquinho emburrada. “Você está bem, querida?” perguntou Nicole baixinho à caçula, enquanto Katie regalava o resto da família com suas histórias da aventura no lago.

Ellie acenou com a cabeça, mas não disse nada.

“O excitante, mesmo”, vibrava Katie, “foi cruzar nossas próprias ondas em alta velocidade. Bam-bam-bam, íamos batendo de uma onda para outra. Às vezes, parecia que estávamos voando.”

“Aqueles barcos não são brinquedos”, comentou Nicole alguns momentos mais tarde, ao chamar todos para que viessem jantar. Benjy, que estivera na cozinha pegando uns pedacinhos de salada com as mãos, foi o último a se sentar.

“O que é que você faria se o barco virasse?”, perguntou Nicole depois de estarem todos sentados.

“As Garcias iriam nos salvar”, respondeu Katie, sem dar muita importância ao assunto. “Havia três nos olhando da praia… Afinal, é para isso que elas servem… Além do que, estamos usando salva-vidas, e de qualquer modo eu sei nadar.”

“Mas sua irmã não sabe”, retrucou imediatamente Nicole, em tom crítico.

“E você sabe que ela teria ficado apavorada se tivesse sido atirada na água.” Katie tentou argumentar, mas Richard interferiu e mudou de assunto, antes que a discussão pegasse fogo. Na verdade, toda a família andava um pouco nervosa. Rama havia entrado na órbita de Marte fazia um mês, mas ainda não havia qualquer sinal do contingente humano que supostamente eles deveriam encontrar. Nicole sempre supusera que seu encontro com os outros terráqueos teria lugar logo após sua inserção na órbita de Marte.

Depois do jantar, toda a família foi para o pequeno observatório de Richard no quintal da casa, para olhar para Marte. O observatório tinha acesso a todos os sensores externos de Rama (porém a nenhum dos internos fora do perímetro do Novo Éden — a Águia fora muito firme quanto a esse ponto durante suas discussões sobre o desenho da nave) e podia portanto apresentar vistas telescópicas esplêndidas de cada parte do dia do Planeta Vermelho.

Benjy gostava particularmente dessas sessões de observação com Richard.

Sentia muito orgulho de poder apontar os vulcões da região de Tharsis, o grande desfiladeiro chamado Valles Marineris, e a área Chryse, onde a primeira nave Viking pousara havia mais de duzentos anos. Uma tempestade de pó estava-se formando ao sul da Estação Mutch, centro da grande colônia marciana abandonada nos dias incertos que se seguiram ao Grande Caos. Richard especulou que o pó poderia espalhar-se por todo o planeta, já que estava na estação certa para esse tipo de tempestade global.

“O que acontecerá se os outros terráqueos não aparecerem?”, indagou Katie durante um momento de pausa nas observações de Marte. “E por favor, mamãe, dê uma resposta clara, desta vez; nós não somos mais crianças.”

Nicole ignorou o tom desafiador do comentário de Katie. “Se me lembro corretamente, o plano básico reza que devemos esperar aqui na órbita de Marte por seis meses”, respondeu. “Se não houver encontro dentro desse período, Rama irá na direção da Terra.” Fez uma pausa de vários segundos. “Nem seu pai nem eu sabemos qual será o procedimento a partir desse ponto. A Águia nos disse que se forem postos em marcha quaisquer dos planos de emergência, eles nos dirão, no momento certo, tudo o que precisamos saber.”

A sala ficou quieta por quase um minuto, enquanto imagens de Marte em várias resoluções apareciam na gigantesca tela na parede. “Onde é a Terra?”

perguntou Benjy.

“É o planeta que fica logo para dentro de Marte, isto é, é o que fica mais perto do sol, logo a seguir de Marte”, respondeu Richard. “Não se lembra de que eu lhe mostrei na fila de planetas, na sub-rotina do meu computador?”

“Não é isso que eu quis dizer”, respondeu Benjy muito devagar. “Eu quero ver a Terra.”

Era um pedido bastante simples. Jamais ocorrera a Richard, embora houvesse trazido a família ao observatório várias vezes, que as crianças pudessem se interessar por aquela luz mal e mal azulada no céu da noite marciana. “A Terra não é muito imponente vista desta distância”, disse Richard, interrogando seu banco de dados para obter o melhor resultado do sensor. “Na verdade, parece bastante com qualquer outro objeto brilhante, como Sirius, por exemplo.”

Richard não captara o significado da coisa. Uma vez identificada a Terra em um quadro celestial específico, e centrada a sua imagem em torno daquele reflexo aparentemente insignificante, as crianças todas ficaram fascinadas olhando para ela, com a maior atenção.

Aquele é seu planeta natal, pensou Nicole, fascinada pela repentina mudança de clima na sala, muito embora jamais tenham estado lá. Imagens da Terra, guardadas na memória, inundaram Nicole, enquanto olhava para aquele pontinho no centro da tela. Teve então consciência de uma profunda saudade, de um desejo de voltar àquele abençoado planeta oceânico transbordante de tanta beleza. Lágrimas encheram-lhe os olhos e, aproximando-se das crianças, ela abriu os braços e envolveu todas elas.

“Seja para onde for que nós tenhamos de ir neste espantoso universo”, disse ela suavemente, “tanto agora quanto no futuro, aquele pontinho azul será sempre a nossa casa.”

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