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30 DE JANEIRO DE 2209

Eu esquecera o que era ter adrenalina correndo por meu sistema. Nas últimas trinta horas, nossa vida calma e plácida em Rama foi completamente destruída.

Tudo começou com dois sonhos. Ontem de manhã, logo antes de acordar, tive um sonho extraordinariamente vivido com Richard. Ele não aparecia pessoalmente no sonho, quer dizer, ele não aparecia junto com Michael, Simone, Katie e eu. Mas o rosto de Richard aparecia em recorte no canto esquerdo superior de meu sonho enquanto nós quatro executávamos alguma atividade rotineira e diária. Ele me chamava sem parar, e seu chamado era tão forte que eu ainda o ouvia quando acordei.

Eu acabava de começar a contar meu sonho a Michael quando Katie apareceu na porta, de pijama. Estava trêmula e assustada. “O que foi, querida?”, perguntei, abrindo os braços para acolhê-la.

Ela veio e me abraçou com força. “É o papai, ele ficou me chamando ontem de noite, no meu sonho.”

Um arrepio percorreu-me a espinha e Michael sentou-se em sua esteira.

Eu disse o que pude para consolar Katie, mas fiquei transtornada com a coincidência. Teria ela ouvido minha conversa com Michael? Impossível; nós a vimos no momento em que entrou em nosso quarto.

Depois de Katie voltar para seu quarto a fim de trocar de roupa, eu disse a Michael que não podia de forma alguma ignorar os dois sonhos. Ele e eu já discutimos várias vezes meus poderes psíquicos ocasionais. Embora de modo geral ele não dê muita importância a toda a idéia de percepção extra-sensorial, Michael sempre admitiu que seja impossível afirmar categoricamente que meus sonhos e visões não prevejam o futuro.

“Tenho de ir à superfície procurar Richard”, disse-lhe depois do café.

Michael esperava que eu fizesse esse tipo de tentativa e se mostrava disposto a cuidar das crianças. Mas estava escuro em Rama. Ambos concordamos que seria melhor se eu esperasse até o anoitecer, quando novamente estaria claro na espaçonave acima de nossa toca.

Dormi bastante de dia para ter bastante energia e fazer uma busca completa. Mas o sono foi descontínuo, e eu ficava sonhando que estava em perigo.

Antes de sair, verifiquei que houvesse um desenho gráfico de Richard razoável em meu computador portátil. Queria poder mostrar o objeto de minha busca a quaisquer aves que encontrasse.

Depois de dar um beijo de boa noite nas crianças, eu me dirigi diretamente à toca das aves. Não fiquei muito surpreendida ao ver que a sentinelatanque tinha sumido. Há anos, quando pela primeira vez fui convidada a entrar lá por uma das aves residentes, a sentinela-tanque também estivera ausente.

Será que eu estava de algum modo sendo convidada a entrar de novo? E que ligação teria aquilo com meu sonho? Meu coração estava batendo como louco quando eu passei o cômodo com a cisterna de água e avancei mais profundamente para o túnel que a sentinela ausente normalmente guardava.

Não ouvi qualquer som. Caminhei quase um quilômetro antes de encontrar o portal à minha direita. Espiei com cuidado para o outro lado da esquina. O cômodo estava escuro, como tudo na toca das aves, a não ser o corredor vertical. Acendi minha lanterna. A sala não era muito funda, talvez uns quinze metros no máximo, mas era muito alta. De encontro à parede do lado oposto à porta havia filas e filas de cestas ovais. O facho de luz de minha lanterna mostrou-me que as filas iam até o teto altíssimo, que devia ficar logo embaixo de uma das praças de Nova York.

Não levei muito tempo para descobrir a função da sala; todas as cestas eram do tamanho certo para um melão-maná. É claro, pensei eu, devia ser ali que era guardada a comida. Não é de surpreender que não quisessem que ninguém entrasse.

Depois de verificar que todas as cestas estavam efetivamente vazias, comecei a voltar na direção do túnel vertical. Depois, por um palpite, inverti meu rumo, passei além da sala que seria de depósito, e continuei pelo túnel. Ele tem de dar em algum lugar, pensei eu, pois de outro modo acabaria na sala dos melões.

Depois de mais meio quilômetro, o túnel foi se alargando gradativamente até desaguar em um grande salão circular. No centro, que tinha teto alto, ficava uma estrutura larga, abobadada. Nas paredes circundantes havia cerca de vinte alcovas, cavadas a espaços regulares. Não havia qualquer luz senão a de minha lanterna, de modo que levei vários minutos até integrar todo o salão, com sua edificação abobadada no centro, em uma imagem completa.

Caminhei toda a volta do perímetro, examinando uma alcova após a outra.

A maioria estava vazia. Em uma encontrei três sentinelas-tanques idênticas, cuidadosamente enfileiradas junto à parede do fundo. Meu primeiro impulso foi o de desconfiar das sentinelas, mas não foi necessário, pois estavam todas adormecidas.

Mas a alcova mais interessante, no entanto, era a que ficava no centro do salão, a exatamente 180° do túnel de entrada. Essa alcova especial era cuidadosamente organizada e tinha prateleiras grossas talhadas em suas paredes.

Havia ao todo quinze prateleiras, cinco em cada uma das paredes laterais e mais cinco na que ficava oposta à porta da alcova. As estantes nas laterais tinham objetos arrumados nelas (tudo estava em perfeita ordem), mas as da parede do fundo tinham cada uma cinco buracos redondos cavados ao longo de sua extensão.

O conteúdo desses buracos — cada um deles subdividido em segmentos, como em uma torta — era fascinante. Uma das fatias em cada um dos buracos continha um material muito fino, parecendo cinza. Uma segunda continha um, dois ou três anéis, ou cor de cereja ou dourados, que reconheci imediatamente em função de sua semelhança com os anéis que víramos no pescoço de nossa ave amiga de veludo cinzento. Não parecia haver nenhum plano reconhecível no resto dos artigos encontrados nos buracos — alguns, de fato, estavam vazios, a não ser pela cinza e pelos anéis.

Afinal, voltei-me para aproximar-me da estrutura abobadada. Sua porta ficava voltada para a alcova especial. Examinei a porta com minha lanterna. Um desenho complicado fora talhado em sua superfície retangular. Havia quatro painéis, ou quadrantes, separados no desenho. Uma ave aparecia no quadrante do alto à esquerda, com um melão-maná no painel adjacente à direita. Os dois quadrantes inferiores continham figuras desconhecidas. No lado esquerdo havia a talha de uma figura engonçada e listrada, correndo sobre seis pernas. No painel final, embaixo, à direita, aparecia uma grande caixa cheia de uma rede ou um trançado muito fino.

Após alguma hesitação, empurrei a porta, e quase morri de susto quando um alarme altíssimo, como uma buzina, rasgou o silêncio. Fiquei parada junto à porta, sem me mexer, enquanto o alarme continuou tocando por quase um minuto. Quando acabou, continuei sem me mexer. Fiquei tentando ouvir se alguém (ou alguma coisa) atendia ao alarme.

Nenhum som perturbou o silêncio. Após alguns minutos, comecei a examinar o interior da edificação. Um cubo transparente, com mais ou menos dois metros e meio em cada lado, ocupava o centro da sala única. As paredes do cubo estavam manchadas em alguns pontos, obscurecendo em parte minha visão, mas pude ver que, na base, dez centímetros estavam cobertos por um material fino e escuro. O resto do edifício em torno do cubo era decorado com desenhos geométricos, nas paredes, no chão e no teto. Uma das faces do cubo tinha uma entrada estreita que permitia o acesso ao interior.

Entrei. O material preto e fofo parecia cinza, mas era de consistência ligeiramente diferente do material parecido que eu vira nos buracos nas alcovas.

Meus olhos seguiam o facho de luz da lanterna quando este se movia ao longo de um desenho sistemático em torno do cubo. Perto do centro havia um objeto parcialmente enterrado na cinza. Caminhei até lá e apanhei o objeto, sacudiu-o, e quase desmaiei. Era OB, o robô de Richard.

OB estava bastante mudado. O exterior estava todo preto, seu pequenino painel de controle derretera e caíra, e ele não funcionava mais. Mas era ele, sem dúvida. Levantei o robozinho até meus lábios e o beijei. Com o olhar da mente podia vê-lo a jorrar os sonetos de Shakespeare enquanto Richard ouvia embevecido.

Era óbvio que OB estivera em um incêndio. Teria Richard também sido apanhado em um inferno dentro do cubo? Peneirei cuidadosamente as cinzas, mas não achei nem traço de ossos. Fiquei imaginando, no entanto, o que teria queimado e criado aquela cinza? E o que estaria OB fazendo dentro do cubo, para início de conversa?

Fiquei convencida de que Richard estava em algum lugar no interior da toca das aves, de modo que passei mais oito longas horas lutando para subir e descer de patamar em patamar e explorando túneis. Visitei todos os lugares onde havia estado antes, durante minha breve estada de há tanto tempo, e até descobri alguns cômodos novos, interessantes mas sem possibilidade de identificação funcional. Mas não havia sinal de Richard. Na verdade, não havia sinal de qualquer espécie de vida. Lembrando-me de que o breve dia ramaiano estava quase acabando e que as quatro crianças em breve estariam acordando em nossa própria toca, finalmente voltei, cansada e desapontada, para meu lar ramaiano.

Tanto a tampa quanto a grade de nossa toca estavam abertas quando cheguei. Embora tivesse bastante certeza de as ter fechado antes de partir, não conseguia lembrar-me de minhas ações exatas na hora da saída. Acabei por dizer a mim mesma que talvez eu estivesse excitada demais naquele momento e tivesse esquecido de fechar tudo. Tinha acabado de começar a descer quando ouvi Michael chamando “Nicole” atrás de mim.

Virei-me. Michael estava se aproximando, vindo do caminho do leste.

Estava andando depressa, o que não é comum nele, e carregava o pequeno Patrick em seus braços. “Aí está você”, disse ele arfando, quando caminhei até ele, “estava começando a me preocupar…”

Ele parou de repente, olhou para mim um momento, depois espiou em volta. “Mas onde está Katie?”, disse ele preocupado.

“O que está dizendo, onde está Katie?” retruquei, com a expressão no rosto de Michael me alarmando.

“Ela não está com você?”, perguntou ele.

Quando abanei a cabeça e disse que não a tinha visto, Michael repentinamente caiu em prantos. Eu avancei correndo e consolei o pequeno Patrick, que se assustara com os soluços de Michael e começara a chorar também.

“Ah, Nicole, eu sinto tanto, tanto. Patrick esteve muito inquieto à noite e eu o levei para o meu quarto. Hoje Benjy teve dor de barriga e Simone e eu tivemos de cuidar dele por umas duas horas. Caímos todos no sono enquanto Katie estava sozinha no quarto das crianças. Há cerca de duas horas, quando acordamos, ela tinha desaparecido.”

Eu jamais vira Michael tão desesperado. Tentei consolá-lo, dizendo que provavelmente Katie estava brincando pela vizinhança (e quando a acharmos, pensei eu, passarei um pito que ela nunca mais há de esquecer), mas Michael argumentou comigo.

“Não, não; ela não está em nenhum lugar por aqui. Patrick e eu já procuramos por mais de uma hora.”

Michael, Patrick e eu descemos para ver se estava tudo bem com Simone e Benjy. Simone informou-nos de que Katie ficara desapontadíssima ao saber que eu fora procurar Richard sozinha. “Ela esperava”, acrescentou Simone serenamente, “que você a levasse junto.” “Por que não me disse isso ontem à noite?”, perguntei eu à minha filha de oito anos.

“Não me pareceu importante. E jamais imaginei que Katie fosse tentar encontrar papai por si mesma.”

Tanto Michael quanto eu estávamos exaustos, mas um de nós dois tinha de ir procurar Katie. Eu era a escolha certa. Lavei o rosto, pedi aos ramaianos desjejum para todos, e contei uma versão abreviada de minha descida à toca das aves. Simone e Michael examinaram lentamente com as mãos o enegrecido OB, e percebi que ambos estavam imaginando o que teria acontecido a Richard.

“Katie disse que papai tinha ido procurar as octoaranhas”, comentou Simone pouco antes de eu sair. “Ela disse que o mundo delas era mais excitante.”

Foi apavorada que me arrastei caminhando até a praça perto da toca das octoaranhas. Enquanto andava, as luzes se apagaram e era noite novamente em Rama. “Bonito”, resmunguei, “nada melhor do que procurar uma criança desaparecida no escuro”.

Tanto a tampa quanto as grades protetoras das octoaranhas estavam abertas. Eu jamais vira aquelas grades abertas antes. Meu coração deu um salto.

Senti instintivamente que Katie descera para a toca e que, apesar do medo que sentia, estava a ponto de segui-la. Primeiro ajoelhei-me e gritei “Katie!” duas vezes na direção da escuridão lá embaixo. Ouvi seu nome ecoando pelos túneis.

Esforcei-me tentando ouvir qualquer resposta, mas não havia nenhum tipo de som. Pelo menos, disse para mim mesma, não ouvi o arrastar de escovas ou o guincho de alta freqüência.

Desci a rampa até a vasta caverna com os quatro túneis que certa vez Richard e eu chamamos de “Mindinho, Seu Vizinho, Pai de Todos e Fura-Bolos”.

Foi difícil, mas forcei-me a entrar no túnel que Richard e eu havíamos seguido antes. Após alguns passos, no entanto, parei, voltei e depois entrei pelo túnel adjacente. Este segundo corredor também levava ao corredor redondo descendente com espetos protuberantes, mas passava, no caminho, pelo salão que Richard e eu havíamos chamado de museu das octoaranhas. Lembrei-me com clareza do terror que sentira nove anos antes ao encontrar o dr. Takagishi, embalsamado como um troféu de caça, pendurado no museu.

Havia uma razão para eu querer visitar o museu das octoaranhas não necessariamente relacionada à procura de Katie. Se Richard tivesse sido morto pelas octoaranhas (como Takagishi parece que foi — embora eu ainda não esteja convencida de que ele não tenha morrido de um ataque cardíaco), ou se elas houvessem encontrado seu corpo em algum outro ponto de Rama, então talvez ele também estivesse naquela sala. Dizer que eu não estava nada ansiosa por encontrar a versão de meu marido por algum taxidermista alienígena é dizer muito pouco; entretanto, acima de tudo, eu queria saber o que acontecera a Richard. Ainda mais agora, depois de meu sonho.

Respirei fundo quando cheguei à entrada do museu, e virei lentamente para a esquerda quando passei pela porta. As luzes se acenderam tão logo cruzei o portal, mas por sorte o dr. Takagishi não estava ali, olhando diretamente para o meu rosto. Ele tinha sido levado para o outro lado da sala. Na verdade, todo o museu fora rearrumado durante todos esses anos. Todas as réplicas de biomas, que ocupavam a maior parte do espaço da sala quando Richard e eu fizemos nossa breve visita, haviam sido retiradas. Os novos “objetos expostos”, se assim os devemos chamar, eram as aves e os seres humanos.

A exposição de aves ficava mais perto da porta. Três exemplares pendiam do teto, com as asas abertas. Uma das aves era a de veludo cinzento com dois anéis cor de cereja que Richard e eu víramos logo antes de ela morrer. Havia outros objetos fascinantes e até mesmo fotografias na exposição de aves, mas meus olhos eram atraídos para o outro lado da sala, para a exposição que cercava o dr. Takagishi.

Suspirei aliviada ao verificar que Richard não estava na sala. Nosso escaler estava lá, no entanto, o que Richard, Michael e eu usamos para cruzar o Mar Cilíndrico. Estava no chão bem ao lado do dr. Takagishi. Havia também uma variedade de itens colhidos dos restos de nossos piqueniques e outras atividades em Nova York. Mas o núcleo da exposição era um conjunto de quadros emoldurados nas paredes do fundo e dos lados.

Aqui do outro lado da sala não dava para perceber muito bem o que aparecia nos quadros. Fiquei sem fôlego, no entanto, quando me aproximei deles.

As imagens eram fotografias, em molduras retangulares, muitas das quais mostravam a vida dentro de nossa toca. Havia fotos de todos nós, inclusive das crianças. Mostravam-nos comendo, dormindo, até mesmo indo ao banheiro. Fui ficando arrasada enquanto examinava a coleção. Nós estávamos sendo observados, comentei comigo mesma, até mesmo dentro de nosso lar. Senti um arrepio terrível.

Na parede lateral estava uma coleção especial de fotos que me desarvorou e deixou envergonhada. Na Terra, elas seriam candidatas a um museu erótico. As imagens mostravam a mim fazendo amor com Richard em várias posições. Havia uma foto minha com Michael, também, mas não era muito clara porque estivera escuro em nosso quarto naquela noite.

A fila de fotografias abaixo das cenas de sexo era toda de fotos do nascimento das crianças. Todos os partos eram mostrados ali, até mesmo o de Patrick, o que demonstrava que a observação ainda continuava. A justaposição de sexo e parto deixava claro que as octoaranhas (ou os ramaianos?) tinham sem dúvida compreendido nosso processo reprodutivo.

Fiquei absolutamente absorvida com as fotografias por talvez uns quinze minutos. Minha concentração afinal foi quebrada quando ouvi um som muito forte de escovas se arrastando contra metal vindo da direção da porta do museu.

Fiquei absolutamente aterrorizada. Permaneci imóvel, congelada em meu lugar, mas olhei em volta desesperadamente. Não havia qualquer outro meio de fuga da sala.

Dentro de segundos, Katie apareceu aos pulos na porta. “Mamãe!”, gritou ao me ver. Ela atravessou o museu correndo, quase derrubou o dr. Takagishi, e pulou nos meus braços.

“Ah, mamãe”, disse ela me abraçando e beijando com ardor, “eu sabia que você vinha.”

Fechei os olhos e abracei minha filha perdida com todas as minhas forças.

As lágrimas rolavam por minhas faces. Eu balançava Katie de um lado para outro, acalmando-a e dizendo: “Está tudo bem, querida; está tudo bem.” Quando enxuguei meus olhos e os abri, uma octoaranha estava na porta do museu. No momento, não se movia, quase como se estivesse observando a reunião de mãe e filha. Fiquei paralisada, varrida por uma onda de emoções que iam da alegria ao mais puro terror.

Katie sentiu meu medo. “Não se preocupe, mamãe”, disse ela, olhando para a octoaranha por cima do ombro. “Ela não vai machucar você. Só quer olhar. Já chegou perto de mim um porção de vezes.”

Meu nível de adrenalina ainda estava batendo todos os recordes possíveis.

A octoaranha continuava de pé (ou sentada, ou seja lá o que fazem as octos quando não se movem) na porta. Sua vasta cabeça preta era quase esférica e pousava sobre um corpo que se abria, perto do chão, em oito tentáculos listrados de preto e dourado. No centro de sua cabeça havia duas reentrâncias simétricas em torno de um eixo invisível, que corriam do alto para baixo. Precisamente no meio dessas duas reentrâncias, mais ou menos a um metro do chão, havia uma espantosa estrutura quadrada de lente, com dez centímetros de lado, que era uma combinação gelatinosa de linhas de uma grade com um material preto e branco em fluxo. Enquanto a octoaranha nos olhava fixamente, a lente pululava de atividade.

Havia outros órgãos embutidos no corpo, entre as duas reentrâncias, tanto acima quanto abaixo da lente, porém não tive tempo para estudá-los. A octoaranha veio em nossa direção na sala, e, a despeito das garantias de Katie, meu temor retornou com toda força. O som de escova era feito por uma espécie de cílios agregados à parte inferior dos tentáculos quando se moviam pelo chão. O guincho de alta freqüência emanava de um pequeno orifício na parte inferior direita da cabeça. Por vários segundos o medo paralisou meus processos mentais.

A medida que a criatura se aproximava, minha reação natural de fuga assumiu o controle. Infelizmente, nas circunstâncias ela não adiantou nada, pois não havia para onde correr.

A octoaranha não parou enquanto não chegou a uma distância de uns meros cinco metros. Eu encostara Katie contra a parede e fiquei de pé entre ela e a octoaranha. Levantei uma das mãos e novamente houve imensa atividade na misteriosa lente. Repentinamente, tive uma idéia. Enfiei a mão dentro de meu traje de vôo e tirei meu computador. Com dedos trêmulos (a octoaranha levantara dois tentáculos para ficarem na frente da lente — em retrospecto me pergunto se ela pensou que eu ia tirar uma arma) chamei a imagem de Richard no monitor, que então mostrei à octoaranha.

Como não fiz nenhum outro movimento, a criatura retornou devagar ao chão seus dois tentáculos. Ela fixou o monitor durante quase um minuto e depois, para grande espanto meu, uma onda de cor roxo vivo correu em toda a volta de sua cabeça, a partir do limiar da reentrância. Esse roxo foi seguido alguns segundos mais tarde por um desenho como um arco-íris em vermelho, azul e verde, cada faixa de uma largura diferente, que também saiu da mesma reentrância e, depois de dar a volta à cabeça, desapareceu na reentrância paralela depois de quase 360°.

Tanto Katie quanto eu ficamos olhando aparvalhadas. A octoaranha levantou um de seus tentáculos, apontou para o monitor e repetiu a onda roxa larga. Alguns momentos depois, como antes, sobreveio o desenho de arco-íris. “Ela está falando conosco, mamãe”, disse Katie baixinho. “Acho que você tem razão; mas não tenho idéia do que ela possa estar dizendo.”

Depois de esperar o que me pareceu uma eternidade, a octoaranha começou a se mover de costas para a porta, com seu tentáculo esticado chamandonos para que a seguíssemos. Não apareceram mais faixas de cor. Katie e eu nos demos as mãos e a seguimos, cautelosamente. Ela começou a olhar em volta e notou as fotos nas paredes pela primeira vez. “Olhe só, mamãe, eles têm retratos da nossa família.”

Fiz sinal para que se calasse e pedi-lhe que por favor prestasse atenção à octoaranha. Esta recuara até o túnel e se dirigia agora para o corredor vertical com os espinhos e as passagens subterrâneas. Era a oportunidade que eu procurava. Peguei Katie no colo, mandei que se agarrasse a mim com força e corri pelo túnel afora na máxima velocidade. Meus pés mal tocaram o chão até eu chegar ao alto da rampa e me ver de volta a Nova York.

Michael ficou deslumbrado ao ver Katie em segurança e de volta, embora muito preocupada (como eu continuo) com a existência de câmeras ocultas nas paredes e tetos de nossa moradia. Jamais repreendi Katie adequadamente por ter saído sozinha — estava aliviada demais por a ter encontrado. Katie disse a Simone que tinha tido uma “aventura fabulosa” e que a octoaranha era “boazinha”. Assim é o mundo das crianças.


4 DE FEVEREIRO DE 2209

Oh alegria das alegrias! Encontramos Richard! Ele ainda está vivo! Mal e mal, pois está em coma profundo e tem uma febre altíssima, mas mesmo assim está vivo.

Katie e Simone encontraram-no hoje pela manhã, deitado no chão a menos de cinqüenta metros da entrada de nossa toca. Nós três tínhamos combinado jogar um pouco de futebol na praça e estávamos prontas para sair quando Michael me chamou de volta para alguma coisa. Disse às meninas que me aguardassem na área em torno da abertura da toca. Quando as duas começaram a gritar daí a alguns minutos, pensei que algo horrível acontecera.

Corri escada acima e imediatamente vi o corpo comatoso de Richard a distância.

A princípio temi que Richard estivesse morto. Meu lado médico entrou em funcionamento imediatamente, verificando os sinais vitais. As meninas ficaram em cima de mim enquanto eu o examinava. Particularmente Katie, que ficava dizendo sem parar: “Papai está vivo? Ah, mamãe, faz Papai ficar bom.”

Uma vez tendo confirmado que ele estava em coma, Michael e Simone ajudaram-me a carregar Richard para baixo. Injetei uma série de sondas biométricas no sistema dele e venho monitorando as observações desde então.

Tirei-lhe as roupas e examinei-o da cabeça aos pés. Está com alguns arranhões e machucados que eu jamais vira antes, o que é natural depois de todo esse tempo. Sua contagem de células no sangue está estranhamente próxima do normal — eu esperaria anomalias das células brancas com sua febre de quase 40°.

Tivemos outra grande surpresa quando examinamos em detalhe as roupas de Richard. Em sua jaqueta encontramos os robôs shakespearianos, o Príncipe Hal e Falstaff, que haviam desaparecido há nove anos no estranho mundo abaixo do corredor de espinhos do que nós julgávamos ser a toca das octoaranhas. De algum modo, Richard deve tê-las convencido a devolver seus brinquedos.

Há sete horas que estou sentada ao lado de Richard. Durante a maior parte do tempo, esta manhã, outros membros da família também estiveram aqui, mas faz uma hora que Richard e eu estamos sozinhos. Meus olhos banquetearam-se com seu rosto por vários minutos, minhas mãos já passearam por seu pescoço, seus ombros, suas costas. Jamais esperei tornar a vê-lo e tocálo. Richard, bem-vindo ao lar! Bem-vindo de volta para sua mulher e sua família.

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