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No vídeo, Nicole estava sentada em uma cadeira marrom comum, com uma parede lisa ao fundo. Estava vestida com o uniforme de vôo da AEI que fora o traje normal durante a missão Newton. Nicole leu a mensagem de um note book eletrônico que trazia nas mãos.

“Meus co-irmãos terráqueos”, começou, “sou a cosmonauta da Newton Nicole des Jardins, falando a vocês de bilhões de quilômetros de distância. Estou a bordo de uma espaçonave Rama semelhante às duas grandes espaçonaves cilíndricas que visitaram nosso sistema solar nos últimos dois séculos. Este terceiro veículo Rama também se dirige a nosso pequeno canto na galáxia.

Aproximadamente quatro anos depois de vocês receberem este vídeo, Rama III entrará em órbita em torno do planeta Marte.

“Desde que deixei a Terra, descobri que os veículos da classe Rama eram construídos por uma avançada inteligência extraterrestre como elementos de um vasto sistema de coleta de informações, cujo objetivo último é a aquisição e catalogação de dados sobre a vida no universo. É como parte desse objetivo que esta terceira espaçonave Rama está retornando à vizinhança de nosso planeta natal.

“Dentro de Rama III, um habitat com características terrenas foi concebido para acomodar dois mil seres humanos, além de um número significativo de animais e plantas de nosso planeta de origem. A biomassa precisa e outras especificações para tais animais e plantas estão contidas no primeiro apêndice a este vídeo; no entanto, deve ser salientado que as plantas, em particular as extremamente eficientes na conversão de dióxido de carbono ‘em oxigênio, são aspectos básicos no desenho fundamental do habitat terreno a bordo de Rama.

Sem as plantas, a vida dos humanos a bordo de Rama ficaria seriamente comprometida.

“O que se espera, como resultado desta transmissão, é que a Terra envie um grupo representativo de seus habitantes — junto com os suprimentos de apoio detalhados no segundo apêndice — para se encontrar com Rama III na órbita de Marte. Os viajantes serão transferidos para dentro de Rama e cuidadosamente observados enquanto vivem em um habitat que reproduz todas as condições ambientais da Terra.

“Em função da resposta hostil a Rama II que, aliás, resultou em danos pequeníssimos à espaçonave alienígena, o plano tal como foi enunciado para esta missão Rama não implica qualquer aproximação da Terra maior do que a órbita de Marte. Tal plano pressupõe, é claro, que as autoridades na Terra concordarão com os pedidos contidos nesta transmissão. Se nenhum ser humano for enviado para o encontro com Rama III na órbita de Marte, não tenho conhecimento de como a espaçonave foi programada para reagir. Posso afirmar, no entanto, baseada em minhas próprias observações, que fica facilmente dentro da capacidade da inteligência extraterrestre adquirir seus dados de observação desejados por outros métodos, menos benignos.

“No que diz respeito aos seres humanos a serem transportados para Marte, é desnecessário dizer que os indivíduos selecionados devem representar um generoso corte transverso da humanidade, incluindo ambos os sexos, todas as idades, e tantas culturas quantas possam ser razoavelmente incluídas. A grande biblioteca de informações sobre a Terra que é pedida no terceiro apêndice do vídeo fornecerá dados adicionais significativos a serem correlacionados com os colhidos dentro de Rama.

“Eu pessoalmente não tenho conhecimento quanto ao período que os humanos deverão passar dentro de Rama, ou exatamente aonde a espaçonave os levará, ou sequer por que a inteligência superior que criou Rama está coletando informações a respeito da vida no universo. Posso dizer, no entanto, que as maravilhas que já testemunhei desde que deixei o sistema solar deram-me um sentido completamente novo de nosso lugar no universo.”


A duração total do vídeo, metade da qual era dedicada aos apêndices detalhados, era de pouco mais de dez minutos. Ao longo da transmissão, a imagem básica não mudou. A fala de Nicole foi pausada e deliberada, pontuada por pequenas pausas quando seus olhos moviam-se entre a câmera e o caderno eletrônico em suas mãos. Embora houvesse certa modulação em seu tom, a expressão facial de seriedade de Nicole foi virtualmente constante. Só quando deu a entender que os ramaianos poderiam ter “outros métodos, menos benignos”

para obter os dados que desejavam é que alguma emoção forte passou por seus olhos.

Kenji Watanabe olhou a primeira parte do vídeo com intensa concentração. Durante os apêndices, no entanto, sua mente começou a divagar e a propor várias perguntas. Quem são esses extraterrestres? ficou ele imaginando. De onde vieram? Por que desejam observar-nos? E por que escolheram Nicole des Jardins para ser sua porta-voz?

Kenji começou a rir consigo mesmo, ao se dar conta de que haveria uma corrente sem fim de perguntas. Resolveu então focalizar questões mais tratáveis.

Se Nicole ainda estivesse viva hoje, pensou Kenji a seguir, então estaria com 81 anos. A mulher na televisão tinha fios brancos e seu rosto muito mais rugas do que tivera a cosmonauta des Jardins quando a Newton fora lançada da Terra, porém sua idade na tela não chegava nem perto dos oitenta. Talvez uns 52 ou 53, no máximo, refletiu Kenji. Será então que ela fez esse vídeo há trinta anos? Ou será que o processo de envelhecimento foi de algum modo retardado? Não lhe ocorreu de todo questionar se quem falava seria Nicole ou não, pois Kenji passara tempo suficiente com os arquivos da Newton para reconhecer imediatamente as expressões faciais e os maneirismos da astronauta. Ela deve ter feito o vídeo há quatro anos mais ou menos, pensou Kenji, mas se assim for… Ele continuava a se debater com toda a situação quando a transmissão de Nicole terminou e o diretor da AEI tornou a aparecer no monitor.

O dr. Koch explicou rapidamente que o vídeo seria integralmente repetido duas vezes em todos os canais, e depois ficaria à disposição de todos os passageiros e da tripulação, segundo a conveniência de cada um.

“Que raios está acontecendo mesmo por aqui?”, quis Max Puckett saber tão logo o rosto de Nicole tornou a aparecer no vídeo. Sua indagação era dirigida a Kenji.

“Se compreendi corretamente”, respondeu Kenji depois de ainda olhar para a imagem na tela por alguns segundos, “nós fomos propositadamente enganados pela AEI quanto a um dos objetivos primários de nosso empreendimento. Ao que parece, essa mensagem foi recebida há quatro anos, quando o financiamento da Colônia Lowell ainda estava incerto, e foi resolvido então — depois de todas as tentativas possíveis de se provar que o vídeo era falso ou que se tratava de alguma grande brincadeira de mau gosto terem fracassado — que a investigação de Rama seria um objetivo secreto de nosso projeto.”

“Merda”, disse Max Puckett, sacudindo violentamente a cabeça. “E por que raios eles simplesmente não nos contaram a verdade?”

“A minha mente empaca diante da idéia de supercriaturas enviarem toda essa tecnologia só para coletar dados a nosso respeito”, comentou o juiz Mishkin, depois de um breve silêncio. “Em outro nível, no entanto, pelo menos agora posso compreender algumas peculiaridades no processo de seleção de pessoal. Fiquei boquiaberto quando um grupo de adolescentes americanos sem teto foi acrescido à colônia há uns oito meses. Agora percebo que os critérios de seleção se basearam no intuito de satisfazer o pedido de ‘um generoso corte transverso da humanidade’ de Madame des Jardins; a possibilidade ou não de nossa mistura específica de indivíduos e capacitações vir a produzir uma colônia sociologicamente viável em Marte sempre deve ter sido uma consideração secundária.”

“Eu odeio mentiras e mentirosos”, disse Max, que se levantara da cadeira e andava pela sala. “Todos esses políticos e administradores do governo são iguais — os filhos da mãe mentem sem a menor dor na consciência.”

“Mas o que eles poderiam ter feito, Max?”, retrucou o juiz Mishkin. “Quase que certamente eles realmente não levaram o vídeo a sério. Pelo menos até a nova nave ter aparecido na órbita de Marte. E se nos tivessem contado a verdade desde o início, teria havido uma onda mundial de pânico.”

“Olhe aqui, juiz, eu fui contratado para ser uma porra de um pecuarista em uma colônia em Marte. Não sabia de nada a respeito de ETs e, para falar a verdade, quero continuar a não saber. Para mim já é suficientemente difícil lidar com galinhas, porcos e gente.” “Particularmente com gente”, disse logo o juiz Mishkin, sorrindo para seu amigo. Mesmo a contragosto, Max também riu.

Alguns minutos mais tarde, o juiz Mishkin e Max despediram-se e deixaram Kenji e Nai sozinhos. Pouco depois de seus convidados saírem, o videofone tocou no apartamento do casal. “Watanabe?”, ouviram dizer o comandante MacMillan.

“Sim, senhor”, respondeu Kenji.

“Desculpe incomodá-lo, Watanabe”, disse o comandante, “mas você recebeu a primeira incumbência fora da minha equipe imediata. Suas ordens são as de informar toda a tripulação da Pinta a respeito da expedição Newton, dos Ramas e da cosmonauta des Jardins às 19:00h de hoje. Julguei que quisesse começar a preparar-se.”


“… Toda a mídia informou que em 2200 Rama II foi completamente destruída, vaporizada pelas múltiplas bombas atômicas que explodiram em sua vizinhança. Os cosmonautas desaparecidos, des Jardins, O’Toole, Takagishi e Wakefield foram naturalmente dados como mortos. Com efeito, segundo tanto os documentos oficiais da missão Newton quanto os livros e séries televisivas de grande sucesso distribuídos por Hagenest e Schmidt, Nicole des Jardins presumivelmente morreu em algum ponto de Nova York, a cidade-ilha no centro do Mar Cilíndrico, semanas antes da nave científica da Newton jamais deixar Rama para retornar à Terra.”

Kenji parou a fim de olhar para a platéia. Muito embora o comandante MacMillan tivesse explicado aos passageiros e à tripulação da Pinta que um videoteipe da apresentação de Kenji lhes ficaria acessível logo a seguir, muitos dos ouvintes estavam tomando notas. Kenji estava gozando seu momento de evidência. Deu um olhar para Nai, e sorriu antes de continuar.

“A cosmonauta Francesca Sabatini, a mais famosa sobrevivente da malfadada expedição Newton, sugeriu em suas memórias que a dra. des Jardins pudesse ter encontrado um bioma hostil, ou talvez caído em alguma das regiões de blackout de Nova York. Já que as duas mulheres haviam passado a maior parte do dia juntas — estavam procurando o cientista japonês Shigeru Takagishi, que desaparecera misteriosamente do acampamento B na noite anterior —, a Signora Sabatini tinha plena consciência da quantidade de comida e água que a cosmonauta des Jardins carregara. ‘Mesmo com seu supremo conhecimento do corpo humano’, escreveu Sabatini, ‘Nicole não teria qualquer possibilidade de sobreviver mais de uma semana. E se, em estado de delírio, ela tentasse obter água do gelo do venenoso Mar Cilíndrico, teria morrido ainda mais cedo.’ “Da meia dúzia de cosmonautas da Newton que não voltaram do encontro com Rama II, foi Nicole des Jardins quem sempre atraiu maior interesse. Mesmo antes de o brilhante estatístico Roberto Lopez haver conjecturado, há sete anos, com base em informações de genomas guardadas em Haia, que o finado rei Henrique IX da Inglaterra fosse pai da filha de Nicole, Geneviève, a reputação da dra. des Jardins já se tornara legendária. Recentemente, a freqüência a seu memorial, construído perto da villa da família em Beauvois, na França, tem tido aumento marcante, em particular por parte de jovens do sexo feminino. Muita gente acorre, não só para prestar suas homenagens à cosmonauta des Jardins e ver os muitos vídeos e fotografias que comemoram sua vida notável, como também para ver as duas soberbas estátuas em bronze criadas pelo escultor grego Theo Papas. Em uma delas, a jovem Nicole é retratada com calção e camiseta, e a medalha de ouro das Olimpíadas pendurada no pescoço; na segunda, ela é vista como uma mulher madura, usando o uniforme de vôo da AEI semelhante ao que acabaram de ver no vídeo.”

Kenji apontou para o fundo da sala do pequeno auditório da Pinta e as luzes se apagaram. Momentos depois, uma série de diapositivos começou a ser apresentada em uma das duas telas que havia atrás dele. “Estas são algumas das fotos de Nicole des Jardins guardadas em nossos arquivos na Pinta. A numeração indica que muitas fotos mais, inclusive clips de filmes históricos, poderão ser encontrados na biblioteca de reserva condicionada em nossos porões de carga, porém tais dados não nos são acessíveis durante a viagem, em função das limitações das instalações de dados para o vôo. Tais dados extras não são necessários, no entanto, pois fica claro, graças ao material aqui apresentado, que a pessoa que apareceu na transmissão de hoje à tarde ou é Nicole des Jardins ou uma cópia absolutamente perfeita dela.”

Um close tirado do vídeo da tarde congelou-se na tela esquerda, justapondo-se a ele uma foto da cabeça de Nicole na noite da festa de Ano-Novo que teve lugar na Villa Adriani, nos arredores de Roma. Não havia dúvida. As duas fotos eram definitivamente da mesma mulher. Um murmúrio de aplauso elevou-se da platéia quando Kenji fez uma pausa em sua apresentação.

“Nicole des Jardins nasceu a 6 de janeiro de 2164”, continuou Kenji, em tom controlado. “Portanto, se o vídeo que vimos esta tarde foi efetivamente gravado há quatro anos, ela teria 77 anos na época. Todos nós sabemos que a dra. des Jardins estava em soberba forma física e que se exercitava regularmente, mas se a mulher que vimos hoje à tarde no vídeo tivesse 77 anos, então os ETs que construíram Rama devem ter descoberto, também, o elixir da juventude.”


Muito embora já fosse tarde da noite e Kenji estivesse muito cansado, não conseguia dormir. Os acontecimentos do dia impunham-se à sua mente e o deixavam excitado. Junto dele, na pequena cama de casal, Nai Buatong Watanabe tinha plena consciência de que o marido estava acordado.

“Você tem certeza absoluta de que o que vimos foi a verdadeira Nicole des Jardins, não tem, querido?”, disse Nai depois de Kenji se virar na cama pela enésima vez.

“Tenho. Mas MacMillan não tem. Exigiu que fizesse aquela declaração a respeito da cópia perfeita. Ele acha que tudo no vídeo é falso…”

“Depois de nossa discussão esta tarde”, continuou Nai, após uma pausa, “lembrei-me muito bem do barulho em torno da história de Nicole e o rei Henry há sete anos. Apareceu na maioria das revistas que tratam de personalidades.

Mas esqueci de um detalhe. Como foi que estabeleceram com certeza que Henry era o pai de Geneviève? O rei já não estava morto? E a família real inglesa não mantém suas informações sobre genomas privadas e secretas?”

“Lopez usou os genomas pertencentes a pais e parentes de pessoas que se casaram com membros da família real. Depois, usando uma técnica de correlação de dados inventada por ele mesmo, o dr. Lopez mostrou que Henry, que ainda era príncipe de Gales durante os Jogos Olímpicos de 2184, tinha três vezes mais probabilidades do que qualquer outra pessoa presente em Los Angeles para ser o pai do bebê de Nicole. Depois que Darren Higgins admitiu, em seu leito de morte, que Henry e Nicole passaram uma noite juntos durante as Olimpíadas, a família real permitiu que um especialista em genética tivesse acesso a seu banco de dados de genomas. O especialista concluiu, sem qualquer dúvida, que Henry era o pai de Geneviève.”

“Que mulher espantosa”, disse Nai.

“E era, mesmo”, respondeu Kenji. “Mas o que a levou a fazer esse comentário agora?”

“Como mulher”, disse Nai, “eu admiro o modo pelo qual protegeu seu segredo e criou sozinha sua princesa tanto ou mais do que qualquer de seus outros feitos.”

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