46 Sair da Sombra

Ao se aproximarem dos prédios onde ficavam as damane, Nynaeve e as outras ouviram gritos distantes. A multidão começava a aumentar, e as pessoas na rua pareciam nervosas, andando com passos um pouco mais apressados. Pareciam mais cautelosos do que o normal ao olharem de relance para Nynaeve, em seu vestido com raios, e para a mulher que ela levava, presa pela corrente prateada.

Reacomodando a trouxa que trazia em seus braços, Elayne, também nervosa, olhava na direção do barulho e dos gritos. A comoção estava a uma rua dali, onde o estandarte do gavião dourado com um raio em suas garras tremulava ao vento.

— O que está acontecendo?

— Nada que tenha a ver conosco — respondeu Nynaeve, firme.

— É o que você espera — comentou Min. — E eu também. — Ela apressou o passo, subindo a escada antes das outras, e desapareceu dentro da alta casa de pedra.

Nynaeve encurtou a corrente.

— Lembre-se, Setah, você quer que tudo corra bem tanto quanto a gente.

— Sim, sim — respondeu a Seanchan, com fervor. — Não causarei nenhum problema para vocês, eu juro.

Enquanto subiam os degraus de pedra cinza, uma sul’dam e uma damane surgiram no topo da escada, descendo-a. Após olhar de relance para se certi ficar de que a mulher na coleira não era Egwene, Nynaeve não prestou mais atenção a elas. Usava o a’dam para manter Setah bem junto a si, de modo que, caso a damane percebesse a habilidade de canalizar em uma delas, pensaria que tratava-se de Setah. Contudo, ainda sentiu o suor escorrendo pelas costas, até perceber que as duas não lhe deram mais atenção do que dera a elas. Tudo que viam foi um vestido com raios e outro cinza, e a corrente prateada de um a’dam que unia as duas mulheres. Eram apenas mais uma Senhora do Colar com sua Encolarada, seguidas por uma garota local que corria com um embrulho pertencente à sul’dam.

Nynaeve empurrou a porta, e elas entraram.

Qualquer que fosse o alvoroço ao redor do estandarte de Turak, a confusão não chegara até ali. Pelo menos, ainda não. Apenas mulheres se deslocavam de um lado a outro no salão de entrada, e todas podiam ser identificadas com facilidade pelas vestimentas. Três damane de vestidos cinza, acompanhadas por suas sul’dam. Duas mulheres em vestidos de raios bifurcados estavam paradas conversando, e outras três atravessavam o salão, sozinhas. Quatro outras, vestidas como Min, com roupas simples de lã, passavam apressadas carregando bandejas.

Min estava parada, esperando do outro lado do salão, quando elas entraram. Olhou de relance para elas apenas uma vez e seguiu mais para dentro da casa. Nynaeve conduziu Setah atrás de Min, com Elayne na cola. Ninguém prestou atenção nelas, pelo que pareceu à Sabedoria, mas ela achava que o fio de suor que descia por suas costas logo se tornaria um rio. Forçou Setah a andar mais depressa, de modo que ninguém tivesse a chance de examiná-las com atenção ou, pior ainda, de fazer alguma pergunta. Com os olhos fixos nos próprios pés, a mulher precisou de tão pouco incentivo que Nynaeve achou que ela correria, se não estivesse presa por uma corrente.

Perto dos fundos da casa, Min subiu por uma estreita escada em espiral. Nynaeve empurrou Setah na frente, até o quarto andar. O teto ali era baixo, e os corredores, vazios e silenciosos, exceto pelos suaves sons de choro. O choro parecia combinar com aqueles corredores gélidos.

— Este lugar… — começou Elayne, e então sacudiu a cabeça. — Dá uma sensação…

— Sim, dá — concordou Nynaeve, em tom sombrio.

Ela olhou com ódio para Setah, que mantinha a cabeça baixa. O medo deixava a pele da Seanchan ainda mais pálida do que o normal.

Sem dizer uma palavra, Min abriu uma porta e entrou, e as outras a seguiram. O cômodo fora dividido em quartos menores com paredes rústicas de madeira, e um corredor estreito levava a uma janela. Nynaeve seguiu atrás de Min, que foi, apressada, para a última porta e entrou, abrindo-a com um empurrão.

Uma garota esbelta, vestida de cinza e com cabelos compridos estava sentada a uma pequena mesa, descansando a cabeça nos braços cruzados. Mesmo antes de ela olhar para cima, Nynaeve sabia que era Egwene. Uma corrente de metal brilhante ia da coleira prateada em seu pescoço até um bracelete pendurado em um pino na parede. Os olhos dela se arregalaram ao vê-las, e ela balbuciou palavras soltas. Quando Elayne fechou a porta, Egwene soltou uma risadinha súbita, então pôs as mãos na boca para abafá-la. O pequeno quarto estava mais do que lotado com todas dentro.

— Sei que não estou sonhando — disse, com a voz trêmula —, porque, se estivesse, seriam Rand e Galad em garanhões altos. Ando sonhando. Achei que Rand estava aqui. Não consegui vê-lo, mas achei que… — Ela não terminou a frase.

— Se você prefere esperar por eles… — começou Min, seca.

— Ah, não! Não, vocês são todas lindas, as coisas mais lindas que já vi! De onde saíram? Como fizeram isso? Esse vestido, Nynaeve, e o a’dam… E quem é… — Ela soltou um guincho. — É Setah. Como…? — Sua voz endureceu tanto que Nynaeve mal a reconheceu. — Gostaria de enfiá-la em um caldeirão fervente.

A mulher mantinha os olhos bem fechados, e suas mãos agarravam a saia. Ela tremia.

— O que fizeram com você? — perguntou Elayne. — O que poderiam ter feito para você desejar cometer uma coisa dessas?

Egwene não desviou os olhos da Seanchan um momento sequer.

— Gostaria de fazer com que ela sentisse isso. Foi o que ela fez comigo, me fez sentir como se estivesse imersa até o pescoço em… — Ela estremeceu. — Você não sabe como é usar uma dessas, Elayne. Não sabe o que elas podem fazer com você. Não consigo decidir quem é pior, Setah ou Renna, mas todas são horríveis.

— Acho que eu sei — respondeu Nynaeve, em voz baixa.

Ela conseguia sentir o suor encharcando a pele de Setah, os tremores frios em seus braços. A Seanchan loura estava aterrorizada. A Sabedoria quase não conseguiu se impedir de fazer com que os terrores da mulher se concretizassem ali mesmo.

— Você consegue tirar isso de mim? — perguntou Egwene, tocando o colar. — Deve conseguir, se colocou esse ne…

Nynaeve canalizou, apenas um filete. A coleira no pescoço de Egwene lhe dava raiva suficiente. Mesmo se não desse, o medo de Setah, saber como aquele sentimento era merecido e a consciência do que ela própria queria fazer com aquela mulher teriam bastado. A coleira se abriu e caiu da garganta de Egwene. Com uma expressão de extrema felicidade, a jovem tocou o pescoço livre.

— Coloque o meu vestido e meu casaco — mandou Nynaeve. Elayne já desembrulhava as roupas na cama. — Sairemos daqui andando e ninguém vai notar você. Ela considerou manter o contato com saidar. Decerto estava com raiva suficiente, e a sensação era tão maravilhosa… Relutante, ela abandonou a Fonte. Aquele era o único lugar em Falme onde não havia chance de que uma sul’dam e uma damane fossem investigar, caso sentissem alguém canalizando. Mas com certeza o fariam caso uma damane visse uma mulher que julgava ser sul’dam envolta no brilho da canalização. — Não sei por que você ainda está aqui. Sozinha, mesmo que não conseguisse descobrir como tirar essa coisa, poderia ter simplesmente agarrado tudo e saído correndo.

Enquanto Min e Elayne a ajudavam a trocar de roupa depressa, Egwene explicou o que aconteceria se tirasse o bracelete do lugar onde a sul’dam o colocara, e como canalizar a fazia passar mal, a menos que o bracelete estivesse sendo usado. Naquela manhã, descobrira como a coleira podia ser aberta sem o Poder… E, em seguida, que tocar o fecho com a intenção de fazê-lo causava contrações na mão, inutilizando-a. Podia tocá-lo quantas vezes quisesse, desde que não pensasse em abrir o fecho. Com a menor vontade, porém…

Nynaeve se sentiu mal. O bracelete em seu pulso lhe dava náuseas. Era horrível demais. Ela queria aquilo longe de seu pulso antes de descobrir mais coisas sobre o a’dam, antes aprender algo que a faria se sentir suja para sempre por tê-lo usado.

Abrindo o bracelete prateado, ela o tirou, fechou e pendurou em um dos pinos.

— Não pense que isso signi ica que você pode gritar por ajuda agora — advertiu, brandindo o punho sob o nariz de Setah. — Eu ainda posso fazê-la desejar nunca ter nascido, se você abrir a boca. E não preciso dessa… dessa coisa maldita.

— Você… você não pode me deixar aqui com isso — pediu Setah, em um sussurro. — Não pode! Me amarre. Me amordace para que eu não possa dar o alarme. Por favor!

Egwene soltou uma risada amarga.

— Deixe nela. Ela não vai pedir ajuda, mesmo sem mordaça. É melhor torcer para que quem a encontrar remova o a’dam e guarde seu segredinho, Setah. Esse segredinho sujo, não é mesmo?

— Do que está falando? — perguntou Elayne.

— Pensei muito sobre isso — respondeu Egwene. — Pensar era tudo o que eu podia fazer quando elas me deixavam sozinha aqui em cima. As sul’dam a firmam que desenvolvem uma afinidade depois de alguns anos. A maioria consegue dizer se uma mulher está canalizando, não importa se estiver usando o colar ou não. Eu não tinha certeza, mas Setah é a prova.

— Prova de quê? — indagou Elayne. Então seus olhos se arregalaram de repente, ao se dar conta, mas Egwene prosseguiu.

— Nynaeve, os a’dam funcionam apenas em mulheres capazes de canalizar. Você vê? As sul’dam podem canalizar tanto quanto as damane. — Setah grunhiu entre dentes, sacudindo a cabeça com violência, em negação. — Uma sul’dam morreria antes de admitir ser capaz de canalizar, mesmo que soubesse que pode, e elas nunca treinam a habilidade. Então não conseguem fazer nada com o poder, mas podem canalizar.

— Eu disse a você — lembrou Min — que a coleira não deveria ter funcionado nela. — A jovem abotoava as últimas casas na base das costas de Egwene. — Qualquer mulher incapaz de canalizar poderia arrebentá-la enquanto você tentasse controlá-la.

— Como isso acontece? — perguntou Nynaeve. — Achei que os Seanchan encolaravam todas as mulheres capazes de canalizar.

— Todas que conseguem encontrar — retrucou Egwene. — Mas essas são como você, eu, e Elayne. Nascemos com essa capacidade. Não importa se nos ensinariam ou não. Mas e as meninas Seanchan que não nascem com a habilidade, mas que poderiam aprender? Não é qualquer mulher que pode se tornar uma… uma Senhora do Colar. Renna achou que estava sendo legal ao me contar isso. Parece que há uma festa nas aldeias, quando as sul’dam chegam para testar as meninas. Elas vão em busca de qualquer uma como você ou eu para encolarar, mas deixam todas as outras meninas colocarem o bracelete para ver se conseguem sentir o que a pobre mulher com a coleira sente. Todas que conseguem são levadas para o treinamento de sul’dam. São as mulheres que poderiam ser ensinadas.

Setah gemia entre sussurros, repetindo:

— Não. Não. Não…

— Eu sei que ela é horrível — começou Elayne —, mas sinto como se devesse ajudá-la, de algum jeito. Ela podia ser uma de nossas irmãs, mas os Seanchan distorceram tudo.

Nynaeve abriu a boca para dizer que era melhor se preocuparem em ajudar a si mesmas, então a porta se abriu.

— O que está acontecendo aqui? — indagou Renna, entrando no quarto. — Uma audiência? — Ela olhou para Nynaeve com as mãos na cintura. — Não dei permissão para que mais ninguém usasse o bracelete da minha Tuli. Nem sei quem você… — O olhar dela recaiu em Egwene. Ela usava o vestido de Nynaeve, em vez do cinza das damane. Estava sem coleira no pescoço… Seus olhos se arregalaram. Ela sequer teve a chance de gritar.

Antes que qualquer outra pessoa pudesse se mover, Egwene pegou o jarro do lavatório e golpeou a boca do estômago de Renna. Estilhaços voaram quando o jarro se partiu, e a sul’dam perdeu o fôlego com um gorgolejo, curvando-se para a frente. Enquanto Renna caía, Egwene saltou sobre ela com um rosnado, deixando-a estendida no chão. Então pegou a coleira que usara, ainda no chão, e prendeu no pescoço da mulher. Depois, dando um puxão na corrente, alcançou o bracelete e o pôs no pulso. Com os dentes à mostra e os olhos fixos no rosto de Renna, ela começou a se concentrar. Ajoelhando-se sobre os ombros da sul’dam, tapou a boca da mulher com ambas as mãos. O corpo de Renna deu um enorme solavanco, seus olhos se arregalaram. Sons roucos saíam de sua garganta, gritos contidos pelas mãos de Egwene. Seus calcanhares batiam no chão.

— Pare com isso, Egwene! — Nynaeve agarrou os ombros da jovem, arrancando-a de cima da mulher. — Egwene, pare com isso! Não é isso que você quer! — Renna jazia, mortalmente pálida, suando, com os olhos irrequietos vidrados no teto.

De repente, Egwene se atirou sobre Nynaeve, soluçando, descontrolada, em seu peito.

— Ela me machucou, Nynaeve. Me machucou. Todas elas. Me fizeram sentir dor, e mais dor, até que eu fizesse o que queriam. Odeio todas. Odeio elas por me fazerem sentir dor, odeio elas por não conseguir impedir que me obrigassem a fazer o que queriam.

— Eu sei — respondeu Nynaeve, em tom gentil. Ela afagou o cabelo de Egwene. — Não tem nada de errado em odiá-las. Não mesmo. Elas merecem. Mas não é certo deixar que façam você se tornar uma delas.

Setah cobria o rosto com as mãos. Renna tocava a coleira no próprio pescoço, incrédula e trêmula.

Egwene se empertigou, secando as lágrimas, depressa.

— Não sou. Não sou como elas. — Ela quase arrancou o bracelete do pulso e o jogou no chão. — Eu não sou assim. Mas gostaria de poder matá-las.

— Elas merecem. — Min encarava as duas sul’dam com uma expressão sombria.

— Rand mataria alguém que fizesse uma coisa dessas — concordou Elayne. Parecia estar se forçando a ficar insensível. — Tenho certeza.

— Talvez elas mereçam — a firmou Nynaeve —, e talvez ele matasse. Mas os homens muitas vezes confundem a vingança e a matança com justiça. Não costumam ter estômago para a justiça. — Ela se sentara muitas vezes em julgamentos, com o Círculo das Mulheres. Às vezes, os homens as procuravam, pensando que as mulheres talvez lhes dessem mais ouvidos do que os homens do Conselho da Aldeia. Mas eles sempre achavam que podiam influenciar a decisão com eloquência ou pedidos de misericórdia. O Círculo das Mulheres era misericordioso quando mereciam, mas sempre fazia justiça, e era a Sabedoria quem anunciava o veredito. Ela pegou o bracelete que Egwene jogara no chão e o fechou. — Eu libertaria todas as mulheres aqui, se pudesse, e destruiria cada um desses. Mas, já que não posso… — Ela o colocou no mesmo pino em que estava o outro e se dirigiu às sul’dam. Não são mais Senhoras do Colar , disse a si mesma. — Talvez, se permanecerem bem quietas, vocês consigam ficar sozinhas por tempo suficiente para tirar as coleiras. Há de ser o que a Roda tecer, e pode ser que vocês tenham feito bem o suficiente para equilibrar o mal que causaram. O suficiente para que lhes seja permitido tirá-las. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde serão encontradas. E acho que quem as encontrar fará muitas perguntas, antes de tirar as coleiras. Talvez vocês aprendam em primeira mão como é a vida que deram a outras mulheres. — Ela hesitou e acrescentou, dirigindo-se às outras: — Isso se chama justiça.

Renna estava com uma expressão de horror, o olhar fixo. Os ombros de Setah sacudiam enquanto ela chorava, apoiada nas mãos. Nynaeve endureceu o coração. Isso é justiça, disse a si mesma. É. Então empurrou as outras para fora do quarto.

Ninguém prestou mais atenção enquanto elas saíram do que quando entraram. Nynaeve supôs que aquilo era graças ao vestido de sul’dam, mas mal conseguia esperar para vestir outra coisa. Qualquer coisa. O trapo mais sujo seria mais limpo do que aquela roupa.

As garotas permaneceram em silêncio, andando logo atrás dela, até alcançarem a rua de pedras. Nynaeve não sabia se faziam aquilo em resposta aos seus atos ou por medo de que alguém as parasse. Sua expressão era de extremo mau humor. Será que todas se sentiriam melhor se ela tivesse deixado chegarem ao ponto de cortar as gargantas das outras mulheres?

— Cavalos — disse Egwene. — Precisaremos de cavalos. Sei qual é o estábulo para onde levaram Bela, mas acho que não conseguiremos chegar até lá.

— Precisamos deixar Bela aqui — informou Nynaeve. — Vamos embora de navio.

— Onde estão todos? — perguntou Min.

De repente, Nynaeve se deu conta de que a rua estava vazia.

A multidão se fora sem deixar vestígios. Todas as lojas e janelas estavam bem fechadas. Subindo a ladeira, vindo do porto, havia uma formação de soldados Seanchan. Cem ou mais, em fileiras organizadas, com um oficial à frente, vestindo armaduras pintadas. Ainda estavam a meia rua de distância, mas marchavam a um passo soturno e implacável. Nynaeve sentiu que parecia que cada olhar estava fixo nela. Isso é ridículo. Não consigo ver os olhos dentro daqueles elmos, e, se alguém tivesse dado um alarme, estariam atrás de nós. Ela parou mesmo assim.

— Tem mais atrás de nós — murmurou Min. Nynaeve já conseguia ouvir as botas. — Não sei qual deles chega aqui primeiro.

A Sabedoria respirou fundo.

— Eles não têm nada a ver conosco. — Ela olhou para além dos soldados que se aproximavam, para o porto, cheio daqueles navios altos, que pareciam caixotes. Não conseguia ver o Espuma. Rezava para que ele ainda estivesse lá, e a postos. — Vamos passar direto. — Luz, espero que a gente consiga.

— E se eles quiserem que você se junte a eles, Nynaeve? — perguntou Elayne. — Você está usando esse vestido. Se começarem a fazer perguntas…

— Não vou voltar — interrompeu Egwene, sombria. — Pre iro morrer. Me deixem mostrar o que me ensinaram. — Aos olhos de Nynaeve, uma nuvem dourada envolveu a menina, de repente.

— Não! — exclamou, mas era tarde demais.

Com o rugido de um trovão, o chão sob as primeiras fileiras dos Seanchan entrou em erupção. Terra, pedras e homens de armadura voaram como o jorro de um chafariz. Ainda brilhando, a jovem se virou para o outro lado da rua, e o rugido se repetiu. Choveu terra sobre elas. Soldados Seanchan, aos gritos, se dispersaram ainda em formação, abrigando-se em vielas e atrás de obstáculos. Em instantes, não havia mais nenhum à vista, exceto os que jaziam em torno das duas crateras que des figuravam a rua. Alguns se mexiam, fracos, e gemidos ecoavam pela rua.

Nynaeve ergueu as mãos em frustração, tentando olhar para os dois lados ao mesmo tempo.

— Sua idiota! Estamos tentando não chamar atenção! — Não havia esperança de isso acontecer, àquela altura. Torcia apenas para que conseguissem contornar os soldados e seguir até o porto pelas vielas. As damane também já devem estar sabendo. Não poderiam ter deixado de notar.

— Não vou voltar para o colar! — gritou Egwene, feroz. — Não vou!

— Cuidado! — gritou Min.

Com um guincho estridente, uma bola de fogo do tamanho de um cavalo descreveu um arco acima dos telhados e começou a cair. Bem em cima delas.

— Corram! — berrou Nynaeve, e se atirou, mergulhando rumo à viela mais próxima, entre duas lojas fechadas.

Com um gemido, ela caiu de barriga, aterrissando de qualquer jeito. Perdeu o fôlego quando a bola de fogo chegou. Um vento quente soprou pela passagem estreita. Engolindo em seco, ela rolou, parando de barriga para cima, e olhou para a rua.

As pedras do calçamento estavam lascadas, rachadas e enegrecidas em um raio de dez passos de onde estiveram. Elayne estava agachada em outra viela, do outro lado da rua. Não havia sinal de Min ou Egwene. Nynaeve levou a mão à boca, horrorizada.

Elayne pareceu entender o que ela estava pensando. A Filha-herdeira sacudiu a cabeça com força e apontou para a rua, mais à frente. Elas tinham ido naquela direção.

Nynaeve soltou um suspiro de alívio que no mesmo instante se transformou em um rosnado. Garota idiota! Podíamos ter passado direto por eles! Mas não havia tempo para recriminações. Ela correu para a esquina e olhou por trás do prédio com cautela.

Uma bola de fogo do tamanho de uma cabeça lampejou pela rua em sua direção. Nynaeve pulou para trás logo antes de o projétil explodir contra a esquina, passando onde sua cabeça estivera e cobrindo-a de lascas de pedra.

A raiva a deixou em contato com o Poder Único antes mesmo que ela se desse conta. Raios caíram do céu, atingindo algum ponto mais acima na ladeira, perto de onde viera a bola de fogo. Outro relâmpago cruzou o céu, e ela correu para longe da rua. Atrás de si, um raio atingiu a entrada da viela.

Se Domon não estiver esperando com aquele navio, eu… Luz, que a gente consiga chegar lá a salvo.


Bayle Domon se levantou de um salto quando os raios cruzaram o céu cinza-chumbo, caindo em algum lugar da cidade. Então os viu outra vez. Nem tem nuvem no céu pra isso!

Algo produziu um estrondo na parte alta da cidade, e uma bola de fogo atingiu um telhado ao lado das docas, arremessando lajotas estilhaçadas para todos os lados. Um pouco antes, o porto estivera vazio, exceto por uns poucos Seanchan. Mas, no momento, eles corriam desesperados, sacando espadas e gritando. Um homem saiu de um dos armazéns com um grolm ao lado, correndo para acompanhar os longos saltos da fera enquanto os dois subiam uma das ladeiras e sumiam.

Um dos tripulantes de Domon pulou, pegou um machado e o ergueu sobre um dos cabos de amarração.

Com dois passos largos, Domon agarrou o machado no alto com uma das mãos e a garganta do homem com a outra.

— O Espuma vai ficar até eu dizer que pode zarpar, Aedwin Cole!

— Eles estão enlouquecendo, capitão! — berrou Yarin. Uma explosão ecoou pelo porto com um estrondo, fazendo as gaivotas voarem em círculos, grasnando. Raios lampejaram outra vez, caindo sobre Falme. — As damane vão matar todo mundo! Vamos fugir enquanto estão ocupadas matando umas às outras. Eles não vão nem notar até a gente ter ido embora!

— Eu dei minha palavra — retrucou Domon. Ele arrancou o machado da mão de Cole e o jogou no convés com um estrépito. — Eu dei mesmo minha palavra. — Corra, mulher, pensou, Aes Sedai ou o que quer que seja. Corra!


Geofram Bornhald observou os raios caindo sobre Falme sem se preocupar. Alguma criatura alada enorme, sem dúvida um dos monstros dos Seanchan, voava pelo céu em desespero, tentando desviar. Se houvesse uma tempestade, seria tão ruim para os Seanchan quanto para ele. Colinas quase sem árvores, algumas com arvoredos esparsos no topo, ainda o impediam de ver a cidade. E também impediam a cidade de vê-lo.

Seus mil homens se dispunham, alinhados, dos dois lados, uma longa fileira montada avançando pelos vales entre as colinas. O vento frio soprava os mantos brancos e fazia o estandarte ao lado de Bornhald tremular. Ele exibia o sol dourado com raios ondulantes dos Filhos da Luz.

— Vá agora, Byar — ordenou. O homem de rosto cadavérico hesitou, e Bornhald repetiu, com a voz severa: — Eu disse vá, Filho Byar!

O homem levou uma das mãos ao coração e se curvou.

— Às suas ordens, meu senhor Capitão. — Ele deu a volta com o cavalo e se afastou. Cada parte de seu corpo mostrava relutância.

Bornhald tirou Byar da cabeça. Fizera o que estava a seu alcance. Então ergueu a voz.

— Legião, marchar!

Com um ranger de selas, a longa linha de homens em mantos brancos avançou lentamente em direção à Falme.

Da esquina, Rand espiou os soldados Seanchan que se aproximavam e voltou para a viela estreita entre os dois estábulos com uma expressão preocupada. Logo chegariam onde estavam. Havia sangue coagulado em seu rosto. Os cortes que Turak abrira ardiam, mas não havia nada a fazer naquele momento. Raios lampejaram no céu outra vez. Ele pôde sentir sob seus pés o estrondo que fizeram ao cair. Em nome da Luz, o que está acontecendo?

— Estão perto? — perguntou Ingtar. — A Trombeta de Valere precisa ser salva, Rand.

Apesar dos Seanchan, apesar dos raios e das estranhas explosões no meio da cidade, o homem parecia mais preocupado com os próprios pensamentos. Mat, Perrin e Hurin estavam mais à frente, na outra extremidade da viela, observando outra patrulha Seanchan. Estavam muito perto de onde haviam deixado os cavalos. Bastava chegarem lá.

— Ela está em apuros — murmurou Rand.

Egwene. Estava com uma sensação estranha, como se partes de sua vida estivessem em perigo. Egwene era um pedaço, um fio no cordão que compunha sua vida. Mas havia outras, e ele conseguia senti-las ameaçadas. Lá embaixo, em Falme. E, se qualquer um daqueles fios fosse cortado, sua vida jamais seria completa, jamais seria do jeito que deveria ser. Ele não compreendia, mas tinha certeza disso.

— Um homem pode conter outros cinquenta aqui — comentou Ingtar. Os dois estábulos eram muito próximos, mal havia espaço para ele e Rand ficarem lado a lado. — Um homem contra cinquenta, em uma passagem estreita. Não é um jeito ruim de morrer. Já fizeram canções por menos.

— Não será necessário — retrucou Rand. — Ou assim espero. — Ouviu um telhado explodir na cidade. E agora, como é que vou voltar para lá? Preciso encontrá-la. Ou seria encontrá-las? Sacudindo a cabeça, ele olhou da esquina mais uma vez. Os Seanchan estavam cada vez mais perto, e continuavam avançando.

— Eu nunca nem pensei no que ele ia fazer — comentou Ingtar, em voz baixa, como se falasse sozinho. Ele sacara a espada e testava a lâmina com o polegar. — Um homenzinho pálido, parecia que não dava para notá-lo mesmo quando se estava olhando diretamente para ele. “Leve-o para dentro de Fal Dara”, foi o que me disseram. “Deixe-o entrar na fortaleza.” Eu não queria, mas precisei obedecer. Você me entende? Foi preciso. Não sabia o que ele ia fazer até ele atirar aquela flecha. Ainda não sei se o alvo era a Amyrlin ou você.

Rand sentiu um calafrio. Virou-se para encarar Ingtar.

— Do que você está falando? — sussurrou.

Analisando a lâmina, o shienarano não pareceu ouvir.

— A humanidade está sucumbindo em todos os lados. Nações caem e desaparecem. Os Amigos das Trevas estão por toda parte, e nenhum desses sulistas parece se importar. Lutamos para defender as Terras da Fronteira, para mantê-los a salvo em suas casas. Mas, a cada ano, apesar de tudo que conseguimos fazer, a Praga avança. E esses sulistas acham que Trollocs são lendas, que os Myrddraal são histórias de menestrel. — Ele franziu a testa e sacudiu a cabeça. — Parecia ser o único jeito. Seríamos destruídos por nada, defendendo gente que sequer sabe, que sequer se importa. Parecia lógico. Por que sermos destruídos por eles quando podemos criar nossa própria paz? Achei que era melhor a Sombra do que o esquecimento inútil, como Caralain, Hardan ou… Parecia tão lógico…

Rand segurou Ingtar pelo colarinho.

— Você não está falando coisa com coisa. — Ele não pode estar falando o que eu penso que está. Não pode. — Fale sem rodeios, diga o que quer dizer. Você está se comportando como um louco!

Pela primeira vez, Ingtar olhou para Rand. Seus olhos brilhavam com lágrimas que não caíam.

— Você é um homem melhor do que eu. Pastor ou lorde, ainda é um homem melhor. A profecia diz “Que aquele que me soar não pense na glória, apenas na salvação”. Era na minha salvação que eu estava pensando. Eu tocaria a Trombeta e lideraria os heróis das Eras contra Shayol Ghul. Com certeza isso seria o suficiente para me salvar. Nenhum homem pode andar na Sombra por tanto tempo que não possa voltar para a Luz. É o que dizem. Com certeza seria suficiente para lavar o que fui e o que fiz.

— Ó, Luz! Ingtar! — Rand o soltou e se jogou na parede do estábulo. — Eu acho… Eu acho que basta querer. Acho que tudo o que você precisa fazer é deixar de ser… um deles.

Ingtar estremeceu, como se Rand tivesse dito “Amigo das Trevas” em voz alta.

— Rand, quando Verin nos trouxe até aqui com a Pedra-portal, eu… eu vivi outras vidas. Às vezes eu carregava a Trombeta, mas nunca a tocava. Eu tentava escapar do que tinha me tornado, mas nunca conseguia. Sempre havia mais alguma exigência, e sempre pior do que a anterior, até que eu estivesse… Você estava pronto para desistir dela apenas para salvar uma amiga. Não pense na glória. Ó, Luz, me ajude…

Rand não sabia o que dizer. Era como se Egwene contasse que assassinara algumas crianças. Horrível demais para acreditar. Horrível demais para que qualquer pessoa admitisse, a menos que fosse verdade. Horrível demais.

Depois de um tempo, Ingtar voltou a falar, com a voz firme:

— Precisa haver um preço, Rand. Sempre há um preço. Talvez eu possa pagá-lo aqui.

— Ingtar, eu…

— Todo homem tem o direito, Rand, de escolher quando Embainhar a Espada. Até mesmo alguém como eu.

Antes que Rand conseguisse dizer qualquer coisa, Hurin veio correndo pela viela.

— A patrulha virou — declarou, apressado — e desceu para a cidade. Parece que estão se agrupando lá. Mat e Perrin seguiram na frente. — Ele olhou depressa para a rua e recuou. — É melhor fazermos o mesmo, Lorde Ingtar, Lorde Rand. Aqueles Seanchan com cabeça de inseto estão quase aqui.

— Vá, Rand — disse Ingtar. Ele se virou para encarar a rua e não olhar outra vez para Rand ou Hurin. — Leve a trombeta para onde é o lugar dela. Eu sempre soube que a Amyrlin deveria ter lhe deixado no comando. Mas tudo o que sempre quis foi que Shienar se mantivesse inteira, impedir que fôssemos varridos e esquecidos.

— Eu sei, Ingtar. — Rand respirou fundo. — Que a Luz brilhe sobre você, Lorde Ingtar da Casa Shinowa, e que você possa se abrigar na palma da mão do Criador. — Ele tocou o ombro do homem. — O último abraço da mãe lhe dá as boas-vindas ao lar. — Hurin ofegou.

— Obrigado — respondeu Ingtar, com a voz suave. Uma tensão pareceu abandoná-lo. Pela primeira vez desde a noite do ataque dos Trollocs em Fal Dara, ele estava como quando Rand o conheceu: con fiante e relaxado. Em paz.

Rand se virou e percebeu que Hurin os encarava.

— É hora de partir.

— Mas Lorde Ingtar…

— … fará o que precisa fazer — respondeu Rand, ríspido. — Mas nós vamos.

Hurin assentiu e Rand seguiu correndo atrás dele. Já podia ouvir os passos em marcha das botas dos Seanchan. Não olhou para trás.

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