Alar os conduziu para longe do Portal dos Caminhos em um passo digno, embora Juin parecesse mais do que ansioso para deixar o lugar para trás correndo. Mat, pelo menos, parecia olhar à frente, ansioso, enquanto Hurin parecia con fiante. Loial, por sua vez, parecia mais preocupado com a possibilidade de Alar mudar de ideia sobre deixá-lo ir do que com qualquer outro assunto. Rand não se apressou ao levar Vermelho pelas rédeas. Não achava que Verin pretendesse ativar a Pedra em si.
A coluna de pedra cinzenta se erguia a quase quinze braças do chão, ao lado de uma faia, e tinha quase quatro passos de diâmetro. Rand teria considerado aquela faia uma árvore grande, se não tivesse visto as Grandes Árvores. Ali não havia uma mureta para alertar quem passasse pelo local, apenas algumas flores silvestres que despontavam da forragem de folhas no chão da floresta. A Pedra-portal estava desgastada, mas ainda era possível ler os símbolos que a cobriam.
Os soldados shienaranos montados formaram um círculo ao redor da Pedra e dos membros do grupo a pé.
— Nós a levantamos — comentou Alar — quando a encontramos, há muitos anos. Mas não a movemos. Ela… quase parecia… resistir a ser movida. — Seguiu direto até a pedra e pôs uma das mãos grandes nela. — Sempre a considerei um símbolo do que foi perdido, do que foi esquecido. Na Era das Lendas, ela podia ser estudada e compreendida em alguma medida. Mas, para nós, é apenas pedra.
— Bem, espero que seja mais do que isso. — A voz de Verin ficou ainda mais brusca. — Mais Velha, agradeço a ajuda. Perdoe-nos pela falta de cerimônia ao deixá-la, mas a Roda não espera por mulher alguma. Pelo menos não perturbaremos mais a paz de seu pouso.
— Chamamos de volta os Construtores que estavam em Cairhien — começou a responder Alar —, mas ainda ouvimos notícias sobre o que acontece no mundo lá Fora. Falsos Dragões. A Grande Caçada à Trombeta. Nós ouvimos, e as notícias passam direto por nós. Mas acho que Tarmon Gai’don não passará direto por nós, nem nos deixará em paz. Passe bem, Verin Sedai. Todos vocês, passem bem, e que possam se abrigar na palma da mão do Criador. Juin. — Ela fez uma pausa, apenas para fitar Loial pela última vez e dirigir a Rand um último olhar de repreensão, e então os Ogier sumiram em meio às árvores.
Ouviram-se estalos nas selas enquanto os soldados se ajeitavam. Ingtar observou o círculo que formavam.
— Isso é realmente necessário, Verin Sedai? Mesmo que seja possível… Sequer sabemos se os Amigos das Trevas realmente levaram a Trombeta para a Ponta de Toman. Ainda acho que consigo fazer Barthanes…
— Se não podemos ter certeza — respondeu Verin, em um tom calmo, interrompendo-o —, a Ponta de Toman ainda é um lugar tão bom para procurarmos quanto qualquer outro. Já o ouvi dizer mais de uma vez que iria até Shayol Ghul para recuperar a Trombeta, se for necessário. Você recua agora, diante disso? — Ela indicou a Pedra sob a árvore de casca lisa.
As costas de Ingtar ficaram eretas.
— Eu não recuo diante de nada. Não importa se nos levará à Ponta de Toman ou a Shayol Ghul. Se a Trombeta de Valere estiver no fim do caminho, vou segui-la.
— Está bem, Ingtar. Agora, Rand, você foi transportado por uma Pedra-portal há menos tempo do que eu. Venha. — Ela o chamou com um gesto, e o rapaz conduziu Vermelho até ela, perto da Pedra.
— Você já usou uma Pedra-portal? — Ele olhou por cima do ombro, para ter certeza de que não havia ninguém próximo o suficiente para ouvir. — Então acho que não espera que eu o faça. — Ele deu de ombros, aliviado.
Verin o encarou com uma expressão neutra.
— Eu nunca usei uma Pedra, e é por isso que a sua experiência é mais recente que a minha. Conheço bem meus limites. Eu seria destruída antes de chegar perto de canalizar Poder o suficiente para ativar uma Pedra-portal. Mas sei um pouco sobre elas. O bastante para ajudá-lo, pelo menos um pouquinho.
— Mas eu não sei nada. — Ele conduziu o cavalo, contornando a Pedra, olhando-a de cima a baixo. — A única coisa que me lembro é do símbolo do nosso mundo. Selene me mostrou, mas eu não o vejo aqui.
— Claro que não. Não em uma Pedra deste mundo, já que os símbolos ajudam a ir para um mundo. — Ela sacudiu a cabeça. — O que eu não daria para conversar com essa garota de quem você tanto fala. Ou, melhor ainda, para pôr as mãos nesse livro dela. Acredita-se que nenhuma cópia de Espelhos da Roda sobreviveu inteira à Ruptura. Serafelle sempre diz que há mais livros que acreditamos estar perdidos do que eu tenho fé de que possam ser encontrados. Bem, não ajuda em nada me preocupar com o que não sei. Mas sei de algumas coisas. Os símbolos na metade de cima da Pedra representam os mundos. Não todos os Mundos que Poderiam Ser, é claro. Ao que parece, nem toda Pedra se conecta a todos os mundos, e os Aes Sedai da Era das Lendas acreditavam que havia mundos que nenhuma Pedra tocava. Você não vê nenhum que seja familiar?
— Nada. — Se ele encontrasse o símbolo certo, poderia usá-lo para encontrar Fain e a Trombeta, salvar Mat e impedir que Fain fizesse mal aos habitantes de Campo de Emond. Se encontrasse o símbolo, precisaria tocar saidin. Queria salvar Mat e deter Fain, mas não queria tocar saidin. Tinha medo de canalizar, mas ansiava por aquilo como um faminto ansiava por comida. — Nenhum deles.
Verin suspirou.
— Os símbolos na base indicam pedras de outros lugares. Se você souber como funciona, pode não nos levar para esta mesma Pedra em outro mundo, mas para uma das outras pedras de lá, ou mesmo para uma das outras deste mundo. Imagino que seja semelhante a Viajar, mas, assim como ninguém se lembra de como Viajar, ninguém se lembra de como funciona. Sem esse conhecimento, tentar fazer isso pode destruir a todos nós com muita facilidade. — Ela apontou para duas linhas onduladas paralelas, cruzadas por um estranho rabisco, entalhadas em uma parte bem baixa da coluna. — Este símbolo indica uma Pedra na Ponta de Toman. É uma das três pedras cujo símbolo eu conheço, e a única que visitei. Não aprendi absolutamente nada depois de quase ser pega pela neve nas Montanhas da Névoa e de quase congelar na Planície de Almoth. Você joga dados ou cartas, Rand al’Thor?
— Mat é quem gosta de jogar. Por quê?
— Certo. Bem, vamos deixá-lo fora disso, eu acho. Também conheço esses outros símbolos.
Ela passou um de seus dedos por um retângulo contendo oito entalhes bastante parecidos, representando um círculo e uma flecha. Mas em metade deles a flecha estava circunscrita, enquanto na outra metade ela atravessava o círculo. As flechas apontavam para a esquerda, para a direita, para cima e para baixo. Em volta de cada círculo havia uma linha diferente que Rand tinha certeza que era algum tipo de escrita, embora não fosse em nenhuma língua conhecida. Era toda composta de linhas curvas, que subitamente se tornavam ganchos afiados, para depois voltar a fluir.
— Sei pelo menos o seguinte — prosseguiu Verin. — Cada um representa um mundo, e o estudo sobre eles serviram de base para a criação dos Caminhos. Estes aqui não são todos os mundos que chegaram a ser estudados, mas são os com os símbolos que eu conheço. É aqui que entra a sorte; não sei como são esses mundos. Acredita-se que, em alguns, um ano lá dura apenas um dia daqui. E em outros, um dia lá equivale a um ano aqui. Supõe-se que haja mundos em que o próprio ar pode matá-lo, e outros que mal são reais o suficiente para se manterem inteiros. Não vou especular sobre o que poderia acontecer se caíssemos em um desses. Você precisa escolher. Como meu pai diria, é hora de rolar os dados.
Rand olhou, estupefato, balançando a cabeça.
— Eu poderia matar todos nós com minha escolha.
— Você não está disposto a correr o risco? Pela Trombeta de Valere? Por Mat?
— Por que você está tão disposta? Eu nem sei se consigo fazer isso. Não… não funciona todas as vezes que tento. — Ele sabia que ninguém se aproximara, mas olhou para trás assim mesmo. Todos esperavam, mais ou menos em círculo ao redor da Pedra. Observavam a cena, mas não estavam perto o suficiente para ouvir. — Às vezes saidin está logo ali. Eu posso senti-lo, mas ele podia muito bem estar na lua quando tento tocá-lo. E, mesmo se funcionar, o que acontece se eu nos levar para um mundo onde não dê para respirar? Que bem isso faria a Mat? Ou à Trombeta?
— Você é o Dragão Renascido — respondeu ela, em voz baixa. — Ah, você pode até morrer, mas acredito que o Padrão não vá deixá-lo escapar antes de terminar o que precisa fazer com você. No entanto, a Sombra recobre o Padrão, agora. Quem poderia dizer como isso afeta a tessitura? Tudo que você pode fazer é seguir seu destino.
— Eu sou Rand al’Thor — respondeu, quase rosnando. — Não sou o Dragão Renascido. E não serei um falso Dragão.
— Você é o que é. Vai escolher ou vai ficar aí parado até seu amigo morrer?
Rand ouviu seus dentes rangerem e se forçou a relaxar a mandíbula. Os símbolos poderiam muito bem ser todos iguais, já que não tinham muito significado para ele. Aqueles escritos poderiam muito bem ser as pegadas de uma galinha. Por fim, escolheu um cuja seta apontava para a esquerda, porque naquela direção ficava a Ponta de Toman. Escolheu uma flecha perfurando o círculo, pois ela havia se libertado, como ele queria fazer. Quis rir. Eram detalhes tão pequenos para apostar suas vidas…
— Cheguem mais perto — ordenou Verin para os outros. — Vai ser melhor se vocês estiverem mais perto. — Eles obedeceram, com uma leve hesitação. — Está na hora — continuou ela, enquanto eles se reuniam à sua volta.
Ela abriu o manto e colocou as mãos na coluna, mas Rand percebeu que ela o observava pelo canto do olho. Estava ciente das tossidas nervosas e dos pigarros dos homens ao redor da Pedra, de um impropério de Uno dirigido a alguém que se mantinha afastado, de uma piada fraca de Mat, de Loial engolindo em seco, bem alto. Ele buscou o vazio.
Naquele momento foi tão fácil… A chama consumiu o medo e as paixões, sumindo quase antes de ele pensar em formá-la. Ela se foi, deixando apenas o vazio e saidin, brilhante, nauseante, fascinante, de embrulhar o estômago, sedutor. Rand… o buscou… e o Poder o preencheu, o tornou vivo. Não moveu um músculo, mas sentiu como se estivesse tremendo com a torrente do Poder Único dentro de si. O símbolo se formou sozinho, a seta perfurando o círculo, flutuando logo além do vazio, sólido como o material em que fora esculpido. Ele deixou o Poder Único fluir por ele, indo até o símbolo.
O símbolo tremulou e piscou.
— Tem algo acontecendo — disse Verin. — Algo…
O mundo piscou.
A fechadura de ferro saiu rolando pelo chão, e Rand deixou cair o bule de chá quente quando uma enorme figura com chifres de carneiro chegou à porta, trazendo a escuridão da Noite Invernal atrás de si.
— Corra! — gritou Tam.
A espada de seu pai lampejou, fazendo o Trolloc tombar, mas a fera se engalfinhou com Tam enquanto caía, levando-o ao chão.
Mais Trollocs se aglomeravam à porta. Formas vestidas de cotas de malha negras, seus rostos como os de humanos, mas distorcidos com focinhos, bicos e chifres. Carregavam espadas estranhamente curvas e davam estocadas em Tam, que tentava se levantar. Machados pontudos o golpeavam, e o sangue vermelho manchava o aço.
— Pai! — gritou Rand.
Puxando a faca do cinturão, o rapaz se atirou por cima da mesa para ajudar o pai, gritando uma última vez quando a primeira espada atravessou seu peito.
O sangue saiu por sua boca, e uma voz sussurrou em sua cabeça. Venci de novo, Lews Therin.
Pisca.
Rand lutou para se agarrar ao símbolo, vagamente ciente da voz de Verin.
— … está…
O Poder o inundou.
Pisca.
Rand estava feliz com seu casamento com Egwene. Ele tentava não deixar que a melancolia o dominasse, naqueles momentos em que achava que deveria ter acontecido algo mais, algo diferente. As notícias do mundo lá fora chegavam a Dois Rios por meio de mascates e mercadores que iam comprar lã e tabaco. Eles sempre traziam notícias de novos problemas, guerras e Falsos Dragões que apareciam em toda parte. Houve um ano em que não apareceu nenhum mercador ou mascate e, quando voltaram no ano seguinte, todos traziam a notícia de que os exércitos de Artur Asa-de-gavião haviam retornado, ou ao menos seus descendentes. As velhas nações estavam derrotadas, e os novos mestres do mundo, que usavam Aes Sedai encoleiradas em suas batalhas, derrubaram a Torre Branca e salgaram a terra onde Tar Valor se erguera. Não havia mais Aes Sedai.
Tudo aquilo fazia pouca diferença para o pessoal de Dois Rios. As safras ainda precisavam ser plantadas, as ovelhas, tosquiadas, e os cordeiros, cuidados. Tam tivera netos e netas, que brincaram de cavalinho em seus joelhos, antes de ser enterrado ao lado da esposa, e a antiga casa da fazenda ganhara novos quartos. Egwene se tornara Sabedoria, e a maioria achava que ela era ainda melhor do que a antiga, Nynaeve al’Meara. E era bom que fosse, pois suas curas, que funcionavam milagrosamente nos outros, conseguiam por pouco manter Rand vivo, a despeito da doença que parecia ameaçá-lo constantemente. Seu estado de espírito estava cada vez pior, mais sombrio, e ele se enfurecia e dizia que as coisas deveriam ter acontecido de outro jeito. Egwene passou a ficar cada vez mais assustada quando ele ficava daquele jeito, pois coisas estranhas aconteciam quando ele estava em seus piores momentos: tempestades de raios que ela não percebera ao escutar o vento, incêndios na floresta… Mas ela o amava, então cuidava dele e o mantinha são, embora alguns murmurassem que Rand al’Thor era louco e perigoso.
Quando ela morreu, ele passou a ficar horas sentado sozinho em seu túmulo, com lágrimas ensopando a barba, que já estava ficando grisalha. A doença voltou, e ele piorou: perdeu dois dedos da mão direita e um da esquerda, suas orelhas pareciam cicatrizes e os homens murmuravam que ele cheirava a podridão. Sua depressão se agravou.
Ainda assim, quando chegaram as terríveis notícias, ninguém se recusou a aceitá-lo a seu lado. Trollocs, Desvanecidos e coisas jamais sonhadas irromperam da Praga, e os novos mestres do mundo estavam sendo vencidos, apesar de todo o seu poder. Então, Rand pegou o arco. Restavam-lhe apenas os dedos que precisava para atirar, mas ele mancou com os que marchavam rumo ao norte até o rio Taren. Homens de cada vila e fazenda e de todos os cantos de Dois Rios, levando arcos, machados, lanças para caçar javalis e espadas que até então apenas enferrujavam nos sótãos. Rand também tinha uma espada, marcada com uma garça na lâmina, que encontrara depois da morte de Tam. Mas não sabia como usá-la. Algumas mulheres foram também, levando nos ombros qualquer arma que conseguissem encontrar, marchando ao lado dos homens. Alguns riam, dizendo que tinham a estranha sensação de que já haviam feito aquilo antes.
E foi no Taren que o povo de Dois Rios enfrentou os invasores. Fileiras intermináveis de Trollocs, liderados por Desvanecidos saídos de pesadelos, marchavam sob um estandarte negro como a morte, que parecia devorar a luz. Rand viu aquele estandarte e achou que a loucura o tomara outra vez, pois parecia que nascera para aquilo, para enfrentar aquele estandarte. Atirou todas as flechas contra ele, tão certeiras quanto a habilidade e o vazio permitiam, sem se preocupar com os Trollocs que forçavam passagem pelo rio ou com os homens e mulheres que morriam a seu lado. Foi um daqueles Trollocs que o derrotou, antes de trotar aos uivos em busca de sangue no interior de Dois Rios. Enquanto jazia na margem do Taren, vendo o céu escurecer ao meio-dia, com a respiração cada vez mais lenta, ele ouviu uma voz dizer: Venci de novo, Lews Therin.
Pisca.
A seta e o círculo se contorceram, transformando-se em duas linhas paralelas onduladas, e ele lutou para fazê-las voltar ao que eram.
Veio a voz de Verin.
— … errado. Alguma coisa…
O Poder rugia.
Pisca.
Tam tentou consolar Rand quando Egwene ficou doente e morreu, uma semana antes do casamento. Nynaeve também tentou, mas ela própria estava bastante abalada. Nem mesmo toda a sua habilidade a Sabedoria entendia o que matara a garota. Rand se sentara ao lado da casa de Egwene enquanto ela morria, e parecia não haver lugar em Campo de Emond onde não ouvisse seus gritos. Sabia que não poderia ficar. Tam lhe deu uma espada com uma lâmina com a marca da garça e, embora não tenha explicado muito bem como um pastor de Dois Rios encontrara aquela arma, ele o ensinou a usá-la. No dia em que partiu, Rand recebeu uma carta de Tam. Seu pai explicou que ela poderia fazer com que ele fosse aceito no exército de Illian e o abraçou, dizendo:
— Nunca tive outro filho, e nem quis ter. Volte com uma esposa se puder, menino, assim como eu. Mas volte, de qualquer jeito.
No entanto, Rand teve seu dinheiro roubado em Baerlon, assim como a carta de apresentação, e por pouco não perdeu a espada junto. Então encontrou uma mulher chamada Min, que lhe disse coisas tão loucas sobre ele que o rapaz decidiu deixar a cidade para fugir dela. Suas andanças o levaram a Caemlyn, e lá sua habilidade com a espada lhe valeu um lugar entre os Guardas da Rainha. Às vezes ele se pegava olhando para a Filha-herdeira, Elayne, e, naqueles momentos, se enchia de ideias estranhas de que aquilo não era como as coisas deveriam ser, de que precisava haver algo mais em sua vida. Elayne não olhava para ele, é claro. Ela se casou com um príncipe taireno, embora não parecesse feliz com aquilo. Rand era apenas um soldado, que já fora pastor em uma pequena aldeia. Era um lugar tão distante, na direção da fronteira ocidental, que apenas algumas linhas em uma mapa ainda a conectavam a Andor. Além disso, tinha a reputação de ser um homem de acessos de violência.
Alguns diziam que ele era louco, e, em tempos normais, talvez nem mesmo sua habilidade com a espada o teria mantido na Guarda. Mas aqueles não eram tempos comuns. Falsos Dragões brotavam como ervas daninhas. Cada vez que um era derrotado, outros dois se proclamavam, ou três. Até que todas as nações estavam arrasadas pela guerra. E a estrela de Rand brilhou, pois ele descobriu o segredo de sua loucura. Um segredo que ele sabia que precisava guardar, e foi o que fez. Ele era capaz de canalizar. Havia sempre lugares, momentos, em que tentava canalizar. Às vezes durante uma batalha, quando um pouco do poder, nada grande o suficiente para ser notado em meio à confusão, podia garantir a sorte. Às vezes funcionava, às vezes não. Mas dava certo com frequência suficiente. Ele sabia que estava louco, e não se importava. Uma doença degenerativa se abateu sobre ele, que também não se importou, nem ninguém mais. Chegaram notícias de que os exércitos de Artur Asa-de-gavião haviam retornado para reivindicar a terra.
Rand liderou mil homens quando os Guardas da Rainha cruzaram as Montanhas da Névoa. Nem pensou em fazer um desvio para visitar Dois Rios. Já não pensava no vilarejo com muita frequência. E comandou a Guarda quando o que restou dela recuou pelas montanhas. Lutou e recuou por toda a extensão de Andor, entre hordas de refugiados em fuga. Até que chegou a Caemlyn. Muitas pessoas de Caemlyn já haviam fugido, e muitas aconselhavam o exército a recuar ainda mais. Mas Elayne era Rainha, àquela altura, e jurara não deixar o lugar. Ela não olhava para seu rosto arruinado, marcado pelas cicatrizes da doença, mas ele não queria deixá-la. Então o que havia restado dos Guardas da Rainha se preparou para defendê-la enquanto seu povo fugia.
O Poder veio a ele durante a batalha em Caemlyn, e ele arremessou raios e fogo contra os invasores e partiu a terra a seus pés. Mas mesmo assim, teve a sensação de que nascera para algo mais. Apesar de seus esforços, o exército inimigo era grande demais para ser detido, e alguns deles também conseguiam canalizar. Por fim, um raio lançou Rand da muralha do Palácio. Quebrado, sangrando e queimado, enquanto seu último suspiro se arrastava na garganta, ele ouviu uma voz sussurrar. Venci de novo, Lews Therin.
Pisca.
Rand lutou para segurar o vazio, que tremia sob as marretadas do mundo que piscava. Tentou se agarrar a um símbolo enquanto mil outros dardejavam pela super ície. Lutou para se agarrar a qualquer símbolo que fosse.
— … deu errado! — gritou Verin.
O Poder era tudo.
Pisca. Pisca. Pisca. Pisca. Pisca. Pisca.
Ele foi um soldado. Foi um pastor. Foi um mendigo, um rei. Foi fazendeiro, menestrel, marinheiro, carpinteiro. Nasceu, viveu e morreu Aiel. Morreu louco, apodrecendo, doente, por acidente, de velhice. Foi executado, e multidões comemoraram sua morte. Proclamou-se o Dragão Renascido e fez tremular seu estandarte pelo céu. Fugiu do Poder Único e se escondeu. Viveu e morreu sem nunca saber. Conteve a loucura e a doença por anos, sucumbiu entre um inverno e outro. Às vezes, Moiraine aparecia e o levava embora de Dois Rios, sozinho ou com alguns de seus amigos que haviam sobrevivido à Noite Invernal. Às vezes ela não ia. Às vezes outra Aes Sedai ia buscá-lo. Às vezes era uma da Ajah Vermelha. Egwene se casou com ele. Egwene, com uma expressão severa, usando a estola do Trono de Amyrlin, liderou as Aes Sedai que o amansaram. Egwene, com lágrimas nos olhos, cravou uma adaga em seu coração, e ele agradeceu ao morrer. Ele amou outras mulheres, casou-se com outras mulheres. Elayne, Min, a ilha loura de um fazendeiro da estrada de Caemlyn, e mulheres que nunca vira antes de viver aquelas vidas. Cem vidas. Mais. Tantas que ele não conseguia contar. E, no fim de cada uma, quando jazia às portas da morte, enquanto dava seu último suspiro, uma voz sussurrava em seu ouvido: Venci de novo, Lews Therin.
Pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca.
O vazio desapareceu, o contato com saidin lhe escapou, e Rand caiu com um baque que o teria deixado sem ar, caso já não estivesse parcialmente dormente. Ele sentiu a pedra áspera embaixo de seu rosto e suas mãos. Estava fria.
Tinha consciência de Verin, levantando-se com dificuldade de onde caíra com as costas no chão, colocando-se de quatro. Ouviu alguém vomitar com violência, e levantou a cabeça. Uno estava ajoelhado no chão, esfregando a boca com as costas da mão. Todos haviam caído, e os cavalos estavam com as patas rígidas, tremendo, revirando os olhos de um modo incontrolável. Ingtar olhava fixamente para o nada e tinha a espada na mão. Ele segurava o cabo com tanta força que a lâmina tremia. Loial estava sentado, esparramado, com os olhos arregalados, atordoado. Mat se encolhia em posição fetal com os braços sobre a cabeça, e Perrin cravava os dedos no rosto como se quisesse arrancar o que vira, ou talvez arrancar os olhos que viram aquelas coisas. Nenhum dos soldados estava em condição melhor. Masema nem tentava esconder o choro. Lágrimas rolavam pelo rosto, enquanto Hurin olhava em volta como se procurasse para onde fugir.
— O que…? — Rand parou para engolir em seco. Estava prostrado em uma pedra áspera e desgastada, parcialmente coberta de terra. — O que aconteceu?
— Um pico do Poder Único. — A Aes Sedai ficou de pé, cambaleante, e se enrolou no manto com um calafrio. — Foi como se estivéssemos sendo forçados… impelidos… Pareceu vir do nada. Você precisa aprender a controlá-lo. Precisa! Essa quantidade de Poder poderia transformá-lo em cinzas.
— Verin, eu… eu vivi… eu fui… — Ele percebeu que a pedra abaixo era arredondada. A Pedra-portal. Depressa, trêmulo, ele se forçou a ficar de pé. — Verin, eu vivi e morri não sei quantas vezes. E cada vez foi diferente, mas era eu. Era eu.
— As linhas que unem os Mundos que Podem Ser foram estabelecidas por aqueles que conheciam os Números do Caos. — Verin estremeceu. Parecia estar falando sozinha. — Nunca ouvi falar disso, mas não há motivos para não termos nascido naqueles mundos, embora nossas vidas fossem diferentes. É claro. Vidas diferentes para as diferentes formas como as coisas poderiam ter acontecido.
— Foi isso que aconteceu? Eu… nós… vimos como nossas vidas poderiam ter sido? — Venci de novo, Lews Therin. Não! Eu sou Rand al’Thor!
Verin se recompôs e olhou para ele.
— Você ica tão surpreso em saber que sua vida poderia ser modo diferente se tivesse feito escolhas diferentes ou se coisas diferentes tivessem acontecido? Mas nunca havia pensado que eu… Bem, o importante é que estamos aqui. Mesmo que não tenha sido como esperávamos.
— Aqui onde? — indagou Rand.
O bosque do Pouso Tsofu se fora, substituído por um terreno aberto. Parecia haver uma floresta não muito longe a oeste, e algumas colinas. O sol estivera alto no dia em que haviam se reunido no pouso, mas ali já estava baixo, quase no entardecer, em um céu cinzento. Algumas árvores próximas tinham os galhos nus, ou então umas poucas folhas de cores brilhantes. Um vento frio soprava do leste, remexendo as folhas pelo chão.
— Na Ponta de Toman — respondeu Verin. — Esta é a Pedra que visitei. Você não deveria ter tentado nos trazer direto para cá. Não sei o que deu errado, e acho que jamais saberei, mas, a julgar pelas árvores, diria que estamos no fim do outono. Rand, não ganhamos tempo com isso. Perdemos. Eu diria que levamos cerca de quatro meses para chegar aqui.
— Mas eu não…
— Você precisa me deixar guiá-lo nessas coisas. Não posso lhe ensinar, é verdade, mas talvez possa ao menos impedi-lo de se matar. E de matar o restante do grupo por ir longe demais. Mesmo que você não se mate, se o Dragão Renascido se exaurir, como uma vela queimada até o fim, quem enfrentará o Tenebroso? — Ela não esperou que ele repetisse os protestos. Em vez disso, foi até Ingtar.
O shienarano tomou um susto quando ela tocou seu braço, e afitou com olhos enlouquecidos.
— Eu caminho na Luz! — a firmou, rouco. — E vou encontrar a Trombeta de Valere e derrubar o poder de Shayol Ghul! Eu vou!
— É claro que vai — respondeu ela, acalmando-o. Então tomou o rosto dele nas mãos, e o homem inspirou subitamente, recuperando-se do que o afetava. No entanto, a lembrança ainda permanecia em seus olhos. — Pronto — disse ela. — Isso vai resolver seu problema. Vou ver como posso ajudar os outros. Ainda podemos recuperar a Trombeta, mas nosso caminho não ficou mais fácil.
Enquanto ela andava por entre os outros, parando por um tempo diante de cada um, Rand foi até seus amigos. Quando tentou ajudar Mat a se levantar, o rapaz se soltou e o encarou com o olhar fixo. Então segurou o casaco de Rand com as duas mãos.
— Rand, eu nunca contaria sobre… sobre você a ninguém. Eu não o trairia! Você precisa acreditar!
Ele parecia pior do que nunca, mas Rand achou que era principalmente por estar assustado.
— Eu acredito — respondeu. E se perguntou que vidas Mat teria vivido, e o que fizera. Ele deve ter contado a alguém, ou não estaria tão ansioso. Não podia culpá-lo. Aqueles haviam sido outros Mats, não esse. Além disso, depois de algumas alternativas que vira para si mesmo… — Eu acredito em você. Perrin?
O jovem de cabelos encaracolados deixou as mãos caírem do rosto com um suspiro. Marcas vermelhas manchavam sua testa e as bochechas onde ele cravara as unhas. Os olhos amarelos ocultavam seus pensamentos.
— Não temos muita escolha, não é mesmo, Rand? O que quer que aconteça, o que quer que a gente faça, algumas coisas quase sempre são as mesmas. — Ele soltou mais um longo suspiro. — Onde estamos? Esse é um daqueles mundos de que você e Hurin falaram?
— Aqui é a Ponta de Toman — explicou Rand. — No nosso mundo. Pelo menos foi o que Verin disse. E é outono.
Mat pareceu preocupado.
— Como é que…? Não, não quero saber como aconteceu. Mas como vamos encontrar Fain e a adaga agora? Ele pode estar em qualquer lugar, a essa altura.
— Ele está aqui — garantiu Rand.
Torcia para estar certo. Fain tivera tempo para embarcar em um navio para qualquer lugar que quisesse. Tempo para cavalgar até Campo de Emond. Ou Tar Valon. Por favor, Luz, que ele não tenha cansado de esperar. Se tiver feito algum mal a Egwene, ou a qualquer pessoa de Campo de Emond, eu vou… A luz que me queime, eu tentei chegar a tempo.
— As maiores cidades da Ponta de Toman são todas a oeste daqui — anunciou Verin, alto o bastante para que todos a ouvissem. Todos já estavam de pé outra vez, exceto Rand e seus dois amigos. Ela foi até eles e encostou as mãos em Mat, enquanto dizia: — Não que por aqui existam muitas aldeias grandes o suficiente para serem chamadas de cidadezinhas. Mas se buscamos qualquer vestígio dos Amigos das Trevas, devemos começar pelo oeste. E acho que não deveríamos desperdiçar luz do dia aqui, sentados.
Quando Mat piscou e ficou de pé, ainda parecendo doente, mas com movimentos mais firmes, ela virou-se para pôr as mãos em Perrin. E Rand recuou quando ela as estendeu para ele.
— Não seja tolo — repreendeu.
— Não quero sua ajuda — respondeu Rand, em voz baixa. — Nem a ajuda de qualquer Aes Sedai.
Ela comprimiu os lábios.
— Como quiser.
Montaram no mesmo instante e cavalgaram para oeste, deixando a Pedra-portal para trás. Ninguém protestou, muito menos Rand. Luz, espero não chegar tarde demais.