Bem abaixo da Torre Branca, Nynaeve examinou a imensa câmara com desconfiança, e olhou de soslaio para Sheriam, que estava ao seu lado, com a mesma desconfiança. A Mestra das Noviças parecia olhá-la com expectativa, talvez até um pouco de impaciência. Em seus poucos dias em Tar Valon, Nynaeve vira apenas serenidade nas Aes Sedai, e uma aceitação sorridente de que as coisas aconteciam em seu próprio tempo.
O aposento com teto abobadado era escavado direto da rocha da ilha. A luz de lampiões pendurados bem alto refletia nas paredes de pedra branca e lisa. Embaixo da cúpula, bem no centro, havia um artefato formado por três arcos de prata arredondados, com altura suficiente para uma pessoa passar por baixo deles. As bases dos arcos se tocavam, interligadas por um círculo de prata, compondo uma mesma peça. Ela não conseguia ver o que havia do lado de dentro, pois a luz ali cintilava de um modo estranho e a deixava enjoada quando olhava diretamente por muito tempo. No ponto em que as bases dos arcos se interligavam, havia uma Aes Sedai sentada de pernas cruzadas sobre a pedra nua do piso, com o olhar fixo na peça de prata. Mais outra estava ali perto, ao lado de uma mesa simples, sobre a qual repousavam três grandes cálices de prata. Cada um deles, Nynaeve sabia, ou pelo menos era o que lhe disseram, estava cheio de água límpida. Todas as quatro Aes Sedai usavam seus xales, assim como Sheriam. Franjas azuis para a Mestra das Noviças, vermelhas para a mulher morena próxima à mesa, verde, branca e cinza para as outras três ao redor dos arcos. Nynaeve ainda usava um dos vestidos que ganhara em Fal Dara, verde-claro com pequenas flores brancas bordadas.
— Primeiro você me deixa olhando para as paredes o dia inteiro — murmurou Nynaeve —, e agora é tudo uma correria.
— O tempo não espera mulher alguma — respondeu Sheriam. — Há de ser o que a Roda tecer, e quando a Roda tecer. Paciência é uma virtude que deve ser aprendida, mas todas devemos estar prontas para a mudança num instante.
Nynaeve tentou não fuzilá-la com o olhar. A coisa mais irritante que ela já descobrira a respeito da Aes Sedai de cabelos de fogo era que ela às vezes falava como se estivesse recitando citações, mesmo quando não estava.
— O que é isso?
— Um ter’angreal.
— Bem, isso não quer dizer nada para mim. O que ele faz?
— Ter’angreal fazem muitas coisas, criança. Assim como angreal e sa’angreal, são remanescentes da Era das Lendas que usam o Poder Único, embora não sejam tão raros quanto os outros dois. Alguns ter’angreal só funcionam com a ajuda de Aes Sedai, como este aqui, enquanto para outros basta a presença de uma mulher capaz de canalizar. Dizem até que existem alguns que funcionam com qualquer um. Ao contrário de angreal e sa’angreal, eles foram criados para fins específicos. Temos outro na Torre que reforça os elos dos juramentos. Quando você for elevada à condição de irmã completa, fará seus votos finais segurando esse ter’angreal: não dizer uma palavra que não seja verdadeira; não criar uma arma que ajude um homem a matar outro; nunca usar o Poder Único como arma, exceto contra Amigos das Trevas e Filhos das Sombras, ou no caso extremo de precisar defender a própria vida, a de seu Guardião ou a de outra irmã.
Nynaeve balançou a cabeça. Parecia coisa demais para se jurar, ou coisa de menos, e foi o que disse.
— Antigamente, não se exigia que as Aes Sedai fizessem juramentos. Sabia-se o que as Aes Sedai eram e o que defendiam, e nada mais era necessário. Muitas de nós gostariam que isso ainda fosse dessa forma. Mas a Roda gira, e os tempos mudam. Por fazermos esses juramentos, por saberem que estamos vinculadas, as nações lidam conosco sem temer que usemos nosso poder, o Poder Único, contra elas. Fizemos essa escolha entre as Guerras dos Trollocs e a Guerra dos Cem Anos, e é por causa dela que Torre Branca ainda está de pé e que ainda somos capazes de fazer o que pudermos contra a Sombra. — Sheriam respirou fundo. — Luz, criança, estou tentando ensiná-la o que qualquer outra mulher que estivesse onde você está teria aprendido no decorrer de anos. Não pode ser feito. Você deve se preocupar com os Ter’angreal agora. Não sabemos por que eles foram feitos, ousamos utilizar apenas alguns deles, e de maneiras que podem não ter relação alguma com os objetivos iniciais de seus criadores. A maioria, aprendemos a evitar depois de sofrer as consequências. Ao longo dos anos, muitas Aes Sedai morreram ou exauriram seus Talentos antes de aprendermos a evitá-los.
Nynaeve ficou arrepiada.
— E você quer que eu entre nesses arcos? — A luz dentro dos arcos estava tremeluzindo menos, mas ainda não era possível ver o que havia ali dentro.
— Nós sabemos o que este aqui faz. Colocará você diante de seus maiores medos. — Sheriam sorriu de modo agradável. — Ninguém lhe perguntará o que você enfrentou. Você não precisará dizer mais do que desejar. Toda mulher é dona de seus próprios medos.
Nynaeve pensou em seu nervosismo com relação a aranhas, ainda mais no escuro, mas não achou que era sobre aquilo que Sheriam falava.
— É só entrar por um arco e sair pelo outro? Três vezes, e pronto?
A Aes Sedai ajustou seu xale com um puxão irritado no ombro.
— Se você quer resumir tanto assim, é isso — respondeu, muito seca. — Eu já lhe expliquei no caminho até aqui o que você precisa saber a respeito da cerimônia, pelo menos o tanto que alguém tem permissão de saber com antecedência. Se você fosse uma noviça, já saberia de cor. Mas não se preocupe em cometer erros. Eu a lembrarei, se for necessário. Tem certeza de que está pronta para encarar isso? Se quiser parar agora, ainda posso colocar seu nome no livro das noviças.
— Não!
— Muito bem, então. Vou lhe dizer duas coisas que nenhuma mulher ouve até entrar neste aposento. A primeira é: assim que começar, você terá que ir até o fim. Caso se recuse a prosseguir, não importa seu potencial: você será posta para fora da Torre com muita delicadeza e prata o bastante para sustentá-la por um ano, sem permissão para voltar, nunca mais. — Nynaeve abriu a boca para dizer que não recusaria, mas Sheriam a interrompeu com um gesto brusco. — Escute, e fale apenas quando souber o que dizer. Segundo: procurar se esforçar signi ica enfrentar o perigo. Aqui, você enfrentará algo perigoso. Algumas mulheres entraram e nunca saíram. Quando o ter’angreal se aquietou, elas… não estavam… lá. E nunca mais foram vistas. Se quiser sobreviver, precisa ser firme. Hesite, fracasse, e… — Seu silêncio foi mais eloquente do que qualquer palavra. — Esta é sua última chance, criança. Você pode recuar agora, neste instante, e eu colocarei seu nome no livro das noviças. Você terá apenas uma marca negativa. Terá permissão de vir até aqui mais duas vezes, e apenas na terceira recusa será expulsa da Torre. Não é uma vergonha recusar. Muitas o fazem. Eu mesma não consegui na primeira vez que vim aqui. Agora você pode falar.
Nynaeve olhou de relance para os arcos prateados. A luz neles não tremeluzia mais, e eles estavam repletos de um brilho branco e suave. Para aprender o que queria, ela precisava da liberdade de questionamento de uma Aceita, para estudar por conta própria, apenas com a orientação que solicitasse. Eu preciso fazer Moiraine pagar pelo que ela fez conosco. Eu preciso.
— Eu estou pronta.
Sheriam entrou na câmara devagar. Nynaeve foi ao seu lado.
Como se aquilo fosse um sinal, a irmã Vermelha falou em voz alta e formal:
— Quem trazes contigo, Irmã?
As três Aes Sedai ao redor dos arcos continuaram com a atenção voltada para o ter’angreal.
— Alguém que se apresenta como candidata para a Aceitação, Irmã — respondeu Sheriam, com a mesma formalidade.
— Ela está pronta?
— Ela está pronta para deixar para trás o que era, e, ao passar por seus medos, ser Aceita.
— Ela conhece seus medos?
— Ela nunca os encarou, mas agora está disposta.
— Então que ela encare o que teme!
Sheriam parou a duas braças dos arcos, e Nynaeve parou com ela.
— Seu vestido — sussurrou Sheriam, sem olhá-la.
As bochechas de Nynaeve coraram por já ter esquecido o que Sheriam lhe explicara no caminho do quarto até ali. Ela retirou as roupas, sapatos e meias depressa. Por um instante, quase conseguiu esquecer os arcos enquanto dobrava suas vestes e as empilhava em um canto. Enfiou o anel de Lan embaixo do vestido com cuidado, pois não queria que ficassem olhando para ele. Então acabou, e o ter’angreal continuava ali, continuava esperando.
A pedra sob seus pés descalços estava fria, o que lhe provocou calafrios, mas ela manteve as costas eretas e começou a respirar devagar. Não deixaria que nenhuma daquelas mulheres visse que estava com medo.
— A primeira vez — disse Sheriam — é pelo que foi. O caminho de volta só aparecerá uma vez. Seja firme.
Nynaeve hesitou. Então avançou, atravessou o arco e adentrou o brilho, que a cercou como se o próprio ar reluzisse, como se ela estivesse se afogando em luz. A luz estava por toda parte. A luz era tudo.
Nynaeve sobressaltou-se ao perceber que estava nua, então olhou ao redor, assombrada. Duas muralhas de pedra se elevavam ao seu redor, uma de cada lado, ambas com o dobro de sua altura e lisas, como se tivessem sido esculpidas. Mexeu os dedos dos pés no chão empoeirado de pedras irregulares. O céu acima parecia plano e cinzento, apesar da falta de nuvens, e o sol, inchado e vermelho, estava logo acima de sua cabeça. Em ambas as direções havia aberturas na parede, portais marcados por colunas baixas e quadradas. As muralhas restringiam seu campo de visão, mas o chão descia em uma encosta a partir do ponto onde estava, tanto na frente quanto atrás. Através dos portais, ela podia ver mais muralhas, com passagens entre elas. Estava em um gigantesco labirinto.
Onde estou? Como cheguei aqui? Como se fosse uma voz diferente, outro pensamento surgiu. A saída só aparecerá uma vez.
Ela balançou a cabeça.
— Se só existe uma saída, não vou encontrá-la parada aqui. — Pelo menos o ar era quente e seco. — Espero encontrar algumas roupas antes de pessoas — murmurou.
Lembrou-se vagamente de brincar de traçar labirintos no papel quando era criança. Havia um truque para encontrar a saída, mas ela não se lembrava de qual era. Tudo no passado parecia vago, como se tivesse acontecido com outra pessoa. Passando a mão pela parede, ela começou seu percurso, levantando pequenas nuvens de poeira com os pés descalços.
Na primeira abertura na parede, percebeu que olhava para outra passagem, que parecia indistinguível daquela em que estava. Respirando fundo, ela seguiu em frente, atravessando mais passagens exatamente iguais. Agora estava em uma diferente. O caminho se bifurcava. Ela escolheu o da esquerda, que depois de algum tempo voltou a se bifurcar. Mais uma vez, escolheu o da esquerda. Na terceira bifurcação, o caminho da esquerda acabou por dar em um beco sem saída.
Sem titubear, ela caminhou de volta até a última bifurcação e virou à direita. Dessa vez, precisou virar à direita quatro vezes para chegar a outro beco sem saída. Por um momento, ficou olhando irritada para a parede.
— Como foi que cheguei aqui? — indagou bem alto. — Onde estou? A saída só aparecerá uma vez.
Novamente, ela se virou. Tinha certeza de que devia haver um truque no labirinto. Na última bifurcação, virou à esquerda, e escolheu a direita na seguinte. Determinada, ela se manteve em movimento. Esquerda, depois direita. Em frente até chegar a uma bifurcação. Esquerda, depois direita.
Aquilo parecia estar funcionando. Pelo menos, ela passara por uma dezena de bifurcações sem chegar a uma parede, dessa vez. E chegou a mais uma.
Pelo canto do olho, vislumbrou um movimento rápido. Quando se virou para olhar, havia apenas a passagem empoeirada entre paredes lisas de pedra. Ela começou a pegar o caminho da esquerda… e se virou quando captou mais um vislumbre de movimento. Não havia nada lá, mas dessa vez tinha certeza. Alguém estava atrás dela. Alguém estivera lá. Nervosa, ela começou a acelerar o passo na direção oposta.
A todo instante, bem nos limites de seu campo de visão, enquanto caminhava por uma passagem ou por outra, ela via algo se mover. Era rápido demais para distinguir e desaparecia antes que ela pudesse virar a cabeça para ver com clareza. Ela começou a correr. Poucos garotos haviam sido capazes de correr mais rápido que ela, quando menina em Dois Rios. Dois Rios? O que é isso?
Um homem saiu de uma passagem à sua frente. Suas roupas escuras tinham um aspecto mofado, meio apodrecido, e ele era velho. Mais velho do que apenas velho. Uma pele que lembrava um pergaminho ino cobria seu crânio magro demais, como se não houvesse carne alguma por baixo. Pequenos tufos de cabelos quebradiços cobriam uma cabeça cheia de feridas, e seus olhos estavam tão encovados que pareciam espiar de dentro de duas cavernas.
Ela parou bruscamente, e as pedras irregulares do calçamento machucaram seus pés.
— Eu sou Aginor — disse o homem, sorrindo — e vim buscá-la.
O coração dela tentou pular para fora do peito. Um dos Abandonados.
— Não. Não, não pode ser!
— Você é bonita, garota. Eu vou gostar bastante.
De repente, Nynaeve lembrou-se de que não usava sequer um trapo. Com um gritinho e o rosto corando não apenas de raiva, ela seguiu correndo o cruzamento mais próximo. Risadas ensandecidas a perseguiram, junto com o som abafado de passos acelerados que pareciam correr tanto quanto ela e promessas sussurradas sobre o que ele faria quando a pegasse. Promessas que lhe embrulhavam o estômago, mesmo quando quase não as ouvia.
Ela procurava, desesperada, uma saída, olhando para os lados freneticamente enquanto corria com os punhos cerrados. A saída só aparecerá uma vez . Seja firme. Não havia nada, apenas mais labirintos infinitos. Por mais que corresse, as palavras nojentas dele sempre estavam logo atrás dela. Lentamente, o medo se transformou em raiva.
— Que o queime! — exclamou com um soluço. — Que a Luz o queime! Ele não tem o direito! — Dentro dela, sentiu um florescer, um abrir, um desdobrar-se para a luz.
Com os dentes cerrados, ela se virou para enfrentar seu perseguidor no mesmo instante em que Aginor apareceu, rindo, correndo cambaleante.
— Você não tem o direito! — Ela socou o ar na direção dele, abrindo os dedos como se atirasse algo. Não ficou tão surpresa ao ver uma bola de fogo deixar sua mão.
Ela explodiu no peito de Aginor, derrubando-o no chão. Ele ficou ali caído por apenas um instante, então se levantou cambaleante. Parecia não perceber que a frente de seu casaco fumegava.
— Como ousa? Como ousa? — Ele tremia de raiva, e um fio de baba escorria pelo queixo.
De repente, o céu se encheu de nuvens, massas ondulantes e ameaçadoras de cinza e preto. Relâmpagos saíram delas, vindo em direção ao coração de Nynaeve.
Pareceu-lhe, por apenas um segundo, que o tempo quase havia parado, como se aquele segundo tivesse levado uma eternidade. Ela sentiu o luxo dentro de si, e um pensamento distante o nomeou: saidar. Sentiu o luxo respondendo ao relâmpago. E alterando a sua direção. O tempo voltou a correr.
Com uma explosão, o raio destruiu a pedra acima da cabeça de Aginor. Os olhos encovados do Abandonado se arregalaram, e ele recuou.
— Você não pode! Não pode ser! — Ele saltou quando um relâmpago acertou o lugar onde estivera, e a pedra explodiu em lascas.
Inflexível, Nynaeve partiu em sua direção. E Aginor fugiu.
Saidar era uma torrente percorrendo seu corpo. Ela podia sentir as rochas ao redor, sentir o ar, sentir os fragmentos minúsculos e fluidos do Poder Único que as recobriam e as compunham. E ela também podia sentir Aginor fazendo… alguma coisa. Ela sentia aquilo vagamente, como se fosse algo que jamais poderia saber de verdade, mas via os efeitos ao seu redor e sabia o que significavam.
O chão roncava e tremia sob seus pés. Paredes desabavam à sua frente, criando pilhas de pedra que bloqueavam seu caminho. Ela passou correndo por elas, sem se importar se a pedra afiada cortava suas mãos e pés, sempre mantendo Aginor à vista. Um vento começou a soprar, uivando por entre passagens contra seu corpo, soprando com força até achatar suas bochechas e arrancar lágrimas de seus olhos, tentando derrubá-la. Ela mudou o luxo, e Aginor caiu e rolou pela passagem, como um arbusto cuja raiz foi arrancada. Ela tocou o luxo no chão, redirecionando-o, e muralhas de pedra desabaram ao redor de Aginor, prendendo-o. Raios caíam com seu olhar furioso, atingindo o chão ao redor dele, e pedras explodiam cada vez mais perto. A mulher podia senti-lo lutando para empurrar tudo de volta para ela, mas, pouco a pouco, os relâmpagos estonteantes avançavam na direção do Abandonado.
Alguma coisa reluziu à sua direita, algo revelado pelas paredes derrubadas.
Nynaeve pôde sentir Aginor enfraquecendo, sentir seus esforços para atingi-la ficarem cada vez mais fracos e frenéticos. No entanto, ela sabia, de algum modo, que ele não desistira. Se o deixasse agora, ele a perseguiria com tanta força quanto antes, convencido de que era fraca demais para derrotá-lo, a final, fraca demais para impedi-lo de fazer o que desejasse com ela.
Um arco de prata estava no lugar onde estivera a pedra, um arco repleto de um brilho prateado e suave. A saída…
Ela percebeu quando o Abandonado deixou de lado o ataque, o momento em que abriu mão de todos os esforços para detê-la. E o poder dele não era o bastante, ele já não podia se proteger de seus golpes. Agora ele tinha de esquivar das lascas de pedras lançadas pelos raios dela, das explosões que ameaçavam derrubá-lo novamente.
A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.
Os relâmpagos não caíam mais. Nynaeve deu as costas a Aginor, que se arrastava, e olhou para o arco. Depois outra vez para Aginor, bem a tempo de vê-lo desaparecer, se arrastando para fora do monte de pedras. Ela sibilou de frustração. A maior parte do labirinto ainda estava de pé, com centenas de novos lugares para se esconder nos escombros que ela e o Abandonado criaram. Levaria tempo para encontrá-lo outra vez, mas tinha certeza de que, se não o achasse primeiro, ele a encontraria. E a atacaria com toda a força, quando ela menos esperasse.
A saída só aparecerá uma vez.
Assustada, ela voltou a olhar e ficou aliviada ao ver que o arco ainda estava lá. Se encontrasse Aginor depressa…
Seja firme.
Com um grito raivoso de frustração, ela escalou o monte de pedras caídas na direção do arco.
— Seja quem for o responsável por eu estar aqui — murmurou —, farei com que desejem receber o mesmo tratamento de Aginor. Eu vou… — Ela passou por dentro do arco, e a luz a envolveu.
— Eu vou… — Nynaeve saiu do arco e parou para olhar ao redor. Estava tudo como se lembrava, o ter’angreal prateado, as Aes Sedai, a câmara, mas lembrar era como um golpe, memórias esquecidas voltavam de súbito. Ela saíra do mesmo arco pelo qual entrara.
A irmã Vermelha ergueu bem alto um dos cálices de prata e derramou um fio de água límpida e fria sobre a cabeça de Nynaeve.
— Você está lavada de qualquer pecado que possa ter cometido — entoou a Aes Sedai — e dos cometidos contra você. Você está sendo lavada de qualquer crime que possa ter cometido, e dos cometidos contra você. Você vem a nós lavada e pura, de coração e alma.
Nynaeve tremia enquanto a água escorria pelo seu corpo, pingando no chão.
Sheriam a pegou pelo braço com um sorriso aliviado, mas a voz da Mestra das Noviças não transparecia qualquer preocupação.
— Você está indo bem, até agora. Voltar signi ica estar indo bem. Lembre-se de qual é seu objetivo, e continuará a ir bem. — A ruiva começou a conduzi-la, dando a volta no ter’angreal, até outro arco.
— Foi tão real — sussurrou Nynaeve. Ela podia se lembrar de tudo, podia se lembrar de canalizar o Poder Único com a mesma facilidade com que levantava a mão. Podia se lembrar de Aginor e das coisas que o Abandonado queria fazer com ela. Sentiu outro arrepio. — Era real?
— Ninguém sabe — respondeu Sheriam. — Parece real na memória, e algumas saíram carregando as marcas reais de ferimentos provocados lá dentro. Outras se cortaram gravemente e voltaram sem uma marca sequer. Para cada mulher que entra, a experiência é diferente. Os antigos dizem que existiam muitos mundos. Talvez este ter’angreal leve a eles. Mas, se for isso, ele o faz sob regras muito rígidas para uma coisa criada apenas para levar você de um lugar a outro. Acredito que não seja real. Mas lembre-se: não importa se o que acontece é real ou não, o perigo é tão verdadeiro quanto uma faca sendo cravada em seu coração.
— Eu canalizei o Poder. Foi tão fácil!
Sheriam quase tropeçou.
— Isso não deveria ser possível. Você não deveria sequer se lembrar de ser capaz de canalizar. — Ela estudou Nynaeve. — No entanto, não está ferida. Posso sentir a habilidade em você, tão forte quanto sempre foi.
— Você fala como se fosse perigoso — respondeu Nynaeve, devagar, e Sheriam hesitou antes de responder.
— Ninguém achou necessário avisá-la, já que você não deveria ser capaz de lembrar, mas… O ter’angreal foi encontrado durante as Guerras dos Trollocs. Nós temos os registros de seus estudos nos arquivos. A primeira irmã a entrar recebeu os feitiços de proteção mais fortes possíveis, já que ninguém sabia o que isso faria. Ela conservou suas memórias e canalizou o Poder Único quando foi ameaçada. E saiu com as habilidades totalmente exauridas, incapaz de canalizar, incapaz até mesmo de sentir a Fonte Verdadeira. A segunda a entrar também foi protegida, e também foi destruída da mesma maneira. A terceira entrou desprotegida, não se lembrava de nada ao entrar e retornou ilesa. Este é um dos motivos pelos quais enviamos você completamente desprotegida. Nynaeve, você não deve canalizar dentro do ter’angreal de novo. Eu sei que é di ícil se lembrar de qualquer coisa, mas tente.
Nynaeve engoliu em seco. Ela podia se lembrar de tudo, podia se lembrar de não lembrar.
— Eu não vou canalizar — respondeu. — Se puder me lembrar de não fazê-lo. Teve vontade de soltar uma risada histérica.
Eles haviam chegado ao próximo arco. O brilho ainda preenchia todos. Sheriam lançou a Nynaeve um último olhar de aviso e a deixou ali parada em pé, sozinha.
— A segunda vez é pelo que é. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.
Nynaeve encarou o arco de prata brilhante. O que haverá ali dessa vez? As outras estavam esperando, observando. Ela atravessou a luz, determinada.
Nynaeve olhou, surpresa, para o vestido marrom e simples que vestia, depois levou um susto. Por que estava olhando para seu próprio vestido? A saída só aparecerá uma vez.
Olhando ao redor, ela sorriu. Estava na beira do Campo, em Campo de Emond, rodeada de casas com telhado de palha e com a Estalagem Fonte de Vinho bem à sua frente. O próprio rio Fonte de Vinho jorrava do a floramento de rocha que despontava entre as folhas de relva do Campo, e o rio corria para leste sob os salgueiros ao lado da estalagem. As ruas estavam vazias, mas a maioria das pessoas devia estar ocupada com suas tarefas àquela hora da manhã.
Olhando para a estalagem, seu sorriso desapareceu. Havia mais do que apenas um ar de descuido no local. A cal estava desbotada, um postigo de janela pendia quase solto e a extremidade apodrecida de uma viga aparecia por um buraco no telhado. O que deu em Bran? Será que ele tem passado tanto tempo como Prefeito que está se esquecendo de cuidar da própria estalagem?
A porta da estalagem se abriu, e Cenn Buie saiu, parando assim que a viu. O velho telhador estava encurvado como uma raiz de carvalho, e o olhar que lançou para ela não era muito amistoso.
— Então você voltou, não foi? Ora, por que não vai embora de novo?
Nynaeve franziu a testa quando ele cuspiu aos seus pés e passou apressado por ela. Cenn nunca fora um homem agradável, mas raramente era tão grosso. Pelo menos, nunca com ela. Nunca na sua frente. Seguindo-o com os olhos, ela viu sinais de descaso por toda a aldeia, telhados que deveriam ter sido consertados, ervas daninhas infestando quintais. A porta da casa da Senhora al’Caar estava quase solta, pendurada apenas por uma dobradiça quebrada.
Sacudindo a cabeça, Nynaeve abriu a porta da estalagem e entrou. Vou ter mais do que uma simples conversa com Bran sobre isso.
O salão da estalagem estava vazio exceto por uma mulher sozinha, cuja trança grossa e grisalha estava puxada sobre o ombro. Estava limpando uma das mesas, mas, pelo jeito que olhava para o tampo, Nynaeve achava que ela não estivesse prestando atenção ao que fazia. O aposento parecia cheio de pó.
— Marin?
Marin al’Vere sobressaltou-se, levando uma das mãos à garganta, e olhou para a frente. Parecia anos mais velha. Acabada.
— Nynaeve? Nynaeve! Ah, é você. Egwene? Você trouxe Egwene de volta? Diga que trouxe.
— Eu… — Nynaeve levou a mão à cabeça. Onde está Egwene? Parecia que ela deveria se lembrar. — Não. Não, eu não a trouxe de volta. A saída só aparecerá uma vez.
A Senhora al’Vere desabou em uma das cadeiras de espaldar alto.
— Eu tinha tantas esperanças. Desde que Bran morreu…
— Bran morreu? — Nynaeve não conseguia pensar naquilo. Aquele homenzarrão sorridente sempre dera a impressão de que viveria para sempre. — Eu tinha que estar aqui.
A outra mulher se levantou de um salto e correu para espiar, preocupada, por uma janela que dava para o Campo e a aldeia.
— Se Malena souber que você está aqui, teremos problemas. Eu sei que Cenn saiu correndo atrás dela. Agora ele é o Prefeito.
— Cenn? Como foi que esses cabeças de lã escolheram Cenn?
— Foi Malena. Ela colocou o Círculo das Mulheres inteiro atrás de seus maridos para votar nele. — Marin quase apertou o rosto contra a janela, tentando olhar para todos os lados ao mesmo tempo. — Esses homens bobos não conversam sobre o nome que vão colocar na caixa, acho que todos que votaram em Cenn pensaram ser os únicos cujas mulheres o importunaram para fazer isso. Pensaram que um voto não fosse fazer diferença. Bem, agora eles aprenderam. Todos nós aprendemos.
— Quem é essa Malena que leva o Círculo das Mulheres a fazer suas vontades? Nunca ouvi falar dela.
— Ela é da Colina da Vigia. Ela é a Sabe… — Marin deu as costas à janela, torcendo as mãos. — Malena Aylar é a Sabedoria, Nynaeve. Quando você não voltou… Luz, espero que ela não descubra que você está aqui.
Nynaeve balançou a cabeça, perplexa.
— Marin, você tem medo dela. Você está tremendo. Que tipo de mulher ela é? Por que o Círculo das Mulheres escolheria alguém assim?
A Senhora al’Vere deu uma risada amarga.
— Devíamos estar loucas. Malena veio ver Mavra Mallen na véspera de Mavra voltar para Trilha de Deven. Naquela noite, algumas crianças ficaram doentes, e Malena ficou para cuidar delas, e então as ovelhas começaram a morrer, e Malena cuidou disso também. Simplesmente pareceu natural escolhê-la, mas… Ela é uma valentona, Nynaeve. Força você a fazer o que quer. Ela vai forçando, e vai forçando, até você estar cansada demais para dizer não. E o pior: ela deu uma surra em Alsbet Luhhan.
Uma imagem veio à mente de Nynaeve, de Alsbet Luhhan e seu marido, Haral, o ferreiro. Ela era quase tão alta quanto ele, e um pouco atarracada, porém bonita.
— Alsbet é quase tão forte quanto Haral. Não consigo acreditar…
— Malena não é uma mulher grande, mas ela… Ela é feroz, Nynaeve. Ela surrou Alsbet por todo o Campo com um bastão, e nenhum de nós teve a coragem de tentar impedir. Quando ficaram sabendo, Bran e Haral disseram que ela tinha de ir embora, mesmo que estivessem interferindo nos assuntos do Círculo das Mulheres. Eu acho que algumas das mulheres do Círculo talvez pudessem ouvir, mas Bran e Haral ficaram doentes na mesma noite e morreram com um dia de diferença um do outro. — Marin mordeu o lábio e olhou ao redor da sala, como se achasse que alguém podia estar escondido ali. Então abaixou a voz. — Malena preparou os remédios deles. Disse que era seu dever, mesmo que tivessem falado contra ela. Eu vi… Eu vi funcho cinza no meio das coisas dela.
Nynaeve perdeu o fôlego.
— Mas… Tem certeza, Marin? Tem certeza? — A outra mulher assentiu, à beira das lágrimas. — Marin, se você sequer suspeitou de que essa mulher pode ter envenenado Bran, como pôde não ter ido ao Círculo?
— Ela disse que Bran e Haral não caminhavam na Luz — murmurou Marin — falando contra a Sabedoria daquele jeito. Disse que foi por isso que morreram, que a Luz os abandonou. Ela fala de pecado o tempo todo. Disse que Paet al’Caar pecou, falando contra ela quando Bran e Haral morreram. Tudo o que ele falou foi que ela não tinha o mesmo jeito para Curar que você, mas ela desenhou a Presa do Dragão em sua porta, com o pedaço de carvão na mão, na frente de todo mundo. Os dois filhos dele morreram antes do fim daquela semana: quando a mãe foi acordá-los, estavam mortinhos. Pobre Nella! Nós a encontramos vagando, rindo e chorando ao mesmo tempo, gritando que Paet era o Tenebroso e que matara seus filhos. Paet se enforcou no dia seguinte. — Ela se arrepiou, e sua voz ficou tão baixa que Nynaeve mal conseguiu ouvi-la. — Eu ainda tenho quatro ilhas vivendo sob meu teto. Vivendo, Nynaeve. Você entende o que digo. Elas ainda estão vivas, e eu quero mantê-las assim.
Nynaeve sentiu um calafrio que chegou aos ossos.
— Marin, você não pode permitir isso. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme. Ela afastou o pensamento. — Se o Círculo das Mulheres se unir, vocês podem se livrar dela.
— Se unir contra Malena? — A risada de Marin era quase um soluço. — Nós todas temos medo dela. Mas ela é boa com as crianças. As crianças estão sempre doentes hoje em dia, pelo que parece, mas Malena faz o melhor que pode. Quase ninguém morria de doença quando você era a Sabedoria.
— Marin, me escute. Você não vê por que sempre há crianças doentes? Se ela não consegue fazer vocês terem medo dela, faz vocês pensarem que precisam dela por causa das crianças. É ela quem está fazendo isso, Marin. Exatamente como fez com Bran.
— Ela não poderia — respondeu Marin, sem fôlego. — Não faria isso. Não com os pequenos.
— Ela está fazendo isso, Marin. — A saída — Nynaeve afastou o pensamento sem titubear. — Existe alguém no Círculo que não tenha medo? Alguém que escute?
A outra mulher respondeu:
— Ninguém que não tenha medo. Mas Corin Ayellin poderia escutar. Se ela o fizer, pode ser que traga mais duas ou três. Nynaeve, se gente suficiente no Círculo escutar, você pode voltar a ser nossa Sabedoria? Acho que você é a única que não se curvará a Malena, mesmo que todas nós saibamos a verdade. Você não sabe do que ela é capaz.
— Eu serei. — A saída — Não! Esta é minha gente! — Pegue seu manto, e vamos ver Corin.
Marin estava insegura quanto a deixar a estalagem, e, assim que Nynaeve conseguiu fazer com que ela saísse, a mulher desceu a escada devagar, um degrau atrás do outro, curvada e muito atenta.
Antes da metade do caminho para a casa de Corin Ayellin, Nynaeve viu uma mulher alta e magricela vindo a passos largos pelo outro lado do Campo na direção da estalagem, afastando o mato com um bastão grosso de salgueiro. Era bem magra, mas parecia forte, e sua boca grande, que parecia talhada a golpe de faca, estava comprimida em uma expressão determinada. Cenn Buie corria atrás dela.
— Malena. — Marin puxou Nynaeve para um espaço entre duas casas e sussurrou, como se tivesse medo de que a mulher pudesse ouvir, mesmo do outro lado do Campo. — Eu sabia que Cenn iria buscá-la.
Alguma coisa fez Nynaeve olhar para trás. Atrás dela estava um arco de prata, estendendo-se de uma casa a outra, emitindo um brilho branco. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.
Marin deu um grito abafado.
— Ela nos viu. Que a Luz nos ajude, ela está vindo para cá!
A mulher alta mudara de direção, deixando Cenn parado e sem saber o que fazer. Não havia incerteza no rosto de Malena. Ela caminhava devagar, como se não houvesse esperança de fuga, com um sorriso cruel que crescia a cada passo.
Marin puxou a manga do vestido de Nynaeve.
— Temos que fugir. Temos que nos esconder. Nynaeve, venha. Cenn deve ter dito a ela quem é você. Ela odeia que qualquer pessoa sequer fale de você.
O arco de prata atraía o olhar de Nynaeve. A saída… Ela sacudiu a cabeça, tentando se lembrar. Não é real. Ela olhou para Marin: o rosto da mulher estava deformado de tão aterrorizado. Você precisa ser firme se quiser sobreviver.
— Por favor, Nynaeve. Ela me viu com você. Ela me viu! Por favor, Nynaeve!
Malena se aproximava, implacável. Minha gente. O arco reluzia. A saída. Não é real.
Com um soluço e um safanão, Nynaeve soltou seu braço da mão de Marin e mergulhou na direção do brilho prateado.
O grito agudo de Marin a perseguiu.
— Pelo amor da Luz, Nynaeve, me ajude. ME AJUDE!
O brilho a envolveu por inteiro.
Com os olhos fixos à frente, Nynaeve saiu do arco cambaleando, mal reparando no aposento ou nas Aes Sedai. O último grito de Marin ainda zumbia em seus ouvidos. Ela sequer estremeceu quando a água fria foi derramada em sua cabeça.
— Você está sendo lavada e puri ficada de falso orgulho. Você está sendo lavada e puri ficada de falsa ambição. Você vem a nós lavada e puri ficada, de coração e alma. — Quando a Aes Sedai Vermelha recuou, Sheriam veio para pegar Nynaeve pelo braço.
Nynaeve sobressaltou-se, e então percebeu quem era. Ela agarrou o colarinho do vestido de Sheriam com as duas mãos.
— Me diga que não era real. Me diga!
— Ruim? — Sheriam soltou as mãos dela como se estivesse acostumada a essa reação. — É sempre pior, e a terceira vez é a pior de todas.
— Eu deixei minha amiga… eu deixei minha gente… no Poço da Perdição, para voltar. — Por favor, Luz, não foi real. Eu não fiz aquilo de verdade… Eu preciso fazer Moiraine pagar. Eu preciso!
— Sempre existe alguma razão para não retornar, algo que nos impeça, algo que nos distraia. Este ter’angreal tece armadilhas para você com sua própria mente, e as tece fortes e apertadas, mais duras que aço e mais mortíferas que veneno. É por isso que o usamos como teste. Você precisa querer ser Aes Sedai mais do que qualquer coisa no mundo inteiro, o bastante para enfrentar qualquer coisa ou lutar para se libertar de qualquer coisa para conseguir. A Torre Branca não pode aceitar menos. É o que exigimos de você.
— Vocês exigem demais. — Nynaeve encarou o terceiro arco enquanto a Aes Sedai de cabelos ruivos a levava até ele. O terceiro é o pior . — Estou com medo — sussurrou. O que poderia ser pior do que aquilo que acabei de fazer?
— Ótimo — respondeu Sheriam. — Você quer ser uma Aes Sedai, quer canalizar o Poder Único. Ninguém deveria querer isso sem medo e respeito. O medo fará você ter cautela, e a cautela a manterá viva. — Ela virou Nynaeve de frente para o arco, mas não recuou imediatamente. — Ninguém a forçará a entrar uma terceira vez, criança.
Nynaeve umedeceu os lábios.
— Se eu recusar, vocês vão me expulsar da Torre e nunca mais vão me deixar voltar. — Sheriam assentiu. — E este é o pior. — Sheriam voltou a assentir. Nynaeve respirou fundo. — Estou pronta.
— A terceira vez — entoou Sheriam, com formalidade — é pelo que será. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.
Nynaeve se lançou dentro do arco.
Rindo, ela correu por entre nuvens de borboletas que se erguiam das flores do campo que recobriam a campina no alto do morro, como um cobertor colorido que ia até a altura dos joelhos. Sua égua cinzenta se remexia na beira da campina, nervosa, com as rédeas penduradas, e Nynaeve parou de correr para não assustar ainda mais o animal. Algumas borboletas pousaram em seu vestido, sobre flores bordadas e pérolas minúsculas, outras voejaram ao redor das sa iras e pedras da lua em seus cabelos, que caíam em cascata sobre seus ombros.
Abaixo da colina, Mil Lagos se estendia pela cidade de Malkier, re fletindo as Sete Torres que se erguiam até as nuvens, ostentando o Grou Dourado em seus topos, em meio à neblina. A cidade tinha mil jardins, mas ela preferia aquele, um jardim selvagem no topo da colina. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.
O som de cascos a fez virar.
Al’Lan Mandragoran, rei de Malkier, desmontou de seu cavalo e caminhou a passos largos por entre as borboletas, rindo, seguindo em sua direção. O rosto dele tinha o aspecto de um homem severo, mas os sorrisos que dirigia para ela suavizavam os traços duros como pedra.
Ela olhou para ele, boquiaberta, apanhada de surpresa quando ele a tomou nos braços e a beijou. Por um momento, ela se agarrou a ele, perdida, retribuindo o beijo. Seus pés pendiam no ar, e ela não se importou.
De repente, ela o empurrou, afastando o rosto.
— Não. — Empurrou com mais força. — Me solte. Ponha-me no chão. — Intrigado, ele a abaixou até que seus pés tocaram o chão, e ela se afastou dele. — Isto não — disse. — Não posso enfrentar isto. Tudo menos isto. — Por favor, deixe-me enfrentar Aginor outra vez . Sua mente parecia girar. Aginor? Ela não sabia de onde aquele pensamento viera. A memória ia e vinha, fragmentos se deslocavam como placas de gelo quebradas em um rio descongelando. Ela estendeu as mãos para os pedaços, tentando se agarrar a algo.
— Você está bem, meu amor? — perguntou Lan, preocupado.
— Não me chame assim! Eu não sou seu amor! Não posso me casar com você!
Ele a assustou, jogando a cabeça para trás e dando uma gargalhada como um urro.
— Sua insinuação de que não somos casados pode aborrecer nossos filhos, esposa. E como você não é meu amor? Eu não tenho outro, nem terei.
— Preciso voltar. — Ela procurou pelo arco, desesperada, mas só viu a campina e o céu. Mais duro que aço e mais mortífero que veneno. Lan. Os bebês de Lan. Luz, me ajude! — Preciso voltar agora.
— Voltar? Para onde? Para o Campo de Emond? Claro, se é o que quer. Mandarei cartas para Morgase e ordenarei uma escolta.
— Sozinha — murmurou ela, ainda procurando. Onde está? Preciso ir . — Não vou ficar presa aqui. Não conseguiria suportar. Não isto. Preciso ir agora!
— Presa em que, Nynaeve? O que é que você não conseguiria suportar? Não, Nynaeve. Você pode cavalgar sozinha por aqui se quiser, mas, se a Rainha dos malkieris fosse para Andor sem uma escolta apropriada, Morgase ficaria escandalizada, para não dizer ofendida. Você não quer ofendê-la, quer? Achei que fossem amigas.
Nynaeve sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça; várias, na verdade, uma atrás da outra.
— Rainha? — perguntou ela, hesitante. — Nós temos bebês?
— Tem certeza de que está bem? Acho melhor levar você até Sharina Sedai.
— Não. — Ela voltou a se afastar dele. — Nada de Aes Sedai. — Isso não é real. Não vou ser levada para dentro disto desta vez. Não vou!
— Muito bem — respondeu ele, devagar. — Como minha esposa, como você poderia não ser Rainha? Aqui somos malkieris, não gente do sul. Você foi coroada nas Sete Torres quando trocamos anéis. — Sem perceber, ele moveu a mão esquerda: uma simples aliança de ouro envolvia seu dedo indicador. Ela olhou de relance para a própria mão, para o anel que sabia que estaria ali, e colocou a mão sobre ele, mas não sabia dizer se o fez para negar sua presença escondendo-o ou para segurá-lo. — Você se lembra, agora? — continuou ele, estendendo a mão, como se para acariciar o rosto dela, que recuou mais seis passos. Ele suspirou. — Como quiser, meu amor. Temos três filhos, embora só um possa ser considerado um bebê. Maric já está quase batendo no seu ombro e não consegue decidir se gosta mais de cavalos ou de livros. Elnore já começou a praticar como virar a cabeça dos rapazes, isso quando não está aborrecendo Sharina sobre quando terá idade suficiente para ir para a Torre Branca.
— Elnore era o nome de minha mãe — murmurou ela.
— Foi o que você disse quando o escolheu. Nynaeve…
— Não. Eu não serei arrastada para dentro disto desta vez. Não assim. Não serei! — Atrás dele, entre as árvores ao lado da campina, ela viu o arco de prata. As árvores o haviam escondido antes. A saída só aparecerá uma vez. Virou-se na direção dele. — Preciso ir. — Ele a pegou pela mão, e foi como se seus pés tivessem criado raízes: não conseguia se obrigar a sair do lugar.
— Eu não sei o que está perturbando você, esposa, mas, seja o que for, me conte, e eu darei um jeito. Sei que não sou o melhor dos maridos. Eu era muito sério quando a conheci, mas você amaciou um pouco desta rocha, pelo menos.
— Você é o melhor marido de todos — murmurou em resposta. Para seu horror, ela se descobriu lembrando-se dele como marido, lembrando-se de risos e lágrimas, de brigas amargas e doces reconciliações. Eram lembranças vagas, mas ela podia senti-las mais fortes, mais quentes. — Eu não posso. — O arco estava ali, a apenas alguns passos de distância. A saída só aparecerá uma vez. Seja firme.
— Eu não sei o que está acontecendo, Nynaeve, mas sinto como se a estivesse perdendo. Eu não poderia suportar isso. — Ele pôs a mão nos cabelos dela. Fechando os olhos, ela pressionou o rosto contra os dedos dele. — Fique comigo para sempre.
— Eu quero ficar — respondeu, baixinho. — Eu quero ficar com você. — Quando ela abriu os olhos, o arco havia sumido… só aparecerá uma vez. — Não. Não!
Lan se virou para encará-la.
— O que está perturbando você? Precisa me dizer o que houve se quiser que eu a ajude.
— Isto não é real.
— Não é real? Antes de conhecer você, eu achava que nada era real a não ser a espada. Olhe ao redor, Nynaeve. Isto é real. O que você quiser que seja a realidade, nós podemos construir juntos, você e eu.
Surpresa, ela olhou à sua volta. A campina ainda estava lá. As Sete Torres ainda se assomavam sobre os Mil Lagos. O arco desaparecera, mas nada mais havia mudado. Eu poderia ficar aqui. Com Lan. Nada mudou. Seus pensamentos voltaram. Nada mudou. Egwene está sozinha na Torre Branca. Rand vai canalizar e enlouquecer. E quanto a Mat e Perrin? Será que eles conseguirão recuperar algum fragmento de suas vidas? E Moiraine, que despedaçou as nossas, ainda caminha em liberdade.
— Eu preciso voltar — sussurrou ela. Incapaz de suportar a dor no rosto dele, ela se libertou de seus braços. Determinada, formou um botão de flor na mente, um botão branco em um ramo de espinheira negra. Imaginou espinhos afiados e cruéis, desejando que eles pudessem rasgar sua carne, sentindo como se estivesse pendurada nos galhos da espinheira. A voz de Sheriam Sedai dançava logo além do limite de sua audição, dizendo que era perigoso tentar canalizar o Poder. O botão de abriu, e saidar a preencheu de luz.
— Nynaeve, diga-me qual é o problema.
A voz de Lan chegava até ela mesmo com sua concentração, mas ela se recusava a se permitir ouvi-la. Ainda devia haver um caminho de volta. Olhando para onde o arco de prata estivera, ela tentou encontrar algum vestígio dele. Não havia nada.
— Nynaeve…
Ela tentou visualizar o arco em sua mente, dar-lhe forma até o menor dos detalhes, a curva de metal reluzente repleta de um brilho idêntico a fogo nevado. Ele parecia ondular ali, na sua frente. Primeiro estava entre ela e as árvores, depois não, depois estava de volta ali.
— … eu amo você…
Ela sugou saidar, bebendo do luxo do Poder Único até achar que iria explodir. A irradiação a preencheu, brilhando ao seu redor, fazendo até seus olhos doerem. O calor parecia consumi-la. O arco que tremeluzia se firmou e ficou fixo, inteiro, diante dela. Fogo e dor pareciam tomá-la por completo, ela sentia como se seus ossos estivessem queimando e seu crânio parecia uma fornalha fumegante.
— … de todo o meu coração.
Ela correu do arco de prata, sem se permitir olhar para trás. Antes, tinha certeza de que a coisa mais amarga que ouviria era o grito de socorro de Marin al’Vere quando a abandonou, mas aquilo era como mel em comparação ao som da voz angustiada de Lan a perseguindo.
— Nynaeve, por favor, não me deixe.
O brilho branco a consumiu.
Nua, Nynaeve atravessou, cambaleante, o arco e caiu de joelhos, boquiaberta, soluçando, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Sheriam se ajoelhou ao seu lado. Ela olhou irritada para a Aes Sedai de cabelos ruivos.
— Eu odeio você! — Conseguiu dizer, com ferocidade, a respiração difícil. — Eu odeio todas as Aes Sedai!
Sheriam deu um pequeno suspiro, depois levantou Nynaeve.
— Criança, quase toda mulher que passa por isso diz a mesma coisa. Não é pouco ser obrigada a encarar seus medos. O que é isto? — perguntou, de repente, virando as palmas das mãos de Nynaeve para cima.
As mãos de Nynaeve tremeram com uma dor súbita que ela nunca sentira antes. Cravado em cada palma, bem no centro, havia um longo espinho negro. Sheriam os puxou com cuidado, e Nynaeve sentiu a fria Cura do toque das Aes Sedai. Quando os espinhos saíram, restou apenas uma pequena cicatriz na frente e nas costas da mão.
Sheriam franziu a testa.
— Não deveria haver nenhuma cicatriz. E como foi que você conseguiu apenas duas, e ambas tão precisas? Se você se emaranhou em uma espinheira, deveria estar coberta de arranhões e espinhos.
— Deveria — concordou Nynaeve, com amargura. — Talvez eu achasse que já paguei o bastante.
— Sempre existe um preço — concordou a Aes Sedai. — Venha. Você pagou o primeiro. Receba aquilo pelo qual pagou. — Ela deu um empurrãozinho em Nynaeve.
A mulher percebeu que havia mais Aes Sedai no aposento. A Amyrlin, com sua estola listrada, estava lá, com uma irmã de cada Ajah usando seus xales, paradas em fileiras de cada lado dela, todas observando Nynaeve. Lembrando-se das instruções de Sheriam, ela avançou, trêmula, e se ajoelhou diante da Amyrlin. Era ela quem segurava o último cálice, que derramou devagar sobre a cabeça de Nynaeve.
— Você está lavada de Nynaeve al’Meara, de Campo de Emond. Você está lavada de todos os laços que a prendem ao mundo. Você vem a nós lavada de coração e alma. Você é Nynaeve al’Meara, Aceita da Torre Branca. — Entregando o cálice a uma das irmãs, a Amyrlin ajudou Nynaeve a se erguer. — Você agora está ligada a nós.
Os olhos da Amyrlin pareciam ter um brilho escuro. O calafrio que percorreu o corpo de Nynaeve nada tinha a ver com o fato de estar nua e molhada.