Ingtar impôs um ritmo rápido para o início de uma longa jornada, rápido o bastante para Rand ficar um pouco preocupado com os cavalos. Os animais conseguiam manter o trote por horas, mas ainda havia a maior parte do dia pela frente, e provavelmente mais dias depois daquele. Pela expressão de Ingtar, porém, Rand achava que ele tinha a intenção de capturar os ladrões da Trombeta logo no primeiro dia, na primeira hora. Como ainda se lembrava da voz do homem ao fazer o juramento ao Trono de Amyrlin, Rand não ficou surpreso. Mas resolveu manter a boca fechada. Lorde Ingtar estava no comando e, por mais simpático que tivesse sido com Rand, ainda assim não apreciaria os conselhos de um pastor.
Hurin cavalgava logo atrás de Ingtar, mas era o farejador quem os conduzia para o sul, apontando o caminho. Eles passavam por colinas de densas florestas, com muitos pinheiros, folhas-de-couro e carvalho. Mas o rastro que Hurin seguia ia quase em linha reta, como uma flecha, e nunca vacilava, a não ser para dar a volta em algumas das colinas mais altas, quando ficava claro que o caminho mais rápido seria contornando-as, e não por cima. O estandarte da Coruja Cinzenta ondulava ao vento.
Rand tentou cavalgar junto dos amigos, mas, quando deixava seu cavalo reduzir o passo para se aproximar deles, Mat cutucava Perrin, que o seguia, relutante, até o início da coluna. Dizendo a si mesmo que não havia motivos para cavalgar sozinho na retaguarda, Rand ia de volta até a dianteira. Os outros dois, então, voltavam para a retaguarda, Mat puxando Perrin mais uma vez.
Que os queimem, eu só queria pedir desculpas! Sentia-se só. Saber que a culpa era sua não ajudava.
No topo de uma colina, Uno desmontou para examinar o terreno revirado por cascos. Cutucou algumas fezes de cavalos e grunhiu.
— Esses chamejados estão se movendo depressa, milorde. — Sua voz dava a impressão de que gritava mesmo quando estava apenas falando. — Não ganhamos nem mesmo uma hora em cima deles. Que me queime, é possível que tenhamos perdido uma hora! Eles vão matar seus malditos cavalos, nesse passo. — Então passou o dedo em uma pegada de cascos. — Isto aqui não é de cavalo. É um chamejado de um Trolloc. Um pé de bode chamejado passou por aqui.
— Vamos alcançá-los — respondeu Ingtar, sério.
— Nossos cavalos, milorde. Não é bom forçar os cavalos até eles caírem antes de alcançarmos os ladrões, milorde. Mesmo que matem suas montarias, aqueles Trollocs chamejados podem continuar a correr por mais tempo que os cavalos.
— Vamos alcançá-los. Monte, Uno.
Uno fitou Rand com seu único olho, então deu de ombros e subiu na sela. Ingtar os levou encosta abaixo correndo, quase escorregando até o fundo, e subiu a colina seguinte galopando.
Por que ele olhou para mim daquele jeito?, perguntou-se Rand. Uno era um dos que nunca haviam demonstrado muita simpatia por ele. Não era como a antipatia declarada de Masema; Uno simplesmente não era simpático com ninguém, a não ser com alguns poucos veteranos tão grisalhos quanto ele. Aposto que ele não acredita nessa história de que eu seja um lorde.
Uno passava o tempo analisando o território à frente, mas retribuía o olhar, sem dizer uma palavra, quando surpreendia Rand o encarando. Aquilo não significava muita coisa. Ele também olhava Ingtar nos olhos. Era o jeito de Uno.
O caminho escolhido pelos Amigos das Trevas — E o que mais?, perguntava-se Rand, pois Hurin continuava a resmungar sobre “algo pior” — que haviam roubado a Trombeta não passava perto de nenhuma aldeia. Rand via aldeias entre um topo de colina ou outro, mas nunca se aproximavam o bastante para conseguir ver as pessoas nas ruas. Ou para que aquelas pessoas vissem o grupo que seguia para o sul. Havia fazendas também, com casas de beirais baixos, celeiros altos e chaminés fumegantes, nos topos, nas encostas e nos sopés das colinas, mas nenhuma próxima o bastante para que um fazendeiro tivesse visto o grupo que eles perseguiam.
Por fim, até mesmo Ingtar teve que admitir que os cavalos não conseguiriam suportar aquele ritmo que mantinham. Rand ouviu maldições resmungadas, e Ingtar socou a coxa com o punho coberto pela manopla, mas acabou ordenando que todos desmontassem. Então, eles seguiram a pé, correndo por uma milha, subindo e descendo uma colina, depois montaram e voltaram a cavalgar. Em seguida, desceram outra vez e correram. Corriam uma milha e cavalgavam outra. Corriam e cavalgavam.
Rand ficou surpreso ao ver Loial sorrir quando estavam no chão, subindo com dificuldade uma colina. O Ogier tivera suas reservas em relação a cavalos e cavalgadas quando se conheceram; preferia confiar nos próprios pés, mas Rand achava que ele já tinha superado isso havia muito tempo.
— Você gosta de correr, Rand? — perguntou Loial, rindo. — Eu gosto. Eu era o mais rápido do pouso de Shangtai. Certa vez, corri mais rápido que um cavalo.
Rand só conseguiu assentir com a cabeça. Não queria perder fôlego conversando. Procurou por Mat e Perrin, mas os dois ainda estavam na retaguarda, com homens demais entre eles para que Rand conseguisse avistá-los. Ficou se perguntando como os shienaranos conseguiam manter o passo naquelas armaduras. Nenhum deles reduziu a velocidade nem reclamou de nada. Uno não parecia nem suar, e o porta-estandarte não deixou a Coruja Cinzenta se inclinar nem por um instante.
Era um ritmo acelerado, mas o crepúsculo começou a cair sem trazer nem sinal daqueles a quem caçavam, a não ser pelos rastros. Por fim, relutante, Ingtar os mandou parar e montar acampamento para passar a noite na floresta. Os shienaranos se puseram a acender fogueiras e abrir linhas de piquete para os cavalos, com uma suave economia de esforço nascida da longa experiência. Ingtar escolheu três duplas de guardas para a primeira vigia.
A primeira coisa que Rand fez foi buscar sua sacola nas cestas de vime dos cavalos de carga. Não foi di ícil, pois havia poucas sacolas pessoais entre os suprimentos, mas, quando a abriu, soltou um grito que fez todos os homens do acampamento levantarem-se sobressaltados de espada na mão.
Ingtar veio correndo.
— O que foi? Paz, alguém atravessou a linha? Não ouvi os guardas.
— São estes casacos — grunhiu, ainda olhando para a sacola que abrira. Um dos casacos era preto, com um bordado prateado, e o outro, branco bordado em ouro. Ambos tinham garças nos colarinhos, e ambos eram no mínimo tão ornamentados quanto o casaco escarlate que ele vestia. — Os serviçais me disseram que eu tinha dois casacos bons e úteis aqui dentro. Olhe só para eles!
Ingtar embainhou a espada por cima do ombro. Os outros homens voltaram a se acomodar.
— Bem, eles são úteis.
— Não posso vestir isso. Não posso sair por aí vestido assim o tempo todo.
— Você pode vesti-los. Um casaco é um casaco. Soube que a própria Moiraine Sedai empacotou suas coisas. Talvez as Aes Sedai não entendam exatamente o que um homem vista no campo. — Ingtar sorriu. — Depois de capturarmos esses Trollocs, talvez haja uma festança. Pelo menos você terá roupas apropriadas, ao contrário do restante. — Ele voltou para onde as fogueiras de cozinhar já estavam acesas.
Rand não se movera desde que Ingtar mencionara Moiraine. Ficou olhando para os casacos. O que ela está tramando? Seja lá o que for, não serei usado. Ele embrulhou as roupas de volta e enfiou a sacola no cesto. Eu sempre posso andar pelado, pensou com amargura.
Os shienaranos se revezavam para cozinhar quando acampavam, e Masema era o responsável pelo caldeirão quando Rand voltou às fogueiras. O cheiro de um cozido de nabos, cebolas e carne seca começou a invadir o acampamento. Ingtar foi o primeiro a ser servido, seguido de Uno, mas todos os outros formaram uma ila. Masema jogou uma grande concha de cozido no prato de Rand, que recuou depressa para evitar que a comida transbordasse e sujasse seu casaco. Estava com o polegar queimado na boca quando abriu espaço para o homem seguinte. Masema ficou olhando para ele com um sorriso que não chegou aos olhos. Até que Uno avançou e lhe deu um tapa.
— Não estamos com comida de sobra para você ficar derramando no maldito chão. — O caolho olhou para Rand e se afastou. Masema esfregou a orelha, mas seu olhar irritado acompanhou Rand.
O rapaz foi se juntar a Ingtar e Loial, sentando-se no chão sob um enorme carvalho. Ingtar tirara o elmo e o colocara no chão, ao seu lado, mas ainda usava a armadura completa. Mat e Perrin já estavam lá, comendo com vontade. Mat olhou com desdém para o casaco de Rand, mas Perrin mal levantou a cabeça, com os olhos dourados reluzindo à meia-luz das fogueiras, antes de voltar a atenção para o seu prato.
Pelo menos eles não se afastaram desta vez.
Ele se sentou de pernas cruzadas do outro lado de Ingtar.
— Gostaria de saber por que Uno não para de me encarar. Deve ser por causa deste maldito casaco.
Ingtar fez uma pausa, pensativo, enquanto mastigava um bocado de cozido. Por fim, falou:
— Sem dúvida, Uno está se perguntando se você é digno de uma espada com a marca da garça. — Mat fez um ruído debochado, mas Ingtar continuou, imperturbável. — Não deixe Uno aborrecê-lo. Ele trataria Lorde Agelmar como um recruta, se pudesse. Bem, talvez não Agelmar, mas qualquer outro. Ele é meio áspero, mas dá bons conselhos. E deveria, já que participa de campanhas desde antes de eu nascer. Ouça seus conselhos, não ligue para sua aspereza e, então, se dará bem com Uno.
— Achei que ele fosse como Masema. — Rand enfiou cozido na boca. Estava quente demais, mas ele engoliu tudo. Não haviam comido desde que deixaram Fal Dara, e ele estava preocupado demais para comer naquela manhã. Seu estômago roncava, lembrando-o que já passava da hora. Ele se perguntou se dizer a Masema que tinha gostado da comida ajudaria. — Ele age como se me odiasse, não entendo isso.
— Masema serviu por três anos nas Marcas Orientais — respondeu Ingtar. — Em Ankor Dail, contra os Aiel. — Ele mexeu o cozido com a colher, franzindo a testa. — Eu não faço perguntas, veja bem. Se Lan Dai Shan e Moiraine Sedai dizem que você é de Andor, de Dois Rios, então você é. Mas Masema não consegue tirar o rosto dos Aiel da cabeça, e quando o vê… — Ele deu de ombros. — Eu não faço perguntas.
Rand deixou a colher cair no prato com um suspiro.
— Todos pensam que eu sou alguém que não sou. Sou de Dois Rios, Ingtar. Cultivei tabaco com… com meu pai, e criei suas ovelhas. É isso o que sou. Um fazendeiro e um pastor de Dois Rios.
— Ele é de Dois Rios — concordou Mat, com escárnio. — Eu cresci com ele, embora agora nem dê pra ver isso. Vocês colocam essa bobagem de Aiel na cabeça dele, além do que já está aí, e só a Luz sabe qual será o resultado. Um Lorde Aiel, talvez?
— Não — comentou Loial. — Ele parece Aiel. Você lembra, Rand, que comentei isso uma vez, embora achasse que fosse apenas porque não conhecesse bem vocês, humanos, na época. Lembra? “Até a sombra sumir, até a água secar, saltando na Sombra com os dentes à mostra, gritando em desafio com seu último suspiro, para cuspir no olho do Cega-vista no Último Dia.” Você lembra, Rand?
Rand encarou o prato. Enrole uma shoufa ao redor de sua cabeça, Rand, e você será um Aiel perfeito . Gawyn, irmão de Elayne, a Filha-Herdeira de Andor, dissera aquilo. Todos pensam que sou alguém que não sou.
— O que você disse? — perguntou Mat. — Essa história de cuspir no olho do Tenebroso.
— Esse é o tempo pelo qual os Aiel dizem que lutarão — respondeu Ingtar — e não duvido que o façam. Exceto por mascates e menestréis, os Aiel dividem o mundo em dois: Aiel e inimigos. Eles deixaram de pensar assim sobre Cairhien há quinhentos anos, por algum motivo que ninguém, a não ser um deles, pode entender. Mas não acho que voltem a fazê-lo.
— Suponho que não — suspirou Loial. — Mas eles deixam os tuatha’an, o Povo Viajante, atravessar o Deserto. E também não veem os Ogier como inimigos, embora eu duvide que qualquer um de nós quisesse ir até lá. Os Aiel às vezes vão ao pouso de Shangtai para negociar madeira cantada. Mas são um povo duro.
Ingtar assentiu.
— Quisera eu ter homens assim tão duros. Metade do que os Aiel, até.
— Isso é alguma piada? — Mat riu. — Se eu corresse uma milha usando todo o ferro que vocês estão vestindo, cairia e dormiria por uma semana. Vocês fazem isso por milhas, todos os dias.
— Os Aiel são realmente duros — respondeu Ingtar. — Homens e mulheres. Já lutei contra eles, e sei. Eles correrão cinquenta milhas e lutarão uma batalha depois. Eles são a morte que anda, com qualquer arma ou sem nenhuma. Exceto por uma espada. Eles não tocam em espadas, não sei por quê. Nem montam a cavalo. Não que precisem. Se você carregar uma espada e um homem de Aiel estiver com as mãos vazias, é uma luta justa. Se você for bom. Eles cuidam de gado e cabras onde você e eu morreríamos de sede antes do fim do dia. Eles escavam seus vilarejos em rochas imensas, lá no Deserto. Estão lá desde a Ruptura, ou quase. Artur Asa-de-gavião tentou tirá-los de lá e saiu coberto de sangue. Foi a única grande derrota que sofreu. De dia, o ar no Deserto Aiel ondula com o calor, e à noite congela. E um Aiel vai encará-lo com aqueles olhos azuis e dizer que não existe outra terra em que gostaria de estar. E também não estará mentindo. Mas, se algum dia tentassem sair, seria difícil impedi-los. A Guerra dos Aiel durou três anos, e foi apenas com quatro dos treze clãs.
— Os olhos cinzentos da mãe não fazem dele um Aiel — retrucou Mat.
Ingtar deu de ombros.
— Como eu disse, não faço perguntas.
Quando Rand finalmente se ajeitou para dormir, sua cabeça estava cheia de pensamentos indesejados. Aparência de um Aiel. Moiraine Sedai diz que você é de Dois Rios. Os Aiel devastaram tudo até Tar Valon. Nascido nas encostas do Monte do Dragão. O Dragão Renascido.
— Eu não serei usado — resmungou, mas o sono custou a chegar.
Ingtar levantou acampamento antes que o sol nascesse. Eles já havia terminado o desjejum e cavalgavam para o sul quando as nuvens no leste ainda estavam vermelhas com o nascer do sol que vinha, e o orvalho ainda pendia na folhagem. Dessa vez, Ingtar mandou batedores, e, embora o ritmo fosse duro, não era mais de matar os cavalos. Rand achou que talvez Ingtar tivesse percebido que não iriam fazer tudo em um dia só. O rastro ainda ia para o sul, dissera Hurin. Então, duas horas após o pôr do sol, um dos batedores voltou a galope.
— Há um acampamento abandonado à frente, milorde. Logo no topo daquela colina. Devia ter no mínimo trinta ou quarenta deles ali ontem à noite, milorde.
Ingtar esporeou o cavalo como se tivesse ouvido que os Amigos das Trevas ainda estavam lá, e Rand teve que manter o passo, ou seria atropelado pelos shienaranos que subiram a colina atrás dele, galopando.
Não havia muito para ver. Apenas cinzas frias das fogueiras do acampamento, bem escondidas entre as árvores, com o que pareciam os restos de uma refeição atirada entre elas. Uma pilha de lixo também estava perto das fogueiras, já repleta de moscas zumbindo.
Ingtar manteve os outros a distância e desmontou para andar pelo acampamento com Uno, examinando o terreno. Hurin cavalgou ao redor do local, farejando. Rand ficou sentado em seu garanhão junto dos outros homens, pois não tinha nenhuma vontade de olhar para um lugar onde Trollocs e Amigos das Trevas haviam acampado. E um Desvanecido. E coisa pior.
Mat subiu a colina correndo e se esgueirou até o acampamento.
— Então este é um acampamento dos Amigos das Trevas? Fede um pouquinho, mas não posso dizer que seja muito diferente de qualquer outro. — Ele chutou uma das pilhas de cinzas, derrubando um pedaço de osso queimado, e se abaixou para pegá-lo. — O que os Amigos das Trevas comem? Não parece um osso de ovelha nem de vaca.
— Um assassinato foi cometido aqui — comentou Hurin, com tristeza. Ele esfregou o nariz com um lenço. — Algo pior do que assassinato.
— Havia Trollocs aqui — disse Ingtar, olhando para Mat. — Suponho que tenham ficado com fome, e os Amigos das Trevas estavam à mão. — Mat deixou o osso enegrecido cair, parecendo que ia passar mal.
— Eles não estão indo mais para o sul, milorde — disse Hurin. Isso chamou a atenção de todos. Ele apontou para trás, na direção nordeste. — Talvez tenham decidido ir para a Praga, a final. Contornar nosso grupo. Talvez estivessem apenas tentando nos despistar, vindo para o sul. — Sua voz era de quem não acreditava naquilo. Parecia intrigado.
— O que quer que estivessem tentando — rosnou Ingtar —, vou pegá-los agora. Montem!
Entretanto, pouco mais de uma hora depois, Hurin parou seu cavalo.
— Eles mudaram o rumo outra vez, milorde. Voltaram a seguir para o sul. E mataram mais alguém por lá.
Não havia cinzas no intervalo entre as duas colinas, mas encontraram um corpo depois de alguns minutos de busca. Era um homem todo enroscado e enfiado embaixo de alguns arbustos. Sua nuca fora esmagada, e seus olhos ainda estavam arregalados com a força do impacto. Ninguém o reconheceu, embora estivesse vestido como um shienarano.
— Não perderemos tempo enterrando Amigos das Trevas — grunhiu Ingtar. — Vamos cavalgar para o sul. — Já seguia suas próprias ordens antes mesmo de as palavras saírem de sua boca.
Mas o dia foi idêntico ao anterior. Uno estudou rastros e fezes e disse que eles haviam encurtado um pouco a distância. O crepúsculo chegou sem trazer sinal de Trollocs ou de Amigos das Trevas, e, na manhã seguinte, encontraram mais um acampamento abandonado — e mais um assassinato, segundo Hurin — e mais uma mudança de direção, dessa vez para noroeste. Em menos de duas horas no rastro, encontraram outro corpo: um homem com o crânio rachado por um machado. E mais outra mudança de direção. Sul outra vez. Estavam chegando mais perto, segundo a leitura que Uno fizera dos rastros. Mais uma vez, viam apenas fazendas distantes até o cair da noite. E o dia seguinte foi a mesma coisa, mudanças de direção, assassinatos e tudo o mais. E no seguinte àquele também.
Todo dia chegavam um pouco mais perto de sua presa, mas Ingtar fervia de raiva. Ele sugeriu seguir reto para cortar caminho quando o rastro mudou de direção em uma manhã. Eles com certeza acabariam voltando para o sul, e assim ganhariam mais tempo. Antes que alguém pudesse falar alguma coisa, ele disse que era má ideia, caso daquela vez os ladrões não virassem para o sul. Mandou todos irem mais rápido, começarem a perseguição mais cedo e cavalgarem até depois de escurecer. Lembrou a eles da missão que o Trono de Amyrlin lhes encarregara: recuperar a Trombeta de Valere e não deixar que nada barrasse seu caminho. Falou da glória que teriam, com os nomes lembrados na História e em histórias, em contos de menestréis e canções de bardos sobre os homens que haviam encontrado a Trombeta. Falava como se não conseguisse parar e olhava para o rastro que seguiam como se sua esperança da Luz ficasse no final dele. Até mesmo Uno começou a lhe lançar olhares enviesados.
E assim chegaram ao Rio Erinin.
Na cabeça de Rand, aquilo não podia ser realmente chamado de aldeia. Ele parou seu cavalo entre as árvores e observou a meia dúzia de casebres com telhado de madeira e beirais que iam quase até o chão, espalhados no topo de colina que dava para o rio iluminado pelo sol da manhã. Praticamente ninguém passava por ali. Fazia apenas algumas horas desde que levantaram acampamento, mas já passava da hora de encontrarem os restos do local de descanso dos Amigos das Trevas, se tudo continuasse como antes. Mas ainda não haviam visto nada do tipo.
O rio não se parecia muito com o poderoso Erinin da história, assim tão distante de sua fonte, na Espinha do Mundo. Talvez tivesse sessenta braças de uma margem a outra, e ambas eram repletas de árvores. Uma barca, semelhante a uma balsa, presa com uma corda grossa, cobria aquela distância. A barca estava parada do outro lado.
Pela primeira vez, o rastro os levara direto a uma habitação humana. Direto até as casas na colina. Ninguém se movia na única rua de terra batida ao redor da qual as habitações se aglomeravam.
— Uma emboscada, milorde? — perguntou Uno, baixinho.
Ingtar deu as ordens necessárias, e os shienaranos sacaram suas lanças, dando a volta para cercar as casas. A um sinal da mão de Ingtar, eles galoparam ruidosamente por entre as casas, provenientes de quatro direções. Os olhos atentos vasculhavam, as lanças estavam prontas e a poeira subia de seus cascos. Nada se movia, a não ser eles. Puxaram as rédeas, e a poeira começou a se acomodar.
Rand devolveu à aljava a flecha que havia encaixado no arco e voltou a pôr a arma nas costas. Mat e Perrin fizeram o mesmo. Loial e Hurin apenas esperavam onde Ingtar os deixara, observando, desconfortáveis.
Ingtar acenou, e Rand e os outros cavalgaram para se juntar aos shienaranos.
— Não gosto do cheiro deste lugar — resmungou Perrin, enquanto andavam por entre as casas. Hurin lhe lançou um olhar, que o menino retribuiu até o outro desviar os olhos. — Tem um cheiro errado.
— Aqueles Amigos das Trevas e Trollocs chamejados passaram direto, milorde — disse Uno, apontando para uns poucos rastros que não haviam sido destruídos pelos shienaranos. — Foram direto para a barca de beija-cabras, que os imbecis deixaram do outro lado. Maldito sangue e malditas cinzas! Ainda temos a sorte de eles não terem cortado a corda e deixado essa barca chamejada à deriva.
— Onde estão as pessoas? — perguntou Loial.
As portas estavam escancaradas, e as cortinas balançavam nas janelas abertas, mas ninguém havia saído, nem mesmo com todo o barulho dos cascos.
— Vasculhem as casas — ordenou Ingtar. Os homens desmontaram e correram para obedecer, mas saíram sacudindo as cabeças.
— Eles se foram, milorde — disse Uno. — Apenas se foram, que me queime! Como se tivessem empacotado tudo e decidido sair correndo no meio desse dia chamejado. — Ele parou de súbito, apontando com urgência para uma casa atrás de Ingtar. — Há uma mulher naquela janela. Como pude deixar de vê-la? Maldição… — Ele correu para a casa antes que mais alguém pudesse se mexer.
— Não a assuste! — gritou Ingtar. — Uno, precisamos de informações. Que a Luz o cegue, Uno, não a assuste! — O caolho desapareceu pela porta aberta. Ingtar ergueu a voz mais uma vez. — Não vamos machucar você, boa senhora. Somos homens sacramentados de Lorde Agelmar, de Fal Dara. Não tenha medo! Não vamos machucá-la.
Uma janela no alto da casa se escancarou, e Uno meteu a cabeça para fora, olhando ao redor, nervoso. Soltando um impropério, voltou a fechá-la. Ruídos abafados e metálicos marcaram sua volta, como se ele estivesse chutando coisas em frustração. Por fim, ele apareceu à porta.
— Foi-se, milorde. Mas estava lá. Uma mulher de vestido branco, na janela. Eu a vi. Até pensei que a tinha visto lá dentro, por um momento, mas então ela sumiu, e… — Ele respirou fundo. — A casa está vazia, milorde. — O fato de não ter soltado um impropério era uma indicação de quanto estava agitado.
— Cortinas — resmungou Mat. — Ele está levando sustos com as malditas cortinas.
Uno lhe lançou um olhar irritado e depois voltou para o cavalo.
— Para onde foram? — perguntou Rand a Loial. — Você acha que fugiram quando os Amigos das Trevas vieram? — E Trollocs, um Myrddraal e o “algo pior” de Hurin. Eram inteligentes se correram o mais rápido que puderam.
— Receio que os Amigos das Trevas os tenham levado, Rand — respondeu Loial, devagar. Ele fez uma careta, quase parecia bufar com o nariz largo como um focinho. — Para os Trollocs.
Rand engoliu em seco e desejou não ter feito aquela pergunta. Nunca era agradável pensar em como os Trollocs se alimentavam.
— O que quer que tenha acontecido aqui — disse Ingtar — é obra dos Amigos das Trevas. Hurin, houve alguma violência neste lugar? Morte? Hurin?
O farejador sobressaltou-se em sua sela e olhou ao redor, desesperado. Antes, estivera olhando para o outro lado do rio.
— Violência, milorde? Sim. Morte, não. Ou não exatamente. — Ele olhou de esguelha para Perrin. — Nunca senti cheiro de nada parecido antes, milorde. Mas houve feridos.
— Há alguma dúvida de que atravessaram o rio? Voltaram para cá outra vez?
— Eles atravessaram, milorde. — Hurin olhou para a outra margem, incomodado. — Eles atravessaram. Mas o que fizeram do outro lado… — Ele deu de ombros.
Ingtar assentiu.
— Uno, quero aquela barca aqui do nosso lado. E quero o outro lado examinado por batedores antes de atravessarmos. Só porque não houve emboscada aqui, não signi ica que não haverá uma quando estivermos divididos pelo rio. Aquela barca não parece grande o bastante para levar todo mundo em uma viagem. Cuide disso.
Uno fez uma mesura e, em instantes, Ragan e Masema ajudavam um ao outro a tirar as armaduras. Despidos até estarem só com as roupas íntimas, levando uma adaga presa às costas, eles correram até o rio com as pernas arqueadas de cavaleiros e começaram a atravessar, segurando-se na corda grossa pela qual a barca corria. O cabo era mais frouxo no meio, o suficiente para abaixá-los no rio até a cintura, e a corrente era forte, puxando-os para baixo. No entanto, mais rápido do que Rand esperava, já estavam subindo nas ripas laterais da barca. Sacando suas adagas, eles desapareceram por entre as árvores.
Depois do que pareceu uma eternidade, os dois homens reapareceram e começaram a puxar a barca para o outro lado, devagar. A embarcação bateu na margem abaixo da aldeia, e Masema amarrou-a enquanto Ragan correu até onde Ingtar aguardava. Seu rosto estava branco, a cicatriz de flecha ainda mais aparente, e ele parecia abalado.
— A outra margem… Não há emboscada na outra margem, milorde, mas… — Ele fez uma mesura profunda, ainda molhado e trêmulo. — Milorde, o senhor precisa ver por si mesmo. O grande carvalho-branco, a cinquenta passos a sul do cais. Não consigo falar. O senhor precisa ver por si mesmo.
Ingtar franziu a testa, olhando de Ragan para a outra margem. Por fim, disse:
— Você fez bem, Ragan. Vocês dois fizeram bem. — Sua voz se tornou mais ríspida. — Encontre alguma coisa nas casas para esses homens se secarem, Uno. E veja se alguém tem água sobrando para o chá. Ponha algo quente dentro deles, se puder. Depois traga a segunda fileira e os animais de carga. — Virou-se para Rand. — Bem, está pronto para ver a margem sul do Erinin? — Ele não esperou resposta, apenas desceu até a barca com Hurin e metade dos lanceiros.
Rand hesitou apenas por um instante antes de segui-lo. Loial foi com ele. Para sua surpresa, Perrin desceu à frente deles, com ar amargurado. Alguns dos lanceiros, fazendo piadas de mau gosto, desmontaram para puxar a corda e subir a barca.
Mat esperou até o último minuto, quando um dos shienaranos estava desamarrando a barca, antes de esporear seu cavalo e se juntar ao grupo a bordo.
— Tenho que ir mais cedo ou mais tarde, não tenho? — disse, sem fôlego, a ninguém em particular. — Tenho que encontrá-la.
Rand sacudiu a cabeça. Mat apresentava o aspecto saudável de sempre, o que fez com que ele quase se esquecesse do motivo de estar ali com eles. Para encontrar a adaga. Que Ingtar fique com a Trombeta! Eu só quero a adaga para Mat.
— Nós vamos encontrá-la, Mat.
Mat fez uma careta para ele, olhando com desprezo para seu casaco vermelho refinado, e lhe deu as costas. Rand suspirou.
— Tudo vai dar certo, Rand — disse Loial, baixinho. — De algum jeito, dará.
A corrente passou a carregar a barca assim que foi empurrada da margem, tensionando o cabo com um ranger agudo. Os lanceiros pareciam barqueiros estranhos, caminhando pelo convés de elmo e armadura, com as espadas presas às costas, mas conduziram a barca bem o bastante.
— Foi assim que deixamos nossa terra — disse Perrin, de repente. — Na Barca do Taren. Com o som das botas dos barqueiros batendo no convés e a água gorgolejando ao redor da barca. Foi assim que partimos. Desta vez, será pior.
— Como pode ser pior? — perguntou Rand.
Perrin não respondeu. Ele fitou a outra margem, e seus olhos dourados quase pareciam brilhar, mas não de ansiedade.
Depois de um minuto, Mat perguntou:
— Como pode ser pior?
— Será. Posso sentir o cheiro — Foi tudo o que Perrin disse.
Hurin olhou para ele, nervoso, mas o homem parecia lançar olhares nervosos desde que tinham deixado Fal Dara.
A barca bateu na outra margem com um impacto oco de pranchas rígidas encontrando a argila dura, quase embaixo de árvores que se penduravam sobre as margens. Os shienaranos que puxavam a corda montaram em seus cavalos, exceto dois deles, que Ingtar mandou levar a barca de volta para buscar os outros. O restante o seguiu margem acima.
— Cinquenta passos até um grande carvalho-branco — disse Ingtar, enquanto cavalgavam entre as árvores. Sua voz soava tranquila demais. Se Ragan não conseguira contar o que vira… Alguns dos soldados afrouxaram as espadas nas costas e ficaram com as lanças preparadas.
No começo, Rand achou que as duas figuras penduradas pelos braços nos galhos grossos e cinzentos do carvalho-branco eram espantalhos. Espantalhos vermelhos. Então reconheceu os rostos. Changu e o outro homem que estivera de guarda com ele, Nidao. Seus olhos estavam abertos e os dentes à mostra em um berro de dor. Tinha sido uma morte lenta.
Perrin soltou um grunhido gutural, quase um rosnado.
— Nunca vi nada tão ruim, milorde — disse Hurin fracamente. — Nunca senti um cheiro tão ruim, a não ser no calabouço de Fal Dara, naquela noite.
Desesperado, Rand tentou invocar o vazio. A chama parecia atrapalhá-lo, a luz incerta tremeluzia no mesmo ritmo frenético em que ele engolia em seco, mas ele continuou tentando até conseguir se envolver no vazio. No entanto, a incerteza pulsou junto com ele. Não do lado de fora, dessa vez, mas de dentro. Não é de se espantar, olhando esta cena . O pensamento deslizou pelo vazio como uma gota d’água em uma grelha quente. O que aconteceu com eles?
— Foram esfolados vivos — disse alguém atrás dele, e Rand ouviu sons de outra pessoa vomitando. Achou que fosse Mat, mas, de dentro do vazio, tudo ficava muito distante. E aquele tremeluzir nauseante também estava ali dentro. Achou que também fosse vomitar.
— Corte as cordas e desça-os — comandou Ingtar, ríspido. Ele hesitou por um momento, então acrescentou: — Enterrem-nos. Não temos certeza de que eram Amigos das Trevas. Podiam ser prisioneiros. Podiam ser. Que conheçam o último abraço da mãe, pelo menos!
Homens avançaram a cavalo, manejando as facas sem jeito. Nem mesmo para shienaranos endurecidos pela batalha era tarefa fácil carregar os corpos esfolados de homens que haviam conhecido.
— Você está bem, Rand? — perguntou Ingtar. — Eu também não estou acostumado com isso.
— Eu… eu estou bem, Ingtar.
Rand deixou o vazio desaparecer. Sentia-se menos enjoado sem ele. Seu estômago ainda estava embrulhado, mas ele se sentia melhor. Ingtar assentiu e virou seu cavalo para ver os homens trabalhando.
O enterro foi simples. Dois buracos foram cavados no chão, e os corpos foram colocados lá dentro enquanto os demais shienaranos observavam em silêncio. Os coveiros, sem demora, começaram a jogar pás de terra dentro dos túmulos.
Rand ficou chocado, mas Loial explicou em voz baixa:
— Os shienaranos acreditam que todos viemos da terra, e à terra devemos voltar. Eles nunca usam caixões ou mortalhas, e os corpos são enterrados despidos. A terra deve receber o corpo. O último abraço da mãe, é como chamam. E nunca há discursos, apenas “Que a Luz brilhe sobre você, e o Criador o abrigue! O último abraço da mãe lhe dá as boas-vindas em sua casa.” — Loial suspirou e sacudiu a enorme cabeça. — Não acho que alguém vá dizê-las, desta vez. Não importa o que Ingtar diga, Rand, não há muita dúvida de que Changu e Nidao mataram os guardas no Portão do Cão e deixaram os Amigos das Trevas entrarem na fortaleza. Eles devem ser os responsáveis por tudo isso.
— Então quem disparou a flecha na… na Amyrlin? — Rand engoliu em seco. Quem disparou em mim? Loial não respondeu.
Uno chegou com o restante dos homens e os cavalos de carga quando a última pá de terra estava sendo jogada nos túmulos. Alguém lhe disse o que haviam encontrado, e o caolho cuspiu.
— Trollocs beija-cabras fazem isso perto da maldita Praga, às vezes. Quando querem mexer com seus nervos ou avisar você para não seguir adiante. Que me queime se isso funcionar aqui também!
Antes de seguirem em frente, Ingtar parou seu cavalo ao lado dos túmulos sem sepultura, dois montinhos de terra que pareciam pequenos demais para conter homens. Depois de um momento, disse:
— Que a Luz brilhe sobre vocês, e o Criador os abrigue! O último abraço da mãe lhes dá as boas-vindas em sua casa. — Quando levantou a cabeça, olhou para um homem de cada vez. Eles o olharam de modo inexpressivo, mas o rosto mais inexpressivo de todos era o de Ingtar. — Eles salvaram Lorde Agelmar na Garganta de Tarwin — disse. Vários dos lanceiros assentiram. Ingtar virou seu cavalo. — Para que lado, Hurin?
— Sul, milorde.
— Sigam o rastro! Vamos caçar!
A floresta logo deu lugar a uma terra praticamente plana, de ondulações suaves, às vezes atravessada por um riacho raso que escavara um canal de margens altas. Mas nunca havia mais do que uma elevação baixa ou um pequeno morro, que mal merecia esse nome. Terra perfeita para os cavalos. Ingtar aproveitou a oportunidade, impondo um ritmo firme e cobrindo o terreno. Volta e meia, Rand via o que poderia ter sido uma casa de fazenda a distância. Numa das ocasiões, julgou que fosse uma vila, com fumaça saindo de chaminés a algumas milhas e algo relampejando branco sob o sol. Mas a terra perto deles permanecia sem humanos à vista, apenas longas extensões de grama pontilhadas com arbustos e uma ou outra árvore. Vez por outra, uma pequena cerca viva, mas nunca com mais de cem passos de extensão.
Ingtar enviou batedores, dois homens que foram cavalgando à frente, avistados apenas quando chegavam ao topo de uma rara elevação. Ele levava um apito de prata pendurado no pescoço para chamá-los de volta, caso Hurin dissesse que o rastro se desviara, mas isso não aconteceu. Sul. Sempre sul.
— Chegaremos ao campo de Talidar em três ou quatro dias, a esta velocidade — comentou Ingtar enquanto cavalgavam. — A maior vitória de Artur Asa-de-gavião, quando os Meio-Homens contra ele lideraram os Trollocs até fora da Praga, durou seis dias e seis noites, e, quando acabou, os Trollocs fugiram de volta para a Praga e nunca mais ousaram desafiá-lo. Ele ergueu um monumento ali, em homenagem a essa vitória: uma torre com cem braças de altura. Não deixou que pusessem seu nome nela. Em vez disso, mandou colocarem os nomes de cada homem que tombou em combate e um sol dourado no alto, símbolo de que a Luz havia triunfado sobre a Sombra.
— Eu gostaria de vê-lo — disse Loial. — Nunca ouvi falar desse monumento.
Ingtar ficou em silêncio por um momento e, quando voltou a falar, sua voz era baixa.
— A torre não está mais lá, Construtor. Quando Asa-de-gavião morreu, os que disputaram seu império não podiam suportar a ideia de um monumento à sua vitória, mesmo que não fizesse menção a seu nome. Não restou nada, a não ser o monte onde ela ficava. Em três ou quatro dias, poderemos vê-lo, pelo menos. — Seu tom de voz não permitiu muita conversa depois disso.
Com o sol dourado sobre suas cabeças, eles passaram por uma estrutura quadrada, feita com tijolos de gesso, a cerca de uma milha do caminho. Não era alta, não tinha mais do que dois andares ainda em pé, mas cobria um bom pedaço de chão. Uma antiga atmosfera de abandono pendia sobre os telhados que haviam desaparecido, a não ser por alguns trechos de telhas escuras penduradas em pedaços de vigas. A maior parte do gesso, outrora branco, havia caído, deixando exposto o tijolo escuro e corroído pela ação do tempo. Paredes desmoronadas revelavam no interior pátios e câmaras em decomposição. Arbustos, e até mesmo árvores, cresciam nas rachaduras do que antes haviam sido pátios.
— Um solar — explicou Ingtar. O pouco bom humor que recuperara pareceu desvanecer-se quando olhou para a estrutura. — Quando Harad Dakar ainda estava de pé, imagino que o administrador do solar cultivava o raio de uma légua ao redor desta terra. Talvez tivesse pomares. Os hardanienses adoravam seus pomares.
— Harad Dakar? — indagou Rand, e Ingtar bufou, irritado.
— Ninguém mais aprende história? Harad Dakar, a capital de Hardan. A nação que ficava aqui, por onde agora passamos.
— Eu já vi um mapa antigo — respondeu Rand, com a garganta apertada. — Aprendi sobre as nações que não existem mais. Maredo, Goaban e Caralain. Mas não havia Hardan nele.
— Existiram outras que hoje também já se foram — falou Loial. — Mar Haddon, que hoje é Haddon Mirk, e Almoth. Kintara. A Guerra dos Cem Anos dividiu o império de Artur Asa-de-gavião em muitas nações, grandes e pequenas. As pequenas foram engolidas pelas grandes, ou então se uniram, como Altara e Murandy. “Forçadas a se unir” seria uma expressão melhor do que “se uniram”, suponho.
— Então o que aconteceu com elas? — inquiriu Mat. Rand não notara que Perrin e Mat tinham cavalgado até eles. Estavam na retaguarda, tão longe dele quanto podiam, da última vez que os vira.
— Não conseguiram se manter juntas — respondeu o Ogier. — As plantações fracassaram, ou o comércio fracassou. As pessoas fracassaram. Alguma coisa fracassou em cada caso, e a nação foi morrendo aos poucos. Era comum países vizinhos absorverem as terras das nações que desapareciam, mas esses anexos nunca duravam muito. Com o tempo, a terra acabou abandonada. Algumas aldeias ainda persistem aqui e ali, mas a maioria ficou deserta. Há quase trezentos anos, Harad Dakar finalmente foi abandonada, mas antes mesmo já era uma casca, com um rei que não conseguia controlar o que se passava dentro das muralhas da cidade. Harad Dakar já não existe mais, pelo que sei. E todos os vilarejos e cidades de Hardan se foram. As pedras foram levadas por fazendeiros e aldeães, para uso próprio. A maioria das fazendas e aldeias criadas com elas também já sumiu. Foi o que li, e não vi nada que negasse isso.
— Harad Dakar foi bastante disputada por quase cem anos — disse Ingtar, com amargura. — Por fim, as pessoas partiram. Depois a cidade foi levada embora, pedra por pedra. Tudo desapareceu, e o que não foi levado está desaparecendo. Tudo, em toda parte, desaparece. Quase não há nações que de fato controlem as terras que a firmam possuir no mapa, e quase não há terras que a firmem, hoje, possuir o que possuíam cem anos atrás, em um mapa. Quando a Guerra dos Cem Anos acabou, um homem cavalgava por várias nações da Praga até o Mar das Tempestades. Agora dá para cavalgar por uma vastidão selvagem e sem nação praticamente por toda a terra. Nós, das Terras de Fronteira, temos nossas lutas contra a Praga para nos manter fortes e inteiros. Talvez eles não tenham o que precisam para se manter fortes. Você diz que eles fracassaram, Construtor? Sim, fracassaram, e que nação de pé hoje, inteira, não fracassará amanhã? Estamos sendo varridos da terra, a humanidade. Somos levados como escombros em uma enchente. Quanto tempo ainda temos até que nada mais reste além das Terras de Fronteira? Quanto tempo antes que nós também tombemos e não sobre nada, a não ser Trollocs e Myrddraal, até o Mar das Tempestades?
Houve um silêncio de perplexidade. Nem mesmo Mat ousou quebrá-lo. Ingtar saiu cavalgando, perdido em seus pensamentos sombrios.
Depois de algum tempo, os batedores voltaram a galope, eretos em suas selas, com as lanças retas apontando para o céu.
— Há uma aldeia à frente, milorde. Não fomos vistos, mas ela ica bem no nosso caminho.
Ingtar pareceu pôr de lado seus pensamentos, mas só voltou a falar quando chegaram à crista de uma cordilheira baixa que dava para a aldeia. E, mesmo assim, foi apenas para ordenar uma parada enquanto retirava uma luneta dos alforjes e a erguia para examinar a aldeia.
Rand analisou a aldeia com interesse. Era tão grande quanto o Campo de Emond, embora não tão grande se comparada a alguns dos vilarejos que vira desde que deixara Dois Rios, e muito menos quando comparada às cidades. As casas baixas e recobertas de argila branca pareciam ter grama crescendo em telhados inclinados. Uma dezena de moinhos de vento espalhados pela aldeia giravam, preguiçosos, com os braços compridos e brancos, cobertos de lona, faiscando sob o sol. Uma muralha baixa, da altura do peito, cercava a aldeia, coberta de mato, e do lado de fora havia uma vala grande com o fundo coberto de estacas afiadas. Não havia portão nas partes que viu da muralha, mas supôs que podia facilmente estar escondido por um carrinho ou vagão. Não viu ninguém.
— Não há sequer um cão à vista — observou Ingtar, devolvendo a luneta aos alforjes. — Tem certeza de que não viram vocês? — perguntou aos batedores.
— Não, a menos que tenham a sorte do próprio Tenebroso, milorde — respondeu um dos homens. — Não subimos a crista da cordilheira. Também não vimos ninguém se mover, milorde.
Ingtar assentiu.
— O rastro, Hurin?
Hurin respirou fundo.
— Na direção da aldeia, milorde. Direto até ela, pelo que posso dizer daqui.
— Fiquem bem atentos — ordenou Ingtar, pegando as rédeas. — E não acreditem que sejam amigos só porque sorriem. Se houver alguém lá! — Ele os conduziu na direção da aldeia em passos lentos e estendeu a mão para soltar a espada da bainha.
Rand ouviu os sons de outros atrás de si fazendo a mesma coisa. Depois de um momento, também pegou a sua. Tentar permanecer vivo não era a mesma coisa que tentar ser herói, concluiu.
— O senhor acha que essa gente ajudaria os Amigos das Trevas? — perguntou Perrin, dirigindo-se a Ingtar.
O shienarano demorou a responder.
— Eles não gostam muito do povo de Shienar — disse, por fim. — Acham que deveríamos protegê-los. Nós, ou os cairhienos. Cairhien exigiu a posse desta terra assim que o Rei de Hardan morreu. Exigiram todo o território até Erinin. Mas não conseguiram conservá-la. Desistiram dela há quase cem anos. As poucas pessoas que ainda vivem aqui não têm que se preocupar com Trollocs, assim tão longe ao sul, mas há muitos bandoleiros humanos. É por isso que suas aldeias têm a muralha e a vala. Todas têm. Os campos devem estar ocultos em clareiras ao redor daqui, mas ninguém mora do lado de fora da muralha. Eles jurariam lealdade a qualquer rei que lhes concedesse proteção, no entanto já fazemos tudo o que podemos contra os Trollocs. Por isso eles não gostam de nós. — Quando chegaram à abertura na muralha baixa, ele voltou a dizer: — Fiquem bem atentos!
Todas as ruas davam em uma praça, mas não havia ninguém do lado de fora, nem espiando das janelas. Nem mesmo um cão se movia, sequer uma galinha ciscava. Nada vivo. Portas abertas balançavam, rangendo ao vento, em contraponto ao gemido ritmado dos moinhos de vento. Os cascos dos cavalos soavam altos na rua de terra batida.
— É como na barca — murmurou Hurin — mas diferente. — Ele cavalgava curvado em sua sela, com a cabeça abaixada, como se estivesse tentando se esconder atrás dos próprios ombros. — Houve violência, mas… não sei. Foi ruim aqui. Fede.
— Uno — disse Ingtar —, conduza um destacamento e vasculhe as casas. Se encontrar alguém, leve a mim na praça. Mas não os assuste desta vez. Quero respostas, não gente fugindo.
Ele levou os outros soldados para o centro da aldeia enquanto Uno mandava um grupo de dez desmontar.
Rand hesitou, olhando ao redor. As portas rangendo, os moinhos gemendo e os cascos dos cavalos faziam barulho demais, como se não existisse outro som no mundo. Ele olhou bem para os cavalos. As cortinas em uma janela aberta balançavam do lado de fora da casa. Tudo parecia sem vida. Suspirando, ele desmontou e caminhou até a casa mais próxima. Então parou, encarando a porta.
É só uma porta. Do que você tem medo? Desejou não se sentir como se houvesse algo à sua espera do outro lado. Abriu a porta.
Dentro, havia um aposento bem-arrumado. A mesa estava posta para uma refeição, as cadeiras tinham encosto de ripas e pratos já estavam servidos. Algumas moscas zumbiam sobre tigelas de nabos e ervilhas, outras se arrastavam por um pedaço de carne assada que repousava em sua própria gordura congelada. Havia uma fatia meio cortada, o garfo ainda estava cravado na carne, e o facão, caído sobre a bandeja, como se alguém o tivesse deixado cair. Rand entrou.
Piscou.
Um homem careca e sorridente, usando roupas rústicas, serviu uma fatia de carne em um prato estendido por uma mulher de rosto cansado, mas que também sorria. Ela acrescentou ervilhas e nabos ao prato e o passou para uma das crianças que estavam à mesa. Eram seis crianças, meninos e meninas. Alguns quase crescidos, outros mal tinham tamanho para olhar por cima da mesa. A mulher disse alguma coisa, e a garota que pegou o prato de sua mão riu. O homem começou a cortar mais uma fatia.
De repente, outra garota soltou um grito, apontando para a porta. O homem deixou cair a faca e se virou, então gritou também, com o rosto contorcido de horror, e agarrou uma das crianças. A mulher agarrou outra, e fez gestos desesperados para as outras, mexendo a boca, a lita, sem fazer barulho. Todos saíram correndo na direção de uma porta nos fundos do aposento.
Essa porta se abriu de súbito, e…
Rand piscou.
Ele não conseguia se mover. As moscas que zumbiam acima da mesa faziam ainda mais barulho. Sua respiração formava uma nuvem de vapor na frente da boca.
Rand piscou.
Um homem careca e sorridente, usando roupas rústicas, serviu uma fatia de carne em um prato estendido por uma mulher de rosto cansado, mas que também sorria. Ela acrescentou ervilhas e nabos ao prato e o passou para uma das crianças que estavam à mesa. Eram seis crianças, meninos e meninas. Alguns quase crescidos, outros mal tinham tamanho para olhar por cima da mesa. A mulher disse alguma coisa, e a garota que pegou o prato de sua mão riu. O homem começou a cortar mais uma fatia.
De repente, outra garota soltou um grito, apontando para a porta. O homem deixou cair a faca e se virou, então gritou também, com o rosto contorcido de horror, e agarrou uma das crianças. A mulher agarrou outra, e fez gestos desesperados para as outras, mexendo a boca, a lita, sem fazer barulho. Todos saíram correndo na direção de uma porta nos fundos do aposento.
Essa porta se abriu de súbito, e…
Rand piscou.
Ele lutava, mas seus músculos pareciam congelados. O aposento estava mais frio. Ele queria tremer, mas não conseguia se mexer nem para isso. Moscas se arrastavam por toda a mesa. Procurou o vazio. A luz fraca estava lá, mas ele não se importava. Ele tinha que…
Rand piscou.
Um homem careca e sorridente, usando roupas rústicas, serviu uma fatia de carne em um prato estendido por uma mulher de rosto cansado, mas que também sorria. Ela acrescentou ervilhas e nabos ao prato e o passou para uma das crianças que estavam à mesa. Eram seis crianças, meninos e meninas. Alguns quase crescidos, outros mal tinham tamanho para olhar por cima da mesa. A mulher disse alguma coisa, e a garota que pegou o prato de sua mão riu. O homem começou a cortar mais uma fatia.
De repente, outra garota soltou um grito, apontando para a porta. O homem deixou cair a faca e se virou, então gritou também, com o rosto contorcido de horror, e agarrou uma das crianças. A mulher agarrou outra, e fez gestos desesperados para as outras, mexendo a boca, a lita, sem fazer barulho. Todos saíram correndo na direção de uma porta nos fundos do aposento.
Essa porta se abriu de súbito, e…
Rand piscou.
O aposento estava congelando. Tão frio. Moscas enegreciam a mesa. As paredes eram uma massa ondulante de moscas, o chão, o teto, tudo preto pela quantidade de moscas. Elas se arrastavam em cima de Rand, cobriam-no, se arrastavam sobre seu rosto, seus olhos, dentro de seu nariz, de sua boca. Luz, me ajude. Frio. O zumbido das moscas tinha som de trovão. Frio. O frio penetrava o vazio, rindo dele, encapsulando-o em gelo. Desesperado, ele procurou a luz tremeluzente. Seu estômago dava voltas, mas a luz era morna. Morna. Quente. Ele estava quente.
De repente, estava rasgando… alguma coisa. Ele não sabia o quê, ou como. Teias de aranha feitas de aço. Raios de luar escavados em pedra. Elas desmoronavam ao toque de seus dedos, mas ele sabia que não havia tocado em nada. Elas murchavam e se derretiam com o calor que o atravessava, um calor igual ao de uma forja, um calor como se o mundo pegasse fogo, um calor como…
A visão desapareceu. Ofegante, ele olhou ao redor com os olhos arregalados. Algumas poucas moscas jaziam sobre a carne assada meio cortada na bandeja. Moscas mortas. Seis moscas. Apenas seis. Havia mais nas tigelas, meia dúzia de pontinhos pretos entre as verduras frias. Todas mortas. Ele saiu para a rua, cambaleando.
Mat estava saindo de uma casa do outro lado da rua, balançando a cabeça.
Rand piscou.
— Ninguém lá dentro — disse a Perrin, que ainda estava montado em seu cavalo. — Parece que simplesmente se levantaram no meio do jantar e foram embora.
Um grito veio da praça.
— Encontraram alguma coisa — disse Perrin, metendo os calcanhares nos flancos do cavalo. Mat subiu correndo na sela e foi galopando atrás dele.
Rand montou em Vermelho mais devagar, e o garanhão recuou como se sentisse seu desconforto. Ele olhou de relance para as casas ao cavalgar devagar na direção da praça, mas não conseguia olhar para elas por muito tempo. Mat entrou em uma e nada lhe aconteceu . Ele resolveu não pôr os pés dentro de outra casa daquela aldeia, não importava o que houvesse. Metendo as botas nos flancos de Vermelho, acelerou o passo.
Todos estavam parados como estátuas diante de um grande prédio de portas duplas. Rand não achava que aquilo pudesse ser uma estalagem. Para começar, não tinha nenhuma placa. Talvez fosse um local de reuniões da aldeia. Reuniu-se ao círculo silencioso e começou a olhar na mesma direção que os outros.
Havia um homem com os braços abertos sobre as portas, pregos enormes atravessavam-lhe os punhos e os ombros. Mais pregos haviam sido enfiados em seus olhos, para manter sua cabeça erguida. Sangue seco e escuro descia por suas bochechas, espalhando-se. Arranhões na madeira atrás de suas botas indicavam que ele estava vivo quando aquilo fora feito. Quando começou, pelo menos.
Rand prendeu a respiração. Não era um homem. Aquelas roupas pretas, mais pretas do que o preto, nunca haviam sido vestidas por qualquer humano. O vento balançava uma ponta de seu manto preto atrás do corpo, o que nem sempre acontecia, como ele bem sabia: o vento nem sempre tocava aquelas roupas. Mas nunca houve olhos naquele rosto pálido e sem sangue.
— Myrddraal — disse baixinho, e foi como se sua voz libertasse todas as outras.
Eles começaram a se mover outra vez e a respirar.
— Quem — começou Mat, mas teve de parar para engolir em seco. — Quem poderia ter feito isso com um Desvanecido? — Sua voz saiu aguda no fim da pergunta.
— Não sei — respondeu Ingtar. — Eu não sei. — Ele olhou ao redor, examinando rostos, ou talvez contando para ter certeza de que todos estavam ali. — E não acho que vamos descobrir aqui. Vamos cavalgar. Montem! Hurin, encontre a trilha para sair deste lugar.
— Sim, milorde. Sim. Com prazer. Por aqui, milorde. Eles ainda estão indo para o sul.
Eles saíram cavalgando, deixando o Myrddraal morto onde estava, e o vento balançava seu manto negro. Hurin foi o primeiro a sair da muralha, sem esperar por Ingtar dessa vez, e Rand ia logo atrás dele.