30 Daes Dae’mar

No quarto de Loial e Hurin, Rand olhou pela janela, observando as linhas ordenadas e os terraços de Cairhien, as construções de pedra e os telhados de lajotas. Não conseguiria ver a sala do capítulo dos Iluminadores de lá nem mesmo se as enormes torres e as mansões de grandes lordes não estivessem no caminho, pois as muralhas da cidade o impediriam. Os Iluminadores ainda eram assunto de toda a cidade, mesmo dias depois da noite em que haviam soltado uma única flor noturna no céu, e antes da hora prevista. Havia umas dez versões diferentes sobre o escândalo, desconsiderando-se as variações menores, mas nenhuma se aproximava da verdade.

Rand se virou. Esperava que ninguém tivesse se ferido no incidente, mas até o momento os Iluminadores sequer haviam admitido que houvera um incêndio. Eles mantinham segredo sobre tudo o que ocorria em seu capítulo.

— Eu ico de guarda no próximo turno — falou para Hurin —, assim que voltar.

— Não precisa, milorde. — Hurin fez uma reverência tão profunda quanto a de qualquer cairhieno. — Eu posso ficar. De verdade, milorde não precisa se preocupar.

Rand respirou fundo e Loial e ele se entreolharam. O Ogier se limitou a dar de ombros. O farejador ficava mais formal a cada dia que passavam em Cairhien, mas Loial apenas dissera que os humanos agem de modo estranho com muita frequência.

— Hurin — começou a dizer Rand —, você costumava me chamar de Lorde Rand e fazer reverências toda vez que eu olhava para você. — Eu quero que ele pare de fazer reverências e me chame de Lorde Rand de novo , pensou, admirado. Lorde Rand! Luz, precisamos sair daqui antes que eu comece a querer que ele faça as reverências. — Por favor, sente-se? Só de olhar para você fico cansado.

Hurin ficou de pé, com as costas rígidas, ainda parecendo pronto para fazer tudo o que Rand pedisse. Não se sentou nem relaxou.

— Não seria adequado, milorde. Precisamos mostrar a esses cairhienos que sabemos nos comportar tão bem quanto…

— Quer parar de dizer isso? — gritou Rand.

— Como quiser, milorde.

Rand fez um esforço para não suspirar outra vez.

— Hurin, me desculpe. Não deveria ter gritado com você.

— É seu direito, milorde — respondeu Hurin, com simplicidade. — Se eu desagradá-lo, milorde tem o direito de gritar.

Rand deu um passo na direção do farejador com a intenção de agarrá-lo pelo colarinho e sacudi-lo.

Uma batida na porta que comunicava o quarto com o de Rand fez com que todos no aposento congelassem, mas o rapaz gostou de ver que Hurin não pediu permissão antes de pegar a espada. A lâmina com a marca da garça estava presa à cintura de Rand, que tocou em seu cabo ao se dirigir à porta. Esperou que Loial se sentasse sobre a cama longa, ajeitando as pernas e as barras do casaco para ocultar melhor o baú sob o cobertor debaixo da cama, e então abriu a porta de supetão.

O estalajadeiro estava ali, inquieto e ansioso, estendendo a bandeja para Rand. Nela, havia dois pergaminhos selados.

— Desculpe-me, milorde — disse Cuale, sem fôlego. — Eu não podia esperar até o senhor descer, e não havia ninguém em seu quarto, e… e… Perdoe-me, mas… — Ele sacudiu a bandeja.

Rand agarrou os convites com violência. Já recebera muitos. Não olhou para eles, apenas pegou o estalajadeiro pelo braço e o levou em direção à porta do corredor.

— Mestre Cuale, muito obrigado por todo o trabalho. Queira nos deixar a sós, por favor…

— Mas, milorde — protestou Cuale. — Esses são do…

— Muito obrigado. — Rand empurrou o homem para o corredor e fechou a porta com firmeza. Então jogou os pergaminhos sobre a mesinha. — Ele nunca fez isso antes. Loial, você acha que ele estava ouvindo atrás da porta, antes de bater?

— Você está começando a pensar como esses cairhienos — zombou o Ogier, mas suas orelhas tremeram de modo pensativo, e ele acrescentou: — Mesmo assim, ele é daqui, então poderia muito bem estar ouvindo. Não acho que tenhamos dito nada que ele não devesse escutar.

Rand tentou se lembrar. Nenhum deles mencionara a Trombeta de Valere, Trollocs ou Amigos das Trevas. Quando percebeu que se perguntava o que Cuale poderia deduzir do que disseram, obrigou-se a parar.

— Este lugar está afetando você também — murmurou para si mesmo.

— Milorde? — Hurin pegara os pergaminhos e fitava os selos com os olhos arregalados. — Milorde, esses são do Lorde Balthanes, Grão-trono da Casa Damodred, e… — sua voz ficou mais baixa pelo assombro — do Rei.

Rand os dispensou com um gesto.

— Eles vão para o fogo como os outros. Sem serem abertos.

— Mas, milorde!

— Hurin — explicou Rand, pacientemente —, você e Loial me explicaram esse Grande Jogo. Se eu aceitar qualquer um desses convites, os cairhienos concluirão algo, então vão achar que sou parte da trama de alguém. Se eu não for, eles também vão concluir alguma coisa. Se eu mandar uma resposta, vão procurar significados ocultos nela, e farão o mesmo se eu não responder. E já que metade de Cairhien parece espionar a outra metade, todos sabem o que eu faço. Queimei os primeiros dois e vou queimar esses aqui, assim como todos os outros. — Certo dia, houvera uma pilha de mais de dez pergaminhos que ele jogara na lareira do salão com os selos intactos. — O que quer que eles concluam com isso, pelo menos é o mesmo para todos. Não apoio nem estou contra ninguém em Cairhien.

— Eu tentei lhe dizer — retrucou Loial — que acho que não funciona assim. Os Cairhienos acharão que você está tramando algo, independente do que fizer. Pelo menos é o que o Ancião Haman sempre dizia.

Hurin estendeu os convites selados para Rand como se lhe oferecesse ouro.

— Milorde, este tem o selo pessoal de Galldrian. O selo pessoal, milorde. E este aqui tem o selo pessoal do Lorde Balthanes, que é o homem mais poderoso depois do Rei. Milorde, se queimar esses convites, fará os inimigos mais poderosos que conseguirá em toda a vida. Queimar as cartas funcionou até agora porque as outras Casas estão esperando para ver o que você está tramando, pensando que você deve ter aliados muito poderosos para se arriscar a insultá-las. Mas Lorde Balthanes… e o Rei! Insulte-os, e eles com certeza vão responder à ofensa.

Rand passou as mãos pelos cabelos.

— E se eu recusar os dois?

— Não vai funcionar, milorde. Todas as casas já lhe mandaram convites. Se recusar esses… Bem, pelo menos uma das outras Casas vai deduzir que, se você não é aliado do Rei ou de Balthanes, também pode responder seu insulto de queimar o convite dela. Milorde, ouvi dizer que as Casas de Cairhien usam assassinos agora. Uma facada nas ruas. Uma flecha vinda de um telhado. Veneno em seu vinho.

— Você poderia aceitar ambos — sugeriu Loial. — Sei que não quer, Rand, mas pode até ser divertido passar uma noite na mansão de um Lorde, ou até mesmo no palácio real. Rand, os shienaranos acreditaram em você.

Rand fez uma careta de preocupação. Ele sabia que fora pura sorte os shienaranos pensarem que ele era um lorde, apenas uma coincidência sobre seu nome, um rumor entre os serviçais, e Moiraine e a Amyrlin incentivando tudo. Mas Selene também acreditara. Talvez ela esteja em algum desses lugares.

Hurin balançava a cabeça com força, contudo.

— Construtor, você não conhece o Daes Dae’mar tão bem quanto pensa. Pelo menos não o jeito que se joga em Cairhien hoje em dia. Com a maioria das Casas, isso não importaria. Mesmo quando estão tramando cravar uma faca nas costas umas contra as outras, em público agem como se nada estivesse acontecendo. Mas não essas duas. A Casa Damodred estava no trono até Laman perdê-lo, e eles o querem de volta. O Rei os esmagaria se não fossem quase tão poderosos quanto ele. Você não vai achar maiores rivais do que a Casa Riatin e a Casa Damodred. Se o senhor aceitar os dois convites, eles vão saber assim que enviar as respostas, e os dois vão achar que o senhor é parte de alguma trama do outro. Vão usar a faca e o veneno imediatamente.

— E eu suponho — grunhiu Rand — que, se eu só aceitar um, o outro vai achar que eu sou aliado da Casa do convite que aceitei. — Hurin assentiu. — E eles provavelmente vão tentar me matar para impedir qualquer coisa em que eu esteja envolvido. — Hurin assentiu outra vez. — Então você tem alguma sugestão de como evitar que qualquer um deles queira me matar? — Hurin negou com a cabeça. — Queria não ter queimado os dois primeiros.

— Sim, milorde. Mas não teria feito muita diferença, eu acho. Não importa que convite o senhor tivesse aceitado ou recusado, esses cairhienos ainda buscariam significados ocultos.

Rand estendeu a mão, e Hurin lhe entregou os dois pergaminhos dobrados. Um tinha o selo do touro avançando de Balthanes, e não da árvore e a coroa da Casa Damodred. O outro trazia o cervo de Galldrian. Selos pessoais. Pelo que parecia, ele conseguira atrair o interesse dos círculos mais altos fazendo… absolutamente nada.

— Essa gente é louca — disse, tentando pensar em uma forma de escapar.

— Sim, milorde.

— Vou deixar que me vejam no salão com isso aqui — disse, com cuidado. Qualquer coisa vista no salão ao meio-dia já era notícia em dez casas ao cair da noite, e em todas ao amanhecer. — E não vou romper os selos. Assim vão saber que ainda não respondi. Enquanto estiverem esperando para ver para que lado eu vou, talvez eu consiga ganhar mais alguns dias. Ingtar precisa chegar logo. Precisa mesmo.

— Isso sim é pensar como um cairhieno, milorde — retrucou Hurin, sorrindo.

Rand lhe lançou um olhar azedo, então pôs os pergaminhos no bolso, junto às cartas de Selene.

— Vamos, Loial. Talvez Ingtar tenha chegado.

Quando ele e Loial entraram no salão, nenhum homem ou mulher olhou para Rand. Cuale polia uma bandeja de prata como se sua vida dependesse de deixá-la brilhando. As serviçais corriam de um lado a outro, entre as mesas, como se Rand e o Ogier não existissem. Cada pessoa sentada fitava a própria caneca como se os segredos do poder estivessem no vinho e na cerveja. O silêncio era total.

Depois de um instante, Rand puxou os dois convites do bolso e estudou os selos. Cuale quase deu um salto quando o rapaz foi em direção à porta. Antes que ela se fechasse, ouviu a conversa recomeçar.

Rand andava pela rua tão rápido que Loial nem precisava dar passos curtos para acompanhá-lo.

— Precisamos achar um jeito de sair dessa cidade, Loial. Esse truque com os convites não vai durar mais que dois ou três dias. Se Ingtar não chegar, precisamos ir embora assim mesmo.

— Concordo — respondeu Loial.

— Mas como?

Loial começou a enumerar os problemas com os dedos grossos.

— Fain está lá fora, ou não haveria Trollocs em Portão da Frente. Se sairmos, eles cairão sobre nós assim que estivermos fora das vistas da cidade. Se viajarmos com a comitiva de um mercador, eles certamente vão atacá-lo. Nenhum mercador teria mais do que cinco ou seis guardas, e eles fugiriam assim que vissem um Trolloc. Se soubéssemos quantos Trollocs estão com Fain… ou quantos Amigos das Trevas… Você ajudou a diminuir o número deles. — Ele não mencionou o Trolloc que matara, mas, pela testa franzida e longas sobrancelhas caídas até as bochechas, estava lembrando-se daquilo.

— Não importa quantos ele tenha — retrucou Rand — Dez é tão ruim quanto cem. Acho que não conseguiríamos escapar de novo, se dez Trollocs nos atacassem.

Ele tentou não pensar em como poderia, quem sabe, derrotar dez Trollocs. Afinal, não tinha funcionado quando tentara ajudar Loial.

— Também acho que não conseguiríamos. E acho que não temos dinheiro para uma passagem para muito longe, mas, mesmo que tivéssemos, se tentássemos chegar às docas de Portão da Frente… Bem, Fain deve ter Amigos das Trevas vigiando. Se ele achasse que partiríamos de navio, não creio que se importaria se as pessoas veriam os Trollocs ou não. Mesmo que os enfrentássemos e escapássemos, teríamos que nos explicar para a guarda da cidade, e eles certamente não acreditariam que não sabemos abrir o baú, então…

— Não vamos deixar nenhum cairhieno ver aquele baú, Loial.

O Ogier assentiu.

— Também não conseguiríamos escapar pelas docas da cidade. — As docas da cidade eram reservadas para as barcaças de grãos e os barcos de veraneio de lordes e ladies. Ninguém ia lá sem permissão. Dava para ver as docas lá embaixo, da muralha, mas era uma queda que quebraria até mesmo o pescoço de Loial. O Ogier mexia o polegar como se procurasse um último motivo para então levantá-lo também. — Acho que é uma pena não conseguirmos ir para o Pouso Tsofu. Os Trollocs jamais entrariam em um pouso. Mas acho que não chegaríamos tão longe sem sofrer um ataque.

Rand não respondeu. Haviam chegado à grande guarita logo na entrada, no portão por onde haviam entrado em Cairhien pela primeira vez. Do lado de fora, Portão da Frente se agitava e fervilhava, enquanto uma dupla de guardas os vigiava. Rand pensou ver um homem, vestido no que já haviam sido boas roupas shienaranas, misturar-se à multidão ao vê-lo, mas não conseguiu ter certeza. Havia gente demais usando roupas de muitas terras diferentes, todas andando apressadas. Ele subiu a escada e entrou na parte superior da guarita, passando por guardas com armaduras de placas posicionados dos dois lados da porta.

A grande antessala tinha bancos duros de madeira, para as pessoas com negócios a resolver ali, a maioria esperando com uma paciência humilde, usando as roupas simples e escuras que indicavam os plebeus mais pobres. Havia algumas pessoas de Portão da Frente entre eles, distintas pelo desalinho e pelas cores brilhantes, sem dúvida aguardando permissão para procurar emprego no interior das muralhas.

Rand seguiu direto para a longa mesa no fundo da sala. Havia um único homem, que não era soldado, sentado atrás dela. Usava uma faixa de tecido verde atravessada no casaco. Era um sujeito gordo, cuja própria pele lhe parecia apertada demais, e ajustou os documentos sobre a mesa e mudou a posição do tinteiro duas vezes antes de erguer o olhar para Rand e Loial com um sorriso falso.

— Como posso ajudá-lo, milorde?

— Da mesma forma que eu esperava que pudesse me ajudar ontem — respondeu Rand, com mais paciência do que realmente tinha —, e anteontem, e antes. Lorde Ingtar chegou?

— Lorde Ingtar, milorde?

Rand deu um longo suspiro.

— Lorde Ingtar, da Casa Shinowa, de Shienar. O mesmo homem pelo qual perguntei todos os dias, desde que cheguei.

— Ninguém com este nome entrou na cidade, milorde.

— Você tem certeza? Não precisa nem olhar suas listas?

— Milorde, a lista dos estrangeiros que chegam a Cairhien é compartilhada entre as guaritas ao amanhecer e ao pôr do sol, e eu as examino assim que chegam a mim. Nenhum lorde shienarano entra em Cairhien há muito tempo.

— E Lady Selene? Antes que me pergunte outra vez, não, eu não sei a Casa dela. Já lhe dei seu nome e a descrevi três vezes. Não é o bastante?

O homem ergueu as mãos abertas ao lado do rosto.

— Desculpe-me, milorde. Não saber a Casa dela dificulta muito. — Ele permanecia inexpressivo. Rand se perguntava se ele responderia, mesmo se soubesse.

Um movimento em uma das portas atrás da mesa chamou a atenção de Rand, um homem fizera menção de entrar na antessala, mas dera meia-volta, apressado.

— Talvez o capitão Caldevwin possa me ajudar — disse Rand ao funcionário sentado.

— Capitão Caldevwin, milorde?

— Acabei de vê-lo atrás de você.

— Perdão, milorde. Se houvesse um capitão Caldevwin em minha guarita, eu saberia.

Rand encarou o homem até Loial tocar-lhe o ombro.

— Rand, acho que depois disso podemos ir embora.

— Obrigado pela ajuda — disse Rand, com dificuldade. — Voltarei amanhã.

— É um prazer fazer o que está ao meu alcance — respondeu o homem, com um sorriso falso.

Rand saiu da guarita tão depressa que Loial teve de correr para alcançá-lo na rua.

— Ele estava mentindo, Loial, você sabe. — Ele não desacelerou, apressando-se, em vez disso, como se pudesse queimar sua frustração com o esforço ísico. — Caldevwin estava lá. Ele podia estar mentindo sobre tudo. Ingtar pode já estar aqui, procurando por nós. Aposto que ele também conhece Selene.

— Talvez, Rand. Daes Dae’mar

— Luz! Estou cansado de ouvir falar desse Grande Jogo. Não quero jogá-lo. Não quero ter nada a ver com isso. — Loial andava a seu lado, sem dizer uma palavra. — Eu sei — soltou Rand, por fim. — Eles acham que sou um Lorde, e, em Cairhien mesmo os Lordes de terras estrangeiras são parte do jogo. Queria nunca ter posto este casaco. — Moiraine, pensou, amargo. Ela ainda está me arrumando problemas. Porém, quase na mesma hora, mesmo com relutância, ele admitiu que aquilo dificilmente poderia ser culpa dela. Sempre houvera algum motivo para Rand fingir ser quem não era. Primeiro, para manter o moral de Hurin. Depois, para tentar impressionar Selene. Depois dela, não parecia haver escapatória. Diminuiu o ritmo de seus passos até parar. — Quando Moiraine me deixou partir, achei que as coisas seriam fáceis de novo. Mesmo no encalço da Trombeta, mesmo… mesmo com tudo, eu achei que seria fácil. — Mesmo com saidin dentro da sua cabeça? — Luz, o que eu não daria pra fazer com que tudo voltasse a ser fácil…

Ta’veren — começou Loial.

— Também não quero ouvir falar disso. — Rand voltou a andar, tão rápido quanto antes. — Só quero entregar a adaga a Mat e a Trombeta a Ingtar. — E então o quê? Enlouquecer? Morrer? Se eu morrer antes de enlouquecer, pelo menos não vou ferir mais ninguém. Mas também não quero morrer. Lan pode até falar em Embainhar a Espada, mas eu sou um pastor, não um Guardião. — Se conseguir não tocá-lo — murmurou para si mesmo —, talvez eu possa… Owyn quase conseguiu.

— O que foi, Rand? Não ouvi.

— Nada — respondeu o rapaz, cansado. — Queria que Ingtar chegasse. E Mat. E Perrin.

Andaram um tempo em silêncio, Rand perdido nos próprios pensamentos. O sobrinho de Thom durara quase três anos canalizando apenas quando achava necessário. Se Owyn conseguira limitar a frequência com que canalizava, devia ser possível simplesmente não canalizar, independente de quão sedutor fosse saidin.

— Rand — disse Loial —, tem um incêndio lá na frente.

Rand se livrou daqueles pensamentos indesejados e olhou para o centro da cidade, franzindo a testa. Uma coluna grossa de fumaça negra se elevava acima dos telhados. Não conseguiu ver que construção queimava, mas parecia perto demais da estalagem.

— Amigos das Trevas — disse, olhando para fumaça. — Os Trollocs não podem entrar na cidade sem serem vistos, mas os Amigos das Trevas… Hurin! — Ele começou a correr, e Loial o acompanhou sem dificuldade.

Quanto mais perto chegavam, mais certeza Rand tinha. Até que viraram a última esquina de prédios de pedra e avistaram a estalagem Defensor da Muralha do Dragão, fumaça saindo das janelas mais altas e chamas irrompendo do telhado. Uma multidão se aglomerava na frente da estalagem. Cuale, gritando e pulando, orientava homens que carregavam móveis para a rua. Duas fileiras de homens passavam baldes cheios de água até o interior, tirada de um poço mais à frente na rua, e enviava de volta os baldes vazios. A maior parte das pessoas apenas observava a cena. Uma nova língua de fogo saiu pelo telhado de lajotas, e a multidão soltou um sonoro aaaaah.

Rand abriu caminho pela multidão até o estalajadeiro.

— Onde está Hurin?

— Cuidado com essa mesa! — berrou Cuale. — Não a arranhe! — Ele olhou para Rand e piscou. — Milorde? Quem? Seu serviçal? Não me lembro de vê-lo, milorde. Com certeza saiu. Não deixe esses castiçais caírem, idiota! São de prata! — Cuale saiu para discutir com os homens que retiravam seus pertences da estalagem.

— Hurin não teria saído — disse Loial. — Ele não teria deixado a… — Ele olhou em volta e não terminou a frase. Alguns dos espectadores pareciam achar um Ogier tão interessante quanto o incêndio.

— Eu sei — respondeu Rand, e entrou correndo na estalagem.

De dentro do salão, mal parecia que a estalagem estava em chamas. As duas fileiras de homens se estendiam escada acima, passando os baldes, enquanto outros corriam para carregar o que restava da mobília, mas não havia mais fumaça do que se alguém tivesse queimado algo na cozinha. Quando Rand abriu caminho para o segundo andar, ela começou a aumentar. Subiu a escada tossindo.

As fileiras que passavam os baldes paravam antes do segundo andar, e dois homens na metade da escada atiravam água em direção a um corredor cheio de fumaça.

Um dos homens agarrou o braço de Rand.

— O senhor não pode ir lá em cima, milorde. Está tudo perdido a partir daqui. Ogier, fale com ele.

Foi quando Rand percebeu que Loial o seguira.

— Volte, Loial. Eu vou tirá-lo de lá.

— Você não consegue carregar Hurin e o baú ao mesmo tempo, Rand. — O Ogier deu de ombros. — Além disso, eu não vou deixar meus livros queimarem.

— Então fique abaixado. Mantenha-se abaixo da linha da fumaça. — Rand se abaixou e começou a engatinhar escada acima. O ar perto do chão estava mais limpo. Ainda com fumaça suficiente para fazê-lo tossir, mas era respirável. No entanto, até mesmo o ar parecia escaldante. Ele não conseguia inalar o suficiente pelo nariz. Respirou pela boca e sentiu a língua secar.

Um pouco da água que os homens jogavam caiu nele, encharcando-o. O refresco foi apenas um alívio momentâneo, o calor voltou logo em seguida. Rand continuou, determinado, ciente de que Loial estava atrás de si apenas por causa da tosse do Ogier.

Uma parede do corredor estava quase toda em chamas, e o chão perto dela já começara a soltar filetes de fumaça que se juntavam à nuvem que pairava sobre eles. Rand ficou feliz por não conseguir ver o que havia acima da fumaça. Os estalos sinistros já diziam o bastante.

A porta para o quarto de Hurin ainda não pegara fogo, mas estava quente o suficiente para que Rand precisasse de duas tentativas antes de conseguir abri-la. A primeira coisa que viu foi Hurin, caído no chão. Ele rastejou até o farejador e o ergueu. Havia um calombo do tamanho de uma ameixa na lateral de sua cabeça.

Hurin abriu os olhos desfocados.

— Lorde Rand? — murmurou debilmente. — … bateram à porta… achei que fossem mais conv… — Os olhos dele reviraram. Rand tentou sentir o pulso e suspirou de alívio ao perceber uma batida fraca.

— Rand… — Loial tossiu. Estava ao lado da cama, com a coberta levantada, revelando as tábuas nuas embaixo. O baú se fora.

Acima da fumaça, o teto estalou e pedaços de madeira em chamas caíram no chão.

Rand disse:

— Pegue seus livros. Eu levo Hurin. Rápido! — Ele começou a erguer o farejador desacordado apoiando-o nos ombros, mas Loial segurou Hurin.

— O livros terão que queimar, Rand. Você não pode carregá-lo e rastejar, e não vai conseguir chegar até a escada se ficar em pé. O Ogier jogou Hurin nas costas largas, com os braços e pernas pendendo dos dois lados. O teto estalou alto. — Precisamos correr, Rand.

— Vá, Loial. Eu vou atrás.

O Ogier se arrastou para o corredor levando o farejador, e Rand foi atrás dele. Então parou, olhando por cima do ombro para a porta que comunicava os dois quartos. O estandarte ainda estava lá. O estandarte do Dragão. Que queime, pensou, mas outro pensamento veio em resposta, como se tivesse ouvido Moiraine falar. Sua vida pode depender dele. Ela ainda está tentando me usar. Sua vida pode depender dele . Aes Sedai nunca mentem.

Com um gemido, ele rolou pelo chão e abriu a porta do outro quarto com um chute.

Seu quarto era uma massa de chamas. A cama era uma fogueira, e trilhas de fogo já atravessavam o chão. Não daria para se arrastar naquilo. Levantando-se, entrou depressa e agachado, encolhendo-se com o calor, tossindo, engasgando. Seu casaco úmido fumegava. Um lado do guarda-roupa já incendiava. Ele abriu a porta depressa. Seus alforjes estavam ali, ainda protegidos do fogo. Uma das laterais estava estufada com o estandarte de Lews Therin Thelamon, e o estojo de madeira da lauta estava guardado ao lado da bagagem. Por um instante, ele hesitou. Eu ainda posso deixá-lo queimar.

O teto gemeu. Ele agarrou os alforjes e o estojo da lauta e se atirou de volta pela porta, caindo de joelhos enquanto as vigas em chamas desabavam no ponto onde ele estivera. Arrastando o fardo, ele seguiu agachado pelo corredor. O chão estremeceu com a queda de mais vigas.

Os homens com os baldes não estavam mais lá quando ele chegou à escada. Ele praticamente escorregou pelo último lance, levantou e correu pelo prédio já vazio até a rua. A multidão o encarou, ao vê-lo com o rosto enegrecido e o casaco coberto de fuligem, mas Rand cambaleou até onde Loial recostara Hurin na parede de uma casa do outro lado da rua. Uma mulher da multidão limpava o rosto do farejador com um pano, mas os olhos dele ainda estavam fechados, e a respiração, ofegante.

— Tem alguma Sabedoria por aqui? — indagou Rand. — Ele precisa de ajuda. — A mulher olhou para ele, sem compreender, e o rapaz tentou se lembrar de todos os outros nomes pelos quais ouvira chamarem as mulheres que seriam Sabedorias em Dois Rios. — Uma Sábia? Uma mulher que vocês talvez chamem de Mãe? Uma mulher que conheça de ervas e cura?

— Eu sou uma Leitora, se é o que você quer dizer — respondeu a mulher —, mas tudo que posso fazer por este aqui é deixá-lo confortável. Algo se quebrou dentro da cabeça dele, infelizmente.

— Rand! É você mesmo!

Rand olhou, estupefato. Era Mat, vindo a cavalo pelo meio da multidão com o arco atravessado às costas. Um Mat de rosto pálido e abatido, mas ainda assim Mat, e exibindo um sorriso, ainda que fraco. E atrás dele vinha Perrin, com os olhos amarelos brilhando ao fogo e atraindo tantos olhares quanto o incêndio, e Ingtar, desmontando, com um casaco de colarinho alto em vez de armadura, mas ainda com o cabo da espada despontando atrás do ombro.

Rand sentiu um calafrio percorrer o corpo.

— Tarde demais — disse. — Vocês chegaram tarde demais. — Então sentou-se na rua e começou a rir.

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