Um tumulto organizado imperava no pátio externo quando Rand finalmente chegou, trazendo seus alforjes e o embrulho com a harpa e a flauta. A posição do sol indicava que era quase meio-dia. Homens andavam, apressados, ao redor dos cavalos, apertando bem as fivelas das selas e os fardos, e conversando em voz alta. Outros corriam trazendo embrulhos de mantimentos extras, levavam água para os homens que trabalhavam ou apenas corriam para buscar algo que acabavam de lembrar que precisariam. Mas todos pareciam saber exatamente o que faziam e para onde iam. As passarelas da guarda e as varandas dos arqueiros estavam, outra vez, cheias, e a empolgação era palpável no ar da manhã. Cascos batiam nas pedras do calçamento. Um dos cavalos de carga começou a escoicear e os homens do estábulo correram para acalmá-lo. O cheiro de cavalos era forte. O manto de Rand quase se balançava à brisa que fazia as bandeiras do falcão ondularem nas torres, mas seu arco, preso às costas, o segurava.
Do outro lado dos portões abertos, vinham os sons dos lanceiros e arqueiros da Amyrlin, em formação na praça. Eles tinham dado a volta, marchando, por um portão lateral. Um dos trombeteiros testou seu instrumento.
Alguns dos Guardiões olharam de soslaio para Rand quando o rapaz atravessou o pátio, e algumas sobrancelhas se ergueram ao notarem a espada com a marca da garça, mas nenhum deles disse nada. Metade dos guardiões vestia aqueles mantos incômodos de se olhar. Mandarb, o garanhão de Lan, estava ali, alto, negro e de olhos ferozes, mas o homem não, assim como nenhuma das Aes Sedai, nenhuma das mulheres. A graciosa égua branca de Moiraine, Aldieb, estava ao lado do garanhão.
O garanhão baio de Rand o esperava com o outro grupo, do outro lado do pátio, onde já estavam montados Ingtar, um porta-estandarte que levava sua Coruja Cinzenta e vinte homens em armaduras, cujas lanças tinham pontas de aço de dois pés de comprimento. As barras dos elmos cobriam seus rostos, e tabardos dourados com o Falcão Negro bordado no peito escondiam suas placas e cotas de malha. Apenas o elmo de Ingtar tinha cimeira, em formato de lua crescente e começando acima da sobrancelha, com as pontas arrepiadas para cima. Rand reconheceu alguns dos homens. Uno, que tinha a língua afiada, uma cicatriz comprida que cortava o rosto e apenas um olho. E também Ragan e Masema. Além de outros com quem ele trocara algumas palavras ou jogara as pedras. Ragan acenou para ele, e Uno o cumprimentou balançando a cabeça, mas Masema não foi o único a lhe lançar um olhar frio e virar as costas. Os cavalos de carga ficaram ali, calmos, sacudindo os rabos.
O grande baio se mexeu, inquieto, enquanto Rand amarrava os alforjes e a sacola atrás da sela de cepilho alto. Ele pôs o pé no estribo e murmurou:
— Calma, Vermelho. — Apesar dessas palavras, quando sentou na sela, Rand deixou o garanhão gastar um pouco da energia que acumulara no estábulo.
Para a surpresa de Rand, Loial veio cavalgando dos estábulos e se reuniu ao grupo. O cavalo peludo do Ogier era tão grande e pesado quanto um garanhão de primeira qualidade de Dhurran. Perto dele, todos os outros cavalos pareciam ter o tamanho de Bela, mas, com seu cavaleiro na sela, o animal parecia quase um pônei.
Loial não carregava arma alguma, pelo que Rand podia ver, e o rapaz nunca ouvira falar de um Ogier portando armas. O pouso era proteção suficiente para eles. E Loial tinha suas prioridades, suas próprias ideias do que era necessário para uma jornada. Os bolsos de seu casaco comprido estavam estufados de um modo revelador, e seus alforjes tinham marcas quadradas de livros.
O Ogier parou seu cavalo um pouco mais adiante e olhou para Rand, com as orelhas peludas tremelicando, incertas.
— Não sabia que você viria — comentou Rand. — Achava que já estava cansado de viajar conosco. Desta vez, não dá para dizer quanto tempo passaremos na jornada ou para onde iremos.
As orelhas de Loial se ergueram um pouco.
— Também não havia como dizer da primeira vez em que o conheci. Além do mais, o que me interessava na época ainda me interessa agora. Não posso deixar passar a chance de ver a história ser tecida ao redor de um ta’veren. E de ajudar a encontrar a Trombeta…
Mat e Perrin vieram cavalgando atrás de Loial e pararam, hesitantes. Mat parecia ter leves olheiras de cansaço, mas seu rosto tinha uma cor saudável.
— Mat — disse Rand. — Desculpe pelo que disse. Perrin, eu não quis dizer aquilo. Estava sendo idiota.
Mat apenas o olhou de relance, então sacudiu a cabeça e murmurou para Perrin algo que Rand não conseguiu ouvir. Mat trazia apenas seu arco e aljava, mas Perrin levava também seu machado, uma grande meia-lua equilibrada por uma ponteira grossa, preso no cinturão.
— Mat? Perrin? Sério, eu não… — Os dois cavalgaram na direção de Ingtar.
— Isso não é um casaco de viagem, Rand — comentou Loial.
Rand olhou para os espinhos dourados que subiam pela manga rubra e fez uma careta. Não é à toa que Mat e Perrin ainda pensam que estou me sentindo importante. Ao voltar para o quarto, descobriu que tudo já fora embrulhado e enviado. Todos os casacos simples que ganhara estavam com os cavalos de carga, disseram os serviçais, e os casacos que restaram no armário eram tão elaborados quanto o que usava no momento. Seus alforjes não continham muitas roupas, a não ser algumas camisas, meias de lã e um par extra de calças. Pelo menos ele colocara o alfinete de águia vermelha no bolso. Lan lhe dera aquilo de presente, afinal.
— Vou trocar de roupa hoje à noite, quando pararmos — resmungou. Então, respirou fundo. — Loial, eu lhe disse coisas que não deveria ter dito, espero que me perdoe. Você tem todo o direito de estar irritado comigo, mas espero que não esteja.
Loial sorriu, e suas orelhas se levantaram. Ele chegou seu cavalo mais para perto.
— Eu digo coisas inoportunas o tempo todo. Os Anciões sempre dizem que falo uma hora antes de pensar.
De repente, Lan surgiu ao lado do estribo de Rand, vestindo a armadura verde-acinzentada que o fazia praticamente desaparecer na floresta ou na escuridão.
— Preciso falar com você, pastor. — Ele olhou para Loial. — Sozinho, por gentileza, Construtor.
Loial assentiu e se afastou em seu grande cavalo.
— Não sei se deveria ouvi-lo — respondeu Rand. — Estas roupas finas e todas aquelas coisas que você falou não me ajudaram muito.
— Quando você não pode ter uma grande vitória, pastor, aprenda a aceitar as pequenas. Se fez com que eles pensassem em você como mais que um garoto de fazenda fácil de manipular, então obteve uma pequena vitória. Agora cale a boca e ouça. Só tenho tempo para mais uma lição, a mais difícil. Embainhar a Espada.
— Você passou uma hora, toda manhã, me obrigando a não fazer outra coisa que não fosse puxar esta maldita espada e colocá-la de volta na bainha. De pé, sentado, deitado. Acho que consigo colocá-la de volta na bainha sem me cortar.
— Eu disse para ouvir, pastor — rugiu o Guardião. — Chegará o momento em que você precisará atingir um objetivo a qualquer custo. Pode ser durante um ataque ou uma defesa. E a única maneira será embainhar a espada em seu próprio corpo.
— Isso é loucura — disse Rand. — Por que eu faria…?
O Guardião o interrompeu.
— Você saberá quando chegar a hora, pastor, quando o preço valer a pena e não lhe restar outra escolha. Isto se chama Embainhar a Espada. Lembre-se.
A Amyrlin surgiu, atravessando o pátio cheio de gente a passos largos, com Leane, carregando seu cajado, e Lorde Agelmar ao lado. Mesmo usando um casaco de veludo verde, o Senhor de Fal Dara não parecia deslocado entre tantos homens de armadura. Ainda não havia sinal das outras Aes Sedai. Quando passaram por Rand, ele ouviu parte da conversa.
— Mas, Mãe — protestava Agelmar. — A senhora não teve tempo para descansar da jornada até aqui. Fique pelo menos mais alguns dias. Prometo que lhe oferecerei um banquete esta noite, um banquete como a senhora dificilmente verá em Tar Valon.
A Amyrlin negou com a cabeça, sem parar de caminhar.
— Não posso, Agelmar. Você sabe que eu ficaria se pudesse. Não tinha planos de ficar por muito tempo, e questões urgentes exigem minha presença na Torre Branca. Eu deveria estar lá agora.
— Mãe, é uma vergonha para mim que a senhora chegue em um dia e parta no seguinte. Prometo-lhe, não haverá repetição da noite passada. Tripliquei a guarda nos portões da cidade, assim como na fortaleza. Mandei virem malabaristas da cidade, e há um bardo chegando de Mos Shirare. Ora, o Rei Easar deve estar a caminho, vindo de Fal Moran. Mandei notícias assim que…
As vozes foram sumindo quando eles atravessaram o pátio, engolidas pelo burburinho dos preparativos. A Amyrlin sequer olhou na direção de Rand.
Quando Rand procurou Lan, o Guardião já havia ido, e não estava mais à vista. Loial voltou com seu cavalo para perto dele.
— É um homem di ícil de agarrar ou manter por perto, não é mesmo? Não está aqui, depois está, então some, e você não o vê nem chegar nem partir.
Embainhar a Espada. Rand estremeceu. Os Guardiões devem ser loucos.
O Guardião com o qual a Amyrlin estava falando pulou na sela de repente. Ele já estava galopando depressa antes mesmo de chegar aos grandes portões. Ela ficou ali parada, observando-o partir, e sua postura parecia exigir que ele fosse mais rápido.
— Para onde ele vai com tanta pressa? — perguntou-se Rand em voz alta.
— Ouvi dizer — comentou Loial — que ela estava mandando alguém partir hoje, para chegar depressa a Arad Doman. Há notícias de algum problema na Planície de Almoth, e o Trono de Amyrlin quer saber exatamente o que é. O que não entendo é: por que agora? Pelo que ouvi, os rumores desse problema vieram de Tar Valon com as Aes Sedai.
Rand sentiu um calafrio. O pai de Egwene tinha um grande mapa, lá na sua terra, um mapa que Rand examinara mais de uma vez e com o qual sonhara antes de descobrir como são os sonhos, quando se realizaram. O mapa era velho, mostrava algumas terras e nações que os mercadores de fora diziam não existir mais, no entanto, a Planície de Almoth estava marcada, encostada na Ponta de Toman. Nos encontraremos outra vez na Ponta de Toman . Era do outro lado do mundo que conhecia, no Oceano de Aryth.
— Não tem nada a ver conosco — murmurou. — Nada a ver comigo.
Loial pareceu não ouvir. Esfregando a lateral do nariz com um dedo que mais parecia uma salsicha, o Ogier olhava para o portão por onde o Guardião havia desaparecido.
— Se queria saber a verdade, por que não mandou alguém antes de deixar Tar Valon? Mas vocês, humanos, são sempre bruscos e facilmente instigados, ficam pulando por aí e gritando. — Suas orelhas se levantaram de vergonha. — Me desculpe mesmo, Rand. Você entendeu o que eu quis dizer com falar antes de pensar. Eu mesmo sou ousado e facilmente instigado às vezes, como você bem sabe!
Rand riu. Foi uma risada fraca, mas foi bom ter alguma coisa da qual rir.
— Se vivêssemos tanto quanto você, Ogier, talvez fôssemos mais tranquilos. — Loial tinha noventa anos de idade, mas, pelos padrões dos Ogier, não era velho o bastante para sair do pouso sozinho. O fato de ele ter saído mesmo assim era prova, Loial insistia, de sua ousadia. Se aquele era um Ogier facilmente instigado, Rand achava que a maioria deles devia ser feita de pedra.
— Talvez — disse Loial, em tom de quem re fletia —, mas vocês, humanos, fazem tanto com suas vidas. Nós não fazemos nada, a não ser nos recolher em nossos pousos. O plantio dos bosques e até mesmo as construções foram feitos antes do fim do Longo Exílio. — Eram os bosques que Loial adorava, não as cidades que os homens lembravam de os Ogier terem construído. Eram os bosques, plantados para lembrarem os Construtores Ogier dos pousos, que Loial deixara seu lar para visitar. — Desde que encontramos nosso caminho de volta para os pousos, nós… — Sua voz foi sumindo quando a Amyrlin se aproximou.
Ingtar e os outros homens se mexeram em suas selas, preparando-se para desmontar e se ajoelhar, mas ela fez um gesto para impedi-los. Leane estava a seu lado, com Agelmar um passo atrás. Pela expressão lúgubre em seu rosto, ele parecia ter desistido de tentar convencê-la a ficar mais tempo.
A Amyrlin olhou um a um antes de falar. Seu olhar não se demorou em Rand mais do que em qualquer outro.
— Que a paz favoreça sua espada, Lorde Ingtar — disse, por fim. — Glória aos Construtores, Loial Kiseran!
— A senhora nos honra, Mãe. Possa a paz favorecer Tar Valon! — Ingtar se curvou em sua sela, e todos os outros shienaranos o imitaram.
— Toda a honra a Tar Valon — respondeu Loial, fazendo uma mesura.
Apenas Rand e seus dois amigos, do outro lado do grupo, permaneceram eretos. Ele ficou se perguntando o que ela lhes dissera. A testa franzida de Leane era para os três, e os olhos de Agelmar se arregalaram, mas a Amyrlin pareceu não reparar.
— Vocês cavalgam em busca da Trombeta de Valere — disse ela. — E a esperança do mundo vai com vocês. A Trombeta não pode cair em mãos erradas, especialmente nas mãos de Amigos das Trevas. Aqueles que atenderem a seu chamado virão em auxílio daquele que portá-la, não importa quem seja, e obedecem a ela, não à Luz.
Os homens que escutavam se agitaram. Todos acreditavam que os heróis que viriam do túmulo lutariam pela Luz. Mas se lutassem pela Sombra…
A Amyrlin continuou a falar, mas Rand não estava mais escutando. Os olhos invisíveis estavam de volta, e os pelos de sua nuca se arrepiaram. Ele olhou para as varandas dos arqueiros acima, que davam para o pátio, lotadas, e para as fileiras de gente que se amontoava ao longo das passarelas da guarda, no topo das muralhas. Em algum lugar entre eles, estivera o par de olhos que o seguira sem ser visto. O olhar se agarrava a ele como óleo sujo. Não pode ser um Desvanecido, não aqui. Então quem? Ou o quê? Ele se virou em sua sela, conduzindo Vermelho, à procura. O cavalo baio começou a se agitar outra vez.
De repente, alguma coisa relampejou em frente ao rosto de Rand. Um homem que passava atrás da Amyrlin gritou e caiu, com uma flecha preta despontando em seu flanco. A Amyrlin permaneceu calma, olhando para o rasgo em sua manga, onde o sangue lentamente manchava a seda cinza.
Uma mulher gritou, e o pátio subitamente ecoou com clamores e gritos. As pessoas nas muralhas se agitaram, iradas, e cada homem no pátio puxou sua espada. Até mesmo Rand, que ficou surpreso ao perceber o que fizera.
Agelmar ergueu sua lâmina para o céu.
— Encontrem-no! — urrou. — Tragam-no para mim! — Seu rosto foi de vermelho a branco quando viu o sangue na manga da Amyrlin. Ele caiu de joelhos, com a cabeça abaixada. — Perdão, Mãe. Fracassei em protegê-la. É uma vergonha.
— Bobagem, Agelmar — respondeu a Amyrlin. — Leane, pare de se preocupar comigo e cuide daquele homem. Já tive cortes piores mais de uma vez limpando peixe, e ele precisa de ajuda agora. Agelmar, levante-se! Levante-se, Lorde de Fal Dara! Você não fracassou e não tem motivos para se sentir envergonhado. No ano passado, na Torre Branca, com minhas guardas em cada portão e os Guardiões ao meu redor, um homem chegou a cinco passos de mim com uma faca. Um Manto-branco, sem dúvida, embora eu não pudesse provar. Por favor, levante-se, ou eu é que ficarei envergonhada. — Quando Agelmar se ergueu, lentamente, ela tocou a manga cortada com as pontas dos dedos. — Um péssimo disparo para um arqueiro dos Mantos-brancos, ou mesmo para um Amigo das Trevas. — Seus olhos cruzaram com os de Rand, de relance. — Se é que ele estava mirando em mim. — Seu olhar se desviou dele antes que o rapaz pudesse ler qualquer coisa em sua expressão, mas de repente teve vontade de desmontar e se esconder.
A flecha não era para ela, e ela sabe disso.
Leane se levantou de onde estava ajoelhada. Alguém cobrira o rosto do homem que fora atingido com um manto.
— Ele morreu, Mãe. — Ela parecia cansada. — Já estava morto ao tocar o chão. Mesmo que eu estivesse ao lado dele…
— Você fez o que pôde, Filha. A morte não pode ser Curada.
Agelmar se aproximou.
— Mãe, se há assassinos dos Mantos-brancos ou Amigos das Trevas por aqui, a senhora precisa permitir que eu envie homens para escoltá-la. Pelo menos até o rio: eu não conseguiria continuar a viver se algo lhe acontecer em Shienar. Por favor, retorne à ala das mulheres. Eu protegerei aquele lugar com minha vida até que a senhora esteja pronta para partir.
— Fique em paz — respondeu ela. — Este arranhão não me atrasará um instante sequer. Sim, sim, aceitarei seus homens até o rio com prazer, se você insiste. Mas não permitirei que isso atrase Lorde Ingtar nem um minuto. Cada segundo conta até que a Trombeta seja encontrada outra vez. Com sua permissão, Lorde Agelmar, posso dar ordens aos sacramentados?
Ele curvou a cabeça, concordando. Naquele instante, ele lhe teria dado Fal Dara, se ela pedisse.
A Amyrlin se virou para Ingtar e os homens se reuniram ao redor dele. Ela não tornou a olhar para Rand, que ficou surpreso ao vê-la sorrir.
— Aposto que Illian não oferece uma despedida tão animada aos que partem em sua Grande Caçada pela Trombeta — disse. — No entanto, a sua é a verdadeira. Vocês são poucos, então podem viajar rápido, mas são suficientes para fazer o que é preciso. Eu encarrego você, Lorde Ingtar da Casa Shinowa, encarrego todos vocês de encontrar a Trombeta de Valere e não permitir que nada impeça seu caminho.
Ingtar tirou a espada das costas e beijou a lâmina.
— Juro pela minha vida e minha alma, pela minha Casa e honra, Mãe.
— Então vá!
Ingtar girou o cavalo na direção do portão.
Rand meteu os calcanhares nos flancos de Vermelho e saiu galopando atrás da coluna, que já passava pelos portões.
Sem saber o que havia ocorrido lá dentro, os lanceiros e arqueiros da Amyrlin estavam de pé, protegendo o caminho dos portões até a cidade propriamente dita, ostentando a Chama de Tar Valon em seus peitos. Os tocadores de tambor e trombeta aguardavam perto dos portões, prontos para começar a tocar quando ela partisse. Por trás das fileiras de homens em armaduras, as pessoas lotavam a praça em frente à fortaleza. Algumas saudavam aos gritos o estandarte de Ingtar, outras, sem dúvida, acharam que era o começo da partida do Trono de Amyrlin. Um rugido crescente acompanhou Rand ao longo da praça.
Ele alcançou Ingtar onde casas de beirais baixos e lojas se enfileiravam de cada lado, e mais pessoas se aglomeravam ao longo da rua de pavimento de pedras. Algumas também gritavam, animadas. Mat e Perrin cavalgavam na frente da coluna, com Ingtar e Loial, mas reduziram o ritmo e ficaram para trás quando Rand se reuniu a eles. Como vou pedir desculpas se eles não querem ficar perto de mim por tempo suficiente para que eu diga qualquer coisa? Que me queime, ele não parece estar morrendo!
— Changu e Nidao se foram — disse Ingtar, bruscamente. Sua voz estava fria e zangada, mas também abalada. — Contamos cada cabeça na fortaleza, viva ou morta, ontem à noite, e voltamos a fazê-lo hoje de manhã. Eles são os únicos que não foram encontrados.
— Changu estava de guarda no calabouço ontem — informou Rand, devagar.
— Nidao também. Eles estavam no segundo turno. Sempre ficavam juntos, mesmo que tivessem que trocar com alguém ou trabalhar mais horas. Não estavam de guarda quando aconteceu, mas… Eles lutaram na Garganta de Tarwin, há um mês, e salvaram Lorde Agelmar quando seu cavalo caiu e ele foi cercado por Trollocs. Agora isso. Amigos das Trevas. — Ele respirou bem fundo. — Tudo está desmoronando.
Um homem a cavalo abriu caminho por entre a multidão, ao longo da rua, e se juntou ao grupo, atrás de Ingtar. Era um homem da cidade, a julgar por suas roupas, magro, com o rosto enrugado e os cabelos grisalhos compridos. Uma sacola e garrafas d’água estavam penduradas atrás de sua sela, e uma espada curta e uma adaga quebra-espada dentada pendiam de seu cinturão, junto com um porrete.
Ingtar percebeu que Rand observava o estranho.
— Este é Hurin, nosso farejador. Não havia necessidade de deixar as Aes Sedai saberem a respeito dele. Não que o que ele faça seja errado, entenda. O Rei mantém um farejador em Fal Moran, e existe outro em Ankor Dail. É só que as Aes Sedai raramente gostam do que não entendem, e por ele ser homem… Não tem nada a ver com o Poder, é claro. Aaaah! Explique você, Hurin.
— Sim, Lorde Ingtar — concordou o homem. Ele fez uma mesura profunda para Rand, de sua sela. — Me sinto honrado em servi-lo, milorde.
— Me chame de Rand. — O rapaz estendeu a mão e, depois de um instante, Hurin sorriu e a apertou.
— Como desejar, milorde Rand. Lorde Ingtar e Lorde Kajin são mais informais, e Lorde Agelmar também, é claro, mas na cidade dizem que o senhor é um príncipe do sul, e alguns lordes estrangeiros têm regras rígidas para cada homem, em suas terras.
— Eu não sou um lorde. — Pelo menos me livrarei disso agora . — Sou apenas Rand.
Hurin piscou.
— Como desejar, milor… hã… Rand. Bem, sou um farejador. Neste domingo, vai completar quatro anos. Nunca tinha ouvido falar em algo assim até me tornar um, mas ouvi dizer que existem outros como eu. Tudo começou devagar, eu sentia cheiros ruins onde ninguém mais sentia, e foi aumentando. Levei um ano para perceber o que era. Eu conseguia sentir o cheiro da violência, da morte e do sofrimento. Sentia o cheiro onde essas coisas aconteciam. Farejava o rastro daqueles que a praticavam. Cada rastro é diferente, então não há chance de confundi-los. Lorde Ingtar ouviu falar disso e me colocou a seu serviço, para servir à justiça do Rei.
— Você sente o cheiro de violência? — perguntou Rand. Ele não pôde evitar olhar para o nariz do homem. Era um nariz comum, nem grande nem pequeno. — Quer dizer que consegue realmente seguir alguém que, digamos, tenha matado outro homem? Pelo cheiro?
— Eu posso, sim, milor… hã… Rand. O cheiro passa com o tempo, mas, quanto pior a violência, mais tempo dura. Ah, eu consigo sentir o cheiro de um campo de batalha de dez anos atrás, embora os rastros dos homens que lá lutaram já tenham desaparecido. Lá em cima, perto da Praga, os rastros dos Trollocs raramente desaparecem. Trollocs só sabem matar e ferir. Mas uma luta em uma taverna que resulte em, digamos, um braço quebrado… esse cheiro some em horas.
— Entendo por que não queria que as Aes Sedai descobrissem.
— Ah, Lorde Ingtar estava certo quanto às Aes Sedai, que a Luz as ilumine… hã… Rand. Encontrei uma em Cairhien, certa vez. Era uma Ajah Marrom, mas juro que achei que fosse Vermelha, antes de ela me soltar. A mulher me prendeu por um mês, tentando descobrir como eu fazia isso. Não gostava de não saber. Ela ficava resmungando: “É antigo ou novo?” E me encarava tanto que até você pensaria que eu estava usando o Poder Único. Ela quase me fez pensar que estava. Mas não enlouqueci, e não fazia nada. Só cheirava.
Rand não pôde deixar de se lembrar de Moiraine. Antigas barreiras se enfraquecem. Nestes tempos, muitas coisas estão se dissolvendo e se quebrando. Coisas antigas voltam a ca minhar, enquanto outras, novas, nascem. Este pode ser o fim de uma Era. Ele estremeceu.
— Então rastrearemos com seu nariz os que pegaram a Trombeta.
Ingtar assentiu. Hurin sorriu, orgulhoso, e disse:
— É o que faremos, mi… hã… Rand. Certa vez, segui um assassino até Cairhien. E outro até Maradon, para trazê-los perante a justiça do Rei. — Seu sorriso desapareceu, e ele pareceu preocupado. — Mas este é o pior de todos. Assassinato cheira mal, e o rastro de um assassino fede, mas este cheiro… — Franziu o nariz. — Havia homens envolvidos, ontem à noite. Devem ser Amigos das Trevas, mas não é possível distinguir um pelo cheiro. Estou seguindo os Trollocs e os Meio-Homem. E algo ainda pior. — Sua voz foi sumindo, e ele franziu a testa, passando a resmungar para si mesmo, mas Rand ainda podia ouvir. — Algo ainda pior, que a Luz me ajude!
Eles chegaram aos portões da cidade, e, pouco depois das muralhas, Hurin levantou o rosto para a brisa. Suas narinas se dilataram, e ele arfou, enojado.
— Por ali, milorde Ingtar. — Ele apontou para o sul.
Ingtar pareceu surpreso.
— Não na direção da Praga?
— Não, Lorde Ingtar. Blergh! — Hurin limpou a boca na manga. — Quase consigo sentir o gosto deles. Sul, eles foram para o sul.
— O Trono de Amyrlin estava certo, então — comentou Ingtar, devagar — Uma mulher grande e sábia que merece coisa melhor do que eu para servi-la. Siga o rastro, Hurin.
Rand se virou e olhou na direção dos portões, seguindo a rua com os olhos até a fortaleza. Torceu para que Egwene estivesse bem. Nynaeve vai cuidar dela. Talvez seja melhor assim: um corte limpo, feito tão rápido que só se percebe depois.
Ele cavalgou para o sul atrás de Ingtar e do estandarte da Coruja Cinza. O vento aumentava, e ele sentia frio nas costas, apesar do sol. Pensou ter ouvido a risada no vento, leve e zombeteira.
A lua crescente iluminava as ruas úmidas e escuras na noite de Illian, que ainda ecoavam o barulho das comemorações do dia. Em apenas alguns dias, a Grande Caçada pela Trombeta teria início, com toda pompa e cerimônia que a tradição requeria, que se a firmava datar da Era das Lendas. As festividades pelos Caçadores se estenderia até o Banquete de Teven, com suas famosas competições e prêmios para os menestréis. O maior prêmio de todos, como sempre, seria pela melhor interpretação de A Grande Caçada pela Trombeta.
Naquela noite, os menestréis se apresentavam nos palácios e mansões da cidade, onde os poderosos se divertiam, e Caçadores chegavam de todas as nações, para depois tentarem encontrar, se não a Trombeta de Valere, pelo menos a imortalidade em canção e história. Eles teriam música e dança, e também ventiladores e gelo para aliviar o primeiro calor de verdade do ano. Mas a folia também tomava as ruas, naquela noite quente e abafada, iluminada pelo luar. Todo dia seria de festa até a Caçada partir, assim como toda noite.
As pessoas passavam correndo por Bayle Domon, usando máscaras e fantasias bizarras e elaboradas, muitas mostrando pele demais. Corriam gritando e cantando, em grupos de dez ou então em pares espalhados, dando risinhos e agarrando uns aos outros. Depois passaram mais vinte, em um grupo barulhento. Fogos de arti ício brilhavam no céu, explosões de ouro e prata no fundo negro. Na cidade, havia quase tantos Iluminadores quanto menestréis.
Domon não ligava muito para os fogos de arti ício ou para a Caçada. Ele ia ao encontro de homens que achava que talvez quisessem matá-lo.
Ele cruzou a Ponte das Flores, que atravessava um dos muitos canais da cidade, e entrou no Bairro Perfumado, o distrito portuário de Illian. O canal cheirava a um número excessivo de penicos e não havia sinais de que algum dia tivesse existido uma flor perto daquela ponte. O bairro tinha cheiro do cânhamo e do piche dos estaleiros e das docas e da lama acre do porto. Um odor que ficava mais forte com o ar quente, que parecia estar quase úmido o bastante para ser possível bebê-lo. Domon respirava com dificuldade. Apesar de ter nascido ali, sempre se surpreendia com o calor do início do verão illianense quando voltava das terras do norte.
Levava um pequeno porrete em uma das mãos; a outra repousava sobre o cabo da espada curta que muitas vezes usara para defender de salteadores o convés de seu navio mercante. Não eram poucos os que estavam à espreita naquelas noites de alegria, em que os ganhos eram muitos e a maioria das pessoas havia bebido bastante vinho.
Entretanto, ele era um homem de ombros largos e musculoso, e ninguém que saía em busca de um pouco de ouro o achava rico o bastante, com seu casaco de corte simples, para se arriscar a enfrentar seu tamanho e seu porrete. Os poucos que o olhavam de perto, quando ele passava por uma luz que se derramava de alguma janela, recuavam até que estivesse longe. Cabelos escuros pendendo até os ombros e uma barba comprida, que deixava o lábio superior à mostra, emolduravam um rosto redondo. Mas aquele rosto nunca fora suave, e agora tinha uma expressão tão lúgubre que parecia que o homem estava disposto a derrubar uma parede para passar. Tinha homens a encontrar e não estava feliz com isso.
Mais foliões passaram correndo, cantando desa finados, as palavras emboladas pelo vinho. “A Trombeta de Valere” é minha velha avó!, pensou Domon, irritado. Quero é saber do meu navio. E da minha vida, que a Sorte me espicace!
Ele entrou em uma estalagem cuja placa mostrava um grande texugo de listras brancas dançando nas patas traseiras e um homem carregando uma pá de prata. O nome do lugar era Acalmando o Texugo, embora nem mesmo Nieda Sidoro, a estalajadeira, soubesse o significado. Sempre existira uma estalagem com aquele nome em Illian.
O salão estava quieto e bem iluminado, com o chão coberto de serragem e um músico dedilhando suavemente uma sabiola de doze cordas, entoando uma das tristes canções do Povo do Mar. Nieda não permitia bagunça em seu estabelecimento, e seu sobrinho, Bili, era grande o bastante para carregar um homem para fora com apenas uma das mãos. Marinheiros, trabalhadores das docas e estivadores iam até o Texugo para uma bebida e talvez uma conversa, um jogo de pedras ou dardos. O salão estava um pouco cheio, pois até mesmo homens que gostavam de quietude haviam sido atraídos pela festança. O burburinho não era tão alto, mas Domon ouviu menções à Caçada, ao falso Dragão que os murandianos haviam capturado e também ao que os tairenos estavam caçando por Haddon Mirk. Parecia haver dúvidas se seria preferível a morte do falso Dragão ou dos tairenos.
Domon fez uma careta. Falsos Dragões! Que a Sorte me espicace, não tem nenhum lugar seguro hoje em dia! Mas ele não se importava de verdade com falsos Dragões, não mais do que com a Caçada.
A proprietária atarracada, com os cabelos presos para trás, estava enxugando uma caneca, de olho em seu estabelecimento. Ela não parou o que estava fazendo nem o encarou, mas sua pálpebra esquerda caiu, e seus olhos se voltaram na direção de três homens em uma mesa no canto. Eles estavam quietos até mesmo para os padrões do Texugo, quase sombrios. As capas de veludo em forma de sino e os casacos escuros com listras prateadas, escarlates e douradas, bordadas sobre o peito se destacavam das roupas simples dos outros frequentadores.
Domon suspirou e se sentou sozinho em uma mesa no canto. Gente de Cairhien, desta vez . Ele pegou uma caneca de cerveja marrom com uma serviçal e bebeu um longo gole. Quando abaixou a caneca, os três homens de casaco listrado estavam de pé ao lado de sua mesa. Ele fez um gesto discreto, para avisar a Nieda que não precisava de Bili.
— Capitão Domon? — Era di ícil distinguir qualquer um dos três, mas o que falou dava a impressão de ser o líder. Eles não pareciam estar armados e, apesar de suas roupas caras, pareciam não precisar de armas. E seus olhos eram muito duros, naqueles rostos tão comuns. — Capitão Bayle Domon, do Espuma?
Domon assentiu brevemente, con firmando, e os três se sentaram sem esperar convite. O mesmo homem continuou falando, enquanto os outros dois apenas observavam, quase sem piscar. Guardas, pensou Domon, apesar dessas roupas caras. Quem deve ser esse aí, para andar com guardas?
— Capitão Domon, temos uma pessoa que precisa ser levada de Mayene a Illian.
— O Espuma é uma embarcação fluvial — interrompeu Domon. — O calado é curto, no caso, e ela não tem quilha para águas profundas. — Não chegava a ser verdade, mas era o suficiente para gente da terra. Pelo menos não é como Tear. Eles estão ficando espertos por lá.
O homem não pareceu perturbado pela interrupção.
— Ouvimos dizer que o senhor iria desistir do comércio fluvial.
— Talvez sim, talvez nem. Ainda nem decidi. — Mas ele já tinha se decidido. Não navegaria rio acima, de volta às Terras de Fronteira, nem que fosse para levar toda a seda dos fundilhos dos tairenos. Peles da Saldaea e pimenta-de-gelo não valiam a pena, e isso não tinha nada a ver com o falso Dragão que ouvira falar que andava por lá. No entanto, se perguntou, mais uma vez, como alguém poderia saber. Ele não falara disso com ninguém, mas os outros também sabiam.
— O senhor pode navegar até a costa de Mayene com tranquilidade. Capitão, o senhor certamente estaria disposto a navegar ao longo da linha da costa por mil marcos de ouro.
Domon arregalou os olhos sem querer. Era quatro vezes mais do que a última oferta que havia recebido, que já fora o bastante para deixar qualquer homem boquiaberto.
— No caso, quem vocês querem que eu leve, por tudo isso? A Primeira de Mayene em pessoa? Quer dizer, então, que Tear finalmente conseguiu fazer a Primeira abdicar?
— O senhor não precisa de nomes, Capitão. — O homem colocou uma grande bolsa de couro e um pergaminho selado em cima da mesa. A bolsa tilintou, cheia, quando ele a empurrou pela mesa. O grande círculo de cera vermelha que mantinha o pergaminho selado exibia o Sol Nascente de Cairhien, com seus muitos raios. — Duzentos marcos adiantados. Por mil, acho que o senhor não precisa de nomes. Entregue isto, com o selo intacto, ao Capitão do Porto de Mayene, e ele lhe dará mais trezentos marcos e seu passageiro. Eu pagarei o restante quando o passageiro for trazido para cá, desde que você não tenha tentado descobrir a identidade da pessoa.
Domon respirou bem fundo. Sorte, a viagem já valeria mesmo que eu não recebesse uma moeda além do que tem nesse saco! E mil marcos era mais dinheiro do que conseguiria em três anos. Ele suspeitava que, se sondasse um pouco mais, haveria outras pistas, apenas pistas, de que a viagem envolvia negócios escusos entre o Conselho dos Nove de Illian e a Primeira de Mayene. A cidade-estado da Primeira era província de Tear em tudo, menos no nome, e ela, sem dúvida, gostaria de contar com a ajuda de Illian. E muitos illianenses diziam que já estava na hora de outra guerra, que Tear já tinha mais do que uma fatia justa do comércio com o Mar das Tempestades. Era uma armadilha na qual ele provavelmente cairia, se já não tivesse recebido três idênticas no último mês.
Ele estendeu a mão para pegar a bolsa, e o homem que havia sido o único a falar agarrou seu pulso. Domon o olhou, irritado, mas ele apenas devolveu o olhar, imperturbável.
— O senhor deve içar velas o mais rápido possível, Capitão.
— Ao nascer do dia — grunhiu Domon, ao que o homem assentiu e soltou sua mão.
— Ao nascer do dia, então, Capitão Domon. Lembre-se: a discrição mantém um homem vivo para gastar seu dinheiro.
Domon assistiu aos três partirem, então lançou um olhar amargo para a bolsa e o pergaminho sobre a mesa à sua frente. Alguém queria que ele fosse para o leste. Tear ou Mayene, não importava, contanto que fosse para leste. Ele achou que sabia quem queria aquilo. Mas, ao mesmo tempo, não tenho pistas de quem seja . Quem poderia saber se alguém era ou não um Amigo das Trevas? Mas ele sabia que os Amigos das Trevas estavam atrás dele mesmo antes de deixar Marabon para descer o rio. Amigos das Trevas e Trollocs. Disso, ele tinha certeza. A verdadeira pergunta, aquela que ele não tinha nem vestígio de resposta, era: por quê?
— Problemas, Bayle? — perguntou Nieda. — Parece que você viu um Trolloc. — Ela deu uma risadinha aguda, um som improvável para uma mulher daquele tamanho. Assim como a maioria das pessoas que nunca estiveram nas Terras de Fronteira, Nieda não acreditava em Trollocs. Ele tentara contar a verdade a ela, e ela gostava de suas histórias, mas achava que eram mentiras. Ela também não acreditava em neve.
— Problema nenhum, Nieda. — Ele abriu a bolsa de couro, tirou uma moeda sem olhar e jogou-a para ela. — Bebidas para todos até isso aí acabar, depois lhe dou outra.
Nieda olhou para a moeda, surpresa.
— Uma marca de Tar Valon! Está negociando com as bruxas, agora, Bayle?
— Nem faria isso — respondeu, rouco.
Ela mordeu a moeda e a fez desaparecer mais do que depressa em seu cinturão largo.
— Bem, é mesmo ouro. E suspeito que as bruxas não são lá tão más como as pintam, de qualquer jeito. Não poderia dizer o mesmo de muitos homens. Conheço um cambista que trabalha com estas. E não precisa me dar outra, com tão poucos fregueses esta noite. Mais cerveja, Bayle?
Ele assentiu, entorpecido, embora sua caneca ainda estivesse quase cheia, e a mulher saiu, rebolando. Ela era sua amiga e não falaria do que acabara de ver. Ele ficou ali sentado, olhando para a bolsa de couro. Mais uma caneca chegou antes de ele conseguir reunir coragem suficiente para abri-la e analisar as moedas em seu interior. Mexeu nelas com um dedo calejado. Marcos de ouro reluziram à luz dos lampiões, cada um exibindo a maldita Chama de Tar Valon. Amarrou o cordão da bolsa depressa. Eram moedas perigosas. Uma ou duas poderiam passar, mas tantas juntas fariam a maioria das pessoas pensar exatamente o mesmo que Nieda. Havia Filhos da Luz na cidade e, embora não houvesse uma lei em Illian proibindo negócios com Aes Sedai, ele nunca chegaria a um magistrado se os Mantos-brancos descobrissem. Aqueles homens tinham encontrado um meio de garantir que ele não simplesmente pegasse o ouro e ficasse em Illian.
Enquanto estava sentado ali, re fletindo, Yarin Maeldan, o magricelo pensativo que parecia uma cegonha e era seu imediato no Espuma, entrou no Texugo com as sobrancelhas quase tocando a ponta do nariz comprido e parou ao lado da mesa do capitão.
— Carn morreu, Capitão.
Domon o encarou, franzindo a testa. Mais três de seus homens haviam sido mortos, um para cada vez que ele recusara uma comissão que o levaria para leste. Os magistrados nada fizeram. As ruas eram perigosas à noite, diziam, e os marinheiros eram durões e briguentos. Magistrados raramente se preocupavam com o que acontecia no Bairro Perfumado, contanto que nenhum cidadão respeitável se machucasse.
— Mas desta vez eu aceitei — murmurou.
— Não é só isso, Capitão — continuou Yarin. — Eles torturaram Carn com facas, como se quisessem que ele lhes contasse algo. E mais alguns homens tentaram entrar escondidos no Espuma menos de uma hora depois. Os guardas da doca os puseram pra correr. É a terceira vez em dez dias, nunca vi ratos de cais tão persistentes. Eles gostam de esperar o alerta passar e tentar de novo. E alguém entrou no meu quarto, no Golfinho Prateado, na noite passada. Levaram alguma prata, então achei que fossem ladrões, mas deixaram a minha fivela de cinturão, aquela incrustada com granadas e pedra-da-lua, que estava bem à vista. O que está acontecendo, Capitão? Os homens estão com medo, e até eu estou um pouco nervoso.
Domon se levantou.
— Reúna a tripulação, Yarin. Encontre todos e diga-lhes que o Espuma vai içar velas assim que tiverem chegado a bordo homens o bastante para manejá-lo. — En fiando o pergaminho no bolso do casaco, ele agarrou o saco de ouro e empurrou seu imediato porta afora, à sua frente. — Reúna-os, Yarin, pois qualquer homem que nem chegar a tempo vai ser largado na beira do cais.
Domon deu um empurrão em Yarin, para fazer com que ele começasse a correr, então partiu na direção das docas. Até mesmo ladrõezinhos sorrateiros que ouviram o tilintar da bolsa que ele carregava mantiveram distância, pois agora ele caminhava como um homem prestes a cometer um assassinato.
Já havia tripulantes se apressando a bordo do Espuma quando ele chegou, e ainda mais desciam descalços o cais de pedra. Eles não sabiam que o que o capitão temia o estava perseguindo, ou sequer que havia algo perseguindo Domon, mas sabiam que ele lucrava bastante e que, como os homens de Illian, dividia os lucros com a tripulação.
O Espuma tinha oitenta pés de comprimento, com dois mastros, e uma boa largura de boca, com espaço para carga no convés e nos porões. Apesar do que Domon dissera aos cairhienos — se é que eram de Cairhien —, achava que o navio conseguiria se aguentar em mar aberto. O Mar das Tempestades era mais tranquilo no verão.
— Vai ter que aguentar — murmurou, então desceu para sua cabine.
Jogou o saco de ouro na cama bem encaixada no casco, como tudo o mais na cabine austera, e pegou o pergaminho. Acendendo uma lanterna pendurada em um elo giratório na viga do teto, ele estudou o documento selado, virando-o como se pudesse ler o conteúdo sem abri-lo. Alguém bateu à porta, o que o fez franzir a testa.
— Entre.
Yarin meteu a cabeça lá dentro.
— Estão todos a bordo, menos os três que não consegui encontrar, Capitão. Espalhei a notícia por todas as tavernas, buracos e salões de jogatina do bairro. Eles estarão a bordo antes que haja luz suficiente para começarmos a navegar rio acima.
— O Espuma vai sair agora mesmo. Para o mar! — Domon interrompeu os protestos de Yarin sobre luz, marés e sobre o Espuma não ser construído para o mar aberto. — Agora! Sim, o Espuma pode passar pelos bancos de areia na maré baixa. Você nem esqueceu como navegar com as estrelas, certo? Leve o barco para o mar, Yarin. Leve o barco agora e volte a falar comigo apenas quando estivermos além do quebra-mar.
Seu imediato hesitou: Domon nunca deixava uma parte di ícil da navegação passar sem ele lá em cima no convés, dando ordens, e conduzir o Espuma de noite seria bem di ícil, baixo calado ou não. Então assentiu e desapareceu. Em instantes, as ordens gritadas de Yarin o som de pés descalços pisando com força no convés acima puderam ser ouvidas da cabine de Domon. Ele os ignorou, mesmo quando o navio balançou com força, pegando a maré.
Por fim, ele levantou a camisa do lampião e pôs uma faca na chama. A lâmina começou a soltar fumaça quando o óleo a queimou, mas, antes que o metal ficasse vermelho, ele empurrou os mapas para fora do caminho e achatou bem o pergaminho sobre a mesa, passando cuidadosamente o aço quente sob a cera que o selava. A dobra de cima se levantou.
Era um documento simples, sem preâmbulo ou saudações, mas fez o suor brotar de sua testa quase imediatamente.
O portador desta missiva é um Amigo das Trevas procurado em Cairhien por assassinato e outros crimes terríveis, e o menor deles é o roubo de Nossa Pessoa. Solicitamos a prisão deste homem e a apreensão de tudo o que estiver em sua posse, mesmo as coisas mais insignificantes. Nosso representante virá buscar o que ele roubou de Nós. Que tudo o que ele possui, a não ser pelo que reclamarmos, fique consigo como recompensa por tê-lo apanhado! Que o vil malfeitor seja enforcado imediatamente, para que sua vilania oriunda da Sombra não continue a macular a Luz!
Em cera vermelha fina, abaixo da assinatura, estava o selo de Sol Nascente de Cairhien e das Cinco Estrelas da Casa Riatin.
— Defensor da Muralha do Dragão é a minha avó — resmungou Domon. — Sim, que direito esse homem tem de usar esse título, hoje em dia?
Ele examinou os selos e a assinatura minuciosamente, segurando o documento perto do lampião, com o nariz praticamente roçando o pergaminho, mas não conseguiu encontrar nenhuma falha, e também não fazia ideia de como era a letra de Galladrian. Se o próprio Rei não tivesse assinado, suspeitava de que quem o havia feito conseguira uma boa imitação da caligra ia de Galladrian. De qualquer maneira, não fazia a menor diferença. Em Tear, a letra seria instantaneamente condenatória nas mãos de um homem de Illian. Ou em Mayene, que sofria forte influência tairena. Não havia guerra agora, e a circulação entre os portos era livre, mas havia pouca simpatia pelos illianenses em Tear, e a recíproca era verdadeira. Seria pior com uma desculpa desse tipo.
Por um momento, ele pensou em queimar o pergaminho no lampião, pois era algo perigoso para se ter, fosse em Tear, Illian ou qualquer lugar que ele pudesse imaginar. Mas, depois de algum tempo, enfiou-o com cuidado em um nicho secreto atrás de sua mesa, oculto por um painel que só ele sabia como abrir.
— Tudo o que estiver em minha posse, hein?
Ele colecionava objetos antigos, o máximo que conseguia vivendo a bordo. O que não podia comprar, por ser muito caro ou muito grande, colecionava por observação e memória. Todos aqueles resquícios de tempos passados, aquelas maravilhas espalhadas pelo mundo que o levaram a entrar em um navio, quando ainda era um garoto. Ele acrescentara quatro delas à sua coleção em Maradon, na última viagem, e foi então que a perseguição dos Amigos das Trevas começou. E dos Trollocs também, durante um tempo. Ele ouvira dizer que a Ponte Branca fora completamente destruída por um incêndio logo depois de ter saído de lá, e havia rumores sobre a presença de Myrddraal, assim como de Trollocs. Foi aquilo, tudo aquilo junto, que o convenceu de que não estava imaginando coisas, que o fez ficar alerta quando aquela primeira comissão suspeita foi oferecida. Era dinheiro demais para uma simples viagem a Tear, e uma história muito fraca como motivo.
Procurando bem dentro de seu baú, ele colocou na mesa os objetos que havia comprado em Maradon. Um bastão de luz remanescente da Era das Lendas, era o que se dizia. Decerto ninguém sabia mais como fazê-los. Eram caros, e mais di íceis de se encontrar do que um magistrado honesto. Parecia um bastão de vidro comum, mais grosso que seu polegar e quase tão comprido quanto seu antebraço. Porém, quando ele o segurava, o objeto emitia um brilho tão intenso quanto o de uma lanterna. Bastões de luz também se quebravam como vidro, e ele quase perdera o Espuma no incêndio provocado pelo primeiro que havia comprado. Havia também uma pequena escultura de mar fim envelhecido, representando um homem com uma espada nas mãos. O sujeito que a vendera afirmou que, se o segurasse por tempo suficiente, a pessoa começaria a sentir calor. Mas Domon nunca sentira nada, e nem os membros da tripulação que ele havia permitido segurá-lo. Mas era velho, e, para Domon, isso bastava. Outro objeto era a caveira de um gato grande como um leão e tão velha que tinha virado pedra. Mas nenhum leão jamais tivera dentes tão compridos, quase presas, com um pé de comprimento. Por último, havia um disco grosso do tamanho da mão de um homem, metade branco e metade preto, com uma linha sinuosa separando as cores. O dono da loja em Maradon dissera que era da Era das Lendas, sem acreditar muito nisso. Domon pechinchara apenas um pouco antes de comprar, porque havia reconhecido algo que passara despercebido ao lojista: o símbolo antigo das Aes Sedai, anterior à Ruptura do Mundo. Não era bem uma coisa segura para se ter, mas também não era uma oportunidade que um homem fascinado por antiguidades pudesse deixar passar.
E era feito de pedra-do-coração. O vendedor nunca teria ousado acrescentar à descrição algo que ele achava ser falso. Nenhum vendedor da frente de rio de Maradon teria condições financeiras de adquirir sequer um pedaço de cuendillar.
O disco era duro e liso e não tinha valor algum, a não ser pela idade, mas Domon temia que era aquilo que seus perseguidores queriam. Bastões de luz, esculturas de mar fim e até mesmo ossos se transformavam em pedra, tudo isso ele já vira outras vezes, em outros lugares. Mas, mesmo sabendo o que eles queriam — se é que sabia —, ainda não fazia ideia do porquê. E não sabia mais com certeza quem eram seus perseguidores. Marcos de Tar Valon e um antigo símbolo das Aes Sedai. Ele passou a mão pelos lábios: o gosto do medo era amargo em sua língua.
Ouviu-se uma batida à porta. Ele colocou o disco na mesa e puxou um mapa aberto sobre tudo o que estava em cima dela.
— Entre.
Yarin entrou.
— Estamos além do quebra-mar, Capitão.
Domon sentiu um lampejo de surpresa, depois veio a raiva de si mesmo. Ele jamais deveria ter ficado tão envolvido com algo a ponto de não sentir o Espuma atravessando as ondas.
— Siga para oeste, Yarin. Cuide disso.
— Ebou Dar, Capitão?
Não é longe o bastante. Faltam umas quinhentas léguas.
— Vamos colocar distância suficiente para eu pegar mapas e encher os barris d’água, depois seguiremos rumo oeste.
— Oeste, Capitão? Tremalking? O Povo do Mar não lida muito bem com comerciantes que não sejam deles próprios.
— O Oceano de Aryth, Yarin. Muito comércio entre Tarabon e Arad Doman, e praticamente ninguém desses lugares para nos deixar preocupados. Eles no caso nem gostam muito do mar, ouvi dizer. E todas aquelas cidadezinhas na ponta de Toman, que se mantêm livres de qualquer nação. Sim, podemos até mesmo pegar peles de Saldae e pimentas-de-gelo trazidas até Bandar Eban.
Yarin sacudiu a cabeça devagar. Ele sempre via o lado ruim, mas era um bom marinheiro.
— Peles e pimentas custarão mais do que a subida do rio até elas, Capitão. E ouvi dizer que está havendo algum tipo de guerra. Se Tarabon e Arad Doman estão lutando, pode ser que não haja comércio. Duvido que dê para ganhar dinheiro só com as cidades na Ponta de Toman, mesmo que estejam a salvo. Falme é a maior, e não é muito grande.
— Os tarabonianos e os domaneses sempre brigaram pela Planície de Almoth e pela Ponta de Toman. Mesmo que a coisa tenha chegado às vias de fato, um homem cuidadoso sempre consegue encontrar comércio. Vá para oeste, Yarin.
Quando Yarin subiu, Domon mais do que depressa colocou o disco preto e branco no nicho e guardou as outras coisas no fundo do baú. Sejam Amigos das Trevas ou Aes Sedai, não vou pelo caminho que querem que eu siga. Que a Sorte me espicace, não mesmo!
Sentindo-se seguro pela primeira vez em meses, Domon subiu para o convés enquanto o Espuma era inclinado para aproveitar o vento e virar a proa para oeste, rumo ao mar escuro da noite.