12 Tecido no Padrão

Egwene correu atrás de Nynaeve, em direção ao grupo de Aes Sedai que cercava o palanquim de cavalos do Trono de Amyrlin. Seu desejo de saber o que provocara o tumulto em Fal Dara pesava mais até do que sua preocupação por Rand. Por ora, ele estava além de seu alcance. Bela, sua égua felpuda, estava com os cavalos das Aes Sedai, assim como a montaria de Nynaeve.

Os Guardiões, com as mãos nos cabos das espadas e os olhos atentos, formavam um círculo de aço ao redor das Aes Sedai e do palanquim. Criavam uma ilha de relativa calma no pátio, onde soldados shienaranos ainda corriam entre os habitantes horrorizados da fortaleza. Egwene abriu caminho ao lado de Nynaeve, e as duas foram praticamente ignoradas depois de um único olhar severo dos Guardiões. Todos sabiam que elas partiriam com a Amyrlin. A menina ouviu o suficiente dos murmúrios da multidão para saber que uma flecha fora disparada, aparentemente de lugar nenhum, por um arqueiro que ainda não fora encontrado.

Egwene parou, com os olhos arregalados, chocada demais até mesmo para se dar conta de que estava cercada por Aes Sedai. Um atentado contra a vida do Trono de Amyrlin. Aquilo era impensável.

A Amyrlin estava sentada em seu palanquim, com as cortinas abertas. O rasgo manchado de sangue em sua manga atraía todos os olhares. A mulher encarava Lorde Agelmar.

— Você encontrará o arqueiro ou não, meu filho. De qualquer jeito, meu trabalho em Tar Valon é tão urgente quanto o de Ingtar em sua jornada. Partirei agora.

— Mas, Mãe — protestou Agelmar —, este atentado contra sua vida muda tudo. Ainda não sabemos quem enviou o homem, ou por quê. Espere mais uma hora, e eu terei o arqueiro e as resposta para a senhora.

A Amyrlin soltou uma gargalhada sem alegria.

— Você vai precisar de uma isca mais apetitosa ou de redes melhores para apanhar esse peixe, meu filho. Quando conseguir pegar o homem, já será tarde demais para partirmos. Há muita gente que gostaria de me ver morta para que eu me preocupe tanto com isso. Pode me mandar notícias do que encontrar, se encontrar algo. — Seu olhar passeou pelas torres que davam para o pátio e pelas rampas e varandas dos arqueiros, ainda cheios de gente, embora agora em silêncio. A flecha deveria ter vindo de um daqueles lugares. — Acho que esse arqueiro já fugiu de Fal Dara.

— Mas, Mãe…

A mulher no palanquim o interrompeu com um gesto brusco, definitivo. Nem mesmo o Lorde de Fal Dara podia pressionar o Trono de Amyrlin tanto assim. O olhar dela acabou se detendo sobre Egwene e Nynaeve; um olhar penetrante que, para Egwene, parecia ver tudo que ela gostaria de manter em segredo. Egwene deu um passo para trás, então se recompôs e fez uma mesura, perguntando-se se aquilo era o mais adequado. Ninguém lhe explicara o protocolo de apresentação ao Trono de Amyrlin. Nynaeve manteve as costas eretas e retribuiu o olhar firme da Amyrlin, mas buscou sua mão e a apertou com a mesma força com que Egwene apertou a dela.

— Então estas são as suas duas, Moiraine — comentou a Amyrlin. Moiraine fez um gesto mínimo com a cabeça, concordando, e as outras Aes Sedai se viraram para olhar as duas mulheres de Campo de Emond. Egwene engoliu em seco. Todas elas tinham o aspecto de quem sabia coisas, coisas que outras pessoas desconheciam, e não ajudava ter certeza de que aquilo era verdade. — Sim, eu sinto uma leve fagulha em cada uma. Mas o que essas fagulhas acenderão? Eis a questão, não é mesmo?

A boca de Egwene estava seca como pó. Ela já vira Mestre Padwhin, o carpinteiro de sua terra, olhar para as ferramentas de modo muito semelhante àquele com que a Amyrlin olhava para elas. Essa aqui tem este propósito, a outra, aquele.

De repente, a Amyrlin falou:

— Está na hora de partirmos. Aos cavalos. Lorde Agelmar e eu podemos dizer o que precisa ser dito sem vocês todas aí paradas, abestalhadas, como noviças em dia de folga. Aos cavalos!

Ao seu comando, os Guardiões se espalharam em direção às suas montarias, ainda desconfiados, e todas as Aes Sedai, exceto Leane, afastaram-se em silêncio do palanquim, em direção a seus cavalos. Quando Egwene e Nynaeve se viraram para obedecer, um serviçal apareceu ao lado de Lorde Agelmar com um cálice de prata. Agelmar o aceitou com a boca ligeiramente retorcida de insatisfação.

— Com este cálice da minha mão, Mãe, aceite meu desejo de que faça uma boa viagem neste dia, e em todos…

Egwene perdeu tudo o mais que foi dito entre os dois enquanto montava Bela. Quando deu palmadinhas na égua felpuda e ajeitou suas saias, o palanquim já se dirigia aos portões abertos, com os cavalos que o levavam avançando sem guia nem rédea. Leane cavalgava ao lado do palanquim, com o cajado apoiado no estribo. Egwene e Nynaeve conduziram suas montarias na mesma direção, atrás do restante das Aes Sedai.

Urros e gritos animados das multidões que se alinhavam nas ruas da cidade saudaram a procissão, praticamente abafando o trovão dos tamborileiros e a música dos trombeteiros. Guardiões lideravam a coluna, com o estandarte da Chama Branca ondulando, e montavam guarda ao redor das Aes Sedai, mantendo aquela multidão a distância. Arqueiros e piqueiros, com a Chama estampada nos peitos, seguiam atrás em fileiras bem organizadas. As trombetas se calaram quando a coluna saiu da cidade fazendo uma curva e virou para o sul, mas o som da multidão lá dentro ainda os acompanhava. Egwene olhava para trás a todo instante, até que as árvores e as colinas esconderam as muralhas e as torres de Fal Dara.

Nynaeve, que cavalgava ao seu lado, balançou a cabeça.

— Rand vai ficar bem. Ele está com Lorde Ingtar e mais vinte piqueiros. De qualquer modo, não há nada que você possa fazer a esse respeito. Nada que nenhuma de nós possa fazer. — Ela olhou na direção de Moiraine, a égua branca impecável da Aes Sedai e o grande garanhão negro de Lan formavam um par estranho. — Pelo menos, não por enquanto.

A coluna começava a seguir para oeste, e não avançava depressa. Mesmo os soldados da infantaria, com meia armadura, não conseguiam manter um passo rápido por entre as colinas de Shienar. Ainda assim, andavam o mais rápido que podiam.

Só montavam acampamento tarde da noite, pois a Amyrlin não permitia que parassem até que só restasse luz o suficiente para montar as tendas, cúpulas brancas de teto achatado com altura para apenas uma pessoa ficar de pé. Cada par de Aes Sedai das mesmas Ajah tinha uma, ao passo que a Amyrlin e a Curadora tinham tendas próprias. Moiraine dividia a tenda com suas duas irmãs Azuis. Os soldados dormiam no chão de seu próprio acampamento, e os Guardiões se enrolavam em seus mantos, perto das tendas das Aes Sedai a quem estavam vinculados. A tenda das irmãs Vermelhas parecia estranhamente solitária, sem nenhum Guardião, ao passo que a das Verdes parecia quase festiva, pois as duas Aes Sedai com frequência ficavam sentadas do lado de fora até bem depois de escurecer, conversando com os quatro Guardiões que haviam trazido.

Lan visitou uma vez a tenda que Egwene dividia com Nynaeve, levando a Sabedoria para um lugar não muito afastado. A menina espiou pela abertura da tenda. Não podia ouvir o que diziam, mas Nynaeve acabou explodindo de raiva e voltou pisando duro para se enrolar em seus cobertores, recusando-se a falar. Egwene achou que suas bochechas estavam molhadas, embora a mulher escondesse o rosto com uma ponta do cobertor. Lan ficou parado na escuridão, encarando a tenda por muito tempo antes de ir embora. Depois disso, não tornou a aparecer.

Moiraine não chegou perto delas, apenas as cumprimentava com a cabeça ao passar. Quando estava acordada, parecia estar sempre conversando com as outras Aes Sedai, todas, menos as irmãs Vermelhas, puxando-as de lado uma a uma enquanto cavalgavam. A Amyrlin permitiu poucas paradas para descansar, e costumavam ser curtas.

— Talvez ela não tenha mais tempo para nós — comentou Egwene, com tristeza. Moiraine era a única Aes Sedai que conhecia, e talvez, embora não quisesse admitir, a única na qual tinha certeza de que podia confiar. — Ela nos encontrou, e estamos a caminho de Tar Valon. Suponho que tenha outras coisas com que se preocupar agora.

Nynaeve fungou baixinho, desdenhosa.

— Acredito que ela só vai acabar de nos usar quando estiver morta… ou quando nós estivermos mortas. Aquela ali é ardilosa.

Outras Aes Sedai visitaram a tenda. Egwene quase morreu de susto naquela primeira noite fora de Fal Dara, quando a dobra da tenda se abriu e uma Aes Sedai rechonchuda, de rosto quadrado, com os cabelos começando a ficar grisalhos e uma expressão vagamente distraída nos olhos escuros abaixou-se para entrar. Ela olhou para o lampião pendurado no ponto mais alto da tenda e a chama aumentou um pouco. Egwene pensou ter sentido alguma coisa, quase tinha visto algo de diferente na Aes Sedai quando a chama começou a brilhar mais forte. Moiraine lhe dissera que um dia, quando tivesse mais treinamento, Egwene seria capaz de ver quando outra mulher canalizasse e de saber quando uma mulher podia canalizar, mesmo sem que ela o fizesse.

— Sou Verin Mathwin — apresentou-se a mulher, com um sorriso. — E vocês são Egwene al’Vere e Nynaeve al’Meara. De Dois Rios, que um dia foi Manetheren. Sangue forte, esse. Ele canta.

Egwene trocou um olhar com Nynaeve quando as duas se levantaram.

— Isto é uma convocação para o Trono de Amyrlin? — perguntou Egwene.

Verin deu uma gargalhada. A Aes Sedai tinha uma mancha de tinta no nariz.

— Nossa, não! A Amyrlin tem coisas mais importantes a fazer do que lidar com duas jovens que sequer são noviças. Mas nunca se sabe. Vocês duas têm um potencial considerável. Especialmente você, Nynaeve. Um dia… — Ela fez uma pausa, pensativa, esfregando um dedo bem na mancha. — Mas o dia não é hoje. Estou aqui para lhe dar uma aula, Egwene. Receio que você tenha tentado acelerar as coisas.

Nervosa, Egwene olhou para Nynaeve.

— O que eu fiz? Nada, que eu saiba!

— Ah, nada de errado. Não exatamente. Um pouco perigoso, talvez, mas não é exatamente errado. — Verin se abaixou até o piso de lona, sentando e cruzando as pernas. — Sentem-se, vocês duas. Sentem-se. Não quero ficar entortando o pescoço. — Ela se mexeu até encontrar uma posição confortável. — Sentem-se.

Egwene se sentou de pernas cruzadas em frente à Aes Sedai e fez o melhor que pôde para não olhar para Nynaeve. Não preciso parecer culpada até saber se sou. E talvez não precise, mesmo assim.

— O que fiz que é perigoso, mas não exatamente errado?

— Ora, você tem canalizado o Poder, criança.

Egwene só conseguiu ficar boquiaberta. Nynaeve explodiu:

— Isso é ridículo. Por que estamos indo para Tar Valon então? Não é para isso?

— Moiraine me… Quer dizer, Moiraine Sedai me deu algumas aulas — conseguiu responder Egwene.

Verin ergueu as mãos pedindo silêncio, e elas se calaram. Podia soar distraída, mas era uma Aes Sedai, afinal.

— Criança, você acha que as Aes Sedai ensinam a qualquer garota que diz que quer ser uma de nós? Bem, suponho que você não seja exatamente qualquer garota, mas ainda assim… — Ela sacudiu a cabeça, séria.

— Então por que ela fez isso? — exigiu saber Nynaeve.

Ela não recebera aulas, e Egwene ainda não tinha certeza de que isso havia irritado a Sabedoria ou não.

— Porque Egwene já tinha canalizado — respondeu Verin, paciente.

— Mas eu… Mas eu também. — Nynaeve não parecia feliz ao dizer isso.

— Suas circunstâncias são diferentes, criança. O fato de que você ainda está viva mostra que superou diversas crises e que fez isso sozinha. Acho que sabe a sorte que tem. De cada quatro mulheres forçadas a fazer o que você fez, apenas uma sobrevive. É claro que as bravias… — Verin fez uma careta de desagrado. — Perdão, mas receio que seja assim que nós, na Torre Branca, chamamos as mulheres que, mesmo sem nenhum treinamento, conseguiram ter um pouco de controle. É aleatório e tão fraco que mal pode ser chamado de controle, em geral, como o seu, mas ainda assim é um tipo de controle. As bravias têm dificuldades, é verdade. Quase sempre construíram muros para evitar saber o que faziam, e esses muros interferem no controle consciente. Quanto mais tempo esses muros levarem para ser construídos, mais di ícil será derrubá-los. Mas se puderem ser demolidos… bem, algumas das irmãs mais competentes eram bravias.

Nynaeve mudou de posição, irritada, e olhou para a entrada como se pensasse em ir embora.

— Não entendo o que isso tudo tem a ver comigo — disse Egwene.

Verin olhou para ela e piscou várias vezes, quase como se estivesse se perguntando de onde a garota surgira.

— Com você? Nada, ora. Seu problema é bem diferente. A maioria das garotas que desejam se tornar Aes Sedai, até mesmo as que têm a semente dentro delas, como você, também tem medo disso. Mesmo depois de chegarem à Torre, de aprender o que fazer e como fazer, precisam ser orientadas durante meses, passo a passo, por uma irmã ou uma das Aceitas. Mas não você. Pelo que Moiraine falou, você se jogou de cabeça assim que percebeu que podia, tateando na escuridão sem sequer pensar se haveria um poço sem fundo no próximo passo. Ah, houve outras assim, você não é única. A própria Moiraine foi uma. Quando soube o que você tinha alcançado, não havia mais nada a fazer a não ser começar a ensiná-la. Moiraine nunca lhe explicou nada?

— Nunca. — Egwene desejou que não tivesse soado tão sem ar. — Ela tinha… outras questões para tratar.

Nynaeve fungou de leve.

— Bem, Moiraine nunca acreditou que devia contar às pessoas aquilo que não precisavam saber. Saber não atende a nenhum objetivo real, mas, se pararmos para pensar, não saber também não. Quanto a mim, sempre prefiro saber a não saber.

— Existe isso? Um poço sem fundo, quer dizer?

— É claro que não chega a tanto — respondeu Verin, inclinando a cabeça. — Mas e o próximo passo? — Ela deu de ombros — Sabe, criança, quanto mais você tenta tocar a Fonte Verdadeira, mais fácil ica. Sim, no começo você se estende na direção da Fonte e quase sempre é como tentar agarrar o ar. Ou você consegue tocar saidar, mas, mesmo quando sente o Antigo Poder fluindo por seu corpo, descobre que não pode fazer nada com ele. Ou até faz alguma coisa, mas não era o que pretendia. Aí é que reside o perigo. Normalmente, com orientação, treinamento e o próprio medo reduzindo o passo, a habilidade de tocar a Fonte e de canalizar o Poder se juntam à habilidade de controlar o que se está fazendo. Mas você começou a tentar canalizar sem ninguém para lhe ensinar algum controle do que faz. Eu sei que você acha que não foi muito longe, e não foi mesmo, mas é como alguém que aprendeu sozinha a subir colinas correndo, pelo menos às vezes, mas nunca aprendeu a descer do outro lado ou a caminhar. Mais cedo ou mais tarde, vai cair, se não aprender o restante. Agora, não estou falando de algo parecido com o que acontece quando um daqueles pobres homens começa a canalizar, você não vai ficar louca nem morrer, não com irmãs para ensiná-la e guiá-la. Mas o que você poderia acabar fazendo por acidente, sem ter a intenção? — Por um instante, o ar distraído desapareceu de Verin. Por um instante, ao que pareceu, o olhar da Aes Sedai passara de Egwene para Nynaeve com a mesma agudeza que o da Amyrlin. — Suas habilidades inatas são fortes, criança, e vão ficar mais fortes ainda. Você precisa aprender a controlá-las antes que se machuque, que machuque alguém ou muita gente. Era isso o que Moiraine estava tentando ensiná-la. É isso o que vou tentar ensinar a você esta noite, e uma irmã a ajudará com isso todas as noites, até a colocarmos nas mãos capazes de Sheriam. Ela é a Mestra das Noviças.

Egwene pensou: Será que ela sabe a respeito de Rand? Não deve saber. Ela nunca permitiria que ele deixasse Fal Dara se sequer suspeitasse . Mas tinha certeza de que não era imaginação o que vira.

— Obrigada, Verin Sedai. Vou tentar.

Nynaeve se levantou com elegância.

— Vou me sentar ao pé do fogo e deixar você duas sozinhas.

— Você deveria ficar — respondeu Verin. — Poderia ganhar muito com isso. Pelo que Moiraine falou, você não deve precisar de muito treinamento para se tornar uma das Aceitas.

Nynaeve hesitou apenas por um instante antes de sacudir a cabeça com firmeza.

— Agradeço a oferta, mas posso esperar até chegarmos a Tar Valon. Egwene, se precisar de mim, estarei…

— Por qualquer definição — interrompeu Verin —, você é uma mulher crescida, Nynaeve. Normalmente, quanto mais jovem a noviça, melhor ela se sai. Não apenas com o treinamento, mas também porque se espera que uma noviça faça o que lhe mandarem, quando mandarem e sem questionar. Isso só é de fato útil até o verdadeiro treinamento atingir determinado estágio: uma hesitação na hora errada ou dúvidas quanto ao que lhe mandaram fazer podem ter consequências trágicas. Mas é melhor seguir a disciplina o tempo todo. Das Aceitas, por outro lado, espera-se que questionem, pois entende-se que sabem o bastante para determinar quais perguntas podem fazer e quando fazê-las. Qual você preferiria ser?

As mãos de Nynaeve apertaram a saia, e ela voltou a olhar para a abertura da tenda, franzindo a testa. Por fim, fez um gesto ligeiro com a cabeça e voltou a se sentar no chão.

— Acho que posso ficar.

— Ótimo — respondeu Verin. — Agora, você já conhece esta parte, Egwene, mas, em consideração a Nynaeve, vou conduzi-la passo a passo. Com o tempo, isso se tornará um re flexo, e você vai fazer mais rápido do que consegue pensar. Porém agora o melhor é ir devagar. Feche os olhos, por favor. No começo, flui melhor se você não tiver distrações. — Egwene fechou os olhos. Houve uma pausa. — Nynaeve — disse Verin —, por favor, feche os olhos. De fato, ajudará muito. — Mais uma pausa. — Obrigada, criança. Agora, você deve se esvaziar. Esvazie seus pensamentos. Só existe uma coisa em sua mente: o botão de uma flor. Só isso. Apenas o botão. Você pode ver cada detalhe dele. Pode sentir o cheiro. Tocá-lo. Cada veia de cada folha, cada curva de cada pétala. Você pode sentir a seiva pulsando. Sinta-o. Conheça-o. Seja ele. Você e o botão são a mesma coisa. Vocês são um. Você é o botão.

A voz dela continuou, em um tom hipnótico, mas Egwene não estava mais ouvindo de verdade. Já fizera esse exercício antes, com Moiraine. Era lento, porém a mulher dissera que se tornaria mais rápido com a prática. Dentro de si, ela era um botão de rosa, com pétalas vermelhas bem curvadas, fechadas. No entanto, de repente havia mais alguma coisa ali. Luz. Uma luz pressionava as pétalas. Bem devagar, as pétalas se abriram, virando-se na direção da luz, absorvendo-a. A rosa e a luz eram um. Egwene e a luz eram um. Ela podia sentir a réstia mais tênue daquilo se esgueirando por seu corpo. Esticou-se em busca de mais, se estendeu procurando mais…

Em um instante, tudo se foi: a rosa e a luz. Moiraine também lhe dissera que aquilo não poderia ser forçado. Com um suspiro, abriu os olhos. Nynaeve tinha uma expressão lúgubre no rosto. Verin estava calma como sempre.

— Você não pode forçar a acontecer — dizia a Aes Sedai. — Você deve deixar que aconteça. Deve se render ao Poder antes de poder controlá-lo.

— Isto é uma tolice sem tamanho — resmungou Nynaeve. — Eu não me sinto como uma flor. No máximo, me sinto um arbusto de abrunheiro. Acho que vou mesmo ficar esperando ao lado do fogo.

— Como desejar — respondeu Verin. — Já mencionei que as noviças executam algumas tarefas? Elas lavam pratos, limpam o chão, lavam a roupa, servem à mesa, toda espécie de tarefas. Eu acho que as serviçais fazem um trabalho bem melhor, mas o consenso é que o trabalho fortalece o caráter. Ah, você vai ficar? Ótimo. Bem, criança, lembre-se de que mesmo um arbusto de abrunheiro às vezes dá flores, lindas e brancas, por entre os espinhos. Agora voltemos ao começo, Egwene. Feche os olhos.

Várias vezes antes de Verin partir, Egwene sentiu o luxo do Poder percorrer seu corpo, mas nunca de forma muito intensa, e o máximo que conseguiu com aquilo foi produzir uma agitação no ar que fez a dobra da tenda se mover de leve. Tinha certeza de que um espirro teria provocado o mesmo efeito. Desejou que Moiraine fosse a professora.

Nynaeve sequer chegou a sentir um vislumbre daquilo, ou pelo menos foi o que disse. No final, seus olhos estavam fixos e sua boca tão apertada que Egwene teve medo de que ela fosse começar a brigar com Verin, como se a Aes Sedai fosse uma aldeã desrespeitando sua privacidade. Mas Verin apenas lhe mandou fechar os olhos novamente, dessa vez sem Egwene.

Egwene estava sentada, assistindo às outras duas entre bocejos. A noite já avançara muito além da hora em que ela costumava dormir. Nynaeve estava com cara de quem morrera havia uma semana, com os olhos fechados, como se nunca mais tivesse a intenção de abri-los, e os punhos brancos de tão cerrados sobre o colo. Egwene torcia para que o mau humor da Sabedoria não se manifestasse, não depois de ela conseguir se manter calma por tanto tempo.

— Sinta o luxo atravessá-la — instruía Verin. Sua voz não mudou, mas seus olhos começaram a brilhar de repente. — Sinta o luxo. O luxo do Poder. Um luxo igual a uma brisa, uma leve agitação no ar. — Egwene se endireitou. Fora assim que Verin a guiara todas as vezes em que realmente sentira o Poder fluindo por seu corpo. — Uma brisa suave, o menor dos movimentos no ar. Suave.

De repente, os cobertores empilhados pegaram fogo, como se fossem lenha banhada em seiva.

Nynaeve abriu os olhos com um grito. Egwene não estava certa se gritava ou não. Tudo o que sabia era que estava de pé, tentando chutar os cobertores em chamas para fora antes que incendiassem a tenda. Antes que conseguisse dar um segundo chute, as chamas desapareceram, deixando fios de fumaça saindo de uma massa esturricada e o cheiro de lã queimada.

— Ora — comentou Verin — Ora. Não esperava ter que apagar um incêndio. Não vá desmaiar agora, criança. Está tudo bem. Já cuidei de tudo.

— Eu… eu estava zangada — resmungou Nynaeve por entre os lábios trêmulos, o rosto pálido. — Ouvi você falando sobre uma brisa, me dizendo o que fazer, e o fogo simplesmente veio à minha cabeça. Eu… eu não queria queimar nada. Foi apenas uma pequena fogueira, na… na minha cabeça. — Ela estremeceu.

— Acho até que foi uma fogueira pequena, sim. — Verin soltou uma gargalhada que desapareceu quando ela voltou a olhar para o rosto de Nynaeve. — Você está bem, criança? Se estiver se sentindo mal, eu posso… — Nynaeve sacudiu a cabeça, e Verin assentiu. — Você precisa é de descanso. Vocês duas. Fui dura demais com vocês. Precisam descansar. A Amyrlin vai querer todas nós de pé antes do amanhecer. — Levantando-se, ela tocou os cobertores torrados com a ponta do pé. — Mandarei trazerem mais alguns cobertores para vocês. Espero que isto mostre a ambas como ter controle é importante. Vocês têm que aprender a fazer o que é preciso, e nada mais. Além de machucar outras pessoas, caso retirem mais do Poder do que conseguem usar com segurança, e vocês ainda não conseguem lidar com muito, mas isso vai aumentar… Se retirarem demais, podem destruir a si mesmas. Podem morrer. Ou podem se exaurir, destruir a habilidade que possuem. — Como se ela não tivesse dito que as duas estavam caminhando em uma corda bamba, acrescentou um animado “Durmam bem”. E foi embora.

Egwene abraçou Nynaeve com força.

— Está tudo bem, Nynaeve. Não precisa ter medo. Assim que você aprender a controlar…

Nynaeve deu uma risada rouca.

— Eu não estou com medo. — Ela olhou de relance para os cobertores fumegantes e desviou o olhar depressa. — É preciso mais do que um foguinho para me assustar.

Mas ela não voltou a olhar para os cobertores, mesmo quando um Guardião veio retirá-los dali e deixar outros novos.

Verin não voltou, como dissera. De fato, no decorrer da jornada para sul e para oeste, dia após dia, tão rápido quanto os soldados da infantaria conseguiam avançar, Verin não prestou mais atenção às duas mulheres de Campo de Emond do que Moiraine ou qualquer uma das Aes Sedai. Não é que fossem hostis; eram apenas um tanto distantes e distraídas, como se estivessem preocupadas. Sua frieza aumentou o incômodo de Egwene e trouxe de volta todas as histórias que ouvira na infância.

Sua mãe sempre lhe dissera que as histórias sobre Aes Sedai eram um monte de bobagens contadas pelos homens, mas nem sua mãe nem qualquer outra mulher no Campo de Emond haviam conhecido uma Aes Sedai antes de Moiraine chegar lá. Ela mesma passara um bom tempo com Moiraine, o que era prova de que nem todas as Aes Sedai eram como as histórias contavam. Manipuladoras frias e destruidoras implacáveis. As que provocaram a Ruptura do Mundo. Agora ela sabia que, pelo menos, os que provocaram a Ruptura do Mundo eram Aes Sedai homens, quando ainda existiam, na Era das Lendas. Mas aquilo não ajudava muito. Nem todas as Aes Sedai eram como as histórias contavam, mas quantas, e quais?

As Aes Sedai que vinham à tenda toda noite eram tão diferentes entre si que não a ajudavam a clarear sua mente. Alviarin era fria e ia direto ao ponto, como se fosse uma comerciante que tivesse vindo comprar lã e tabaco. Ficou surpresa por Nynaeve participar da aula, mas aceitou. Tinha críticas afiadas, porém estava sempre pronta para tentar outra vez. Alanna Mosvani ria e passava tanto tempo falando do mundo e dos homens quanto ensinando. Mas Alanna estava interessada demais em Rand, Perrin e Mat para o gosto de Egwene. Especialmente em Rand. A pior de todas eram Liandrin, a única que usava o xale: as outras os haviam guardado na bagagem antes de deixar Fal Dara. Liandrin ficava sentada, mexendo na franja vermelha do xale, e ensinava pouco, e ainda por cima com relutância. Ela interrogava Egwene e Nynaeve como se as duas tivessem sido acusadas de algum crime, e todas as perguntas eram sobre os três rapazes. Não parou de falar até Nynaeve colocá-la para fora — Egwene não entendeu bem por que Nynaeve fizera aquilo —, mas saiu com um aviso.

— Cuidado, minhas ilhas! Vocês não estão mais em sua aldeia. Agora estão molhando os dedos em águas onde há coisas para mordê-las.

Por fim, a coluna chegou à aldeia de Meddo, nas margens do Mora, um rio que corria ao longo da fronteira entre Shienar e Arafel e desembocava no Erinin.

Egwene estava certa de que eram as perguntas da Aes Sedai sobre Rand que a tinham feito começar a sonhar com ele, isso e o fato de se preocupar se ele e os outros tinham precisado seguir a Trombeta de Valere até dentro da Praga. Os sonhos eram sempre ruins, mas no começo eram apenas pesadelos normais. Entretanto, na noite em que chegaram a Meddo, os sonhos mudaram.

— Perdão, Aes Sedai — chamou Egwene, timidamente —, mas a senhora viu Moiraine Sedai? — A Aes Sedai magra a despachou com um gesto e desceu apressada pela rua lotada da aldeia, gritando para alguém tomar cuidado com o cavalo. A mulher pertencia à Ajah Amarela, embora não estivesse usando o xale naquele momento. Egwene não sabia mais nada sobre ela, nem mesmo o nome.

Meddo era uma pequena aldeia, embora Egwene tivesse ficado chocada ao perceber que o que ela agora chamava de “pequena aldeia” era do tamanho de Campo de Emond. O lugar estava lotado, com muito mais forasteiros do que habitantes. Cavalos e pessoas enchiam as ruas estreitas, acotovelando-se até as docas, passando por aldeões que caíam de joelhos sempre que uma Aes Sedai passava em disparada, quase sem ser vista. As luzes fortes das tochas iluminavam tudo. As duas docas se estendiam na direção do Rio Mora como dedos de pedra, e cada uma abrigava um par de pequenos navios de dois mastros. Lá, cavalos estavam sendo levados a bordo por faixas de contenção, com cabos e berços de lona sob as barrigas. Mais navios, de amuradas altas e resistentes, com lampiões no alto dos mastros, lotavam o rio iluminado pelo luar. Já tinham sido carregados ou aguardavam sua vez. Barcos a remo conduziam arqueiros e piqueiros, cujas lanças erguidas faziam os barcos parecerem gigantescos peixes-cobrelos nadando na superfície.

No cais esquerdo, Egwene encontrou Anaiya, que supervisionava o carregamento e chamava a atenção daqueles que não trabalhavam rápido o bastante. Embora nunca tivesse trocado mais do que duas palavras com Egwene, Anaiya parecia diferente das outras, mais semelhante a uma mulher de sua região. Egwene podia vê-la fazendo pão na cozinha, algo que não imaginava nenhuma das outras fazendo.

— Anaiya Sedai, você viu Moiraine Sedai? Preciso falar com ela.

A Aes Sedai olhou ao redor, franzindo a testa, distraída.

— O quê? Ah, é você, criança. Moiraine foi embora. E sua amiga, Nynaeve, já está na Rainha do Rio. Eu mesma tive que enfiá-la em um barco, enquanto a mulher gritava que não partiria sem você. Luz, que confusão! Você também deveria estar a bordo. Encontre algum barco que vá para a Rainha do Rio. Vocês duas vão viajar com o Trono de Amyrlin, então fique atenta quando embarcar. Nada de cenas ou chiliques.

— Em que navio Moiraine Sedai está?

— Moiraine não está em um navio, garota. Ela foi embora. Partiu há dois dias, e a Amyrlin está furiosa. — Anaiya fez uma careta de desagrado e sacudiu a cabeça, embora a maior parte de sua atenção ainda estivesse voltada para os trabalhadores. — Primeiro Moiraine desaparece com Lan, e logo em seguida Liandrin, e depois Verin. Nenhuma delas disse sequer uma palavra a alguém. Verin nem mesmo levou seu Guardião; Tomas está roendo as unhas de preocupação. — A Aes Sedai olhou para o céu. A lua crescente brilhava sem a interferência das nuvens. — Precisaremos chamar o vento mais uma vez, e a Amyrlin não vai ficar nada feliz com isso. Ela disse que nos quer a caminho de Tar Valon em uma hora e não vai aceitar atrasos. Eu não quero estar na pele de Moiraine, Liandrin ou Verin quando ela as encontrar. As três vão desejar ser noviças outra vez. Ora, criança, qual é o problema?

Egwene respirou bem fundo. Moiraine partiu? Não pode ser! Preciso contar a alguém, alguém que não vá rir de mim. Ela imaginou Anaiya em Campo de Emond, ouvindo os problemas da ilha: a mulher se encaixava naquela imagem.

— Anaiya Sedai, Rand está em apuros.

Anaiya lhe lançou um olhar pensativo.

— Aquele garoto alto da sua aldeia. Já está sentindo saudade dele, é? Bem, eu não deveria ficar surpresa se ele estiver em apuros. Jovens dessa idade geralmente estão. Embora seja o outro… Mat?… que tem cara de encrenqueiro. Muito bem, criança. Não queria rir de você nem fazer pouco-caso. Que tipo de problema, e como sabe? Ele e Lorde Ingtar devem ter apanhado a Trombeta e já devem estar de volta a Fal Dara, a esta altura. Ou então tiveram que segui-la até a Praga, e não há nada que se possa fazer a respeito.

— Eu… eu não acho que eles estejam na Praga ou em Fal Dara. Eu tive um sonho — disse, de forma um pouco desafiadora. Soava bobo quando falava, mas parecera bem real. Decerto fora um pesadelo, mas fora real. Primeiro havia um homem com uma máscara sobre o rosto e fogo no lugar dos olhos. Apesar da máscara, ela achou que ele tinha ficado surpreso ao vê-la. O olhar dele a apavorara até pensar que seus ossos se quebrariam de tanto tremer, mas de repente ele desapareceu, e ela viu Rand dormindo no chão, envolto em um manto. Uma mulher estava parada de pé ao lado dele, olhando-o. Seu rosto estava oculto pelas sombras, mas seus olhos pareciam brilhar como a lua, e Egwene soube que ela era maligna. Então veio um clarão de luz, e eles sumiram. Os dois. E, depois daquilo tudo, quase como se estivesse separada da cena, havia a sensação de perigo, como se uma armadilha estivesse começando a se fechar na perna de um cordeiro inocente, uma armadilha com diversas mandíbulas. Era como se o tempo tivesse desacelerado, e ela pudesse ver as mandíbulas de ferro se fechando aos poucos. O sonho não se desvanecera com o despertar, como normalmente acontecia. E o perigo parecia tão grande que ela ainda queria olhar por cima do ombro, mas, de algum modo, sabia que o alvo era Rand, e não ela.

Ela se perguntou se a mulher era Moiraine, e se repreendeu por ter pensado aquilo. Liandrin se encaixava melhor. Ou quem sabe Alanna: ela também mostrara interesse em Rand.

Ela não conseguiu contar o que havia acontecido a Anaiya. Com muita formalidade, disse:

— Anaiya Sedai, sei que parece tolice, mas ele está em perigo. Um grande perigo. Eu sei. Pude sentir. Ainda posso.

O olhar de Anaiya se tornou pensativo.

— Ora, ora — respondeu ela, baixinho —, essa é uma possibilidade que eu aposto que ninguém considerou. Você pode ser uma Sonhadora. A chance é pequena, criança, mas… Não temos uma assim há… hã… quatrocentos ou quinhentos anos. E o Sonho está bem ligado à Profecia. Se você realmente consegue Sonhar, pode ser que consiga Prever também. Isso seria um dedo no olho das Vermelhas. Claro que poderia ser apenas um pesadelo comum, provocado por cansaço, pela comida fria e pela viagem di ícil desde que deixamos Fal Dara. Além da saudade que você sente do seu rapaz. Muito mais provável. Sim, sim, criança, eu sei. Você está preocupada com ele. Seu sonho indicava que tipo de perigo?

Egwene sacudiu a cabeça.

— Ele apenas desapareceu, e eu senti o perigo. E maldade. Eu senti a maldade antes mesmo de ele sumir. — Ela estremeceu e esfregou as mãos. — Ainda consigo sentir.

— Bem, falaremos mais a esse respeito na Rainha do Rio. Se você for uma Sonhadora, cuidarei para que tenha o treinamento que Moiraine deveria estar aqui para… Você aí! — gritou a Aes Sedai, de súbito, e Egwene sobressaltou-se. Um homem alto que acabara de se sentar sobre um barril de vinho fez o mesmo. Vários outros apertaram o passo. — Isso é para levar para bordo, não para você sentar! Conversaremos no barco, criança. Não, seu tolo! Você não vai conseguir carregá-lo sozinho! Quer se machucar? — Anaiya saiu andando a passos largos pela doca, mostrando aos infelizes aldeões uma língua mais áspera do que Egwene suspeitara que ela possuía.

Egwene espiou a escuridão, na direção do sul. Ele estava lá, em algum lugar. Não em Fal Dara nem na Praga. Ela tinha certeza disso. Aguente firme, seu idiota cabeça de lã. Se você for morto antes que eu consiga tirá-lo disso, vou esfolá-lo vivo. Não lhe ocorreu se perguntar como iria tirá-lo de qualquer coisa se estava a caminho de Tar Valon.

Puxando o manto mais para junto do corpo, foi procurar um barco que a levasse para a Rainha do Rio.

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