Geofram Bornhald ignorou o cheiro das casas em chamas e os corpos estendidos na rua. Byar e uma guarda de cem Mantos-brancos entraram na aldeia, cavalgando logo atrás dele. Era apenas metade dos homens que trazia consigo. Sua legião estava espalhada demais para seu gosto, com os Questionadores ocupando cargos de comando demais, mas as ordens haviam sido explícitas: obedecer aos Questionadores.
Houvera pouca resistência ali. Apenas meia dúzia das casas soltava colunas de fumaça. A estalagem ainda estava de pé, percebeu. Era de pedras cobertas com reboco branco, como quase todas as construções na Planície de Almoth.
Parando em frente à estalagem, passou os olhos direto pelos prisioneiros que seus soldados detinham perto do poço e os fixou na longa trave da forca que maculava o campo comum da aldeia. Fora feita às pressas, era apenas uma longa trave com suportes, mas sustentava trinta corpos, cujas roupas ondulavam ao sabor da brisa. Havia corpos pequenos entre os maiores. Até mesmo Byar olhava estupefato e incrédulo.
— Muadh! — urrou. Um homem grisalho trotava entre os homens que detinham os prisioneiros. Muadh caíra uma vez nas mãos dos Amigos das Trevas, e seu rosto cheio de cicatrizes chocava até mesmo os mais fortes. — Isso é obra sua, Muadh, ou dos Seanchan?
— De nenhum dos dois, meu Senhor Capitão. — A voz de Muadh era um rosnado rude e sussurrado, outro presente dos Amigos das Trevas. Ele não disse mais nada.
Bornhald franziu a testa.
— Com certeza não foi obra daqueles ali — retrucou, indicando os prisioneiros.
Os Filhos não pareciam tão impecáveis quanto na ocasião em que os guiara por Tarabon, mas pareciam prontos para um des ile comparados com os maltrapilhos camponeses agachados sob seus olhares vigilantes. Homens vestidos em farrapos e pedaços de armadura, com expressões sombrias. Restos do exército que Tarabon enviara contra os invasores na Ponta de Toman.
Muadh hesitou, depois respondeu, escolhendo bem as palavras:
— Os aldeões dizem que eles usavam mantos tarabonianos, meu Senhor Capitão. Havia um homem grande entre eles, com olhos cinza e um bigode longo, que pela descrição parece gêmeo do Filho Earwin. Junto com ele estava um jovem que tentava esconder o rostinho bonito e a barba loura e lutava com a mão esquerda. Quase parece ser o Filho Wuan, meu Senhor Capitão.
— Questionadores! — exclamou Bornhald. Earwin e Wuan estavam entre os homens que ele precisara ceder aos Questionadores. Ele já vira as táticas dos Questionadores antes, mas era a primeira vez que se deparava com corpos de crianças.
— Se meu Senhor Capitão diz… — Muadh fez as palavras soarem como uma concordância fervorosa.
— Corte as cordas — ordenou Bornhald, cansado. — E deixe claro para os aldeões que não haverá mais mortes. — A menos que algum tolo resolva ser corajoso só porque a mulher está vendo e eu precise dar um exemplo. Ele desmontou, observando outra vez os prisioneiros, enquanto Muadh corria atrás de escadas e facas. Tinha muito mais em que pensar do que o excesso de zelo dos Questionadores. Na verdade, queria poder parar de pensar nos Questionadores.
— Eles não resistem por muito tempo, meu Senhor Capitão — falou Byar —, nem esses tarabonianos ou o que sobrou dos domaneses. Ameaçam atacar como ratos acuados, mas correm assim que algo os ameaça de volta.
— Vamos ver como nos saímos contra esses invasores, Byar, antes de desprezarmos os homens, está bem? — Os rostos dos prisioneiros traziam uma expressão de derrota antes mesmo de seus homens chegarem. — Peça a Muadh para separar um deles para mim. — Só o rosto daquele Filho era o suficiente para enfraquecer a determinação da maioria dos homens. — Um representante, de preferência. Um que pareça inteligente o bastante para contar o que viu sem firulas, mas jovem o suficiente para não se achar durão. Diga a Muadh para não ser muito gentil, está bem? Faça o sujeito crer que eu pretendo fazer com ele coisas piores do que ele sequer imagina, a menos que me convença do contrário. — Ele jogou as rédeas para um dos Filhos e entrou na estalagem a passos largos.
Surpreendentemente, o estalajadeiro estava lá. Era um homem solícito e suava bastante, com a camisa suja apertada na barriga de forma que os arabescos vermelhos bordados pareciam prestes a saltar. Bornhald o dispensou. Estava vagamente ciente de uma mulher e uma criança encolhidas no batente de uma porta, até que o estalajadeiro gordo as conduziu para fora.
Bornhald tirou uma das manoplas e se sentou a uma das mesas. Ele sabia muito pouco sobre os invasores, os estrangeiros. Era assim que quase todos os chamavam, pelo menos aqueles que não se punham a falar besteiras sobre Artur Asa-de-gavião. Sabia que se autodenominavam Seanchan, e Hailene. Conhecia o suficiente da língua antiga para saber que a segunda palavra significava Os que Vêm Antes, ou os Precursores. Eles também se autodenominavam Rhyagelle, Os que Voltam para Casa, e falavam sobre Corenne, o Retorno. Era quase o bastante para fazê-lo acreditar nas histórias sobre o retorno dos exércitos de Artur Asa-de-gavião. Ninguém sabia de onde os Seanchan vieram, sabiam apenas que tinham chegado em navios. Os pedidos de informação de Bornhald ao Povo do Mar haviam sido respondidos apenas com o silêncio. Ammador não tinha qualquer simpatia pelos Atha’an Miere, e o sentimento era entusiasmadamente reciprocado. Tudo o que sabia dos Seanchan ele ouvira de homens como os prisioneiros que estavam ali fora, maltrapilhos derrotados que falavam, com os olhos arregalados, pingando de suor, sobre homens que entravam na batalha montados tanto em monstros quanto em cavalos, que lutavam lado a lado com monstros e que traziam Aes Sedai para destruir a terra sob os pés de seus inimigos.
Um som de passos à porta o fez dar um sorriso ameaçador, mas Byar não estava acompanhado de Muadh. O Filho da Luz ao lado dele, curvado e com o elmo debaixo do braço, era Jeral, que Bornhald imaginara estar a cem milhas de distância. Sobre a armadura, o jovem usava um manto de corte domanês com bordas azuis, não o manto branco dos Filhos.
— Muadh está falando com um jovem agora, meu Senhor Capitão — explicou Byar. — O Filho Jeral acabou de chegar com uma mensagem.
Bornhald gesticulou para que Jeral começasse a falar.
O jovem não endireitou a postura.
— Os cumprimentos de Jaichim Carridin — começou, olhando bem para a frente —, que guia a Mão da Luz na…
— Não preciso dos cumprimentos do Questionador — resmungou Bornhald, notando o olhar assustado do Filho. Jeral ainda era jovem. De qualquer forma, Byar também parecia desconfortável. — Transmita logo a mensagem, está bem? E nada de repetir palavra por palavra, a menos que eu peça. Só me diga o que ele quer.
O Filho, pronto para recitar, engoliu em seco antes de começar.
— Meu Senhor Capitão, ele… ele diz que o senhor está trazendo homens demais para tão perto da Ponta de Toman. Ele diz que os Amigos das Trevas na Planície de Almoth precisam ser extirpados, e o senhor deve… Perdoe-me, Senhor Capitão… O senhor deve retornar imediatamente e seguir para o coração da planície. — Ele permaneceu imóvel, esperando.
Bornhald estudou o jovem. A poeira da planície manchava-lhe o rosto, assim como o manto e as botas.
— Vá e procure alguma coisa para comer — ordenou Bornhald. — Deve haver água para você se lavar em uma dessas casas, se quiser. Volte aqui em uma hora. Terei mensagens para você levar. — E dispensou o jovem.
— Os Questionadores podem estar certos, meu Senhor Capitão — disse Byar, quando Jeral foi embora. — Há muitas vilas espalhadas pela planície, e os Amigos das Trevas…
O tapa de Bornhald na mesa o interrompeu.
— Que Amigos das Trevas? Não vi nada em qualquer uma das aldeias que ordenaram que tomássemos, a não ser fazendeiros e artesãos preocupados com a possibilidade de queimarmos seu sustento e algumas velhas que cuidam dos doentes. — O rosto de Byar estava cuidadosamente inexpressivo. Ele sempre previa Amigos das Trevas mais rápido do que Bornhald. — E as crianças, Byar? As crianças aqui eram Amigas das Trevas?
— Os pecados da mãe se estendem à quinta geração — citou Byar —, e os do pai, à décima. — Mas ele parecia desconfortável. Nem mesmo Byar matara uma criança, antes.
— Você não se pergunta, Byar, por que Carridin tirou nossos estandartes e os mantos dos homens liderados pelos Questionadores? Até mesmo os próprios Questionadores abandonaram o branco. Isso quer dizer alguma coisa, sim?
— Ele deve ter seus motivos, Senhor Capitão — respondeu Byar, com cuidado. — Os Questionadores sempre têm motivos, mesmo quando não compartilham com o restante de nós.
Bornhald lembrou a si mesmo de que Byar era um bom soldado.
— Filhos ao norte usam mantos tarabonianos, Byar, e os ao sul, mantos domaneses. Não gosto do que isso sugere. Há Amigos das Trevas aqui, mas estão em Falme, e não na planície. Quando Jeral partir, não irá sozinho. Enviarei mensagens para cada grupo dos Filhos que eu puder encontrar. Pretendo levar a legião à Ponta de Toman, Byar, e ver o que os verdadeiros Amigos das trevas, esses Seanchan, estão tramando.
Byar pareceu preocupado, mas, antes que pudesse falar, Muadh surgiu com um dos prisioneiros. O jovem suado, vestindo uma placa peitoral ornada e desgastada, lançava olhares assustados para o rosto hediondo do homem que o acompanhava.
Bornhald puxou a adaga e começou a aparar as unhas. Jamais entendera por que aquilo deixava alguns homens nervosos, mas se aproveitava disso mesmo assim. Até seu sorriso de avô fez o rosto sujo do prisioneiro empalidecer.
— Agora, meu jovem, você vai me dizer o que sabe desses estranhos, está bem? Se precisar pensar no que tem a dizer, mandarei você de volta lá para fora para pensar, acompanhado do Filho Muadh.
O prisioneiro lançou um olhar apavorado para Muadh. E então as palavras começaram a jorrar.
As altas ondas do oceano de Aryth faziam o Espuma balançar, mas Domon mantinha-se equilibrado com os pés afastado enquanto segurava o longo tubo da luneta e analisava a grande embarcação que os perseguia. Perseguia, alcançando-os pouco a pouco. O vento que soprava onde o Espuma ao navegava não era dos melhores, nem dos mais fortes, mas não poderia ser melhor onde o outro navio atingia as ondulações em montanhas de espuma, com aquela proa larga. A costa da Ponta de Toman se avultava ao leste, com penhascos escuros e estreitas faixas de areia. Domon não se importara de levar o Espuma ao mar aberto, mas, naquele momento, temia que fosse pagar por isso.
— São forasteiros, Capitão? — A voz de Yarin tinha o som do suor. — É um navio dos forasteiros?
Domon baixou a luneta, mas sua visão ainda parecia tomada por aquele navio alto, de aspecto quadrado, com suas estranhas velas cheias de talas.
— Seanchan — respondeu, e ouviu Yarin gemer. Tamborilou os dedos grossos na amurada, então disse ao timoneiro: — Vá para mais perto da costa. Aquele navio nem vai ousar entrar nas águas rasas por onde o Espuma pode passar.
Yarin gritou as ordens e a tripulação correu para puxar as retrancas enquanto o timoneiro virava o leme, apontando a proa para a costa. O Espuma se movia mais devagar, indo a contravento, mas Domon tinha certeza de que conseguiria chegar às águas rasas antes que a outra embarcação o alcançasse. Estivesse eu com o porão cheio, esse barco ainda assim aguentaria uma água mais rasa do que aquele lastro imenso.
O Espuma estava mais alto na água do que quando saíra de Tanchico. Um terço da carga de fogos de arti ício que ele pegara já se fora, vendida nas aldeias de pescadores na Ponta de Toman, mas a prata que receberam em troca da carga viera acompanhada de relatos perturbadores. As pessoas falavam sobre visitas de navios altos, parecidos com caixotes, dos invasores. Quando os navios dos Seanchan ancoravam ao largo da costa, os aldeões que se erguiam para defender seus lares eram atingidos por raios que caíam do céu, enquanto pequenos barcos ainda traziam os invasores à terra, e o chão irrompia em fogo sob seus pés. Domon pensou que estivesse ouvindo bobagens, até lhe mostrarem o chão enegrecido. E já vira aquilo em aldeias demais para continuar duvidando. Monstros lutavam ao lado dos soldados Seanchan… não que sobrasse muita gente para resistir, contavam os aldeões. E alguns chegavam a a firmar que os próprios Seanchan eram monstros, com cabeças como as de insetos gigantes.
Em Tanchico, ninguém sequer soubera como eles se autodenominavam, e os tarabonianos falavam, confiantes, sobre seus soldados, fazendo os invasores recuarem para o mar. Mas a história era outra em cada uma das cidadezinhas costeiras que visitavam. Os Seanchan diziam à população estupefata que as pessoas deveriam refazer os juramentos que haviam quebrado, mas sem se dignarem a explicar quando eles foram quebrados ou o que significavam. As jovens eram levadas uma a uma para serem examinadas, e algumas eram levadas para os navios e nunca mais se tinha notícia delas. Certas mulheres mais velhas também sumiam, algumas das Guias e Curandeiras. Novos prefeitos eram escolhidos pelos Seanchan, assim como novos Conselhos, e qualquer um que protestasse contra os desaparecimentos das mulheres ou a ausência de voz na escolha podia ser enforcado, irromper em chamas ou ser enxotado como um cão cujo latido incomoda. Não havia como dizer o que aconteceria até ser tarde demais.
E, quando as pessoas já haviam sido completamente intimidadas, quando haviam sido forçadas a se ajoelhar e jurar, perplexas, que obedeceriam aos Precursores, esperariam pelo Retorno e serviriam a Os Que Voltam Para Casa com suas vidas, os Seanchan partiam e geralmente não voltavam mais. Falme, dizia-se, era a única cidade sob a qual mantinham controle.
Em algumas das aldeias das quais haviam partido, homens e mulheres voltavam às antigas vidas de forma lenta e relutantemente, e chegavam a ponto de falar em eleger novos Conselhos, mas a maioria olhava nervosa para o mar e protestava com feições pálidas, dizendo que pretendiam cumprir os juramentos que haviam sido obrigados a fazer, mesmo que não os compreendessem.
Domon não tinha intenção alguma de encontrar um Seanchan, se pudesse evitar.
Erguia a luneta para ver o que conseguiria distinguir no convés daquele navio estranho que se aproximava, quando, com um rugido, a super ície do mar irrompeu em um jorro de água e chamas a menos de cem passos a bombordo. Antes mesmo de seu queixo cair, outra coluna de chamas cortou o mar a estibordo, e, enquanto Domon se virava para olhar para ela, outra explodiu à frente. As erupções pararam tão rápido quanto começaram, chovendo respingos no convés. Onde estiveram, o mar borbulhava como se fervesse.
— Nós… nós vamos chegar às águas rasas antes que eles consigam nos alcançar — disse Yarin, devagar. Parecia estar tentando não olhar para a água fervendo sob as nuvens de vapor.
Domon negou com a cabeça.
— Sim, seja lá o que tenham feito, eles podem nos estraçalhar. Mesmo se formos para a arrebentação. — Ele estremeceu, pensando na chama dentro dos jorros d’água e em seu convés cheio de fogos de arti ício. — Que a Sorte me espicace… podemos nem viver para nos afogar. — Ele cofiou a barba e esfregou o lábio superior, sem pelos, relutando em dar a ordem… a embarcação e o que ela carregava eram tudo que tinha no mundo… mas, finalmente, se forçou a falar. — Leve o Espuma de volta para o vento, Yarin, e baixe as velas. Rápido, homem, rápido! Antes que eles achem que ainda vamos tentar escapar.
Quando um tripulante correu para baixar as velas triangulares, Domon se virou para ver o navio Seanchan se aproximar. O Espuma perdera a vantagem e balançava com as ondas. A outra embarcação estava mais alta na água do que o navio de Domon, e tinha torres de madeira na proa e na popa. Havia homens no convés, içando aquelas velas estranhas, e pessoas vestidas em armaduras se postavam no topo das torres. Um escaler foi baixado de bordo e seguiu depressa até o Espuma, impelido por dez remos. Nele, havia silhuetas em armaduras, e Domon franziu a testa, surpreso, ao notar que também havia duas mulheres agachadas na popa. O escaler bateu de leve contra o casco do Espuma.
O primeiro a subir foi um dos homens de armadura, e Domon logo percebeu por que alguns dos aldeões a firmavam que os Seanchan eram monstros. O elmo parecia muito a cabeça de um inseto monstruoso, com finas plumas vermelhas como antenas. A pessoa que o usava parecia olhar por trás de mandíbulas. Era pintado e folheado a ouro para acentuar a ilusão, e o restante da armadura do homem também era enfeitada com tinta e ouro. Placas sobrepostas pretas e vermelhas com bordas douradas cobriam o peito e desciam pela parte de fora dos braços e pela frente das coxas. Mesmo as partes externas das manoplas de aço eram vermelhas e douradas. Onde o homem não estava coberto de metal, as roupas eram de couro escuro. A espada de duas mãos em suas costas, com a lâmina curva, também tinha bainha e cinturão em couro preto e vermelho.
Então a figura de armadura removeu o elmo, e Domon ficou estupefato. Era uma mulher. O cabelo dela estava cortado curto, e o rosto tinha uma expressão severa, mas não havia dúvida. O capitão do Espuma jamais ouvira falar de algo assim, exceto entre os Aiel, e todos sabiam que os Aiel eram loucos. Tão desconcertante quanto aquilo, era o fato de que o rosto da mulher não parecia tão exótico como ele imaginara uma Seanchan. Os olhos eram azuis, é verdade, e a pele, excessivamente clara, mas ele já vira aquilo antes. Se aquela mulher estivesse de vestido, ninguém lhe olharia duas vezes. Ele a observou com mais atenção e mudou de ideia: aquele olhar frio e aquelas bochechas austeras fariam com que ela se sobressaísse em qualquer lugar.
Os outros soldados seguiram a mulher e subiram a bordo. Domon ficou aliviado ao perceber, quando alguns tiraram seus elmos estranhos, que os outros, ao menos, eram homens. Homens de olhos negros ou castanhos, que poderiam ter passado despercebidos em Tanchico ou Illian. Domon já tinha começado a imaginar exércitos de mulheres de olhos azuis carregando espadas. Aes Sedai com espadas, pensou, lembrando-se do mar em erupção.
A Seanchan analisou o navio com arrogância, então identificou Domon como o capitão: tinha de ser ele ou Yarin, pelas roupas, mas o jeito como Yarin fechava os olhos e murmurava preces sugeria que era Domon. Ela o fitou com um olhar que parecia um dardo.
— Há alguma mulher em sua tripulação ou entre seus passageiros? — Ela falava de um jeito suave e arrastado que tornava di ícil compreendê-la, mas seu tom indicava que estava acostumada a obter as respostas que queria. — Fale, homem, se for o capitão. Se não for, acorde o outro tolo e diga-lhe para falar.
— Sou eu, sim, o capitão, milady — respondeu Domon, com cautela. — Não fazia ideia de como se dirigir a ela, e não queria pisar em falso. — Nem tenho passageiros nem mulheres na minha tripulação. — Ele pensou nas meninas e mulheres que haviam sido levadas, e, não pela primeira vez, se perguntou o que aquela gente queria com elas.
Domon percebeu, atônito, que as duas mulheres vestidas como mulheres subiam do escaler, uma conduzindo a outra com uma corrente de metal. A corrente ia de um bracelete usado pela primeira a uma coleira em torno do pescoço da segunda. Ele não conseguia dizer se a corrente estava entrelaçada ou fundida, já que de alguma forma parecia as duas coisas, mas claramente era uma única peça, do bracelete ao colar. A primeira mulher enrolava a corrente conforme a segunda subia ao convés. A mulher de coleira usava roupas simples de um cinza-escuro e permanecia com uma das mãos sob a outra e o olhar fixo nas tábuas sob seus pés. A outra tinha painéis vermelhos ostentando raios prateados que se bifurcavam no colo do vestido azul e nas laterais da saia, que terminava quase no tornozelo das botas. Domon as observava com desconforto.
— Fale devagar, homem — exigiu a guerreira de olhos azuis, com a fala arrastada. Ela atravessou o convés para confrontá-lo, olhando para cima para encará-lo, mas, de alguma forma, parecendo maior e mais larga que ele. — Você é ainda mais di ícil de entender do que os outros habitantes dessa terra abandonada pela luz. E eu sequer a firmei ser do Sangue. Ainda não. Depois do Corenne… Sou a capitã Egeanin.
Domon repetiu o que dissera, tentando falar mais devagar, e acrescentou:
— Eu sou, sim, um mercador pací ico. Nem lhe desejo mal, nem tenho qualquer coisa a ver com sua guerra. — Ele não conseguiu evitar olhar outra vez para as mulheres ligadas pela corrente.
— Mercador pací ico? — repetiu Egeanin. — Neste caso, você estará livre para partir quando jurar lealdade outra vez. — Ela percebeu seu olhar e virou-se para as duas mulheres com o orgulho de quem olha uma propriedade. — Você admira minha damane? Ela custou caro, mas valeu cada moeda. Poucos além dos nobres possuem uma damane, e a maioria é propriedade do trono. Ela é forte, mercador. Poderia ter despedaçado seu navio, se eu quisesse.
Domon olhou para a mulher e para a corrente prateada. Ele ligara a que ostentava os raios com os jorros flamejantes no mar, e presumira que fosse uma Aes Sedai. Egeanin acabara de dar um nó em sua cabeça. Ninguém conseguiria fazer isso com…
— Ela é uma Aes Sedai? — perguntou, incrédulo.
O tapa, dado sem hesitação, com as costas da manopla, o pegou totalmente de surpresa. Ele cambaleou. O aço cortara-lhe o lábio.
— Esse nome nunca é dito — informou-lhe Egeanin, com uma suavidade perigosa. — Há apenas as damane, as Encolaradas, e agora elas servem à verdade e fazem jus ao nome. — Os olhos dela fariam o gelo parecer quente.
Domon engoliu um pouco de sangue e manteve os punhos cerrados ao lado do corpo. Mesmo com uma espada à mão, ele não condenaria sua tripulação à morte contra uma dezenas de soldados armados, mas foi um esforço manter a voz humilde.
— Nem quis ofender, capitã. Nem sei nada sobre vocês ou seus costumes. Se no caso ofendi foi por ignorância, sem intenção.
Ela olhou para ele e disse:
— Vocês são todos ignorantes, capitão, mas vão pagar a dívida de seus antepassados. Essa terra foi nossa, e será nossa outra vez. Com o Retorno, ela será nossa outra vez. — Domon não sabia o que dizer… Ela não pode estar tentando dizer que aquela baboseira sobre Artur Asa-de-gavião é verdade… então manteve a boca fechada.
— Você seguirá com sua embarcação para Falme. — Ele tentou protestar, mas o olhar severo dela o silenciou. — Lá, você e o navio serão examinados. Se for apenas um mercador pací ico, como diz, poderá seguir seu caminho quando tiver feito os juramentos.
— Juramentos, capitã? Que juramentos?
— Obedecer, aguardar e servir. Seus ancestrais deveriam ter se lembrado.
Ela reuniu seus soldados, exceto por um homem que usava uma armadura simples, indicando que era de baixa patente tanto quanto o tamanho de sua reverência à capitã Egeanin, e seguiu no escaler para o navio maior. O Seanchan que ficou não deu quaisquer ordens, limitou-se a sentar de pernas cruzadas no convés e começar a afiar a espada enquanto a tripulação içava as velas e o navio partia. Ele não parecia nem um pouco temeroso de estar sozinho, e o próprio Domon teria jogado ao mar qualquer homem que erguesse a mão contra ele, pois, enquanto o Espuma seguia seu caminho pela costa, o navio dos Seanchan os seguia por águas mais profundas. Uma milha separava as duas embarcações, mas Domon sabia que não havia chance de escapar, e pretendia devolver o homem à capitã Egeanin tão seguro quanto se ele tivesse sido ninado nos braços da própria mãe.
Era um longo caminho até Falme, e Domon finalmente persuadiu o estrangeiro a falar um pouco. Seu nome era Caban, tinha olhos escuros, estava na meia-idade e ostentava uma velha cicatriz acima dos olhos e outra no queixo. Além disso, não sentia nada além de desprezo por qualquer pessoa deste lado do Oceano de Aryth. Aquilo fez Domon parar por um instante. Talvez eles sejam mesmo… Não. Isso sim é loucura. A fala de Caban era arrastada igual a de Egeanin, mas, enquanto a dela era como seda deslizando em ferro, a dele lembrava mais couro raspando na pedra, e ele falava mais sobre batalhas, bebida e as mulheres que conhecera. Metade das vezes, Domon não sabia ao certo se estavam falando dali e do presente ou de qualquer terra de onde o homem tivesse vindo. O Seanchan decerto não era solícito em responder ao que quer que Domon quisesse saber.
Domon do Espuma chegou a perguntar sobre as damane. Caban ergueu a espada, ainda sentado em frente ao timoneiro, e encostou a ponta da lâmina no pescoço dele.
— Cuidado com a língua, ou vai acabar ficando sem ela. Isso é assunto do Sangue, não da sua laia. Nem da minha. — Ele sorriu ao dizer aquilo, e, assim que acabou, voltou a deslizar uma pedra ao longo da lâmina curva e pesada.
Domon tocou a gota de sangue acima do colarinho e resolveu não fazer mais perguntas. Pelo menos, não sobre aquele assunto.
Quanto mais perto as embarcações chegavam de Falme, por mais navios dos Seanchan, altos e de aparência quadrada, eles passavam. Alguns estavam em movimento, porém mais ainda se encontravam ancorados. Cada um deles tinha uma proa larga com torres e era maior que qualquer embarcação que Domon já tivesse visto, mesmo entre o Povo do Mar. Alguns barcos locais, reparou, atravessavam as ondas verdejantes com suas proas agudas e velas inclinadas. A visão lhe deixou con fiante de que Egeanin falara a verdade sobre liberá-lo para partir.
Quando o Espuma chegou ao cabo onde se situava Falme, Domon ficou boquiaberto com a quantidade de navios Seanchan ancorados no porto. Tentou contá-los e desistiu no cem, antes mesmo de chegar à metade. Já vira aquela quantidade de navios em um só lugar antes, em Illian, Tear, ou mesmo Tanchico, mas naquele caso houvera embarcações menores. Resmungando baixinho, ele levou o Espuma ao porto, conduzido por seu grande cão de guarda Seanchan.
Falme ficava em um braço de terra no extremo da Ponta de Toman, sem nada a oeste além do Oceano de Aryth. Penhascos altos flanqueavam os dois lados da entrada do porto, e, no topo, de modo que todos os navios que ali entrassem precisassem passar por baixo delas, ficavam as torres dos Vigias das Ondas. Havia uma gaiola pendurada ao lado de uma delas, com um homem sentado parecendo sem esperanças, com as pernas pendendo pelas barras.
— Quem é aquele? — perguntou Domon.
Caban finalmente cansara de afiar a espada, depois de Domon começar a se perguntar se ele pretendia se barbear com ela. O Seanchan ergueu o olhar para onde Domon apontava.
— Ah. Aquele é o Primeiro Vigia. Não o que se sentava na cadeira quando chegamos, claro. Toda vez que ele morre, escolhem outro e o colocamos na gaiola.
— Mas por quê? — indagou Domon.
O sorriso de Caban mostrou dentes demais.
— Eles mantiveram vigília esperando pela coisa errada e esqueceram o que deveriam ter continuado a lembrar.
Domon se forçou a parar de olhar para o Seanchan. O Espuma deslizou pela última ondulação real do mar e adentrou as águas mais calmas do porto. Eu sou só um comerciante, e nem é da minha conta.
Falme se erguia das docas de pedra nas encostas da depressão onde ficava o porto. Domon não soube dizer se as casas escuras de pedra compunham uma aldeia grande ou uma cidade pequena. Com certeza não vira um prédio sequer que rivalizasse com o menor dos palácios de Illian.
Ele conduziu o Espuma até uma das docas, e se perguntou, enquanto a tripulação aportava o barco, se os Seanchan comprariam alguns dos fogos de artifício em seu porão. Nem é da minha conta.
Para sua surpresa, Egeanin fez com que os remadores a levassem à doca com sua damane. Outra mulher usava o bracelete, com os mesmos painéis vermelhos e raios bifurcados no vestido, mas a damane era a mesma mulher de expressão triste que jamais erguia o olhar a menos que a outra falasse com ela. Egeanin mandou Domon e a tripulação serem retirados do navio e se sentarem na doca sob o olhar atento de dois soldados. Ela parecia achar que não precisava de mais, e o capitão do Espuma não discutiria. Enquanto isso, os outros vasculhavam a embarcação sob a supervisão dela. A damane ajudava na busca.
Mais à frente, nas docas, uma coisa apareceu. Domon não conseguia pensar em outra forma de descrevê-la. Era uma criatura corpulenta com uma pele de couro verde-acinzentado e um bico no lugar da boca, com uma cabeça em forma de cunha. E três olhos. Ela andava pesadamente ao lado de um homem cuja armadura tinha três olhos pintados, iguais aos da criatura. Os locais, estivadores e marinheiros em camisas de bordados rústicos e longos coletes que se estendiam até os joelhos, afastavam-se, temerosos. Mas nenhum Seanchan os olhava duas vezes. O homem com a fera parecia lhe dizer para onde ir por meio de gestos.
Homem e criatura viraram e sumiram por entre os prédios, deixando Domon estupefato e a tripulação murmurando baixinho entre si. Os dois guardas Seanchan escarneceram em voz baixa. Nem é da minha conta, Domon lembrou a si mesmo. O que era de sua conta era seu navio.
O ar tinha um cheiro familiar de água salgada e piche. Ele mudou de posição, inquieto, pisando no chão de pedra aquecido pelo sol, e se perguntou o que os Seanchan estariam procurando. O que a damane estaria procurando. O que era aquela coisa. Gaivotas grasnaram, circulando acima do porto. Ele pensou nos sons que um homem em uma gaiola poderia fazer. Nem é da minha conta.
Por fim, Egeanin levou os outros de volta à doca. A capitã Seanchan trazia algo embrulhado em um pedaço de seda amarela, Domon notou, preocupado. Algo pequeno o bastante para ser carregado em uma única mão, mas que ela segurava com as duas, com muito cuidado.
Ele se levantou. Devagar, por causa dos soldados, embora os olhares deles tivessem o mesmo desprezo que vira no de Caban.
— Vê, capitã? Eu sou, sim, apenas um comerciante pací ico. Quem sabe seu povo não queira comprar alguns fogos de artifício?
— Talvez, comerciante. — Havia nela um ar de empolgação reprimida que o deixava desconfortável, e as palavras seguintes intensificaram a sensação: — Você vem comigo.
Ela disse aos dois soldados para acompanhá-los, e um deles empurrou Domon para fazê-lo andar. Não foi um empurrão rude. Ele já vira fazendeiros empurrarem vacas daquele jeito, apenas para que se movessem. Trincando os dentes, ele seguiu Egeanin.
A rua calçada de pedras seguia encosta acima, e deixaram para trás o cheiro do porto. As casas com tetos de lajotas ficavam maiores e mais altas conforme a rua subia. Ficou surpreso ao perceber que, em uma cidade sob o comando de invasores, havia mais gente local nas ruas do que soldados, e de vez em quando passava uma liteira carregada por homens sem camisa. A população de Falme parecia seguir com a vida como se os Seanchan não estivessem ali. Ou quase. Quando uma liteira ou um soldado passavam, tanto os pobres, com roupas sujas um pouco esfarrapadas, quanto os mais ricos, com camisas, coletes e vestidos cobertos dos ombros à cintura em bordados de padrões intrincados, curvavam-se e permaneciam assim até que os Seanchan passassem. Fizeram o mesmo para Domon e sua escolta. Egeanin e os guardas sequer olharam na direção deles.
Domon percebeu, com um choque, que algumas das pessoas pelas quais passavam tinham adagas no cinturão, e, em alguns casos, espadas. Estava tão surpreso que falou sem pensar:
— Alguns deles estão do lado de vocês?
Egeanin olhou para trás e franziu a testa, obviamente intrigada. Sem diminuir o passo, ela olhou para as pessoas e assentiu para si mesma.
— Você está falando das espadas. Eles são do nosso povo, agora, comerciante: eles fizeram os juramentos. — Ela parou abruptamente, apontando para um homem alto, de ombros musculosos, com um colete bastante bordado e uma espada pendendo em um cinturão de couro liso. — Você.
O homem parou no meio de um passo, com um pé no ar e uma expressão assustada no rosto. Era um rosto duro, mas ele parecia querer correr. Em vez disso, virou-se para ela e se curvou, com as mãos nos joelhos e os olhos fixos nas botas da capitã.
— Como posso servi-la, capitã? — perguntou, tenso.
— Você é um mercador? — indagou Egeanin. — Fez os juramentos?
— Sim, capitã. Sim. — Ele não desviou o olhar das botas dela.
— O que diz às pessoas quando vai ao interior com seus carroções?
— Que eles precisam obedecer os Precursores, capitã, aguardar o Retorno e servir a Os Que Voltam Para Casa.
— E você nunca pensa em usar essa espada contra nós?
As mãos do homem ficaram brancas de tanto apertar os joelhos, e sua ansiedade transpareceu na voz.
— Eu fiz os juramentos, capitã. Eu obedeço, aguardo e sirvo.
— Viu? — perguntou Egeanin, virando-se para Domon. — Não há motivo para proibir armas. Precisa haver comércio, e os mercadores precisam se proteger de bandidos. Deixamos que as pessoas venham e vão como quiserem, desde que obedeçam, aguardem e sirvam. Os antepassados deles quebraram os juramentos, mas esses aqui aprenderam a não fazê-lo. — Ela continuou a subir o morro, e os soldados empurraram Domon para que a seguisse.
Ele olhou de volta para o mercador. O homem permaneceu curvado como estava até que Egeanin estivesse mais dez passos à frente, na rua. Então, se endireitou e se apressou na outra direção, descendo a ladeira às pressas.
A capitã e os guardas também não olharam para trás quando uma tropa montada dos Seanchan passou por eles, rua acima. Os soldados montavam criaturas que pareciam quase gatos do tamanho de cavalos, mas com escamas reptilianas reluzindo como bronze sob as selas. Patas com garras se agarravam às pedras do calçamento. Uma cabeça com três olhos se virou para olhar para Domon enquanto a tropa passava. Independente de qualquer outra coisa, ela parecia… inteligente demais para a paz de espírito dele. Por toda a rua, a população de Falme se espremia junto às paredes dos prédios, alguns de olhos fechados. Os Seanchan não lhes davam a menor atenção.
Domon entendeu por que os forasteiros podiam permitir às pessoas tanta liberdade. Ele se perguntava se teria tido coragem suficiente para resistir. Damane. Monstros. Ele se perguntava se havia algo que pudesse impedir os Seanchan de marcharem até a Espinha do Mundo. Nem é da minha conta, forçou-se a lembrar, e considerou se haveria alguma possibilidade de evitar aquela gente em suas transações futuras.
Chegaram ao topo da elevação, onde a cidade dava lugar a colinas. Não havia muralhas. À frente, estavam as estalagens que atendiam os mercadores que faziam negócios no interior, pátios para carroções e estábulos. Ali, as casas seriam consideradas mansões respeitáveis para os lordes menores de Illian. A maioria tinha uma guarda de honra de soldados Seanchan na frente, e um estandarte de borda azul com um gavião dourado de asas abertas ondulando. Egeanin entregou a espada e a adaga antes de levar Domon para dentro. Seus dois soldados permaneceram na rua. Domon começou a suar. Ele sentia cheiro de nobreza naquilo, e era sempre ruim fazer negócios com um lorde em seu próprio território.
No salão da frente, Egeanin deixou Domon na porta e falou com um serviçal. Um homem local, a julgar pelas mangas folgadas da camisa e as espirais bordadas de um lado ao outro do peito. Domon julgou ouvir a palavra “Grão-lorde”. O serviçal saiu às pressas, retornando para levá-los ao que certamente era o maior aposento da casa. Todo vestígio de mobília fora retirado, até mesmo os tapetes, e o chão de pedra fora polido até brilhar. Biombos com pinturas de pássaros estranhos ocultavam as paredes e janelas.
Egeanin parou na entrada do aposento. Quando Domon tentou perguntar onde estavam e por quê, ela o silenciou com um olhar feroz e um rosnado. Não se movia, mas parecia inquieta. Segurava o que quer que tivesse pegado do Espuma como se fosse precioso. Ele tentou imaginar o que poderia ser.
De repente, um gongo soou baixo, e a capitã se ajoelhou, pondo o embrulho de seda a seu lado com cuidado. A um olhar dela, Domon também se abaixou. Lordes tinham costumes estranhos, e ele suspeitava que os lordes Seanchan tivessem alguns ainda mais estranhos.
Dois homens apareceram à porta, do outro lado da sala. Um tinha o lado esquerdo da cabeça raspado, com o restante dos cabelos louros pálidos trançados e caindo por sobre a orelha até o ombro. Sua túnica, de um amarelo profundo, deixava apenas os bicos de sandálias amarelas à mostra quando andava. O outro usava uma túnica de seda azul, com brocados de pássaros, longa o suficiente para arrastar quase uma braça no chão atrás dele. Sua cabeça era inteiramente raspada, e suas unhas tinham pelo menos uma polegada, com as dos dois primeiros dedos de cada mão pintadas de azul. Domon ficou boquiaberto.
— Você está na presença do Grão-lorde Turak — entoou o louro —, que lidera Os Que Vêm Antes e auxilia no Retorno.
Egeanin se prostrou com as mãos ao lado do corpo. Domon a imitou prontamente. Nem mesmo os Grão-lordes de Illian exigiriam isso , pensou. Pelo canto do olho, viu Egeanin beijar o chão. Com uma carranca, resolveu que havia um limite. Eles nem podem ver o que eu faço ou nem faço, de qualquer jeito.
Egeanin se levantou de repente. Ele também começou a se erguer, e chegou a erguer um joelho antes que um rosnado dela e um olhar escandalizado do homem da trança o fizessem voltar a se abaixar, com o rosto rente ao chão, resmungando entre dentes. Eu nem faria isso nem para o Rei de Illian e o Conselho dos Nove juntos.
— Seu nome é Egeanin? — Tinha de ser a voz do homem de túnica azul. Sua fala arrastada tinha um ritmo quase cantado.
— Assim fui chamada no meu dia da espada, Grão-lorde — respondeu ela, humilde.
— É um exemplar excelente, Egeanin. Bastante raro. Você deseja um pagamento?
— Deixar o Grão-lorde contente é pagamento suficiente. Eu vivo para servir, Grão-lorde.
— Mencionarei seu nome à Imperatriz, Egeanin. Depois do Retorno, novos nomes serão chamados ao Sangue. Mostre-se digna, e poderá abandonar o nome Egeanin e adotar outro, mais nobre.
— O Grão-lorde me honra.
— Sim. Você pode ir.
Domon não conseguiu ver nada além das botas dela recuando para sair do aposento, parando regularmente para se curvar. A porta se fechou, e houve um longo silêncio. Já via o suor de sua testa pingar no chão quando Turak falou outra vez.
— Pode se levantar, comerciante.
Domon ficou de pé, e viu o que Turak segurava entre os dedos com unhas compridas. O disco de cuendillar no formato do antigo símbolo das Aes Sedai. Lembrando-se da reação de Egeanin quando as mencionou, Domon começou a suar ainda mais. Não havia animosidade nos olhos escuros do Grão-lorde, apenas uma leve curiosidade, mas Domon não confiava em lordes.
— Você sabe o que é isso, comerciante?
— Não, Grão-lorde. — A resposta de Domon foi firme como uma rocha: nenhum comerciante durava muito se não conseguisse mentir com a cara deslavada e a voz tranquila.
— E ainda assim o mantinha em um lugar secreto.
— Eu coleciono antiguidades, Grão-lorde, de épocas passadas. Sim, há quem roubaria esse tipo de coisa, caso a tivesse ao alcance.
Turak observou o disco preto e branco por um momento.
— Isso é cuendillar, comerciante. Você conhece esse nome? E é mais antigo do que você pensa, talvez. Venha comigo.
Domon seguiu o homem com cautela, sentindo-se um pouco mais seguro de si. Com qualquer lorde das terras que conhecia, os guardas já teriam sido chamados se essa fosse a intenção. Mas o pouco que vira dos Seanchan mostrara que eles não faziam as coisas como os demais. Então manteve sua expressão impassível.
Ele foi levado a outro aposento. Achou que a mobília ali devia ter sido trazida por Turak. Parecia toda feita de curvas, sem uma linha reta sequer, e a madeira era polida para realçar uma granulação estranha. Havia uma cadeira, em um tapete de seda tecida com pássaros e flores, e um grande armário circular. Biombos formavam novas paredes.
O homem de trança abriu as portas do armário para revelar prateleiras que abrigavam toda sorte de figuras estranhas, taças, tigelas, vasos… cinquenta coisas diferentes, nenhuma igual a outra em tamanho e formato. Domon engasgou quando Turak colocou o disco, com muito cuidado, ao lado de um gêmeo idêntico.
— Cuendillar — começou Turak — é o que eu coleciono, comerciante. Apenas a própria Imperatriz tem uma coleção melhor.
Os olhos de Domon quase saltaram da cabeça. Se tudo naquelas prateleiras era realmente de cuendillar, era o suficiente para comprar um reino, ou pelo menos fundar uma grande Casa. Até mesmo um rei talvez precisasse mendigar para comprar tanto, se soubesse onde encontrar essa quantidade. Deu um sorriso.
— Grão-lorde, por favor, aceite esta peça como um presente. — Não queria abrir mão dela, mas era melhor do que enfurecer aquele Seanchan. Talvez os Amigos das Trevas passem a perseguir aquele Lorde. — Sim, sou apenas um simples comerciante. Quero apenas fazer meus negócios. Deixe que eu parta, e eu lhe prometo…
A expressão de Turak não se alterou, mas o homem com a trança interrompeu Domon e vociferou:
— Seu cão barbado! Você fala sobre dar ao Grão-lorde o que a capitão Egeanin já deu. Você barganha, como se o Grão-lorde fosse um… um mercador! Você será esfolado vivo por nove dias, cão, e… — O mínimo movimento do dedo de Turak o silenciou.
— Não posso permitir que você parta, comerciante — disse o Grão-lorde. — Nesta terra abandonada pela luz por perjuros, não encontro ninguém capaz de conversar com um homem de sensibilidades. Mas você é um colecionador. Talvez sua conversa seja interessante. — Ele sentou na cadeira, recostando-se em suas curvas para estudar Domon.
Domon deu o que esperava ser um sorriso simpático.
— Grão-lorde, sou, sim, um simples comerciante apenas. Nem tenho jeito para falar com grandes Lordes.
O homem da trança o fitou com raiva, mas Turak pareceu não ouvir. Uma jovem magra e bonita surgiu, com passos rápidos, de detrás dos biombos e ajoelhou-se ao lado do Grão-lorde, oferecendo uma bandeja laqueada com um único copo ino contendo algum líquido preto fumegante. Seu rosto escuro e redondo lembrava vagamente o Povo do Mar. Turak pegou o copo com cuidado nas mãos de unhas grandes, sem olhar para a jovem, e inalou a fumaça. Domon deu uma olhada na menina e desviou os olhos com um engasgo estrangulado: a túnica que vestia, de seda e bordada com flores, era tão fina que ele conseguia ver através dela, e não havia nada por baixo além da própria magreza da moça.
— O aroma do kaf — disse Turak — é quase tão agradável quanto o gosto. Agora, comerciante. Descobri que o cuendillar é ainda mais raro aqui do que em Seanchan. Explique-me como um simples mercador conseguiu aquela peça. — Ele sorveu um pequeno gole de seu kaf e esperou.
Domon respirou fundo e começou a tentar abrir caminho para fugir de Falme. Mentindo.