45 Mestre Espadachim

O sol nascente avermelhado despontou no horizonte, projetando longas sombras nas ruas calçadas de pedra, que desciam rumo ao porto de Falme. Uma brisa marinha dobrava a fumaça das chaminés, acesas para o preparo dos cafés da manhã. Apenas os que acordavam cedo estavam fora de casa, soltando nuvens de vapor pela boca por conta do frio da manhã. A cidade parecia quase vazia em comparação à multidão que tomaria as ruas uma hora mais tarde.

Sentada sobre um barril virado, na frente de uma loja de ferragens ainda fechada, Nynaeve aquecia as mão debaixo dos braços e inspecionava seu exército. Min estava sentada no batente de uma porta do outro lado da rua, envolta no manto Seanchan, comendo uma ameixa seca. Elayne, em seu casaco de lã, se encolhia na entrada de um beco um pouco mais à frente. Um saco grande, afanado das docas, estava ao lado de Min, dobrado com cuidado. Meu exército , pensou Nynaeve, taciturna. Mas não há mais ninguém.

Ela avistou uma sul’dam e uma damane subindo a rua. A loira usava o bracelete, a morena, o colar, e ambas bocejavam, sonolentas. Os poucos falmenos também na rua desviavam os olhos e mantinham distância. Seu campo de visão ia até o porto, e não havia outro Seanchan à vista. Ela não virou a cabeça. Em vez disso, espreguiçou-se e moveu os ombros gelados, como se precisasse massageá-los e depois voltar à mesma posição. Min pôs a ameixa meio comida de lado, olhou para a rua com naturalidade e se recostou na porta. O caminho também estava livre naquela direção, ou ela teria apoiado as mãos nos joelhos. A menina havia começado a esfregar as mãos, nervosa, e Nynaeve percebeu que Elayne também se remexia, inquieta.

Se essas duas nos denunciarem, acerto a cabeça delas. Mas ela sabia que, se fossem descobertas, os Seanchan é quem diriam o que seria feito das três. Estava ciente de que não tinha ideia se o plano funcionaria ou não. Sua própria falha poderia ser o que as denunciaria. Mais uma vez, decidiu que, se qualquer coisa saísse errado, chamaria a atenção para si mesma enquanto Min e Elayne escapavam. Havia mandado as duas fugirem caso houvesse algum problema, e as fizera pensar que também fugiria. O que faria depois, não sabia. Mas não vou deixar que me peguem viva. Por favor, Luz, isso não.

Sul’dam e damane subiram a ladeira até alcançarem o ponto onde as três mulheres estavam à espera. Uma dezena de falmenos passava por ali, todos mantendo distância do par unido pela corrente.

Nynaeve reuniu toda a raiva que tinha. Encolaradas e Senhoras do Colar. Elas tinham prendido uma daquelas coleiras imundas no pescoço de Egwene, fariam o mesmo com ela e Elayne, se pudessem. Ela obrigara Min a contar como as sul’dam impunham sua vontade. Tinha certeza de que a jovem omitira alguns detalhes, os piores, mas o que ouvira fora suficiente para deixá-la com uma fúria incandescente. Em um instante, uma flor branca brotou em um ramo negro e espinhoso, abrindo-se para a luz, para saidar, e o Poder Único a preencheu. Ela sabia que havia um brilho à sua volta, para os que eram capazes de vê-lo. A sul’dam pálida levou um susto, e a damane morena ficou boquiaberta, mas Nynaeve não lhes deu nem chance. Canalizou apenas uma gota do poder, que estalou como um chicote.

A coleira prateada se abriu e caiu com um tinido sobre as pedras do calçamento. Nynaeve soltou um suspiro pesado de alívio, mas, no mesmo instante, levantou-se de um salto.

A sul’dam olhou para a coleira no chão como se encarasse uma cobra venenosa. A damane levou uma das mãos ao pescoço, trêmula. Antes que a mulher no vestido com desenhos de raios tivesse tempo de se mover, a damane se virou e socou na cara dela. Os joelhos da sul’dam cederam, e ela quase caiu.

— Bem feito! — gritou Elayne.

Ela também já avançava, assim como Min.

Antes de qualquer uma delas conseguir chegar até as duas mulheres, a damane olhou em volta, assustada, e correu o mais depressa que podia.

— Não vamos machucar você! — chamou Elayne. — Somos amigas!

— Fique quieta! — sibilou Nynaeve. Ela puxou um punhado de trapos do bolso e enfiou na boca da sul’dam, que ainda cambaleava, de queixo caído. Min sacudiu o saco, formando uma nuvem de poeira, e o enfiou pela cabeça d a sul’dam, cobrindo-a até a cintura. — Já estamos atraindo atenção demais.

Era verdade, mas não totalmente. A rua em que estavam se esvaziava depressa, e as pessoas que se afastavam, pensando que era melhor estar em outro lugar, evitavam olhar para o grupo. Nynaeve contava com aquilo para ganhar alguns instantes, com as pessoas fazendo o melhor que podiam para ignorar tudo que tivesse relação com os Seanchan. Os boatos apareceriam, mais cedo ou mais tarde, mas seriam apenas sussurros. Talvez levasse horas até que os Seanchan soubessem que qualquer coisa acontecera.

A mulher encapuzada começou a lutar, soltando gritos que eram abafados pelo saco, mas Nynaeve e Min a envolveram com os braços e a forçaram em direção a uma viela próxima. A corrente e a coleira se arrastavam atrás, tilintando contra as pedras.

— Pegue isso — mandou Nynaeve, dirigindo-se para Elayne com um tom ríspido. — Ela não vai morder você!

Elayne respirou fundo e segurou o metal prateado com cuidado, como se tivesse mesmo medo que ele fosse mordê-la. Nynaeve sentiu certa pena, mas não muita. Tudo dependia de seguirem o plano.

A sul’dam esperneava e tentava se soltar, mas, juntas, Nynaeve e Min a levaram à força pela viela até uma outra passagem um pouco mais larga atrás das habitações. Passaram por outra viela e, por fim, adentraram uma cabana rústica, de madeira, que já abrigara dois cavalos, a julgar pelas baias. Não eram muitos que podiam arcar com a manutenção de cavalos desde a chegada dos Seanchan, e, depois de um dia de vigia, Nynaeve não vira ninguém se aproximar do lugar. O interior estava úmido e empoeirado, indícios de abandono. Assim que todas entraram, Elayne deixou cair a corrente prateada e limpou as mãos na palha.

Nynaeve canalizou outra gota de poder, e o bracelete caiu no chão sujo. A sul’dam guinchava e se debatia.

— Prontas? — perguntou Nynaeve. As outras duas assentiram, e elas arrancaram o saco da cabeça da prisioneira.

A sul’dam respirava, ofegante, com os olhos azuis lacrimejando por causa da poeira, mas seu rosto estava vermelho tanto pelo saco quanto pela raiva. Ela tentou correr para a porta, mas as outras a impediram logo no primeiro passo. Não era fraca, mas eram três contra uma. Quando terminaram, a sul’dam estava sem o vestido e jazia em uma das baias, com as mãos e os pés amarrados com uma corda grossa enquanto outra corda a impedia de cuspir a mordaça.

Massageando um lábio inchado, Min examinou o vestido com raios e as botas macias que haviam estendido no chão.

— Pode ser que sirva em você, Nynaeve. Não vai caber em Elayne ou em mim.

A outra jovem tirava palha do cabelo.

— Eu percebi. Mas você nunca foi uma opção mesmo. Elas a conhecem bem demais. — Nynaeve despiu-se depressa. Jogou as roupas de lado e pôs o vestido da sul’dam. Min ajudou com os botões.

Nynaeve mexeu os dedos nas botas. Estavam um pouco apertadas. O vestido também estava apertado no peito, mas folgado no restante do corpo. A bainha ia quase até o chão, mais baixa do que a sul’dam usava, mas ficaria ainda pior nas outras duas. Pegando o bracelete, ela respirou fundo e o prendeu no pulso esquerdo. As extremidades se fundiram, ele parecia sólido. A sensação era de nada além de um bracelete. Receara que não fosse assim.

— Pegue o vestido, Elayne. — Tinham escondido ali um par de vestidos que tingiram, um dela e um de Elayne, com o mesmo tom cinza-escuro que as damane usavam, ou o mais próximo que conseguiram. A menina não se moveu, exceto para encarar o colar aberto e umedecer os lábios. — Elayne, você precisa usar o colar. Muitas delas já viram Min, para ela correr o risco. Eu o usaria se o vestido coubesse em você. — Ela achava que enlouqueceria se precisasse usar a coleira, então não conseguiu usar um tom severo com Elayne.

— Eu sei — suspirou a jovem. — Só queria saber melhor sobre o que essa coisa faz com quem usa. — Ela tirou o cabelo louro acobreado do caminho. — Min, por favor, me ajude. — A outra começou a desabotoar as costas do vestido de Elayne.

Nynaeve conseguiu pegar a coleira prateada sem vacilar.

— Só há um jeito de descobrir. — Após um breve momento de hesitação, ela se abaixou e a prendeu no pescoço da sul’dam. Se alguém merece isso, é ela, disse a si mesma, com firmeza. — Ela talvez possa nos dizer algo de útil, de qualquer forma. — Os olhos azuis da mulher fitaram a corrente prateada que ia de seu pescoço ao pulso de Nynaeve, a quem encarou com desprezo.

— Não é assim que funciona — tentou dizer Min, mas Nynaeve mal pôde ouvir.

Ela estava… ciente… da outra mulher, do que ela sentia, da corda apertando os tornozelos e os pulsos atrás das costas, do gosto rançoso de peixe dos trapos na boca, da palha pinicando através do tecido ino do que ela usara por baixo do vestido. Não era como se ela, Nynaeve, sentisse aquelas coisas. Em sua cabeça havia um aglomerado de sensações que sabia pertencerem à sul’dam.

Engoliu em seco, tentando ignorá-las, mas elas não iam embora. Então se dirigiu à mulher amarrada:

— Não vou machucá-la se responder às minhas perguntas. Nós não somos Seanchan, mas, se você mentir para mim… — Ela ergueu a corrente de forma ameaçadora.

Os ombros da mulher tremeram, e os lábios se entortaram em volta da mordaça. Levou apenas um instante para Nynaeve perceber que a sul’dam estava rindo.

Ela cerrou os dentes, mas então teve uma ideia. Aquele aglomerado de sensações em sua cabeça pareciam ser tudo o que a outra mulher sentia, fisicamente. Experimentou acrescentar sensações àquilo.

A sul’dam deu um berro que a mordaça não abafou muito bem, e seus olhos se arregalaram de repente. Sacudindo as mãos como se tentasse afastar alguma coisa, ela se arrastou pela palha em uma vã tentativa de escapar.

Nynaeve ficou boquiaberta, e apagou a sensação extra mais do que depressa. A sul’dam arquejava, choramingando.

— O quê… O que você… fez com ela? — perguntou Elayne, com a voz débil.

Min apenas olhava, estupefata.

Nynaeve respondeu em um tom áspero:

— O mesmo que Sheriam fez quando você jogou um copo em Marith. — Luz, isso é nojento!

Elayne engoliu em seco bem alto.

— Ah!

— Mas um a’dam não deveria funcionar assim — a firmou Min. — Elas sempre dizem que não funciona em mulheres incapazes de canalizar.

— Não me importa como deveria funcionar, contanto que funcione.

Nynaeve segurou a corrente de metal prateado bem onde ela se ligava à coleira. Então ergueu a outra apenas o suficiente para encará-la nos olhos.

— Você me ouça, e ouça bem. Quero respostas, e, se não recebê-las, farei você achar que arranquei seu couro. — Uma expressão de puro terror passou pelo rosto da mulher, e Nynaeve sentiu o estômago embrulhar de repente, quando se deu conta de que a sul’dam entendera a ameaça de forma literal. Se ela acha que eu posso, é porque sabe. É isso que essa corrente faz. Ela fez força para se controlar, tentando se impedir de arrancar o bracelete do pulso. Em vez disso, endureceu a expressão. — Está pronta para responder? Ou precisa de mais persuasão?

O balançar de cabeça frenético foi resposta suficiente. Quando Nynaeve removeu a mordaça, a mulher parou apenas para engolir uma vez antes de começar a tagarelar.

— Eu não vou denunciá-las. Eu juro. Só tirem isso do meu pescoço. Eu tenho ouro. Levem. Eu juro. Nunca contarei a ninguém.

— Fique quieta — ordenou Nynaeve, e a mulher se calou no mesmo instante. — Qual é seu nome?

— Setah. Por favor, vou responder, mas por favor… tire isso de mim! Se alguém vir isso em mim… — Os olhos da mulher baixaram para fitar a corrente, e então se fecharam com força. — Por favor? — sussurrou.

Nynaeve se deu conta de uma coisa: jamais conseguiria fazer Elayne usar aquela coleira.

— É melhor acabarmos logo com isso — falou a Filha-herdeira, com a voz firme. Estava apenas com a roupa de baixo. — Espere um momento para eu colocar esse outro vestido e…

— Ponha suas roupas de novo — mandou Nynaeve.

— Alguém tem que fingir ser damane — argumentou Elayne —, ou nunca chegaremos a Egwene. Esse vestido cabe em você, e não pode ser Min. Só resta eu.

— Eu disse para vestir suas roupas. Temos alguém para ser a Encolarada. — Nynaeve puxou a corrente que prendia Setah, e a sul’dam ofegou.

— Não! Não, por favor! Se alguém me vir… — Ela parou, diante do olhar frio de Nynaeve.

— Pelo que sei, você é pior do que uma assassina, pior do que uma Amiga das Trevas. Não consigo pensar em nada pior do que você. O fato de eu ter de usar essa coisa no meu pulso, ter que fingir ser o mesmo que você, mesmo que por apenas uma hora, me dá náuseas. Então, se acha que eu evitaria fazer qualquer coisa a você, pense outra vez. Você não quer ser vista? Bom. Nós também não. Mas ninguém olha de verdade para uma damane. Enquanto ficar de cabeça baixa, como uma Encolarada deve fazer, ninguém vai notar sua existência. Mas é bom que você dê o seu melhor para garantir que nós também não sejamos vistas. Se formos, tenho certeza de que você também será. E se isso não for o suficiente para conter sua língua, prometo que farei você amaldiçoar o primeiro beijo que sua mãe deu no seu pai. Estamos entendidas?

— Sim — respondeu Setah, com a voz fraca. — Eu juro.

Nynaeve precisou remover o bracelete para que passassem o vestido tingido de Elayne pela corrente e pela cabeça de Setah. Não cabia direito na mulher, ficava folgado no peito e apertado no quadril, mas o de Nynaeve ficaria tão ruim quanto, e curto demais. A Sabedoria torcia para que as pessoas de fato não olhassem para as damane. Ela recolocou o bracelete com relutância.

Elayne recolheu as roupas de Nynaeve, envolveu-as no outro vestido tingido e fez uma trouxa. O tipo de trouxa que uma mulher vestida como camponesa carregaria enquanto segue uma sul’dam e uma damane.

— Gawyn vai comer o próprio coração quando souber disso — disse, rindo. A risada soou forçada.

Nynaeve olhou bem para ela, e então para Min. Estava na hora da parte perigosa.

— Vocês estão prontas?

O sorriso de Elayne se desfez.

— Estou pronta.

— Pronta — respondeu Min.

— Onde vocês… nós… vamos?… — perguntou Setah, acrescentando mais do que depressa um: — … Se me permite a pergunta.

— À cova dos leões — respondeu Elayne.

— Dançar com o Tenebroso — acrescentou Min.

Nynaeve suspirou e sacudiu a cabeça.

— O que elas estão tentando dizer é que vamos para onde ficam todas as damane, e pretendemos libertar uma delas.

Setah ainda estava boquiaberta quando foi empurrada para fora do estábulo.


Bayle Domon observava o sol nascente do convés de seu navio. As docas já começavam a ficar movimentadas, embora as ruas que saíam do porto estivessem bastante vazias. Uma gaivota empoleirada em uma estacada o encarava. Gaivotas tinham olhos impiedosos.

— Tem certeza, capitão? — indagou Yarin. — Se os Seanchan se perguntarem o que estamos todos fazendo a bordo…

— No caso, você só precisa ter certeza de que tem mesmo um machado perto de cada corda — retrucou Domon, seco. — E Yarin? No caso de um homem tentar cortar qualquer corda antes que aquelas mulheres estejam a bordo, eu vou quebrar a cabeça dele.

— E se elas não vierem, capitão? E se em vez delas vierem os soldados Seanchan?

— Acalme essas tripas, homem! Se os soldados vierem, disparo para a entrada do porto e que a Luz tenha piedade de nós. Mas até os soldados chegarem, vou esperar mesmo aquelas mulheres. Agora vá fingir que não está fazendo nada.

Domon voltou a olhar para a cidade, na direção de onde as damane eram mantidas. Seus dedos tamborilavam nervosamente na amurada.


A brisa do mar trazia o cheiro das fogueiras acesas para o café da manhã e tentava balançar o manto carcomido de Rand, mas ele o segurava junto ao corpo com uma das mãos, enquanto Vermelho se aproximava da cidade. Não haviam encontrado casaco algum que coubesse nele entre as roupas deixadas para trás naquele vilarejo, e ele achou que era melhor tomar o cuidado de manter escondidos os bordados prateados nas mangas e as garças no colarinho. A tolerância dos Seanchan aos conquistados que portavam armas poderia não se estender àqueles com espadas com a marca da garça.

As primeiras sombras da manhã se alongavam à sua frente. Ele conseguia distinguir Hurin avançando com o cavalo pelos pátios de carroções e cercados para as montarias. Apenas um ou dois homens andavam entre as fileiras de carroções dos mercadores, e todos usavam os longos aventais de fabricantes de rodas e ferreiros. Ingtar, o primeiro a entrar, já estava fora de seu campo de visão. Perrin e Mat seguiam atrás de Rand um pouco afastados um do outro. Ele não olhou para trás para ver como estavam. Teoricamente, não se conheciam. Eram apenas cinco homens que chegavam a Falme nas primeiras horas da manhã, mas não estavam juntos.

Ele adentrou a área dos cercados. Os cavalos já se aglomeravam perto da cerca à espera da comida. Hurin enfiou a cabeça para fora, entre dois estábulos com as portas ainda fechadas e travadas, notou Rand e fez um sinal antes de voltar a se esconder. Rand passou a conduzir o garanhão baio naquela direção.

Hurin estava parado, segurando o cavalo pelas rédeas. Usava uma longo manto em vez do casaco, e, apesar do tecido pesado ocultar a espada e a quebra-espadas, ele tremia de frio.

— O Lorde Ingtar está logo ali atrás — disse, indicando a passagem estreita com um gesto de cabeça. — Ele mandou a gente deixar os cavalos aqui e seguir o resto do caminho a pé. — Enquanto Rand apeava, o farejador acrescentou: — Fain seguiu direto por aquela rua, Lorde Rand. Quase posso sentir o cheiro dele daqui.

Rand levou Vermelho até a parte de trás do estábulo, onde estava o cavalo de Ingtar, já amarrado. O shienarano não parecia muito um lorde naquele casaco de lã sujo, com o couro esburacado e desgastado em diversos pontos. A espada parecia estranha presa ao cinturão sobre aquela roupa. Mas seu olhar era fervoroso.

Depois de amarrar Vermelho ao lado do garanhão de Ingtar, Rand parou diante de seus alforjes. Não conseguira deixar o estandarte para trás. Não achava que algum dos soldados fosse mexer em suas bolsas, mas não podia dizer o mesmo de Verin. Também não podia prever o que ela faria se encontrasse o estandarte. Ainda assim, ficava nervoso por tê-lo consigo. Resolveu deixar os alforjes para trás, amarrados na sela.

Mat se juntou a eles, e alguns instantes depois chegaram Hurin e Perrin. Mat usava uma calça larga enfiada nas botas, e Perrin, um manto curto demais. Rand achou que pareciam um grupo de mendigos mal-intencionados, mas haviam passado despercebidos pela maior parte do caminho até ali.

— Agora — disse Ingtar. — Vamos ver o que acontece.

Eles saíram conversando pela rua de terra batida como se estivessem caminhando a esmo, passaram pelos pátios dos carroções e seguiram pelas ladeiras com calçamento de pedra. Rand não prestava muita atenção ao que dizia, e muito menos ao que qualquer um dos outros falava. O plano de Ingtar era parecerem como qualquer grupo de homens andando juntos, mas havia pouquíssima gente fora de casa. Cinco homens já compunham uma multidão naquelas ruas frias pela manhã.

Eles andavam em grupo, mas era Hurin quem os conduzia, farejando o ar e virando em uma rua ou outra. Os demais seguiam atrás dele, fingindo ser o que pretendiam fazer desde o início.

— Ele andou de um lado para o outro nessa cidade — resmungou Hurin, franzindo a testa. — Espalhou o cheiro por tudo que é lado, e fede tanto que é di ícil distinguir o antigo do novo. Pelo menos sei que ele ainda está aqui. Parte do rastro não pode ter mais do que um dia ou dois, tenho certeza. Tenho certeza — acrescentou, com mais convicção.

Mais algumas pessoas começaram a aparecer. Um vendedor de frutas arrumando as mercadorias na mesa, um sujeito apressado levando um grande rolo de pergaminho debaixo do braço e uma prancheta atravessada nas costas, um amolador de facas passando óleo no eixo de sua roda, apoiada em um carrinho de mão. Duas mulheres passaram, indo na direção oposta. Uma estava com os olhos baixos e uma coleira prateada no pescoço, a outra usava um vestido com bordados de raios, segurando uma corrente prateada enrolada no braço.

Rand parou e prendeu a respiração. Fez um esforço para não se virar e olhar para elas.

— Aquilo era…? — Os olhos encovados de Mat estavam arregalados. — Aquilo era uma damane?

— Foi assim que foram descritas — respondeu Ingtar, seco. — Hurin, vamos passar por cada rua dessa maldita cidade da Sombra?

— Ele andou por toda parte, Lorde Ingtar — respondeu o farejador. — O fedor dele está em todo lugar. — Tinham chegado em uma área onde as casas de pedra tinham três ou quatro andares e eram grandes como estalagens.

Dobraram uma esquina, e Rand foi surpreendido com a visão de cerca de vinte soldados Seanchan montando guarda em frente a uma grande casa em um dos lados da rua… Além de duas mulheres com vestidos de raios conversando na entrada de outra, do lado oposto da rua. Um estandarte tremulava ao vento acima da casa que os soldados protegiam: um gavião dourado segurando raios em suas garras. Nada identificava a casa onde as mulheres conversavam, a não ser elas mesmas. A armadura do oficial resplandecia, com tons de vermelho, preto e dourado, e o elmo folheado fora pintado para parecer a cabeça de uma aranha. Então Rand notou as duas grandes silhuetas agachadas entre os soldados, ambas com a pele de couro, e quase tropeçou.

Grolm. Não tinha como confundir aquelas cabeças em forma de cunha com três olhos. Não pode ser. Talvez ele estivesse mesmo dormindo, e aquilo tudo fosse um pesadelo. Talvez a gente ainda nem tenha chegado em Falme.

Os outros olharam para as feras, estupefatos, enquanto passavam pela casa protegida.

— Em nome da Luz, o que são aquelas coisas? — perguntou Mat.

Os olhos de Hurin estavam do tamanho do rosto.

— Lorde Rand, são… Aqueles são…

— Não importa — respondeu Rand.

Após um instante, Hurin assentiu.

— Estamos aqui pela Trombeta — lembrou Ingtar —, não para ficar admirando os monstros dos Seanchan. Concentre-se em encontrar Fain, Hurin.

Os soldados mal os olharam. A rua ia direto até o porto arredondado. Rand conseguia ver os navios ancorados lá embaixo: eram altos, com um formato quadrado e mastros altos, mas estavam pequenos àquela distância.

— Ele veio aqui muitas vezes. — Hurin coçou o nariz com o dorso da mão. — A rua fede com camadas e mais camadas do cheiro dele. Acho que ele talvez tenha vindo aqui faz pouco tempo. Ontem, Lorde Ingtar. Talvez ontem à noite.

De repente, Mat agarrou o casaco com as duas mãos.

— Está lá dentro — sussurrou. Ele se virou e andou de costas, olhando para a grande casa com o estandarte. — A adaga está lá dentro. Não notei antes por causa daqueles… daquelas coisas, mas consigo sentir.

Perrin o cutucou nas costelas.

— Bem, pare com isso. Antes que eles comecem a se perguntar por que você está olhando para lá como um idiota.

Rand olhou para trás. O oficial já olhava na direção deles.

Mat se virou, desanimado.

— Mas vamos só continuar andando? Está lá dentro, estou dizendo.

— É a Trombeta que estamos procurando — rosnou Ingtar. — Quero encontrar Fain e obrigá-lo a me dizer onde ela está. — Ele não diminuiu o passo.

Mat não disse uma palavra, mas sua expressão inteira suplicava.

Preciso encontrar Fain também, pensou Rand. Preciso. Mas, quando olhou para o rosto do amigo, falou:

— Ingtar, se a adaga está naquela casa, é provável que Fain também esteja. Não o imagino deixando a adaga ou a Trombeta muito longe da vista.

Ingtar parou. Depois de um instante, respondeu:

— Pode até ser, mas nunca saberemos daqui de fora.

— Podemos esperar que ele saia — sugeriu Rand. — Se sair agora de manhã, é porque passou a noite lá. E aposto que dorme bem onde está a Trombeta. Se ele sair, é capaz de voltarmos para Verin ao meio-dia e ter um plano antes do anoitecer.

— Não pretendo esperar por Verin — a firmou Ingtar —, e nem pelo anoitecer. Já esperei demais. Terei a Trombeta nas mãos antes do sol se pôr.

— Mas não sabemos, Ingtar.

— Eu sei que a adaga está lá dentro — interveio Mat.

— E Hurin disse que Fain esteve aqui ontem à noite. — Ingtar ignorou as tentativas de Hurin de falar. — Foi a primeira vez que você aceitou dizer que era mais recente que um dia ou dois. Vamos recuperar a trombeta agora. Agora!

— Como? — perguntou Rand. O oficial não olhava mais para eles, mas ainda havia pelo menos vinte soldados na frente do prédio. E dois grolm. Isso é loucura. Não pode haver grolm por aqui. Contudo, pensar naquilo não fazia as feras desaparecerem.

— Parece que atrás de todas essas casas há alguns jardins — começou Ingtar, olhando, pensativo, ao redor. — Se uma dessas vielas passar por um dos muros de um jardim… Às vezes os homens se ocupam tanto com a proteção da frente que negligenciam a retaguarda. Venham.

Ele seguiu direto para a viela estreita mais próxima, entre duas das casas altas. Hurin e Mat seguiram depressa, logo atrás dele. Rand e Perrin se entreolharam. O amigo de cabelos encaracolados deu de ombros, resignado, e os dois também seguiram o grupo.

A viela era pouco mais larga que os ombros de todos, mas seguia entre os altos muros dos jardins até cruzar com outra, larga o suficiente para um carrinho de mão grande ou uma carroça pequena. Também tinha calçamento de pedra, mas apenas os fundos dos prédios davam vista para ela. Viam janelas fechadas, paredões de pedra e os altos muros dos jardins, acima dos quais despontavam galhos quase sem folhas.

Ingtar os conduziu pela viela até estarem do lado oposto do estandarte tremulante. Ele calçou as manoplas com dorso de aço que tirou do casaco, saltou, segurando-se no topo do muro, e alçou o corpo o suficiente para olhar por cima. Então relatou, em um voz baixa e monótona:

— Árvores. Canteiros de flores. Passeios. Não há uma alma a… Esperem! Um guarda. Um homem. Ele não está sequer usando elmo. Contem até cinquenta e me sigam. — Ele passou um pé por cima do muro e rolou para dentro, desaparecendo antes mesmo que Rand pudesse dizer uma palavra.

Mat começou a contar devagar. Rand prendeu a respiração. Perrin passou os dedos pelo machado. Hurin segurou firme os cabos das armas.

— … cinquenta. — Hurin escalou o muro e pulou antes que a palavra deixasse os lábios de Mat. Perrin o seguiu.

Rand pensou que Mat talvez precisasse de ajuda, já que parecia tão pálido e abatido, mas o rapaz não deu sinal disso ao subir. O muro de pedra oferecia muitos pontos de apoio, e segundos depois Rand já estava agachado do outro lado, com Mat, Perrin e Hurin.

O jardim já exibia sinais do outono avançado. Os canteiros estavam vazios, exceto por alguns arbustos perenes, e os galhos das árvores estavam quase sem folhas. O vento que fazia o estandarte tremular levantava poeira nos caminhos de ladrilhos. Por um momento, Rand não conseguiu ver Ingtar. Então localizou o shienarano. Estava com o corpo grudado à parede da casa, gesticulando com a espada na mão para que fossem até ele.

Rand correu agachado, mais ciente das janelas da casa que davam para os jardins, onde não havia qualquer movimento, do que dos amigos correndo a seu lado. Foi um alívio alcançar a parede da casa ao lado de Ingtar.

Mat não parava de repetir para si mesmo:

— Está ali dentro. Eu posso sentir.

— Onde está o guarda? — sussurrou Rand.

— Morto — respondeu Ingtar. — O homem tinha excesso de confiança. Sequer tentou dar um alarme. Escondi o corpo embaixo de uma daquelas moitas.

Rand o encarou. O Seanchan tinha excesso de confiança? A única coisa que o impedia de voltar naquele momento eram os murmúrios angustiados de Mat.

— Estamos quase lá. — Ingtar também parecia estar falando sozinho. — Quase lá. Venham.

Rand sacou a espada quando começaram a subir a escada dos fundos. Estava ciente de Hurin, que desembainhou a espada e a quebra-espadas, e de Perrin, que sacou o machado do cinturão, com relutância.

O corredor de dentro da casa era estreito. Uma porta semiaberta à direita cheirava a cozinha. Diversas pessoas moviam-se naquele cômodo, de onde vinha um som de vozes indistintas e, volta e meia, o tilintar suave de uma tampa de panela.

Ingtar fez um gesto para que Mat seguisse na frente, e todos se esgueiraram para passar pela porta. Rand observou a abertura estreita até que virassem no corredor seguinte.

Uma jovem esbelta, de cabelos escuros, saiu por uma porta à frente deles carregando uma bandeja com um copo. Todos ficaram paralisados. Ela virou para o outro lado sem olhar para eles. Os olhos de Rand se arregalaram: a longa túnica branca era quase transparente. Ela dobrou em outro corredor e sumiu de vista.

— Vocês viram aquilo? — perguntou Mat, rouco. — Dava para ver através…

Ingtar pôs a mão sobre a boca de Mat e sussurrou:

— Concentre-se no que viemos fazer aqui. Agora encontre. Encontre a Trombeta para mim.

Mat apontou para uma escada curva estreita. Subiram um lance, que os levou para a parte da frente da casa. Havia poucos móveis nos corredores, e parecia que a maioria era feita de linhas curvas. As paredes eram cobertas por tapeçarias ou escondidas por biombos, todos com pinturas de pássaros em galhos, ou a figura de uma ou duas flores. A imagem de um rio atravessava um dos biombos, mas, exceto pela água ondulante e algumas faixas estreitas como margens, o restante era branco.

Por todos os lados, Rand ouvia os sons de pessoas se mexendo, sapatilhas arrastando no chão e murmúrios suaves de conversas. Não viu uma alma sequer, mas conseguia imaginar muito bem alguém entrando no corredor, deparando-se com cinco homens que se esgueiravam com armas em punho e soando um grito de alarme.

— Ali dentro — sussurrou Mat, apontando para um par de grandes portas de correr logo à frente, com puxadores entalhados por um único ornamento. — Pelo menos a adaga está ali.

Ingtar olhou para Hurin. O farejador abriu as portas, e o lorde saltou para dentro com a espada a postos. Não havia ninguém ali. Rand e os outros entraram às pressas, e Hurin fechou as portas mais do que depressa.

Biombos decorados ocultavam todas as paredes e qualquer outra porta que pudesse haver no recinto, além de velar a luz que entrava pelas janelas que deviam dar para a rua. Em uma das extremidades da grande sala havia um armário alto circular. Na outra, uma pequena mesa, com uma cadeira solitária sobre um tapete, virada de frente para ela. Rand ouviu Ingtar ofegar, mas teve vontade apenas de suspirar aliviado. A Trombeta de Valete, curva e dourada, estava apoiada em um suporte na mesa. Abaixo dela, o rubi no cabo da adaga ornada refletia a luz.

Mat correu até a mesa, pegando a Trombeta e a adaga.

— Conseguimos! — exclamou, brandindo a adaga na mão. — Conseguimos as duas.

— Não fale tão alto — protestou Perrin, se encolhendo um pouco. — Ainda não saímos daqui com elas. — Ele mantinha as mãos no cabo do machado, mas parecia querer segurar qualquer outra coisa.

— A Trombeta de Valere. — A voz de Ingtar era reverente. Ele a tocou, hesitante, passando um dedo pela inscrição prateada ao redor da boca e balbuciando a tradução. Então, afastou a mão com um tremor de empolgação.

Hurin afastava os biombos que ocultavam as janelas. Tirou o último do caminho e olhou para a rua abaixo.

— Aqueles soldados ainda estão ali, parece que criaram raízes. — Ele estremeceu. — E aquelas… coisas, também.

Rand se juntou a ele. As duas feras eram grolm, não havia como negar.

— Como foi que eles… — Quando ergueu o olhar da rua, as palavras morreram. Olhava por cima de um muro, para o jardim da grande casa do outro lado da rua. Conseguia ver onde outros muros haviam sido derrubados, unindo-o a outros jardins. Ali, algumas mulheres sentavam-se em bancos ou andavam pelas trilhas, sempre aos pares. Mulheres unidas pelo pescoço e pelo pulso pela corrente prateada. Uma das que usavam uma coleira no pescoço olhou para cima. Estava longe demais para ele distinguir as feições com clareza, mas, por um instante, pareceu que seus olhares se encontraram, então ele soube. Seu rosto ficou pálido. — Egwene — ofegou.

— Do que está falando? — indagou Mat. — Egwene está em Tar Valon. Quem me dera estar lá também.

— Ela está aqui — a firmou Rand. As duas mulheres estavam se virando, caminhando em direção a um dos prédios do outro lado dos jardins. — Ela está aqui, ali do outro lado da rua. Ah, Luz, e está usando uma daquelas coleiras!

— Você tem certeza? — perguntou Perrin. Ele foi olhar pela janela. — Não a vejo, Rand. E… e eu reconheceria Egwene se visse, mesmo a essa distância.

— Tenho certeza — retrucou Rand. As duas mulheres desapareceram dentro de uma das casas que davam para a rua seguinte. Sentiu o estômago dar um nó. Ela devia estar segura. Ela devia estar na Torre Branca. — Eu preciso tirá-la de lá. O restante de vocês…

— Então! — A voz arrastada era suave como o som das portas deslizando nos trilhos. — Vocês não são quem eu esperava.

Por um breve instante, Rand o encarou, estupefato. O homem alto de cabeça raspada que entrara na sala usava uma longa túnica azul que arrastava no chão. Suas unhas eram tão longas que Rand se perguntou como ele conseguia segurar qualquer coisa. Os outros dois que se postavam atrás dele, subservientes, tinham apenas metade do cabelo escuro raspada, e o restante preso em uma trança do lado direito do rosto. Um deles trazia uma espada embainhada nos braços.

Rand teve apenas um instante para olhar, e então os biombos caíram para revelar, de cada lado da sala, uma porta apinhada com quatro ou cinco soldados Seanchan. Todos sem elmos, mas de armadura e com as espadas em punho.

— Vocês estão na presença do Grão-lorde Turak — começou o homem que segurava a espada, olhando com raiva para Rand e os outros.

Um leve movimento de um dedo com a unha pintada de azul o interrompeu. O outro serviçal avançou com uma reverência e começou a tirar a túnica de Turak.

— Quando um dos meus guardas foi encontrado morto — começou o homem de cabeça raspada, com a voz calma —, suspeitei daquele que se apresenta como Fain. Suspeito dele desde que Huan morreu daquele jeito misterioso, e ele sempre quis essa adaga.

Ele abriu os braços para que o serviçal removesse a túnica. Apesar da voz suave e quase musical, Rand viu que os braços e o peito liso eram fortes e musculosos quando o estranho ficou nu até a faixa azul que segurava uma calça branca larga, feita de centenas de vincos. O homem parecia desinteressado e indiferente às lâminas nas mãos dos outros cinco. — E então encontro estranhos que pegaram não apenas a adaga, mas também a Trombeta. Será agradável matar um ou dois por perturbarem minha manhã. Os que sobrarem me contarão quem são e por que vieram. — Ele estendeu uma das mãos sem olhar, e o homem com a espada embainhada pôs o cabo em sua mão. Ele sacou a lâmina pesada e curva. — Eu não gostaria que a Trombeta fosse danificada.

Turak não deu qualquer outro sinal, mas um dos soldados entrou na sala e estendeu a mão para pegar a Trombeta. Rand não sabia se ria ou não. O homem estava de armadura, mas sua expressão arrogante era tão indiferente às armas deles quanto a de Turak.

Mat acabou com aquilo. Quando o soldado estendeu a mão, Mat a feriu com a adaga com cabo de rubi. Soltando um impropério, o soldado pulou para trás, parecendo surpreso. Então gritou. O grito gelou a sala e paralisou todos onde estavam, estupefatos. A mão trêmula que ele erguia diante do rosto enegrecia, com a escuridão se espalhando do talho sangrento que cruzava a palma. Ele abriu a boca o máximo que conseguiu e uivou, arranhando o próprio braço, depois o ombro. Esperneando e debatendo-se, caiu no chão, guinchando enquanto o rosto enegrecia e os olhos saltavam como ameixas passadas, até que a língua escura e inchada o sufocou. Teve espasmos, asfixiando de um jeito angustiante, batendo os calcanhares, e não se moveu mais. Cada pedaço de pele estava negro como piche podre e parecia prestes a estourar ao menor toque.

Mat umedeceu os lábios e engoliu em seco. Então mudou, apreensivo, a forma de segurar a adaga. Até mesmo Turak encarava a cena, boquiaberto.

— Pois é — disse Ingtar, muito calmo. — Não somos presa fácil. — De repente, ele saltou sobre o cadáver e foi em direção aos soldados que ainda encaravam, com olhos arregalados, o que restava do homem que estivera ao seu lado momentos antes. — Shinowa! — bradou. — Sigam-me! — Hurin saltou atrás dele, e os soldados entraram em formação diante deles. Os sons de aço contra aço aumentavam cada vez mais.

Os Seanchan do outro lado da sala avançaram assim que Ingtar se moveu, mas recuaram ante à adaga que Mat usava para golpear. Pareciam temê-la ainda mais do que o machado que Perrin usava para atacar, dando rosnados sem palavras.

Em poucos instantes, Rand se viu sozinho, encarando Turak. O homem segurava a lâmina em frente ao corpo, na vertical. O choque havia passado. Ele encarava rosto de Rand. O cadáver enegrecido e inchado de um de seus soldados podia muito bem não existir. O corpo também não parecia estar ali para os dois serviçais, não mais do que Rand e sua espada ou os sons do combate, espalhando-se pelos cômodos dos dois lados e avançando pela casa. Os serviçais tinham começado a dobrar a túnica, com muito cuidado, assim que o Grão-lorde pegou a espada. Os dois não olharam para a frente nem mesmo ao ouvir os guinchos do soldado morto e, naquele momento, se ajoelhavam ao lado da porta e observavam a cena com o olhar impassível.

— Eu suspeitei que acabaria sendo apenas você e eu. — Turak girou a lâmina com facilidade, fazendo um círculo para um lado e depois para o outro. Os dedos de unhas longas moviam-se pelo cabo com delicadeza. As unhas não pareciam atrapalhá-lo em nada. — Você é jovem. Vamos ver o que é preciso para merecer a garça desse lado do oceano.

De repente, Rand viu. Imponente, na lâmina de Turak, havia uma garça. Apesar do pouco treinamento que tinha, estava frente a frente com um verdadeiro mestre espadachim. Mais do que depressa, jogou o manto com forro de lã para um lado, livrando-se do peso e do estorvo. Turak esperou.

Ele queria buscar o vazio desesperadamente. Estava claro que precisaria de toda a habilidade que conseguisse reunir, e mesmo assim tinha pouca chance de deixar a sala com vida. Precisava sair vivo dali. Egwene estava quase perto o suficiente para ele chamá-la com um grito, e precisava dar um jeito de libertá-la. Mas saidin esperava no vazio. A ideia fazia seu coração saltar ao mesmo tempo que lhe embrulhava o estômago. Mas, tão perto quando Egwene, estavam aquelas outras mulheres. Damane. Se tocasse saidin, se não conseguisse se impedir de canalizar, elas saberiam, dissera Verin. Saberiam e fariam perguntas. Tantas, tão perto. Talvez sobrevivesse a Turak apenas para morrer enfrentando as damane, e não podia morrer antes que Egwene estivesse livre. Rand ergueu a lâmina.

Turak aproximou-se com passos silenciosos. Lâmina retiniu contra lâmina como um martelo contra uma bigorna.

Desde o início, ficou claro para Rand que o homem o estava testando, pressionando-o apenas o suficiente para descobrir o que ele era capaz de fazer. Então avançava um pouco, e depois mais um pouco. Os pulsos e pés rápidos o mantinham vivo tanto quanto a habilidade com a espada. Sem o vazio, estava sempre um segundo atrasado. A ponta da espada pesada de Turak causou um corte ino e dolorido logo abaixo de seu olho esquerdo. Um retalho da manga de seu casaco pendia do ombro, mais escuro por estar molhado. Sob um corte seco debaixo do braço direito, preciso como o de um alfaiate, o rapaz conseguia sentir a umidade se espalhando pelas costelas.

A expressão do Grão-lorde era de desapontamento. Ele recuou um passo com um gesto de desgosto.

— Onde você encontrou essa lâmina, garoto? Ou será que neste lugar a garça é dada a gente com menos habilidade que você? Não importa. Aceite seu destino. É hora de morrer. — Ele avançou outra vez. O vazio envolveu Rand. Saidin fluiu para ele, brilhando com a promessa do Poder Único, mas foi ignorado. Não era mais di ícil do que ignorar um espinho serrilhado se contorcendo em sua carne. Recusou-se a ser preenchido pelo Poder, a se tornar um com a metade masculina da Fonte Verdadeira. Ele era um com a espada em suas mãos, um com o chão sob seus pés. Um com Turak.

Reconheceu as formas que o Grão-lorde usava. Eram um pouco diferentes das que aprendera, mas não o suficiente. A Andorinha Alça Voo foi enfrentada com Cortando A Seda. Lua na Água foi de encontro a O Perdiz da Floresta Dança. Contra Fita no Ar, Pedras Caindo do Penhasco. Eles se moviam pela sala como se dançassem, e a música vinha do aço contra aço.

O desapontamento e o desgosto sumiram dos olhos escuros de Turak, substituídos pela surpresa, e então pela concentração. O suor escorria pelo rosto do Grão-lorde conforme ele pressionava Rand mais e mais. Raio de Três Pontas contra Folha ao Sabor da Brisa.

Os pensamentos de Rand flutuavam para fora do vazio, longe dele próprio, quase despercebidos. Não era suficiente. Enfrentava um mestre da lâmina e, com o vazio e toda a sua habilidade, mal conseguia resistir. Por muito pouco. Precisava acabar com aquilo antes que Turak o fizesse. Saidin? Não! Às vezes é necessário Embainhar a Espada no próprio corpo. Mas aquilo também não ajudaria Egwene. Precisava acabar com aquilo naquele momento. Imediatamente.

Os olhos de Turak se arregalaram quando Rand avançou. Até o momento, ele apenas defendera. Agora atacava, e com tudo. O Javali Dispara Montanha Abaixo. Cada movimento da lâmina era uma tentativa de atingir o Grão-lorde. Tudo o que Turak podia fazer era recuar e se defender, atravessando a sala quase até a porta.

Em um instante, enquanto Turak ainda tentava enfrentar o Javali, Rand investiu. O Rio Erode a Margem. Ele se apoiou em um joelho, atravessando a lâmina na horizontal. Não precisava do arquejo de Turak ou da resistência da carne na lâmina para saber. Ouviu dois baques e virou o rosto, sabendo o que veria. Olhou para a própria lâmina, molhada e vermelha, e para onde jazia o Grão-lorde, com a espada caída de sua mão débil. Um líquido escuro manchava os pássaros do tapete sob seu corpo. Os olhos de Turak ainda estavam abertos, mas já tinham o véu da morte.

O vazio estremeceu. Enfrentara Trollocs antes, enfrentara Crias das Trevas. Jamais enfrentara um ser humano com uma espada, a não ser durante o treinamento ou em algum blefe. Acabei de matar um homem. O vazio tremeu, e saidin tentou preenchê-lo.

Ele lutou para se libertar, desesperado. A respiração estava di ícil enquanto olhava ao redor. Tomou um susto ao notar os dois serviçais ainda ajoelhados ao lado da porta. Esquecera deles, e não sabia o que fazer a respeito dos dois. Nenhum deles parecia estar armado, mas tudo que precisavam fazer era gritar.

Não olharam para ele, nem um para o outro. Em vez disso, fitaram o cadáver do Grão-lorde em silêncio. Puxaram adagas de dentro das túnicas, e Rand segurou a espada com mais firmeza, mas eles encostaram as pontas nos próprios peitos.

— Do nascimento à morte — entoaram em uníssono —, eu sirvo ao Sangue. — Então cravaram as adagas nos próprios corações. Tombaram para a frente quase sem sofrer, morrendo com as cabeças no chão como se em profunda reverência ao Lorde.

Rand olhou para eles, incrédulo. Loucos, pensou. Eu posso até enlouquecer um dia, mas esses dois já estavam malucos.

Estava se levantando, trêmulo, quando Ingtar e os outros voltaram correndo. Todos tinham feridas e cortes. O couro do casaco de Ingtar estava manchado em mais de um lugar. Mat ainda segurava a Trombeta e a adaga, com a lâmina mais escura que o rubi no cabo. O machado de Perrin também estava vermelho, e ele parecia prestes a vomitar.

— Você cuidou deles? — perguntou Ingtar, olhando para os cadáveres. — Então terminamos, se nenhum alarme foi dado. Aqueles tolos não pediram ajuda nem uma vez.

— Vou ver se os guardas ouviram alguma coisa — disse Hurin, correndo para a janela.

Mat sacudiu a cabeça.

— Rand, essa gente é louca. Sei que já disse isso antes, mas é mesmo verdade. Aqueles serviçais… — Rand prendeu a respiração, se perguntando se todos tinham se matado. Mat continuou: — Sempre que nos viam lutando, caíam de joelhos, com o rosto no chão e os braços ao redor da cabeça. Não se moviam nem gritavam. Não tentaram ajudar os soldados ou soar qualquer alarme. E ainda estão lá, pelo que sei.

— Bom, eu não contaria com isso, com eles ainda estarem ajoelhados — afirmou Ingtar, seco. — Partiremos agora, e o mais rápido possível.

— Vocês vão — respondeu Rand. — Egwene…

— Seu tolo! — ralhou Ingtar. — Já temos o que viemos buscar. A Trombeta de Valere. A esperança da salvação. De que pode valer uma garota, mesmo a que você ama, comparada à Trombeta e ao que ela representa?

— Por mim, o Tenebroso pode ficar com a Trombeta, se quiser. De que vale encontrá-la se eu abandonar Egwene nesse estado? Se eu fizesse isso, a Trombeta não poderia me salvar. O Criador não poderia me salvar. Eu estaria condenado pelas minhas próprias mãos.

Ingtar o encarou com uma expressão indecifrável.

— Você está sendo sincero, não é?

— Alguma coisa está acontecendo lá fora — avisou Hurin, com urgência. — Um homem acaba de chegar correndo, e estão num alvoroço só, como peixes em um balde. Esperem. O oficial está vindo aqui para dentro!

— Vão! — bradou Ingtar. Ele tentou pegar a Trombeta, mas Mat já estava correndo. Rand hesitou, mas Ingtar agarrou seu braço e o puxou para o corredor. Os outros seguiram em ila atrás de Mat. Perrin dirigiu apenas um olhar sofrido para Rand, antes de ir. — Você não vai conseguir salvar a garota se ficar aqui e morrer!

Rand correu com eles. Parte dele se odiava por fugir, mas outra parte sussurrava: Eu vou voltar. Vou dar um jeito de libertá-la.

Quando chegaram ao fim da escada estreita e curva, ele pôde ouvir a voz profunda de um homem se erguer na parte da frente da casa, exigindo, com irritação, que alguém se levantasse e falasse. Uma serviçal vestida com uma túnica quase transparente se ajoelhava ao pé da escada. Uma mulher grisalha, toda coberta de lã branca e com um longo avental, fazia o mesmo à porta da cozinha. Ambas estavam exatamente como Mat descrevera, com o rosto no chão e os braços ao redor da cabeça, e não moveram sequer um dedo quando Rand e os outros passaram. Ele ficou aliviado ao notar que ainda respiravam.

Atravessaram o jardim em uma corrida desabalada, escalando o muro dos fundos mais do que depressa. Ingtar xingou quando Mat jogou a Trombeta de Valere à frente, e tentou pegá-la outra vez ao aterrissar do outro lado, mas o rapaz a apanhou com um rápido:

— Não está nem arranhada. — E disparou pela viela.

Mais gritos vinham da casa da qual haviam acabado de sair. Ouviu-se o berro de uma mulher e alguém começou a soar um gongo.

Voltarei para buscá-la. Vou dar um jeito. Rand correu atrás dos outros o mais rápido que pôde.

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