CAPÍTULO II ENCONTRO COM OS MISLIKS

O Homem — e emprego o termo no sentido mais lato —, incluindo os Hiss, os Sinzus, etc., é uma estranha criatura. Estávamos perdidos, sem recursos, mas nem por um instante pensamos em abandonar a luta. Mal o primeiro Mislik mostrou a carapaça, disparei sobre ele Morreu antes de ter podido irradiar. Com o coração a bater, espreitamos: não vinha mais nenhum. Era perigoso ficar na praça, quer por causa dos destroços que continuavam a cair, quer devido aos Milsliks, que ali tinham possibilidade de voar e cair sobre nós. Assim, retomamos a passagem coberta que já havíamos explorado, após um último olhar ao monte de escombro sobre o qual jaziam o Ulna-ten-Sillon e Akéion. Neste estreito espaço tínhamos de vigiar mais de duas direções. Ultrapassamos o local em que paráramos e atravessamos uma outra praça. Esta regurgitava de Milsliks, que emitiram violentamente quando chegamos, mas em vão. Fomos obrigados a passar por cima deles e pude verificar que se tratava de uma outra raça diferente daquela que eu combatera em Sete, de Kalvénault: mais encorpados, mais curtos, de forma diferente. A sua fluorescência, em vez de ser violeta, aproximava-se do índigo Caminhamos várias horas nas ruas da cidade morta sem encontrar uma única porta aberta ou que pudesse ser arrombada. Por motivos ignorados os habitantes tinham fechado cuidadosamente as casas antes de desaparecerem. A única descoberta interessante que fizemos, a muitos quilômetros do ponto de partida, foi um veículo de seis rodas, muito baixo. No instante em que me dispunha a examiná— lo minuciosamente fomos assaltados pelos Milsliks. Eram centenas e aproximavam-se planando a quatro pés do solo. Apesar de os matarmos com as nossas pistolas térmicas, continuavam no seu trajeto e tínhamos muita dificuldade em os evitar.

Depois mudaram de tática, aproximando-se tão rapidamente que nem os víamos, o que nos obrigou a nos deitarmos na terra, estabelecendo um verdadeiro fogo de barragem a custa de um assustador consumo de munições. Ao cabo de alguns minutos o pavimento e as paredes da rua estavam tão quentes que irradiavam o calor suficiente para impedir a passagem dos Milsliks. Assim, o ataque cessou.

Ficamos sentados, tristemente, num patamar. Ainda nos restavam três horas de ar, apenas três horas! A fadiga começava a nos dominar e, através do vidro do escafandro, eu podia ver os olhos pisados e o rosto fatigado de Ulna. Falamos pouco.

Sei muito bem que nos romances os heróis escolhem sempre as situações desesperadas para fazer ternas declarações, mas posso lhe afirmar que nem nisso pensamos. Permanecemos sentados durante muito tempo.

Ulna me sacudiu bruscamente: — Os Milsliks! Estão voltando!

Agora avançavam rastejando entre os cadáveres dos outros.

Arriscando tudo por tudo, deixamos que se aproximassem e se concentrassem.

Então disparamos. Um deles teve tempo de atirar-se sobre nós e, falhando, arrombou a porta onde estávamos encostados. Ulna introduziu-se pela abertura e eu a segui. Estávamos numa grande divisão vazia, onde destroços informes assinalavam o lugar ocupado pelo que poderia ter sido o mobiliário. Em vão procuramos umas escadas ou um ascensor que conduzissem aos andares superiores. Se é que existiram, deviam ter também se desfeito em pó. Em contrapartida, descobrimos uma passagem que nos conduziu a um subterrâneo de pequenas dimensões, onde se tinha de marchar curvado. Depressa compreendemos que o caminho cruzava a rua mais em baixo. Continuamos a segui-lo, negligenciando as ramificações, que conduziam, como verificamos uma ou duas vezes, a divisões parecidas com a em que estivéramos, igualmente vazias, salvo alguns destroços sem importância. A minha paixão arqueológica tinha morrido, pelo menos de momento.

Depois o subterrâneo começou a descer insensivelmente. Tomamos cuidado, caminhando como num sonho, e tão bem ou tão mal que fui bater numa porta metálica. A passagem acabava aí. Nessa porta vi, pela primeira vez naqueles sítios, uma escultura: uma roda com raios ou um sol estilizado.

Detidos na marcha, sentimos a fadiga se abater sobre nós.

Há dez horas que caminhávamos, e só nos restava ar para uma hora. Consultei maquinalmente o barômetro fixado no punho do escafandro: a pressão atmosférica não era nula e o termômetro marcava 2650 absolutos. Estávamos, pois, numa zona interdita aos Milsliks. Quanto a ar, nós o possuíamos, mas tão pouco!

Nem sequer havia o suficiente para que pudéssemos utilizar o pequeno compressor colocado atrás do capacete. No entanto, era um bom indício e talvez que, no caso de conseguirmos transpor aquela porta, pudéssemos encontrar uma atmosfera suficientemente densa para ser utilizável.

Examinamos a porta febrilmente. Não tinha fechadura nem maçaneta, mas eu começava já a me familiarizar com os sistemas aperfeiçoados de fechaduras.

Pacientemente, tateamos o painel, fazendo pressão sobre os raios do sol, tentando deslocá-los. Em vão. Decorreu uma meia hora. Lentamente, inexoravelmente, a agulha do manômetro de oxigênio caía para o zero.

Então, no momento em que a esperança nos abandonava, a porta gemeu e abriu— se. Diante de nós uma outra porta, idêntica, barrava-nos o caminho. Ulna murmurou:

— Estamos numa câmara estanque. Haverá ar do outro lado?

Tentamos nos recordar dos gestos que fizéramos quando a primeira porta se abrira. Ao fim de uns momentos descobrimos o movimento conveniente: carregar no raio superior, imprimindo-lhe um ligeiro movimento para a esquerda. A porta abriu-se e penetramos num quarto obscuro, mas onde a pressão era quase a de uma atmosfera de Ella. Pus a funcionar o analisador: os mostradores ficaram encarnados.

Havia oxigênio suficiente para a nossa respiração e nenhum gás tóxico.

Prudentemente, ergui o capacete e aspirei uma lufada. O ar era seco e fresco, perfeitamente respirável. Estávamos, se não salvos, pelo menos com um longo repouso assegurado.

A sala, nua, parecia acabar em boca de saco, sem outra porta além daquela por onde entramos. A primeira coisa que fizemos foi desembaraçar-nos dos escafandros, demasiado pesados para os nossos fatigados corpos. Deitamo-nos lado a lado e adormecemos rapidamente O meu sono foi agitado c ao acordar verifiquei que tinha rolado até a outra extremidade do quarto. Tateando para encontrar a minha lâmpada, sentei-me e agarrei, na obscuridade, na altura da minha cabeça, uma pequena alavanca. Esta cedeu e o milagre produziu-se: uma porta abriu-se ao fundo do quarto, recortando, num retângulo luminoso, uma silhueta humana. De pequena estatura, erguia-se a contra luz, de tal forma que não lhe podia distinguir sequer os traços. Depois desapareceu bruscamente e no seu lugar surgiu uma bola de fogo, enquanto uma palavra estranha soava aos meus ouvidos.

— Ulna — gritei —, acorde!

A bola de fogo desapareceu, substituída por um céu constelado. A seguir surgiu a imagem de um planeta, visto primeiramente muito distante e depois cada vez mais perto. Sob os nossos olhos desfilaram montanhas e florestas, oceanos e planícies, enquanto a voz estranha repetia: «Siphan, Siphan, Siphan». Compreendi que era o nome do planeta A paisagem deixou de desfilar e vimos, iluminada pelos raios de um sol ofuscante, a cidade onde estávamos, cujo nome devia ser Gherséa. As ruas formigavam de veículos e seres, que víamos de muito alto para os conseguir distinguir.

O écran (porque era um écran) mostrava agora os campos dos subúrbios, plantados de vegetação purpúrea, que lembrava a árvore Sinessi, de Ella, e, segundo o que me disse Ulna, a Tren-Tehor, de Arbor. Por uma estrada azul seguia um veículo análogo ao que eu examinava quando os Milsliks nos atacaram. Seguimo-lo com os olhos. A estrada subia por uma colina até um observatório situado no cume (pelo menos, assim o acreditamos). Enquanto estas imagens desfilavam ouvimos um comentário inteiramente ininteligível para nós. O enquadramento concentrou-se sobre um veículo donde saiu um ser bípede, munido de quatro braços, com cabeça redonda. Não conseguimos distinguir-lhe os traços. Entrou no edifício.

A projeção cessou durante um instante, para logo recomeçar com um aspecto do sol: lentamente, vimo-Ia perder o brilho, ficar rubro. Compreendemos então que víamos a história do fim deste mundo. A personagem do veículo devia ter sido um cientista ou um homem importante, porque tornamos a vê-la, numerosas vezes, falando perante conselhos, manobrando estranhas máquinas, comandando exércitos e, mesmo no final, caindo fulminado, num escafandro transparente, perante as hordas Milsliks. Mas, anteriormente, vimo-lo dirigindo trabalhos, regulando minúsculos aparelhos e, por último, fechando duas portas ornadas de um sol radiante, as quais reconhecemos imediatamente. O filme terminava mostrando um desses estranhos indivíduos erguendo uma laje situada sob a alavanca que eu acionara.

Evidentemente que, passada a nossa estupefação, procuramos a laje, que encontramos sem dificuldade. Dava para uma escadaria em caracol, que descemos, após termos vestido de novo os escafandros, por uma questão de prudência. Fomos dar a uma grande divisão iluminada por uma suave luz verde. Uma porta nos conduziu a outra sala, depois a uma outra e, em seguida, a uma outra ainda. Se a primeira estava vazia, nas restantes havia cofres maciços de metal, que não conseguimos abrir. No extremo encontramos uma outra escada em caracol, que nos conduziu, ao fim de quinze minutos de subida, a uma cúpula transparente, isolada por uma comporta que dava para uma planície negra, já fora da cidade. Uma outra porta estanque permitia-nos sair. Mas os Milsliks formigavam lá fora e, portanto, não a utilizamos.

Começou então para nós uma estranha existência, que se prolongou durante um mês terrestre. Tínhamos agora ar em quantidade e Ulna descobriu que, em vez de ter trazido três caixas de munições de reserva, trouxera apenas duas e uma outra de viveres comprimidos. Esta caixa nos permitiria vivermos mais de um ano, mas tínhamos água apenas para dois meses. O «saco de escafandro» contém, realmente, um pequeno e engenhoso aparelho, que permite recuperar, nos planetas mortos, a água que está misturada nos gases liquefeitos ou solidificados, mas a carga de separação e purificação apenas dura um mês. No entanto, podíamos agora aguardar a vinda de uma expedição de socorro, pois tínhamos seguido escrupulosamente as instruções de Souilik.

Ulna, agora que já não estávamos em perigo imediato, deu livre curso ao seu desgosto Tentei consolá-a: dada a solidez do ksill, podia muito bem dar-se o caso de Akéion ainda estar vivo e ser libertado ao mesmo tempo que nós, desde que os Hiss chegassem. Não pude convencê-la. No entanto, a realidade era ainda bem mais fantástica.

Nada tínhamos para fazer senão comer, dormir e esperar.

Fizemos passar inúmeras vezes o filme do fim deste mundo, que acabamos por decorar, e abençoamos freqüentemente o gênio que, para salvar a memória da sua raça, mandara construir este refúgio. Comecei a observar os Milsliks através da cúpula transparente. Rapidamente se aperceberam da nossa presença, mas, compreendendo que as suas radiações não nos atingiam e que a cúpula era muito dura para a poderem quebrar, deixaram rapidamente de nos prestar atenção.

Passei dias inteiros a observá-los, instalado atrás da superfície transparente. Eu me comparava a um estudante de biologia, debruçado sobre o microscópio, a estudar novas formas microbianas ou novos insetos. Evidentemente, estava colocado em condições desfavoráveis, não podendo praticar experiências. Durante todo o mês que durou o nosso cativeiro nos esforçamos por tentar apreender a significação dos movimentos dos Milsliks. Creio poder afirmar que, em todo o universo, somos os seres que melhor os conhecem, excetuados eles próprios. Apesar de tudo, no último dia não tínhamos progredido mais do que no primeiro. Não descobrimos nada que se assemelhasse a um atividade ordenada, no sentido que damos a este termo, nada que se assemelhasse a um instinto, nada mesmo que lembrasse um simples tropismo. No entanto, segundo a minha experiência da ilha Sanssine, sabia que possuíam uma inteligência, se bem que sem nenhuma analogia com a nossa, e uma sensibilidade, bem mais acessível para nós.

É evidente que os Milsliks têm órgãos e sentidos, ainda que não possamos imaginar o que são. Evitavam a cúpula e só ao princípio a atacaram. Tinham consciência da nossa presença e nós reconhecíamos rapidamente os «estrangeiros» pelo fato de emitirem quando passavam próximos de nós. Alguns habitavam a cidade morta e aprendemos a distingui-los por alguns pormenores das curvas da carapaça.

Eis o que pude observar da existência dos Milsliks: moviam-se constantemente, parecendo ignorar o repouso; seguimos um, revezando-nos, Ulna e eu, durante mais de cinquenta horas. Não parou de descrever sinuosidades complicadas no solo, a pouca distância da cúpula. Raramente se viam indivíduos isolados, mas também não se podia dizer que vivessem em grupos, pois estes desagregavam-se facilmente, e determinado Mislik passava de um ajuntamento para outro sem razão aparente. Por vezes aglomeravam-se em enxames que compreendiam até cem indivíduos, os quais acabavam por se fundir numa única massa metálica. O estado de coalescência dura entre alguns segundos e várias horas. Então a massa desloca-se. Ao princípio acreditei assistir ao seu processo de reprodução, mas verifiquei que do agrupamento saía o mesmo número de indivíduos que nele tinha entrado.

As nossas observações eram dificultadas devido ao alcance relativamente curto das lâmpadas que possuíamos — para além do seu foco tudo era obscuridade — e, sobretudo, pela falta de aparelhos registradores. Teria dado tudo para ter à minha disposição um capacete amplificador de pensamento, idêntico ao que usara na cripta. Desse modo talvez pudesse ter obtido alguns esclarecimentos sobre estes monstros. Mas ali estávamos, atrás do vidro, transformados em espectadores impotentes.

Depois de muito refletir, estabeleci uma teoria sobre a origem dos Milsliks, que expus mais tarde a Assza, o qual a considerou plausível. Você sabe, evidentemente, que nas proximidades do zero absoluto se estabelece a supra-condutibilidade e que a resistência dos metais perante a corrente elétrica se torna quase nula. Assim, pode— se conjeturar terem os ancestrais dos Milsliks diferido dos atuais tanto como a primeira célula viva sobre a Terra difere de nós, devendo a sua existência a um fenômeno deste gênero. Um cristal de ferro-níquel, talvez, pôde encontrar-se situado, num mundo morto, num campo electromagnético variando muito rapidamente e de maneira complexa. Teria surgido, assim, uma espécie de vida elétrica. Uma vez isto admitido, o resto da evolução, até aos Milsliks, não se torna muito mais incompreensível que a nossa própria evolução terrestre. O tal cristal podia ter induzido, por sua vez, essa forma particular de vida noutros cristais, tendo— se produzido variações e diversificações. Se a irradiação mortal dos Mislik não é eletromagnética, não resta dúvida de que estão igualmente rodeados de um potente campo dessa natureza.

Tendo acabado a nossa provisão de água no terceiro dia, fomos obrigados a fazer uma surtida. Escolhemos a ocasião em que apenas dois Milsliks estavam a vista. Saí em primeiro lugar e fulminei-os, Ulna encheu os sacos a transbordar de uma mistura de ar e de água sólida. Após grandes esforços, consegui abrir um dos cofres de metal das salas inferiores: continham pilhas de placas de metal, gravadas com signos que lembravam a escrita kmère. Transformamos o cofre em cisterna; na segunda surtida tivemos a felicidade de encontrar blocos de gelo de água pura e quase que pudemos encher o nosso reservatório. Foi uma sorte, porque logo em seguida os Milsliks estiveram sempre nas proximidades da cúpula em grande número.

Quando penso na acumulação fantástica de circunstâncias. felizes que nos permitiram sobreviver, pergunto a mim mesmo se não nos beneficiamos de uma proteção estranha especial. Mas, por outro lado, é evidente que, como os que não têm sorte não regressam para contar o que passaram — e são, incontestavelmente, os mais numerosos —, os que voltam são justamente aqueles que viram, por acaso ou doutra forma, as circunstâncias. favorecê-los, Contudo, na medida em que os dias decorriam, começava a duvidar da nossa sobrevivência. Por sua parte, Ulna perdera as esperanças há muito tempo. Ela, tão corajosa no combate, deixava-se dominar por uma tristeza fúnebre, devida em grande parte ao possível desaparecimento do irmão. Eu ficava desesperado ao vê-la cada vez mais pálida, de dia para dia; cada vez mais apática, mais fraca, também, porque quase não comia. Ficava longas horas junto a mim, segurando a minha mão. E se bem que conhecesse os sentimentos dela em relação a mim e ela os que eu lhe dedicava, não podíamos encontrar nisso nenhum conforto, porque a rígida educação sinzu proíbe, formalmente, qualquer palavra de amor quando o luto pesa sobre a família. Falar de amor a uma rapariga sinzu que acaba de perder um ente próximo é pior que uma grosseria: é uma obscenidade.

Um dia — se se pode falar em dia num planeta do Império das Trevas — estávamos sentados na cúpula. Alguns Milsliks cruzaram a luz da minha lâmpada. No céu luziam, debilmente, as manchas oblongas das galáxias distantes. Então, subitamente, uma luz deslumbrante jorrou algures no Espaço, passou sobre a cidade, recortando, em sombras chinesas, a silhueta das torres e dos altos edifícios.

Passou sobre a cúpula, forçando-nos a fechar os olhos com um grito de dor.

— Ulna, os Hiss! Os Hiss!

Febrilmente, ajudei-a a colocar o capacete e ajustei o meu.

Custasse o que custasse, era necessário assinalar a nossa presença. Introduzi na pistola uma vintena de «balas quentes», entreabri a porta e disparei. As «balas quentes», ao contrário das «balas mornas», que se limitavam a elevar a temperatura de algumas dezenas de graus acima do zero centígrado, produziam um calor de várias centenas de graus e uma luz viva. Varri um grupo de Milsliks a uma boa distância. — Quando esvaziei a minha pistola Ulna passou-me a dela. O projetor apontou sobre a planície, passou mais uma ou duas vezes sobre nós e, depois, fixou— se. Lentamente, segundo me parecia, mas, na realidade, tão depressa quanto a permitia a prudência, o engenho salvador descia. A luz do projetor refletia-se sobre o solo gelado, criando uma zona de penumbra, na qual vi, finalmente, a alguns metros de altura, uma enorme sombra fusiforme. Não era um ksill, mas sim uma astronave sinzu, o Tsalan!

— Os seus, Ulna!

Ela não me respondeu. Tombara no solo, desmaiada. Erguia-a nos braços e corri para a astronave, que, entretanto, pousava no meio de um nevoeiro de ar líquido borbulhante. Patinhei em massas semi-liquefeitas, tropecei num Mislik morto, cambaleei sem largar Ulna, Duas formas em escafandro seguraram-na e uma outra estendeu-me o braço, me guiando. Subimos a escada de bordo e, passando um compartimento estanque, encontrei-me no corredor do Tsalan, perante Souilik e Akéion.

A minha primeira reação foi incongruente: chamei Souilik à parte, dizendo-lhe que não devia ter vindo, pois era muito perigoso para os Hiss. Ele não se desconcertou, contentando-se em sorrir:

— Você nunca está contente! Era preciso vir para indicar o caminho!

— E Akéion? — perguntei.

— Akéion tinha se perdido, após a sua aventura. Daqui a pouco contará tudo a você.

Desembaraçaram-nos imediatamente dos escafandros. Ulna, ainda desmaiada, foi transportada para a enfermaria por onde, outrora, eu também já passara. Vincédon, o médico, imediatamente a observou, se bem que o caso, como disse, pudesse ser tratado por um estudante de medicina. Quando Ulna abriu os olhos saí com Souilik e o médico, deixando-a com o pai e o irmão.

Um quarto de hora mais tarde estávamos reunidos no posto de comando. O Tsalan estava já no ahun, ou, como dizem os Sinzus, no rr'oor, a caminho da galáxia dos Kaïens, onde Essine e Beichit nos aguardavam com os ksills. Akéion nos relatou então a sua extraordinária aventura.

Quando o edifício tombara sobre o Ulna-ten-Sillon ele tinha sido projetado, devido ao choque, contra uma parede e desmaiara. Ficou inconsciente durante três basikes.

Quando recuperou os sentidos depressa se deu conta de que estava prisioneiro nos escombros. Não se preocupou muito com o fato, visto que tinha ar e alimentos para muitas semanas. Mas ficou muito inquieto por nossa causa e começou logo a pensar no processo de se libertar para nos prestar socorro.

O casco tinha resistido bem e não se verificava nenhuma fuga de ar. Os motores funcionavam, mas foram impotentes para erguer a massa de destroços. É o inconveniente destes pequenos ksills. Muito rápidos e manejáveis, mas pouco potentes. Assim, apesar de perfeitamente consciente do perigo que corria, decidiu passar para o ahun e voltar em seguida ao planeta.

A manobra pareceu efetuar-se normalmente, salvo o aparelho ter sido mais sacudido que habitualmente. Mas quando fez, quase imediatamente, a manobra inversa, em vez de surgir no Espaço, relativamente próximo do planeta que acabava de abandonar, encontrou-se numa escuridão quase absoluta, que nem mesmo os radares sness podiam penetrar. Muito longe, demasiado esbatida, uma mancha luminosa devia assinalar uma galáxia, ou, melhor, um conjunto de galáxias.

Aqui o relato de Akéion foi interrompido por uma discussão técnica provocada por Souilik. Os Hiss exploram o ahun há mais tempo do que os Sinzus e possuem, relativamente a este fato, a mentalidade de um comodoro inglês em relação aos capitães de outras nações. Eis o que compreendi:

Dado que a passagem se efetuara, não no vácuo, como de costume, mas na superfície de um planeta, a impulsão (?) tinha sido muito mais forte. A parcela de espaço tinha sido completamente deslocada do nosso universo e, atravessando o ahun se o verbo «atravessar» tem um sentido para o não-espaço —, fora parar num dos universos negativos que encerram o nosso, tal como o pão de um sanduíche encerra o presunto.

Akéion surgiu, portanto, no Espaço de um universo negativo e, felizmente para ele, longe de qualquer concentração de matéria. Por um momento ficou sem compreender onde estava. De vez em quando o contador de radiações crepitava e a agulha assinalava uma brusca presença de raios penetrantes. Estes contadores servem para indicar as regiões do Espaço onde a densidade dos raios cósmicos é perigosa. Mas a irradiação recebida não tinha nenhuma das características da radiação cósmica habitual. De resto, deveria ser aqui muito fraca, devido a distância a que o universo estava de qualquer galáxia.

— De repente — acrescentou Akéion — compreendi. Me recordei de um curso, que outrora frequentara, sobre a possibilidade teórica de universos negativos e suas consequências. A irradiação que registrava devia ser originada por alguns raros átomos de matéria negativa que, em contacto com a matéria positiva do ksill, se anulavam em protões ultra-resistentes Estava arriscado a encontrar, de um momento para o outro, uma zona do Espaço onde a matéria negativa estivesse mais concentrada, e, então, adeus todos os universos! Febrilmente, Akéion consultou o registrador de curva especial, o crono— espaciômetro, o registrador de superfície-limite e todos os aparelhos complicados que servem para a navegação espacial no ahun. Com a condição de calcular bem a impulsão, tinha ainda alguma probabilidade de reencontrar o nosso universo. Ainda que valente e de temperamento calmo, estava descontrolado. Tente imaginar esta situação: perdido num universo ainda mais estranho do que os dos Milsliks, a mercê de um aniquilamento flamejante em cada segundo. E, para ritmar estes pensamentos, o batimento quase ininterrupto do contador de radiações!

Lutou com os ábacos escritos em numeração hiss, fez cálculos febris, recomeçou— os. Tudo parecia estar correto. Então, cerrando os dentes, lançou o ksill no Espaço, numa velocidade conveniente, e, depois, passou para o ahun.

Quase imediatamente, abandonou-o. Mas, em vez de se encontrar na Galáxia Maldita, emergiu no centro de uma galáxia bem viva, iluminada por milhões de sóis, perdida no nosso universo. Durante um momento interrogou-se se não teria feito uma outra falsa manobra, se não teria passado além do universo negativo, num outro universo positivo.

Dirigiu o ksill para uma estrela, depois de o écran de aumento lhe ter revelado um cortejo de planetas. Aterrou sobre um deles depois de o ter circundado. Parecia deserto, tendo unicamente vida vegetal. Ali ficou mais de oito dias, perdendo toda a esperança de nos salvar, fazendo e refazendo cálculos complicados.

Aqui intercalou-se uma outra discussão técnica, da qual duvido que o próprio Einstein tivesse compreendido alguma coisa!…

Partiu de novo, voltou a passar para o ahun, aterrou num outro planeta, refez os cálculos, dominando-o de dia para dia a impressão de que estava irremediavelmente perdido. Finalmente, ao cabo de vinte e seis dias, encontrou-se nas proximidades de um mundo habitado. Desceu direto sobre ele e aterrou no planeta dos kaïens, a alguns quilômetros apenas do ponto onde Souilik aguardava o nosso regresso. Para ele também a sorte fora favorável, mas uma sorte servida pela vontade e pela ciência.

O Tsalan desceu, ao nascer do dia, no planeta Sswft. Essine e Beichit nos fizeram um acolhimento entusiástico. Foi com prazer que revi o meu ksill, o único aparelho que até então penetrara num universo negativo. O casco tinha apenas ligeiras amolgadelas devido aos choques sofridos em Siphan.

Nessa mesma noite pedi a Hélon que me desse a sua filha como esposa.

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