CAPÍTULO I ULNA, A ANDROMEDANA

Me levantei lentamente, sem tirar os olhos da jovem. Durante um instante julguei que os Hiss tivessem feito uma nova viagem na Terra e tivessem trazido outros Terrestres. Depois me lembrei da enorme astronave, a estátua da Escadaria das Humanidades, e reparei naquela mão estreita. Me lembrei também das histórias de Souilik acerca dos Krens, do planeta Mara, quase indiscernível aos Hiss. Se estes últimos tinham os seus sósias, era possível que os homens tivessem os deles, A moça estava ainda na minha frente. Fiquei um momento mudo.

— Asna éni étoé tan, sanen tar téoé sen Telm! — disse ela então num tom colérico.

A voz dela continuava cantante e melodiosa. em francês:

— Je mexcuse, mademoiselle, de mon arrivée subite à vos pieds l Depois refleti que para ela estas palavras eram tão incompreensíveis como a sua pergunta para mim. Olhei-a então nos olhos e tentei «transmitir». Em vão. Ela me observava agora com desconfiança. Pousou a mão sobre uma fivela do. seu cinto.

Experimentei então em hiss, esperando que ela o compreendesse.

— Peço desculpa de ter lhe incomodado — disse. Reconheceu a língua em que eu me dirigira a ela e respondeu, colocando tão mal assentos tônicos como eu ao princípio:

Ssin tséhé k'on? (Quem é você?»).

A frase correta seria: «Sssin tséhé hion». Na realidade, a sua pergunta significava:

«Qual é o planeta?»

— Ari será o primeiro a brilhar esta noite — disse eu rindo.

Ela compreendeu o seu erro e pôs-se também a rir., Durante alguns minutos partilhamos do hiss, sem grande sucesso. Me mostrou então a escada e subimos para o terraço, revestido de madeira. Quando chegávamos ouvi os três assobios modulados que eram o sinal pessoal de Souilik. Ele apareceu, seguido de Essine.

Vejo que já tomou contacto com os Sinzus — me falou.

— Tomar contacto é maneira de dizer! Como fazem vocês quando aterram num planeta cujos habitantes não «recebem» e cuja língua ignoram? — É aborrecido, sobretudo quando são tão encantadores como esta Sinzu parece ser para você — disse Essine. — Mas descanse. Daqui a pouco vocês se entenderão.

— Sim — ajudou Souilik —, o problema foi resolvido desde há muito. Não se faça de orgulhoso: na realidade, somos nós que recebemos e que transmitimos! No seu próprio planeta você não poderia se corresponder com os seus semelhantes senão pela linguagem. As crianças, entre nós, estão no mesmo caso. Devem aprender. Você aprenderá e ela também. Enquanto isto, bastará um ligeiro capacete amplificador.

Aqui está o mais importante: cheguei esta noite dum universo situado ainda mais longe do que o de vocês, Isto quer dizer que, quando chegar o tempo, você poderá voltar para a sua terra. Tomei contacto com uma outra humanidade. No seu canto do Grande Universo parece que todos os seres têm o sangue vermelho: os Sinzus, vocês, os Tsériens, e os Zombs, que eu acabo de descobrir.

— Como são eles? Trouxe algum?

Souilik olhou para mim, um olho fechado:

— Eles se parecem um pouco com você. Aproximadamente duas vezes maiores.

Mas são ainda puros selvagens. Nem mesmo talham a pedra. Seria inútil e mesmo perigoso trazer um. Dentro de duzentos ou trezentos mil anos talvez…

Aproximávamo-nos da Escadaria das Humanidades. No alto alguns Hiss trabalhavam, rodeados de autômatos — Que diabo fazem os seus compatriotas? — perguntei a Souilik.

Em hiss, «que diabo» equivale exatamente a «teí mislik». — Trata-se de Milsliks, efetivamente — respondeu ele rindo.

Você verá — e voltando-se para a jovem Sinzu «transmitiu» qualquer coisa que não pude apanhar. Os Hiss podem sempre manter, por transmissão do pensamento, uma conversação privada, mesmo no meio de uma multidão. Devia ser engraçado, porque a jovem sorriu.

Subimos rapidamente a escada. Lá em cima o grupo dos Hiss dispersava-se. À direita erguia-se uma nova estátua. Tive a surpresa de me reconhecer, muito realisticamente esculpido, numa pose majestosa, o pé sobre um Mislik!

— Os seus encontros com o Mislik foram registrados, disse Essine. — E Ssilb, o nosso melhor escultor, recebeu imediatamente a missão de fazer esta estátua. Tinha as medidas exatas, tomadas na Casa dos Sábios quando examinaram, e, com algumas fotografias em relevo, isto foi uma brincadeira para ele Acha a estátua boa?

— Extraordinária — respondi sinceramente. vai me constranger, passar assim diante de mim os dias.

Souilik e a Sinzu conversavam há bocado e vi na cara do Hiss que alguma coisa corria mal. Trocou algumas palavras com Essine, muito depressa, para que eu não pudesse compreender bem. Me pareceu ouvir a palavra «injúria». A jovem Sinzu descia então a escada, ao encontro duma dezena de indivíduos da sua raça. Souilik tinha um ar apoquentado:

— Depressa, é preciso ver Assza, e mesmo Azzlem, se possível.

— O que se passa?

— Nada de grave. Pelo menos, assim o espero. Mas os Sinzus são podres de orgulho e fizemos mal em os pôr do lado esquerdo, na Escadaria!

Fomos introduzidos logo no gabinete de Azzlem. Encontrava-se em companhia de seu filho Asserok, um jovem Hiss, de regresso do universo dos Sinzus, e de Assza.

— A situação é perigosa — declarou abruptamente Souilik.

— Durante a minha ausência o Tsérien desceu na cripta da ilha Sanssine e venceu o Mislik! — Sim, e então? — disse Assza. Fui eu que tomei a responsabilidade, de acordo com o Conselho.

— Então, pelo que me disse Ulna, a Sinzu, tinha sido prometido aos Sinzus que seriam os primeiros seres de sangue vermelho a enfrentar o Mislik. Orgulhosos como eles parecem ser, é impossível que se conformem!

— A astronave deles está armada — interveio Asserok. E eles conhecem o ahun!

— Nós somos os senhores do nosso planeta, Asserok — respondeu Azzlem. — A primeira vez que os Sinzus vieram não quiseram enfrentar o Mislik. Pretextaram que precisavam de fazer preparativos. O Tsérien foi mais resoluto. Tanto pior para eles No fim de contas, foi a nós, Hiss, que a Promessa foi feita, e não aos Sinzus! Não devemos desprezar nenhuma ajuda, mas devemos conservar a liderança! E se os Sinzus têm armas, nós também temos!

Premiu um botão sobre a secretária. Um écran mural iluminou-se e vimos a Escadaria das Humanidades. Em frente da minha estátua, quatro Sinzus, um dos quais Ulna, discutiam. Os outros regressavam para a astronave correndo.

Azzlem pronunciou então palavras que não se tinham ouvido em Ella desde há numerosos séculos:

— Estado de alerta n.°1 — disse ele, inclinado sobre um microfone. — Reunião imediata dos Dezeriove. Interdição absoluta a todo o engenho volante estrangeiro — o eufemismo fez-nos sorrir: o único engenho estrangeiro em Ella era a astronave de decolar.

— Veremos bem se eles sabem escapar aos campos gravídicos intensos — disse.

Os Sinzus penetravam na Casa dos Sábios.

— Venha — disse Azzlem. — Nós vamos recebê-los. Venham também, Souilik e Essine, porque são vocês os únicos Hiss presentes, com o meu filho, que conseguiram ultrapassar o Décimo Sexto Universo.

Descemos até a sala onde compareci pela primeira vez em frente dos Sábios. Me sentei sem dificuldade entre Essine e Souilik, ao fundo. O Conselho restrito, os Dezenove, chegou. Introduziram os Sinzus.

Eram quatro, três homens e a rapariga. Eram todos formosos, louros, elegantes, de elevada estatura, e na Terra teriam podido passar por Suecos. Afetavam um ar indiferente e distante. Puseram-lhes logo os capacetes amplificadores.

O mais velho voltou-se para Azzlem e começou o seu discurso: tinham-nos feito vir do seu longínquo planeta para enfrentar os famosos Milsliks, eles acorreram com as armas mais poderosas que os seus sábios tinham podido inventar e agora diziam— lhes que um ser inferior, vindo dum planeta meio selvagem, tinha já triunfado destes terríveis inimigos. Era uma injúria feita ao planeta Arbor e partiriam imediatamente para não mais voltarem, a não ser que os shémons não julgassem a injúria muito grave para ser esquecida. Nesse caso… ele exigia desculpas e a destruição imediata dessa estátua que haviam posto no mesmo plano do que a dos Sinzus.

Olhei os Sábios durante esta diatribe. Nada perturbava as suas fisionomias.

Nenhum sinal de desaprovação. Em troca, ao meu lado, Souilik ruminava entre os seus agudos dentes.

Azzlem respondeu calmamente:

— Vocês são, Sinzus, criaturas bizarras. Nunca prometemos que seriam os primeiros seres de sangue vermelho a enfrentar os Milsliks. Nós ignorávamos nessa época que houvesse outras humanidades de sangue vermelho e ignoramos ainda se todas as humanidades de sangue vermelho resistem às irradiações Milsliks. Não concebemos, de resto, a importância que há em ser o primeiro. Essa mentalidade desapareceu de Ella há muito tempo, com o último chefe militar e o último polícia. Vocês parecem não compreender que não serão demais todas as humanidades do Céu para vencer os Milsliks. Agora somos os únicos, ou quase, a lutar contra eles e perdemos cada ano mais de cem mil Hiss nesta luta. O Tsérien teve a coragem de enfrentar o Mislik sem nenhuma preparação. É justo que a sua estátua seja o que é. Façam o mesmo, e nós, de boa vontade, poremos um Mislik, ou mesmo dois, ou três, na estátua!

Este arrebatamento fez passar sobre a assembleia uma onda de riso contido.

Azzlem continuou:

— O concurso de vocês será certamente útil, mas não é indispensável, Os Tsériens têm a resistência necessária. Nós temos a técnica, e a deles, apesar de primitiva, não é provavelmente desprezível. Há no Céu muitas humanidades de sangue azul ou verde cujos exércitos são poderosos também. E ninguém sabe onde atacarão os Milsliks para a próxima vez. Se calhar, já estão a caminho da galáxia de vocês. Peço assim, que renunciem a um orgulho estúpido, que me admira numa raça tão evoluída como a Sinzu. Entrem na Grande Aliança das Terras Humanas. O nosso único inimigo é o Mislik! Ele ameaça todas as humanidades, de sangue verde, azul ou vermelho. Mesmo que vocês sejam insensíveis ante as irradiações, não poderão viver próximo dum sol extinto! Reflitam e voltem com palavras de amizade, e não de desafio. Este planeta é Ella, e não Arbor, e nós, aqui, somos os senhores.

Tornaremos a receber vocês novamente esta noite.

O Sinzu quis responder.

— Não. Inútil. Reflitam até de noite.

Os Dezenove saíram lentamente, deixando-nos sós, Souilik, Essine e eu, em frente dos Sinzus..

Estes pareceram aperceber-se então da minha presença. Os três homens avançaram para mim, ameaçadores. A rapariga tentou reter o mais velho, sem o conseguir. Me levantei. Lentamente, Souilik pousou a mão sobre a coronha da pequena arma que tem direito a trazer na cinta, como todos os comandantes de ksills. O gesto não escapou aos Sinzus, que pararam.

— Julgava — começou um deles — que os Hiss, os sábios Hiss, tinham renunciado a guerra há séculos…

— A guerra, sim, mas não a proteger os seus hóspedes — replicou Souilik. — Se as suas intenções são puras, para que essas armas sob as túnicas?.. Julgavam então que nós não sabíamos detectar o metal sob os tecidos?

A situação tornou-se tensa. Eu, Essine, Ulna e o mais velho dos Sinzus tentamos, em vão, intervir. Souilik estava possuído da terrível raiva fria dos Hiss e os Sinzus mostravam-se arrogantes. A luta parecia inevitável.

Como um deus ex machina, apareceu um oficial da guarda, seguido de quatro Hiss:

— O Conselho dos Dezenove pede aos seus hóspedes Sinzus que regressem aos seus aposentos. Ele lembra que, salvo os oficiais em serviço, mais ninguém pode trazer armas em Ella.

Tinha o capacete amplificador e a frase soou-me clara e secamente, como um ultimato. Os Sinzus também a entenderam deste modo, porque empalideceram e saíram. Ulna me olhou longamente antes de se retirar.

— Quanto ao Tsérien, Azzlem espera por ele e seus companheiros — terminou o oficial.

Quando entramos Azzlem, Assza e Asserok discutiam animadamente.

— Não precisamos deles — dizia Assza. Os Tsériens chegam.

— São tão poderosos como nós — replicou Asserok. Acreditem em mim, eu vi o planeta Arbor. Eles são em maior número que nós, nos Três Mundos. E têm os servos Telms…

Calou-se de repente, tomado de súbita compreensão.

— Compreendo! Eles confundiram o Tsérien com um Telm! É moreno e forte como eles!

Em Arbor, explicou-nos, não havia uma só raça, como na Terra ou em Ella, mas duas: os Sinzus, louros e franzinos, e os Telms, morenos e fortes. Nos tempos pré— históricos, como aconteceu conosco, houve várias raças. Mas enquanto na Terra uma só prevaleceu e exterminou ou absorveu as outras, em Arbor dois ramos diferentes se desenvolveram, em continentes muito afastados. Quando os Sinzus descobriram o continente Telni eram já bastante civilizados para o destruírem. Suponha que a América era povoada por descendentes do homem de Neanderthal. Decerto os destruiríamos. Mais humanos, ou mais realistas, os Sinzus, raça superior, reduziram os Telms a escravidão. Pouco a pouco a sua condição foi melhorando, mas na sociedade atual não têm senão funções inferiores, para as quais os designa, é necessário dizer-se, a sua total incapacidade de invenção. Não são maltratados, mas não houve até agora nenhum cruzamento, por se tratar de duas raças fundamentalmente diferentes. A organização social dos Sinzus, apoiada nesta semi— escravidão dos Telms, é de tipo aristocrático e assemelha-se um pouco com a do antigo Japão.

É um fato que, pelo físico, pela cor da pele e do cabelo, me pareço com um Telm.

Para você compreender a reação dos Sinzus, imagine um forte shogun que se traz para combater um inimigo terrível e a quem se diz, na chegada: «Não vale a pena; um chimpanzé resolveu o assunto!».

Enquanto ouviam as explicações de Asserok, os dois Sábios iam serenando. Era possível, com um pouco de diplomacia, acalmar os Sinzus, explicando-lhes que eu não era um Telm, apesar da minha cor Asserok encarregou-se disso, e partimos para a astronave. Souilik me acompanhava. No momento de me deixar, antes de chegarmos a vista das sentinelas sinzus, quis me dar a arma que levava. Agradeci mas recusei, convencido de que não corria perigo algum. Um Sinzu recebeu-me na entrada e fez-me sinal para o seguir. A astronave era enorme — mais de 180 metros de comprimento! — e tive de percorrer intermináveis corredores antes de chegar na sala onde me esperavam. Cinco Sinzus estavam sentados com Asserok, todos de capacete. Um pouco afastada, com os longos cabelos louros saindo-lhe do capacete, Ulna estava de pé, encostada na parede. Mal entrei, o mais velho transmitiu-me:

— Este Hiss pretende que você não é um Telm, mas um Sinzu negro. Nós vamos ver. Fale-nos do seu planeta.

Aguardei um pouco, me sentei numa cadeira metálica, cruzei as pernas e comecei:

— Ainda que seja tão injurioso para mim ser tomado por um animal superior como para vocês serem ultrapassados por um Telm, vou falar por consideração para com os Hiss. Saibam que no meu planeta não há mais do que uma espécie de homens, ainda que uns sejam louros, como vocês, e outros morenos, como eu. Alguns — e são muitos — têm a pele negra ou amarela. Discutiu-se imenso para saber qual era, a raça superior, mas chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma. Ainda há pouco nós tivemos de fazer a guerra contra certos Terrestres, que pretendiam ser uma raça superior. Vencemos, apesar da pretendida Superioridade deles Continuei a transmitir durante mais de uma hora, dando, a traços largos, um resumo da nossa civilização, da organização social, da ciência e das artes. Claro que em ciências eles ultrapassaram-nos, estando em vários aspectos mais adiantados do que os próprios Hiss. Pareceram impressionados pela nossa utilização da energia nuclear, a sua mais recente conquista.

Me fizeram uma série de perguntas, inteligentemente graduadas. A sua conclusão foi de que eu não podia ser um Telm, apesar da minha aparência física com a deles Imediatamente mudaram de atitude. Ficaram tão amáveis quanto tinham sido arrogantes. Ulna exultava: tinha sido a única a me defender. Asserok combinou com Hélon, o velho Sinzu, pai de Ulna e chefe da expedição, uma reunião com os Dezenove para essa noite.

Quando partimos, Ulna e seu irmão Akéion acompanharam-nos. Encontrei Souilik e Essine, que me esperavam. Asserok partiu ao encontro de Azzlem e ficamos cinco: dois Hiss, dois Sinzus e um «Tsérien,

Estávamos contentes. Qualquer perigo de guerra estava definitivamente afastado. Souilik contou-me que cem ksills estavam prontos para destruir a astronave, se as coisas corressem mal.

Fomos para a escada que descia para o mar e nos sentamos nos degraus.

Conversamos sobre os nossos planetas, e tive de prometer que visitaria Arbor antes de voltar pra Terra, quando os Milsliks fossem vencidos. Falamos da vitória como certa. Mas na verdade, quando isso acontecesse, não seríamos mais do que poeira há muito tempo, porquanto a luta tinha probabilidades de durar milênios Ulna e Akéion pediram-me informações sobre o Mislik. Tinham resolvido enfrentá— lo, para saber se os Sinzus partilhavam da minha imunidade. Concordamos em que os acompanharia até a cripta.

Nessa noite, conforme o estabelecido, houve a segunda entrevista entre os Sinzus e os Dezenove. A aliança foi definitivamente concluída, independentemente do resultado da expedição na ilha Sanssine. A ligação entre os Sábios e os Sinzus seria garantida por Assza e Souilik, que, como consequência das suas explorações, tinha sido admitido como neófito. A seu pedido, eu e Essine o acompanhamos. Pelos Sinzus, Hélon designou Akéion, seu filho, Ulna e um jovem físico, Etohan.

Claro que na delegação hiss não tive senão um papel consultivo. Eu não pretendia sequer representar a Terra, porquanto fora aceito de maneira imprevista. Fiquei, no entanto, contente com a nomeação, que me aproximava de Souilik e Essine, por quem tinha amizade, de Assza, por quem tinha simpatia, e dos Sinzus, pelos quais experimentava imensa curiosidade. Não mais do que curiosidade, por enquanto.

Não falaria senão brevemente da minha quarta descida à cripta se ela quase não me custasse a vida. Isto foi o princípio dá minha plena aceitação, como ser humano de raça superior, pelos Sinzus. Excetuando Ulna e seu irmão, eles tinham ainda por mim uma certa desconfiança. Pela minha parte, eu não lhes perdoava, porque a bordo da astronave tive ocasião de ver alguns Telms, e lhe asseguro que, fora o físico e o cabelo, em nada se pareciam comigo: assemelhavam-se mais a um hipotético cruzamento de gorila e de australiano.

Fomos para a ilha Sanssine na astronave. Esta movia-se quase tão docemente como um ksill. Não fui admitido na cabina de pilotagem. Um ksill dos maiores, pilotado por Souilik, transportava o Conselho dos Dezenove.

Como não havia lugar na pista da ilha para aparelhos tão grandes, descemos no mar, fazendo o transbordo em botes. Foi a primeira vez — e última — que utilizei este meio de transporte em Ella.

Fui o primeiro a entrar na cripta, seguido de Akéion, de Ulna e dum jovem Hiss, de quem me esqueci o nome, que devia servir de cobaia. Tinha na cabeça o capacete de que me servira já.

Enquanto estive só na cripta o Mislik não reagiu. Era evidente que me reconhecia e sabia que toda a irradiação era inútil. Não me transmitiu nenhum sentimento de ódio, mas somente uma vaga curiosidade. Nem sequer se mexeu.

Depois entraram os outros, seguidos de uma dezena de autômatos Eu tinha perguntado a Assza porque não nos protegiam com zonas repulsivas, mas estas não se podiam estabelecer num lugar confinado sem o aquecer. Eu era o único armado de uma» pistola de «calor frio».

Entretanto, os meus companheiros entraram. Mal passaram a porta, o Mislik precipitou-se, rente ao chão, emitindo com toda a sua fôrça. O Hiss desmaiou ao fugir para a saída. Os Sinzus resistiram como eu, mas, em vez de recuarem imediatamente, precipitaram-se para mim, ocultando-me o Mislik. Este não perdeu tempo, e nalguns segundos fez um verdadeiro massacre nos autômatos Quando pude disparar, um só deles se mantinha de pé. Calmamente, o Mislik dirigiu-se para o túnel de saída e bloqueou-o. Éramos seus prisioneiros.

Não me assustei, sabendo que, se fosse necessário, todo o formidável poder dos Hiss viria em nosso socorro. Mas estava inquieto com o Hiss, porque o Mislik continuava a emitir e cada segundo que passava tornava mais precária a sua sobrevivência Avisei pelo microfone de que ia tentar destruir o túnel, e, depois de fazer sinal aos Sinzus para se afastarem, dirigi-me para o Mislik, de pistola em punho.

Ele brilhava tênuamente na penumbra. Pronto para me esquivar, atirei. O Mislik recuou. Atirei outra vez. Recuando sempre, entrou na antecâmara. Segui-o, e isto ia causando a minha perda. Ele lançou-se sobre mim, e neste espaço apertado tive um trabalho enorme para o evitar. Felizmente o meu capacete estava sintonizado, e por isso encontrava-me em guarda contra estes ataques, por uma maior recepção do sentimento de hostilidade. Esta estranha luta durou uns bons cinco minutos. Por fim o Mislik deslizou pelo túnel e eu lancei-me em sua perseguição. Choquei com o autômato que transportava o Hiss desmaiado e perdi uma dezena de segundos. Este atraso ia custando a vida aos Sinzus. Quando entrei na cripta, Ulna estava colada na parede, com Akéion a protegê-Ia, e o Mislik, somente a uns escassos metros, preparava-se para os esmagar. Disparei seis vezes, O Mislik voltou-se para mim e atacou. Só tive tempo de ver acender-se a cegante luz quente, senti um choque e mergulhei na escuridão.

Devo passar em branco um espaço de trinta dias, pela boa razão de. que durante estes trinta dias não tive a mínima idéia do que se passava a minha volta. Tinha Uma dezena de ossos quebrados pelo choque com o Mislik e quase metade do corpo gelado, em consequência de vários rasgões no meu escafandro.

Acordei numa cama, num quarto desconhecido, de paredes metálicas. Estava deitado de costas e, por cima de mim, um grande funil quadrado irradiava uma luz violácea, emitindo um zumbido contínuo. Me sentia muito fraco, mas sem nenhuma dor. Pretendi me mover mas verifiquei que os membros estavam imobilizados em talas. Chamei, em hiss.

Foi um Sinzu que veio. Era desconhecido para mim. Tinha os cabelos brancos, de um branco terno, como os nossos na velhice, e não o branco-platinado dos Hiss.

Inclinou-se para mim, observando qualquer coisa que eu não podia ver, sorriu e disse algumas palavras. O zumbido mudou de tom e a luz tornou-se verdadeiramente violeta. Senti um formigueiro contínuo e as fôrças pareceram, lentamente, voltar.

Ele saiu, deixando-me só. Foi fácil para mim reconstituir os fatos: tinha sido ferido gravemente e estava num hospital sinzu, possivelmente a bordo da astronave.

Recaí numa sonolência agradável. Ao fim dum certo tempo, que fui incapaz de calcular, o Sinzu reapareceu, desta vez com Szan. O Hiss explicou-me o que se tinha passado: apenas atingido pelo Mislik, este, devido ao efeito da luz quente — que se acendeu depois e não antes do choque, como eu supunha ficou fora de combate. Fui levantado por Ulna e o irmão e levado para a antecâmara num estado lastimável.

Estava moribundo quando fui transportado para a astronave. Os Sinzus quiseram me tratar, primeiro porque não estava em condições de ser transportado, em seguida porque, no fim de contas, tinha salvo o filho e a filha do chefe, e, finalmente, porque parecia estar eu, fisiologicamente, mais perto deles do que dos Hiss. Até que ponto isto era certo foi revelado pelo exame químico-histo-biológico a que fui submetido de urgência, enquanto era mantido vivo artificialmente por aparelhos que ultrapassavam tudo o que tinha visto em Ella.

Tinha um protoplasma absolutamente idêntico ao deles, de modo que não hesitaram um segundo em fazer-me hétero-greffes, coisa que nós não sabemos ainda fazer. Eles são mestres nesta arte e têm sempre em reserva matéria-prima viva, se assim posso chamar.

Na verdade, salvo o fato de eles não possuírem senão quatro dedos, característica que num cruzamento com a nossa espécie desapareceria, são menos diferentes de nós, Europeus, do que o Chinês.

Breve estava curado, graças aos cuidados de Vicédom, o seu grande médico. Seria injusto esquecer o papel de Szzan, a quem eu tinha ensinado um pouco de medicina terrestre, e que o aconselhou, e o de Ulna, encarregada durante longos dias da vigilância do extraordinário coração artificial, de sua invenção.

A partir do momento em que recuperei a consciência já me levantava. Tive, com a ajuda dum capacete amplificador, demoradas conversas com Ulna, seu irmão e seu pai, e comecei a aprender a língua deles Consegui assim alguns pormenores sobre o planeta Arbor e a raça sinzu.

Os Sinzus, muito avançados sob o ponto de vista científico, têm uma curiosa organização social, herdada dos antepassados. Antigamente todas as famílias sinzus eram nobres e nenhum indivíduo fazia trabalhos manuais, os quais deixavam para a raça inferior dos Telms. Consagravam a vida à arte, às viagens e à guerra. Esta desapareceu há cerca de sete séculos do seu planeta e foi substituída pela investigação científica e pela exploração do Espaço. É um estranho paradoxo que nós fôssemos descobertos pelos Hiss e não pelos Sinzus, porquanto a galáxia deles, como verificamos mais tarde, não é outra senão a nossa tão próxima vizinha Andrômeda. Em verdade, de qualquer modo, as possibilidades de chegarem ao sistema solar, em meio de milhões de estrelas da nossa própria galáxia, eram das mais hipotéticas.

Hoje há cerca de 2 bilhões de Sinzus em Arbor e 350 milhões noutros planetas da sua galáxia. A organização social mantém-se aristocrática. Hélon é irmão dum shémon, isto é, qualquer coisa correspondente a um príncipe. Não há senão quatro shémons em Arbor, chefes de quatro famílias, que descendem dos últimos reis. A organização política é piramidal. No alto, os quatro shémons, semi-hereditários, no restrito sentido de que eles são sempre escolhidos nas mesmas famílias, mas não são necessariamente filhos dos shémons precedentes. Mas Ulna explicará melhor do que eu esta complexa sociedade.

No oitavo dia do meu despertar Vicédom autorizou-me a deixar o quarto. Feliz, saí da astronave, com Souilik e Ulna. Subimos lentamente a Escadaria das Humanidades e vi que efetivamente tinham juntado um Mislik na estátua do Sinzu. Souilik ria discretamente, olhando o seu pequeno relógio, e Ulna sorria com um ar misterioso.

Me sentindo cansado, quis regressar. Eles me dissuadiram, dizendo que o ar me fazia bem, e nos sentamos num banco de pedra, frente ao mar. assza passou e sentou-se também. Falamos de variadas coisas e depois ele nos deixou e partiu para a astronave. Ao fim de um basike Souilik olhou de novo o relógio e, com a face verde enrugada de malícia, me disse:

— Agora podemos regressar.

Quando subimos a escada da astronave os dois Sinzus me saudaram. Fiquei surpreso, porque até esse momento só vira os Sinzus saudarem os chefes e os membros do Conselho dos Dezenove. Ulna e Souilik deixaram-me só. Não fiquei assim por muito tempo, porque Akéion apareceu, vestido com uma esplêndida túnica púrpura, manto da mesma cor, a testa cingida por uma delgada tira de platina.

— Venha — disse ele em hiss. — Há uma cerimônia em sua honra e você tem de se vestir.

Me levou para um camarote e me ajudou a envergar o manto sinzu. Consistia numa longa túnica branca, que me fazia parecer mais escuro do que sou, num manto da mesma cor e numa tira de ouro.

Eu o segui até a proa, junto da cabina de pilotagem. Ao fundo da comprida sala estava um estrado, onde Hélon e Ulna se sentavam. Hélon vestia uma túnica amaranto, Ulna uma verde-pálida. O estado-maior da astronave, vestido de negro, e a equipagem, de uniforme cinzento, se alinhavam ao longo das paredes. Entre as amplas túnicas, as costas de Assza e Souilik, justíssimas, pareciam quase indecentes.

Parei, atônito, a poucos metros da tribuna. O silêncio era completo. Um pouco afastado, Akéion mantinha-se imóvel.

Hélon levantou-se lentamente e disse:

— Quem se apresenta diante do ur-shémon?

— Um nobre e livre Sinzu — respondeu Akéion por mim.

— O que lhe dá direito a usar a túnica branca?

— Salvou a filha e o filho do ur-shémon.

— Que deseja o nobre e livre Sinzu?

— Receber o «Ahen-réton».

— Que dizem os filhos do ur-shémon?

Aceitam — disseram em côro Ulna e Akéion.

Que dizem os nobres e livres companheiros do ur-shémon?

— Aceitam disseram em côro o estado-maior e a equipagem.

— Nós, Hélon, ur-shémon, comandante da astronave Tsalan, em escala no planeta amigo Ella, em nome dos outros shémons de Arbor, dos shémons de Tiran, de Sior, de Sertin, de ArborTian e de Sinaph, em nome de todos os Sinzus habitantes dos Seis Planetas, em nome dos Sinzus mortos e em nome dos Sinzus que hão-de nascer, declaramos conceder ao Sinzu do planeta Terra presente, como recompensa da sua corajosa conduta, a.honra de Sinzu— hen e o «Ahen-réton» do 7.» grau.

Na assembleia houve um murmúrio de surpresa Ulna sorria.

— Avance — disse-me Akéion.

Eu devia estar imensamente ridículo, negro na minha túnica branca, a minha tira de ouro, as delgadas antenas do capacete oscilando, por cima da cabeça. Avancei, não compreendendo bem o que ia se passar. Cheguei ao pé do estrado.

Então, entoado em côro, elevou-se um cântico estranho e belo, o mesmo que tinha ouvido na manhã em que vi Ulna pela primeira vez, o cântico dos Conquistadores do Espaço. Tive um arrepio de emoção quase religiosa. Senti que me tiravam o manto branco e me colocavam outro sobre os ombros. O cântico cessou.

Tinha agora um manto vermelho, bordado a ouro.

— A partir de agora, homem do planeta Terra, você — prosseguiu Hélon, — é Sinzu como nós. Eis as chaves da Tsalan e a arma que pode usar, se os nossos hospedeiros Hiss o permitirem — concluiu ele, sorrindo para Assza.

Me deu duas chaves de níquel, simbólicas — há bastante tempo que os Sinzus, como os Hiss, não utilizavam este meio primitivo —, e um tubo curto de metal brilhante.

— A cerimônia terminou — disse-me ele Esperamos que song Vsévolod Clair compartilhará da nossa refeição.

— Song é do seu grau — explicou-me Akéion. — É o grau mais alto depois de shémon, ur-shémon e vithian. Permite que você se case com quem desejar de Arbor, mesmo a filha dum ur-shémon — terminou ele, olhando Ulna, que corou.

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