Ele nunca dormia durante o dia, porém quando olhou para o relógio novamente eram quatro horas e vinte e cinco minutos e se sentia maravilhosamente repousado. Pegou as Notas sobre o que é quê e recomeçou a leitura que interrompera:
Dê-nos neste dia a nossa fé diária, porém livre-nos, ó Deus amado, da Crença.
Nesse ponto parara a leitura durante a manhã. A parte seguinte era a quinta.
O «eu» que penso ser e o «eu» que realmente sou! Em outros termos, o sofrimento e o fim do sofrimento. Cerca de um terço do sofrimento que devo suportar é inteiramente inevitável por ser inerente à própria condição humana. Representa o preço que todos temos que pagar pelo fato de sermos dotados de sensibilidade; embora sedentos de liberação, nos sujeitamos às leis naturais que nos obrigam a continuar caminhando (sem poder retroceder) através de um mundo inteiramente indiferente ao nosso bem-estar. Caminhando em direção à decrepitude e à certeza da morte. Os outros dois terços são «confeccionados em casa» e o universo os considera inteiramente supérfluos.
Will virou a página. Uma folha de bloco esvoaçou sobre a cama. Apanhando-a, olhou-a rapidamente. Havia umas vinte linhas escritas com boa caligrafia e, no fim da página, viam-se as iniciais S. M. Evidentemente não se tratava de uma carta e sim de um poema. Assim sendo, poderia ser considerado coisa pública. Passou a lê-lo:
Em algum lugar, entre o silêncio cruel e o último domingo,
Cento e trinta mil sermões;
Além, entre
Calvino e Cristo (Deus nos ajude!), e os lagartos;
Além, entre ver e falar,
Além, entre a nossa suja torrente de palavras
E a primeira estrela, grandes mariposas esvoaçando
Entre fantasmas e flores,
Está o lugar iluminado onde eu,
Embora não mais o mesmo,
Consigo me lembrar
Da sabedoria do amor noturno da Outra Margem;
E, escutando o vento, recordo também
Aquela primeira noite insone da minha viuvez,
Com a morte a meu lado na escuridão.
Minha, minha, toda minha, inevitavelmente minha!
Porém não sou mais eu mesmo
E, nesta clareira que existe entre meu pensamento e o silêncio,
Vejo tudo o que tinha e perdi,
E as angústias e alegrias
Brilham como as gencianas das relvas alpinas,
Livres, azuis e abertas!
— Como gencianas — repetiu Will a si mesmo, lembrando— se daquelas férias de verão que passara na Suíça por volta dos seus doze anos de idade. Recordou-se das flores e das lindas borboletas (tão diferentes das inglesas) que vira nos prados que se elevavam acima do Grindelwald. Reviu o céu azul-escuro, o brilho do sol e as brilhantes e gigantescas montanhas que se erguiam do outro lado do vale. Diante de tanta beleza, tudo o que seu pai conseguira dizer, à guisa de comentário, fora que a paisagem se parecia com um anúncio de chocolate Nestlé. «Nem ao menos é chocolate puro», insistira com uma careta de desagrado. «É chocolate com leite!» Após aquele comentário se seguira uma ironia sobre a aquarela que sua mãe estava pintando (infelizmente tão mal) com tanto amor e cuidado: «O anúncio do chocolate com leite que a Nestlé rejeitou». Agora chegara sua vez: «Em vez de ficar aí gemendo de boca aberta como se fosse um idiota de aldeia, por que não faz algo inteligente para variar? Estude um pouco de gramática alemã, por exemplo». E, mergulhando a mão na mochila, puxara, dentre os ovos cozidos e os sanduíches, o horroroso livrinho marrom. Que homem detestável! No entanto, se Susila estivesse com a razão, deveria vê-lo (depois de se terem passado tantos anos) a brilhar como se fosse uma genciana.
Will passou os olhos novamente na última linha do poema.
— Livres, azuis e abertas!
— Viva!… — disse uma voz familiar.
Ele voltou-se para a porta.
— Falando do diabo, ou melhor, lendo o que o diabo escreveu… — disse ele, erguendo a folha de papel a fim de que ela pudesse ler.
Susila olhou-a.
— Oh! Isto! Como se boas intenções fossem o bastante para fazer boa poesia… — disse, suspirando e balançando a cabeça.
— Estava tentando pensar no meu pai como se fosse uma genciana porém só obtenho a imagem persistente de um grandíssimo molenga.
— Mesmo os molengas podem ser vistos como gencianas — respondeu Susila.
— Presumo que isso só aconteça no lugar descrito por você: Nesta clareira que existe entre meu pensamento e o silêncio.
— Susila concordou. — Como se chega até ela?
— Não se vai até ela. É ela que vem até você. Melhor ainda, na realidade, ela está aqui.
— Você é igualzinha à pequena Radha — queixou-se ele. — Sempre papagueando aquilo que o velho rajá diz no princípio do seu livro.
— Se o repetimos — disse ela — é porque é verdadeiro. A não-repetição significaria a ignorância dos fatos.
— Quais fatos? — perguntou ele. — Certamente não os meus.
— Não neste momento — concordou ela. — Mas, se você fizesse as coisas recomendadas pelo velho rajá elas poderiam se tornar os seus fatos.
— Você teve alguma dificuldade com seus pais? — perguntou Will após um curto silêncio. — Ou sempre teve a faculdade de ver gencianas em vez de molengas?
— Naquela idade, não — respondeu ela. — As crianças têm que ser dualistas, maniqueus. Este é o preço que temos de pagar para aprender os rudimentos da arte de como nos tornar seres. Ver gencianas em vez de molengas, ou melhor, ver tanto as gencianas quanto os molengas como se ambos fossem Gencianas com G maiúsculo, isto é uma proeza somente reservada a quem já foi diplomado.
— Como você procedeu com seus pais? Limitou-se a sorrir e a tolerar o intolerável? Ou seu pai e sua mãe eram toleráveis?
— Toleráveis quando separados — respondeu ela. — Especialmente meu pai. Mas completamente insuportáveis quando juntos; insuportáveis porque não podiam suportar um ao outro. Imagine uma mulher dinâmica, alegre e extrovertida, casada com um homem permanentemente introvertido! Ela era uma fonte de contínua irritação para ele e creio que essa irritabilidade ia até a cama. Ela nunca parava de falar; ele nunca iniciava uma conversa. O resultado disso foi que ele a julgava superficial e falsa e ela o considerava insensível, desdenhoso e destituído dos sentimentos humanos normais.
— Esperava que o seu povo fosse mais esperto e não caísse nesse tipo de armadilha.
— Somos realmente espertos — assegurou-lhe ela. — As moças e os rapazes são especialmente educados para saber o que esperar de pessoas cujo físico e temperamento sejam muito diferentes dos seus. Infelizmente, nem sempre as aulas produzem os resultados que se esperam. Em outros casos, a distância psicológica entre as pessoas envolvidas é tão grande que não pode ser vencida. Qualquer que tenha sido a razão permanece o fato de que meu pai e minha mãe nunca tentaram resolver suas diferenças. Haviam se apaixonado, só Deus sabe por quê!!! Mas, quando veio a aproximação, ela sentia-se constantemente magoada pela inacessibilidade dele, enquanto a camaradagem sem inibições dela o fazia encolher-se completamente aterrorizado dentro de seu acanhamento e de sua aversão. Minhas simpatias estavam sempre com meu pai, com quem muito me apreço, tanto no físico como no temperamento. Em nada me pareço com minha mãe, e lembro de que mesmo quando muito criança costumava me defender da sua exuberância. Ela era uma invasão permanente ao isolamento de qualquer pessoa. E ainda o é.
— Você é obrigada a vê-la com freqüência?
— Não, pois ela tem seu trabalho e suas amigas. Em nosso pequeno mundo, «mãe» é estritamente o nome de uma função, e esse título desaparece quando a missão foi devidamente cumprida. A ex-criança e a mulher que era mãe estabelecem um novo tipo de relações; quando se entendem bem, continuam se vendo com regularidade. Caso contrário, separam-se. Ninguém espera que permaneçam apegadas, pois o apego não pode ser comparado ao amor e, por isso, não pode ser encarado como qualquer coisa particularmente digna de crédito.
— Entendo que agora tudo esteja bem — disse Will. — E naquela época? Que aconteceu quando você era a criança que crescia entre duas pessoas que não podiam vencer o abismo que as separava? Sei o que significa. É como a história de fadas, com a diferença de que o fim é diametralmente oposto ao clássico refrão: «E eles viveram felizes para sempre».
— Levando em conta todos esses fatores desfavoráveis, conseguimos nos entender bastante bem.
— Como conseguiram isso?
— Não conseguimos nada. Tudo foi arranjado para nós. Você já leu o que o velho rajá escreveu a respeito de livrar-se dos dois terços do sofrimento que é «confeccionado em casa» e que é desnecessário?
Will fez que sim com a cabeça.
— Estava lendo a respeito quando você entrou.
— Bem, nos velhos maus tempos — continuou ela — as famílias palanesas eram tão propiciadoras de maus tratos, tiranas e criadoras de mentiras quanto a sua gente o é nos dias atuais. Eram tão horríveis que o dr. Andrew e o rajá da reforma decidiram que algo tinha que ser feito a respeito. As éticas budistas e o comunismo primitivo de aldeia foram habilmente trabalhados para servirem a planos nacionalmente delineados, e em apenas uma geração todo o sistema familiar foi radicalmente transformado. — Ela hesitou por um momento. — Deixe-me explicar — continuou — em termos do meu caso particular: o caso de uma filha única de duas pessoas que não podiam se compreender e que estavam sempre se desentendendo e discutindo. Nos velhos tempos, uma menina criada nesse ambiente se transformaria num destroço, numa rebelde ou numa conformista hipócrita e resignada. Porém, sob o novo regime, não tive que suportar sofrimento desnecessário e, por conseguinte, não fui forçada a me tornar um destroço, uma rebelde ou uma resignada. Por quê? Porque, desde o momento em que comecei a andar, era livre para fugir.
— Fugir? — perguntou Will. — Fugir?!
Parecia bom demais para ser verdade.
— Fugir — explicou ela — está no novo sistema. Em qualquer tempo em que o «lar, doce lar» paterno se torna insuportável, a criança tem permissão, ou melhor, é ativamente encorajada (e todo o peso da opinião pública está por trás desse encorajamento) a emigrar para um outro lar.
— Quantos lares tem uma criança palanesa?
— Em média, uns vinte.
— Vinte?! Meu Deus!
— Todos nós pertencemos a um CAM (Clube de Adoção Mútua). Cada CAM é composto por quinze a vinte e cinco casais diferentes. Casais jovens, mais velhos e com filhos em idade de crescimento, avós e bisavós, todos os do clube se adotam mutuamente. Além dos nossos parentes consangüíneos, dispomos de uma porção de mães, pais, tias, tios, irmãos, irmãs, bebês e adolescentes que nós mesmos elegemos.
Will meneou a cabeça, incrédulo, dizendo:
— Ajudando no desenvolvimento de vinte famílias, em vez de uma só!
— Porém o tipo de família que havia anteriormente era igual ao seu tipo. As vinte são do nosso tipo. — Prosseguiu como se estivesse lendo um livro de receitas: — Tome um assalariado sexualmente incapaz, uma mulher insatisfeita, dois (ou mesmo três) pequenos viciados em televisão e faça um escabeche misturando uma porção de freudismo e uma solução fraca de cristianismo. Arrolhe bem num apartamento de quatro cômodos e cozinhe tudo isso durante quinze anos no próprio caldo. A nossa receita, por outro lado, é bastante diferente: tome vinte casais sexualmente satisfeitos, juntamente com a prole deles. Adicione ciência, intuição e humor em partes iguais. Ingresse no budismo tantrik e ponha a mistura a ferver ao ar livre, lenta e indefinidamente, numa panela aberta, colocada sobre a chama viva da afeição.
— E o que resulta dessa panela aberta?
— Uma espécie de família completamente diferente da do seu mundo e onde não existe nada de exclusivismo, de predestinado e de compulsório. Ao contrário, tudo é feito para que a predestinação seja substituída pela escolha voluntária. Vinte pares de pais e mães, oito ou nove ex-pais e ex-mães, além de quarenta ou cinqüenta crianças dos mais variados tipos e idades.
— As pessoas permanecem no mesmo clube de adoção por toda a vida?
— Claro que não. As crianças mais crescidas não adotam seus próprios pais, irmãos e irmãs. Elas saem e adotam outros mentores, um grupo diferente de companheiros da mesma idade e também mais moços. Os membros do novo clube os adotam e, com o passar do tempo, os filhos dos casais também os aceitam como componentes da família. Nossos sociólogos chamam a isso de «hibridação de microculturas» e dizem que os efeitos são tão bons quanto aqueles que permitem a obtenção de diferentes variedades de milho ou de galinhas. Disso resultam relações mais sadias em grupos mais responsáveis; surgem simpatias mais amplas e uma compreensão mais profunda. E as simpatias e compreensões se estendem a todos os componentes do CAM desde as criancinhas até os centenários.
— Centenários? Qual a média de vida aqui?
— Apenas um ano ou dois acima da de vocês — respondeu Susila. — Dez por cento da população ultrapassa os sessenta e cinco anos. Os velhos que não estão em condições de ganhar a vida recebem uma pensão. É óbvio que a pensão não é suficiente e eles necessitam fazer algo que seja ao mesmo tempo útil e tentador. Precisam de pessoas a quem possam dedicar cuidados e de quem recebam amor. Os CAM preenchem essas lacunas.
— Isso tudo parece tão suspeito quanto a propaganda das novas comunas chinesas — disse Will.
— Nada poderia ser menos parecido com uma comuna que o CAM Um CAM não é controlado pelo governo e sim por seus membros. Além disso, não somos militaristas e não estamos interessados em nos tornar «bons membros do partido»… Nosso único objetivo consiste em nos tornarmos bons seres humanos. Não incutimos dogmas e não tiramos as crianças de seus pais. Pelo contrário, damos alguns pais adicionais. E, aos pais, oferecemos filhos adicionais. Mesmo no berçário gozamos de um certo grau de liberdade. Essa liberdade aumenta à medida que crescemos e que vamos nos capacitando a lidar com responsabilidades mais amplas e mais sérias. Enquanto isso, na China não há a menor liberdade. As crianças são entregues a «domesticadoras oficiais de bebês», cuja única missão consiste em transformá-los em seres obedientes ao Estado. As coisas são consideravelmente melhores na parte do mundo de onde você vem. Melhores, porém ainda assim bastante más. Vocês escapam às domesticadoras de bebês designadas pelo Estado, porém sua sociedade condena alguém a passar a infância numa família composta dos pais e de um par de irmãos que lhe foram impostos pela predestinação hereditária. Não há nenhuma possibilidade de se ficar livre deles. Não se pode ficar longe deles durante as férias e muito menos ir viver com outra pessoa. Não existe chance de uma mudança moral ou psicológica. Tem-se liberdade, é claro, mas a espécie de liberdade que se tem dentro de uma cabine telefônica.
— Trancado — arrematou Will pensando em sua própria infância — na companhia de um tirano sarcástico, de uma mártir cristã e de uma menininha que, amedrontada pelo tirano e chantageada pelos apelos que a mártir fazia a seus sentimentos mais puros, ficou reduzida a um estado de trêmula imbecilidade. Nesse lar vivi sem poder escapar, até a idade de quatorze anos, época em que a tia Mary veio morar na vizinhança.
— E seus infortunados pais também nunca puderam escapar de você.
— Essa não é bem a verdade. Meu pai costumava fugir às custas do brandy e minha mãe se utilizava do alto anglicanismo. Tive que cumprir minha sentença sem a menor mitigação. Quatorze anos de servidão familiar! Como eu invejo você! Livre como um pássaro!
— Não seja tão lírico! Digamos, livre como um ser humano em desenvolvimento, livre como uma mulher futura, porém nada além disso. A Adoção Mútua protege a criança contra a injustiça e outras conseqüências ainda piores da inépcia dos pais; não as protege contra a disciplina ou contra o fato de ter de aceitar seus encargos. Ao contrário, aumenta o número de suas responsabilidades e as expõe a grande variedade de disciplinas. Nas suas famílias, exclusivistas e predestinadas, as crianças, como você disse, passam um período longo na prisão, sob a guarda de um par de carcereiros. É claro que esses carcereiros podem ser bons, sábios e inteligentes. Nesse caso, os pequenos prisioneiros emergirão mais ou menos intactos. Mas o fato é que a maioria dos pais-carcereiros do seu mundo não é realmente boa, sábia ou inteligente. Podem ter boas intenções e ser ignorantes, podem ser frívolos e destituídos de qualquer intenção boa e podem ser neuróticos, maus ou definitivamente mórbidos. Desse modo, Deus que ajude aos jovens convictos que são compelidos pela lei, pelos costumes e pela religião a se submeter às suaves misericórdias familiares! Considere agora o que acontece numa família escolhida voluntariamente. Nada de cabines telefônicas nem de carcereiros predeterminados. Aqui, as crianças se desenvolvem num mundo que é um modelo de sociedade em pleno funcionamento e que é uma miniatura perfeita do ambiente no qual terão de viver quando atingirem a idade adulta. Um «todo» sagrado e saudável: todos oriundos de uma mesma raiz, cada um trazendo nuanças diferentes, porém com a mesma significação. De acordo com a etimologia, nossa família (a espécie escolhida de modo voluntário) é aquela que verdadeiramente pode ser chamada de «sagrada». A de vocês é a «não-sagrada».
— Amém — disse Will, pensando novamente em sua própria infância, e também no pobre Murugan sob as garras da rani.
— O que acontece quando as crianças emigram para um outro lar? Por quanto tempo permanecem lá?
— Depende. Quando meus filhos estão cansados de mim, raramente ficam fora mais do que um ou dois dias. O motivo é que, fundamentalmente, são muito felizes em casa. Eu, pelo contrário, não o fui, e por isso acontecia que às vezes ficava fora por um mês inteiro.
— Seus pais eleitos lhe davam apoio nos desentendimentos que tinha com seus verdadeiros pais?
— Não é uma questão de fazer nada contra ninguém. Dá-se apoio somente à inteligência e ao bom sentimento e se faz oposição à infelicidade e às suas causas evitáveis. Se uma criança é infeliz no primeiro lar, fazemos o possível por ela nas outras quinze ou vinte «segundas bases» por ela escolhidas. Enquanto isso, o pai e a mãe recebem uma terapêutica discreta dos outros membros do seu Clube de Adoção Mútua e, após algumas semanas, estão aptos a conviver novamente com seus filhos, e vice-versa. Não vá pensar que é apenas quando estão em dificuldades que as crianças recorrem a seus pais e avós eleitos. Elas o fazem constantemente, bastando para isso que sintam a necessidade de uma mudança ou de qualquer outra espécie de conhecimento. E isso não é apenas uma obrigação social. Seja qual for o lugar para onde se dirijam como crianças eleitas, têm suas responsabilidades e seus direitos. Por exemplo, escovar o cachorro, limpar as gaiolas dos passarinhos, tomar conta do bebê, enquanto a mãe faz qualquer outra coisa. Todos têm deveres e privilégios, porém esses deveres e privilégios não são os mesmos que os das suas abafadas cabines telefônicas. São deveres e privilégios dentro de uma grande família, uma família do tipo das nossas, onde todas as sete idades do homem e mais de uma dúzia de habilidades e de talentos estão representados. As crianças travam conhecimento com todas as coisas importantes e significativas que os seres humanos fazem e sofrem: aprendem a brincar, a amar, a envelhecer, a trabalhar e adoecer e a morrer. — Ela ficou silenciosa pensando em Dugald e na mãe dela. Mudando deliberadamente de tom, perguntou: — E você? Como vai? Estive tão ocupada falando a respeito das famílias que nem ao menos perguntei como está se sentindo. Não há dúvida de que sua aparência está bem melhor do que da última vez em que o vi.
— Graças ao dr. MacPhail e também a alguém que, suspeito, definitivamente exerce a medicina sem diploma. Pode me dizer o que fez comigo ontem à tarde?
Susila sorriu.
— Você o fez sozinho — disse; — Eu apenas apertei os botões.
— Que botões?
— Os botões da memória e da imaginação.
— E isso foi o bastante para me pôr num transe hipnótico?
— Se você preferir dar esse nome…
— De que outro modo poderia chamá-lo?
— Por que dar-lhe nome? Os nomes são sempre objeto de controvérsias. Por que não ficar satisfeito em saber apenas que houve o acontecimento?
— Mas o que foi que aconteceu?
— Para começar, estabelecemos uma espécie de contato, não
foi?
— Não há nenhuma dúvida sobre isso. No entanto, não creio que tenha ao menos olhado para você.
Ele a olhava agora e, enquanto o fazia, perguntava-se quem seria essa mulher pequenina. Que se esconderia atrás daquele rosto suave e sério? Que veriam aqueles olhos escuros que olhavam para os seus, interrogadores? Que estaria pensando?
— Como poderia me ver se já tinha ido gozar férias?
— Fui voluntariamente ou empurrado?
— Empurrado? Não! — Ela balançou a cabeça. — Digamos que foi ajudado. — Houve um momento de silêncio. — Alguma vez você experimentou fazer um trabalho com uma criança que andava continuamente em seu redor? — Will pensou no pequeno vizinho que se oferecera para ajudá-lo a pintar a mobília da sala de jantar e riu-se à lembrança de sua própria exasperação. — Pobrezinho! A intenção é tão boa e ele está tão ansioso por ajudar — continuou ela. — Mas a tinta caiu no tapete, há marcas de dedos por toda a parede… No final você tem que se livrar dele: «Vá andando, meu bem! Vá brincar no jardim!»
Houve um silêncio.
— E então? — perguntou ele por fim.
— Será que você não percebe? — Will balançou a cabeça, negativamente. — Que acontece quando se está doente ou ferido? Quem promove a cicatrização? Quem trata dos ferimentos e debela a infecção? É você?
— Quem mais haveria de ser?
— É você? — insistiu ela. — Você? Realmente acredita que uma pessoa que está sentindo dores e que se preocupa a respeito do pecado, do dinheiro e do futuro seja mesmo capaz de fazer o que tem de ser feito?
— Agora vejo aonde quer chegar.
— Até que enfim! — brincou ela.
— Sou mandado brincar no jardim para que os «crescidos» possam trabalhar em paz. Mas quem são os «crescidos»?
— Não sei. Essa é uma pergunta que deve ser feita a um neuroteólogo.
— Qual o seu significado?
— Significa exatamente o que diz. Alguém analisa as pessoa e as vê ao mesmo tempo em termos da «luz clara do vazio» e do sistema neurovegetativo. Os «crescidos» são um misto de intelecto e de fisiologia.
— E as crianças?
— As crianças são aqueles que pensam saber mais que os «crescidos».
— E, por isso, devem ser mandados «brincar lá fora».
— Exatamente.
— Esse é o tratamento-padrão usado aqui em Pala?
— Sim, é o método comum. Na sua parte do mundo, os médicos se livram das crianças envenenando-as com barbitúricos. Nós o fazemos através de conversas a respeito de catedrais e de gralhas. — A voz dela adquiriu um tom monótono. — Falamos a respeito de brancas nuvens flutuando no céu, cisnes brancos deslizando no escuro e também sobre o irresistível rio da vida…
— Vamos, vamos, nada disso! — protestou Will. Um sorriso iluminou o grave rosto moreno e ela começou a rir. Will olhou-a atônito. Eis que subitamente lá estava uma pessoa diferente, outra Susila MacPhail, alegre, travessa e irônica. — Já conheço seus truques — acrescentou ele, aderindo ao riso.
— Truques? — Ainda rindo, ela negou com um movimento de cabeça. — Apenas lhe explicava como agi.
— Sei exatamente como você o fez e também sei que funciona. E, ainda mais, dou-lhe permissão de fazê-lo de novo, quando for necessário.
— Caso queira, lhe mostrarei como pressionar seus próprios botões — disse ela com maior seriedade. — Nós o ensinamos em todas as nossas escolas elementares. Os três erres mais CD.
— O que vem a ser isso?
— Autodeterminação, aliás, Controle do Destino.
— Controle do Destino? — perguntou ele, erguendo as sobrancelhas.
— Não. Nós não somos tão tolos como você parece pensar. Sabemos perfeitamente que somente uma parte do nosso destino é controlável.
— E vocês o controlam apertando os próprios botões?
— Sim. Apertando nossos próprios botões e visualizando em seguida aquilo que gostaríamos que acontecesse.
— Mas isso é possível?
— Sim, em vários casos.
— É tão simples! — disse Will em tom de ironia.
— Maravilhosamente simples — concordou ela. — No entanto, pelo que sei, somos o único povo que ensina sistematicamente o CD (Controle do Destino) às crianças. Vocês lhes dizem aquilo que devem fazer em termos de «proceder bem». Mas como proceder bem? Isso vocês nunca lhes ensinam. Tudo o que fazem fica restrito a alguns sermões e punições. Pura idiotice!
— Pura e simples idiotice — concordou ele, lembrando-se de Mr. Crabbe (o superior do internato) discorrendo sobre o assunto da masturbação. Recordou aqueles sermões semanais prefabricados e a cerimônia da cominação na quarta-feira de cinzas: «Amaldiçoado é aquele que se deita com a esposa do seu vizinho. Amém».
— Se suas crianças levarem a sério todas essas idiotices, crescem para se tornar míseros pecadores. Se não levarem a sério, ao crescerem se transformarão em pobres cínicos. Caso reajam contra o cinismo ficam aptos cara o papismo ou o marxismo. Não admira que lhes sejam necessários todos aqueles milhares de prisões, de igrejas e células comunistas.
— Enquanto isso, existem muito poucas aqui em Pala, não é verdade?
Susila concordou.
— Não temos nada de Alcatrazes nem de Billy Graham nem de Mao Tsé-Tung e nem de Nossa Senhora de Fátima. Nada de infernos na terra, nada de desordem cristã no céu ou de agitações comunistas no vigésimo segundo século. São apenas homens, mulheres e crianças que tentam fazer o melhor, aqui e agora, ao invés de viverem (como a maioria de vocês) algures, em outra época, em um universo imaginário. Mas tenho de admitir que são isentos de culpa. O presente é tão decepcionante que são praticamente compelidos a viver desse modo. Tudo isso é altamente desapontador porquanto nunca lhes foi ensinado como transpor a brecha que existe entre a teoria e a prática, entre as resoluções do ano novo e o procedimento real.
— Pelo bem que poderia fazer e não faço. Pelo mal que faço e que não deveria fazer — citou Will.
— Quem disse isso?
— São Paulo, o homem que inventou o cristianismo.
— Veja só, ideais tão elevados e sem os métodos para serem postos em prática! — disse ela.
— Existe apenas o método sobrenatural de se esperar que Alguém os realize. — Atirando a cabeça para trás, Will Farnaby começou a cantar:
Existe uma fonte cheia de sangue
Retirado das veias de Emanuel,
Onde os pecadores que nela mergulharem
Terão limpas todas as suas manchas.
Susila tapou os ouvidos.
— É realmente obsceno — disse.
— Esse era o hino preferido do superior do internato. Costumávamos cantá-lo pelo menos uma vez por semana, durante o meu tempo de colégio — explicou Will.
— Graças a Deus nunca houve nenhum sangue no budismo. Gautama viveu até os oitenta anos e morreu por ter sido tão cortês a ponto de não recusar mesmo comida de má qualidade. Morte violenta sempre atrai mortes violentas. Se não acreditares que foste redimido pelo meu sangue redentor, eu te afogarei no teu próprio sangue. No ano passado fiz um curso de História do Cristianismo em Shivapuram. — Susila estremeceu a essa lembrança. — Que coisa horrível! Tudo porque aquele pobre e ignorante homem não soube como executar suas boas intenções.
— A maioria de nós continua ainda no mesmo velho caminho. O mal que não faríamos e que fazemos. E como fazemos!
Reagindo imperdoavelmente ao imperdoável, Will Farnaby sorriu zombeteiramente. Sorriu porque, mesmo depois de ter percebido a bondade de Molly, escolhera a alcova rosa e, com isso, causara sua infelicidade e sua morte, e que lhe deixara aquele inquietante sentimento de culpa. Havia também a dor martirizante, inteiramente fora de propósito (cuja causa reconhecia ser vulgar e ridícula) que sentira quando Babs fez com ele aquilo que a mais tola das pessoas poderia prever: mandara-o sair de seu paraíso iluminado pelo gim, elegendo um novo amante.
— Que foi que houve? — perguntou Susila.
— Nada. Por que pergunta?
— Porque você não é muito hábil em esconder seus sentimentos. Parecia pensar em algo que o tornou infeliz.
— Você tem olhos muitos penetrantes — disse ele, desviando o rosto.
Fez-se um longo silêncio entre eles.
Deveria falar a ela a respeito de Babs, da pobre Molly, sobre si mesmo e todas as coisas tristes e sem sentido que nunca, nem mesmo embriagado, dissera a seu melhor amigo? Os velhos amigos sabiam demais a respeito de alguém e das outras pessoas envolvidas. Sabiam demais a respeito de um jornalista duro e que era o agente particular (muito bem pago) de um homem rico a quem desprezava. Sabiam também que esse jornalista era um gentleman inglês e um boêmio com pretensões à poesia, que se desesperava por saber que nunca seria um bom poeta. Sabiam quanto de grotesco, de complicado e de laborioso havia no jogo em que estava envolvido.
Não, os velhos amigos não eram os indicados. Mas dessa pequena morena, dessa intrusa, não viriam quaisquer conclusões antecipadas nem tampouco julgamentos exparte. Dessa estranha a quem ele já devia tanto e de quem (apesar de nada saber a respeito) se sentia tão íntimo, talvez viesse algum esclarecimento inesperado ou alguma ajuda positiva e prática. Ficou admirado por ainda «esperar», ele que estava tão treinado em nunca esperar. Deus sabia quanto precisava de ajuda. Mas também sabia que ele nunca pediria essa ajuda.
Como um muezim no seu mirante, um dos pássaros falantes começou a gritar da alta palmeira que se via além das mangueiras:
— Aqui e agora, rapazes! Aqui e agora, rapazes!
Will tomou a decisão de se arriscar, mas resolveu agir indiretamente, e começou falando dos problemas dela. Evitando olhá-la (pois se sentia envergonhado) iniciou a ofensiva:
— O dr. MacPhail me falou ligeiramente a respeito… a respeito do que aconteceu a seu marido.
As palavras foram como que uma estocada em seu coração. Mas isso devia ser esperado, era inevitável.
— Na próxima quarta-feira faz quatro meses que ele morreu. — Fez uma pausa e continuou como se estivesse meditando: — Duas pessoas, dois seres inteiramente distintos que vêm formar uma coisa nova. Algo semelhante a uma entidade. De repente, metade dessa nova criatura é amputada e a outra metade não morre. Não pode morrer. Não deve morrer.
— Por que não deve morrer?
— Por tantas razões… Pelas crianças, por si própria… Uma série muito grande de coisas… Mas não é preciso dizer que essas razões não diminuem o choque da amputação ou tornam o resultado mais tolerável — disse ela com um pequeno sorriso que veio acentuar a tristeza dos seus olhos. — A única coisa que ajuda um pouco é aquilo de que já falamos: o Controle do Destino.
E mesmo isso… — Ela balançou a cabeça e continuou: — Através do CD. se pode obter um parto quase sem dor. Porém não se consegue uma perda inteiramente indolor. Está claro que é assim que deve ser. Não seria direito que tivéssemos o poder de afastar todo o sofrimento de uma perda. Se conseguíssemos isso, seríamos menos que seres humanos.
— Menos que seres humanos — repetiu Will. — Menos que seres humanos… — Aquelas palavras o definiam completamente. — O terrível é sabermos que a outra pessoa morreu por nossa culpa — disse em voz alta.
— Você era casado? — perguntou ela.
— Sim, havia doze anos. Tudo acabou na última primavera.
— Ela morreu?
— Sim, morreu num acidente.
— Num acidente? E onde está sua culpa?
— O acidente ocorreu porque… bem, porque fiz o mal que não queria fazer. E, naquele dia, tudo chegou ao ponto culminante. O choque a confundiu e distraiu. Mesmo assim, permiti que ela saísse dirigindo o carro. Permiti que fosse ao encontro de uma colisão.
— Você a amava? — Ele hesitou por um momento e balançou a cabeça devagar. — Havia alguém mais, alguém de quem você gostasse mais?
— Sim. Havia alguém de quem eu não podia gostar menos. — Ele fez uma careta de sardônica zombaria.
— E que foi que fez sem querer?
— Fiz e continuei fazendo até matar a mulher que deveria ter amado, mas não pude. Continuei fazendo mesmo depois que a matei, apesar de me odiar por isso. Sim, odiei a mim e à pessoa que me obrigou a fazê-lo.
— Obrigou-o a fazê-lo porque possuía o corpo que você desejava?
Will concordou. Houve um silêncio e ele continuou:
— Você pode imaginar o que é uma pessoa sentir que nada é completamente real, inclusive ela mesma?
Susila assentiu, dizendo:
— Isso às vezes acontece quando alguém está a ponto de descobrir que tudo, inclusive o próprio «eu», é muito mais real do que realmente imaginou. É como fazer as mudanças na embreagem de um carro. Tem de se ir para o ponto morto antes de se mudar para a primeira.
— Ou a terceira — disse Will. — No meu caso a mudança não estava em primeira, e sim em terceira. Não, não estava nem mesmo em terceira mas em marcha à ré. A primeira vez que aconteceu, esperava um ônibus em Fleet Street para ir para casa. Milhares e milhares de pessoas em movimento contínuo. No entanto, cada uma delas era única, era o centro do universo. Nesse momento, o sol apareceu vindo detrás de uma nuvem. Tudo estava extraordinariamente claro e brilhante. Subitamente, com um clique quase audível, todos se transformaram em larvas.
— Larvas?
— Estou me referindo àqueles vermes pálidos que têm a cabeça preta e que encontramos na carne podre. Nada mudara, é claro. Os rostos das pessoas eram os mesmos e suas roupas também. Porém todos eram vermes. Não vermes verdadeiros, mas simples espectros de vermes. Não mais que uma ilusão. E eu tive a ilusão de ser um espectador de vermes. Durante meses vivi naquele mundo de vermes! Vivia, trabalhava, saía para almoçar e jantar, sem ter o menor interesse pelo que fazia. Sem o mínimo entusiasmo ou satisfação, completamente sem desejo, inteiramente impotente. Fiz essa descoberta quando tentei fazer amor com uma jovem com quem me divertira no passado.
— Que é que você esperava?
— Exatamente isso.
— Então, por que…?
Will sorriu-lhe com a agressividade costumeira e encolheu os ombros.
— Movido pelo interesse científico. Era um entomologista que estava estudando a vida sexual do verme ilusório.
— Depois disso, suponho que tudo lhe pareceu ainda mais irreal.
— Ainda mais, se isso fosse possível — concordou Will.
— Em primeiro lugar, o que teria provocado o aparecimento dos vermes?
— Para início de conversa, devo lhe dizer que eu era o filho de meus pais — respondeu. — Do «tirano beberrão e da mártir cristã». Além de ser filho de meus pais, era o sobrinho da tia Mary — continuou, após pequena pausa.
— Que tinha sua tia Mary que ver com isso?
— Foi a única pessoa de quem gostei, e quando eu tinha dezesseis anos ela ficou cancerosa. Primeiro amputaram-lhe o seio direito e, um ano depois, o esquerdo. A isso se seguiram aqueles nove meses de raios X e o enjôo da doente de irradiação. Depois o câncer atingiu o fígado, e isso foi o fim. Estive junto dela desde o princípio. Para um jovem de menos de vinte anos, foi uma educação liberal, apenas liberal.
— Liberal em quê? — perguntou Susila.
— Em insipidez pura e aplicada. Algumas semanas depois do encerramento do meu «curso particular», foi grandiosamente iniciado o curso público: a Segunda Guerra Mundial. E, durante todo esse tempo, eu, que sonhava ser um poeta, ia descobrindo que isso era impossível. Depois da guerra, tive que ingressar no jornalismo para ganhar a vida. O que eu queria na realidade era passar fome, contanto que escrevesse algo de bom. Boa prosa, já que não poderia fazer boa poesia. Mas me esqueci de incluir meus queridos pais nos meus cálculos. Meu pai faleceu em janeiro de 1946 e já gastara o último centavo da pequena fortuna que a família herdara. Quando felizmente ficou viúva, minha mãe estava entrevada pela artrite e teve que ser sustentada. E lá estava eu, em Fleet Street, mantendo-a com uma facilidade e um sucesso que eram completamente humilhantes.
— Por que humilhantes?
— Você não se sentiria humilhada caso estivesse ganhando dinheiro através da mais barata e espalhafatosa espécie de ficção literária? Tornei-me um sucesso porque pertencia irremediavelmente à segunda classe.
— E os vermes foram o produto de tudo isso?
Ele concordou:
— Nem mesmo vermes: espectros de vermes. Foi então que Molly apareceu em cena. Eu a encontrei em Bloomsbury, numa festa de vermes da alta roda. Fomos apresentados e trocamos algumas palavras ocas e polidas sobre a pintura não-objetiva. Para evitar ver mais vermes, não olhei para ela, mas ela deve ter me olhado. Molly possuía olhos azul-acinzentados muito claros — ajuntou Will muito paternalmente. — Olhos que viam tudo (ela era muito observadora), porém observavam tudo sem malícia ou censura. Eles viam o mal, se ele existia, porém nunca o condenavam. Sentia enorme pena da pessoa que era compelida a ter tais pensamentos ou a fazer uma coisa odiosa. Como ia dizendo, ela devia estar olhando para mim enquanto falávamos, pois inopinadamente me perguntou por que estava tão triste. Eu já tomara uns dois drinques e não havia impertinência nem ofensa no modo como fizera a pergunta. Falei-lhe a respeito dos vermes. «E você é um deles», arrematei, e, pela primeira vez, olhei— a e disse: «Um verme de olhos azuis e rosto como o de uma dessas ‘santas mulheres’ que se vêem nas crucificações da ‘escola flamenga’ «.
— Ela ficou lisonjeada?
— Penso que sim. Abandonara o catolicismo, porém ainda tinha um fraco por crucificações e «santas mulheres». De qualquer modo, telefonou-me na manhã seguinte à hora do café. Perguntou-me se gostaria de dar um passeio de carro pelo campo. Era domingo e o tempo estava milagrosamente bom. Aceitei. Passamos uma hora num bosque de aveleiras, colhendo primaveras e olhando as pequenas anêmonas brancas. Não se deve apanhar anémonas, pois elas murcham depois de uma hora — explicou ele. — Observei muitas coisas no meio daquelas aveleiras, enquanto olhava as flores a olho nu e, depois, com a lente que Molly trouxera com ela. Não sei dizer porquê, mas foi uma terapêutica extraordinária observar o âmago das primaveras e anémonas. Até o fim do dia, não via mais os vermes. Mas Fleet Street ainda existia e me esperava. Na segunda-feira, por volta da hora do almoço, eles já rastejavam aos milhões por toda parte. Milhões de vermes. Mas agora eu sabia o que fazer com eles. Naquela noite fui para o estúdio de Molly.
— Ela era pintora?
— Não uma pintora genuína, e ela sabia disso. Sabia e não se ressentia, apenas tirava o maior proveito possível do fato de não ter talento. Não pintava por causa da arte em si. Pintava porque gostava de olhar as coisas e depois reproduzir meticulosamente o que vira. Naquela noite deu-me uma tela e uma paleta e me disse para fazer o mesmo que ela.
— E isso funcionou?
— Funcionou tão bem que, após dois meses, eu cortei uma maçã podre pelo meio e, no centro, não havia nenhum verme; quero dizer, no sentido subjetivo. Objetivamente havia e era tudo o que um verme deve ser. E foi assim que o pintei. Aliás, nós o pintamos, pois costumávamos pintar as mesmas coisas.
— Que houve com os outros vermes, os vermes espectrais do exterior da maçã?
— Bem, eu ainda tinha recaídas, principalmente em Fleet Street e em alguns coquetéis. Porém os vermes eram definitivamente em menor número e menos perseguidores. Enquanto isso, algo novo acontecia no estúdio. Estava começando a amar. Amando porque o amor é contagioso e Molly estava claramente apaixonada por mim. Por quê? Somente Deus é quem sabe!
— Vejo várias razões plausíveis. Ela talvez o tenha amado porque… — Susila olhou-o como se o estivesse avaliando, e sorriu. — Bem, porque você é uma espécie de peixe bastante atraente.
— Obrigado por tão generoso cumprimento — disse ele sorrindo.
— Por outro lado (e isso não é tão elogioso), talvez o tivesse amado porque você fez com que ela sentisse pena de você.
— Confesso que isso é verdade. Molly era uma «irmã de caridade».
— Infelizmente uma irmã de caridade não é o mesmo que «esposa do amor».
— Foi exatamente o que descobri.
— Suponho que descobriu depois do casamento.
Will hesitou por um momento.
— Para dizer a verdade, foi um pouco antes. Não porque tivesse havido um desejo premente de sua parte, mas apenas porque estava ansiosa por fazer qualquer coisa que me agradasse. Apenas porque em princípio ela não acreditava em convenções e era entusiasta do amor livre, e mais surpreendentemente ainda da liberdade de se conversar a esse respeito. — Dizendo isso, lembrou-se das coisas escandalosas que ela dizia com tanta serenidade, mesmo em frente da mãe dele.
— Você o sabia com antecedência e mesmo assim se casou com ela — resumiu Susila. Will concordou mudamente, com um aceno de cabeça. — Porque você era um cavalheiro e um cavalheiro mantém a palavra, penso eu.
— Em parte devido a essa razão fora de moda, mas também porque a amava.
— Você a amava?
— Sim. Não. Não sei. Mas naquela época eu sabia. Pelo menos pensava saber. Estava realmente convencido de que a amava. Sabia e ainda sei por que estava convencido. Estava grato por que ela conseguira exorcizar aqueles vermes e, além disso, a respeitava e admirava. Ela era tão melhor e mais honesta do que eu! Infelizmente você está certa. Uma irmã de caridade não é o mesmo que uma esposa do amor. Mas estava pronto a aceitar Molly nos seus termos, não nos meus. Estava pronto a acreditar que seus termos eram melhores que os meus.
Após uma longa pausa, Susila perguntou:
— Depois de quanto tempo você começou a ter casos extraconjugais?
Will sorriu zombeteiramente.
— Três meses após o dia do nosso casamento. O primeiro foi com uma das secretárias do meu escritório. Meu Deus, que coisa enfadonha! Depois desse houve uma pequena pintora, uma jovem judia de cabelos encaracolados que Molly ajudara financeiramente enquanto estivera estudando em Slade. Eu costumava ir a seu estúdio duas vezes por semana, das cinco às sete. Passaram-se quase três anos até que Molly descobrisse.
— Suponho que ficou aborrecida.
— Ficou muito mais do que eu podia imaginar.
— Qual foi sua atitude?
Will balançou a cabeça.
— Foi aí que tudo começou a se complicar, pois não tinha a menor intenção de me privar dos meus coquetéis com Raquel. No entanto, me odiava por fazer Molly tão infeliz. Ao mesmo tempo, odiava-a por ser infeliz. Ressentiam-me seu sofrimento e o amor que a fazia sofrer. Sentia que eram injustos, que eram uma espécie de chantagem para me forçar a deixar meu inocente divertimento com Raquel. Por causa do seu grande amor e por sentir-se tão infeliz com o que eu fazia (na realidade eu fora forçado a fazê-lo), ela pressionava e tentava restringir minha liberdade. Enquanto isso ela era verdadeiramente infeliz. E eu, apesar de odiá-la por estar fazendo chantagem às custas de sua infelicidade, sentia uma pena enorme dela. Sentia pena, mas não sentia compaixão. Compaixão é compartilhar do sofrimento, e o que eu desejava a todo custo era me poupar da dor que seu sofrimento me causava. Queria evitar dolorosos sacrifícios por meio dos quais poderia pôr fim ao seu sofrimento. Ter pena era minha resposta. Sentia uma pena apenas superficial. Sentia como se fosse mero espectador, como um esteta ou um conhecedor de suplícios.
Não sei se você entende o que quero dizer. E essa minha pena de esteta era de tal intensidade que, todas as vezes que a sua infelicidade alcançava um clímax, chegava quase a confundi-la com amor. Quase, porém não completamente. E quando tentava expressar minha pena sob a forma de ternura física (assim fazia por ser esse o único meio pelo qual podia obter uma pausa temporária em sua infelicidade e na dor que secundariamente me infligia), essa ternura era sempre frustrada antes que pudesse chegar à sua consumação natural. Era frustrada porque, por temperamento, ela era apenas a «irmã de caridade» e não uma esposa. Apesar disso, em todos os níveis, com exceção do sensual, ela me amava com uma confiança integral, que em resposta exigia da minha parte uma entrega absoluta. Mas não me entreguei. Talvez porque realmente não pudesse e, ao invés de ficar agradecido pela sua entrega, eu a ressentia por saber que continha uma série de pretensões que me recusava a admitir. Desse modo, ao fim de cada crise, voltávamos ao início do velho drama, o drama de um amor incapaz de sensualidade, entregue a uma sensualidade incapaz de amor e que despertava sentimentos de culpa feitos de exasperação, pena, ressentimento e, às vezes, de verdadeiro ódio (porém sempre com uma ponta de remorso). Tudo isso contra— ponteado por uma sucessão de noites furtivas com a minha pintora de cabelos encaracolados.
— Que espero tenham sido, pelo menos, agradáveis.
Ele encolheu os ombros.
— Apenas razoáveis, pois Raquel não conseguia esquecer que era uma intelectual e tinha um modo de perguntar qual a minha opinião sobre Piero di Cosimo nos momentos mais inoportunos. O prazer real, a verdadeira agonia eu nunca experimentara até que Babs entrou em cena.
— Quando foi isso?
— Apenas um ano atrás, quando estava na África.
— Na África?
— Fui mandado lá por Joe Aldehyde.
— O dono dos jornais?
— E de tudo o mais. Ele era casado com Eileen, tia de Molly. Devo acrescentar que ele é um chefe de família exemplar e, por isso, tem a serena convicção de que é absolutamente honesto, mesmo quando está envolvido na mais abominável operação financeira.
— Você trabalha para ele?
Will fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— O meu emprego no jornal de Aldehyde, com um salário de quase o dobro do que recebia onde trabalhava antes, foi o presente de casamento que deu a Molly. Principesco! Mas ele gostava muito de Molly.
— Como reagiu ao saber da existência de Babs?
— Nunca soube a respeito dela, nem tampouco de que houvesse uma razão no acidente que causou a morte de Molly.
— E continuou mantendo-o no emprego em memória de sua falecida esposa?
Will encolheu os ombros.
— A desculpa é que tenho que sustentar minha mãe.
— É claro que você não gostaria de ser pobre!
— Certamente que não.
Após um silêncio, Susila disse finalmente:
— Bem, voltemos à África.
— Fora mandado lá para fazer uma série de artigos sobre o nacionalismo negro. Além disso, havia uma pequena trapaça particular que envolvia alguns negócios do «tio» Joe. Na minha volta para casa, vindo de Nairobi, encontrei-me sentado a seu lado no avião.
— Ao lado da jovem de que não poderia deixar de gostar?
— Não poderia deixar de gostar e de desaprovar — repetiu ele. — Porém, quando se é um viciado, tem-se que tomar a droga, mesmo sabendo de antemão que ela irá destruí-lo.
— É uma coisa interessante, mas em Pala são raros os viciados — disse ela pensativamente.
— Mesmo os viciados sexuais?
— Os viciados sexuais são também viciados em pessoas. Em outras palavras, são amantes.
— Mas mesmo os amantes às vezes odeiam a pessoa à qual amam.
— É natural. Pelo fato de ter sempre o mesmo nome, os mesmos olhos e o mesmo nariz, não quer dizer que eu seja sempre a mesma mulher. Admitir esse fato e reagir com tato e sensatez fazem parte da arte de amar.
Will contou-lhe o resto da história do modo mais breve possível. Com a entrada de Babs em cena, toda a história se repetira, porém com intensidade ainda maior. Babs foi elevada ao nível de Rachel. Em outras palavras, Babs relegou Raquel aos bastidores. O sofrimento que ele infligira a Molly foi proporcionalmente maior do que aquele que ela fora obrigada a passar por causa de Raquel. A exasperação dele, seu ressentimento pela chantagem feita às custas do amor e sofrimento dela, seu próprio remorso, sua autodeterminação em continuar a ter o que desejava, apesar do remorso e da pena, aquilo que ele odiava por desejar e aquilo que resolutamente se recusava a se negar cresceram na mesma proporção. Enquanto isso, Babs se tornava cada vez mais exigente, reclamava cada vez mais o seu tempo, não só na alcova rosa-morango, mas também fora, em restaurantes, boates e nos horríveis coquetéis dos seus amigos e nos fins de semana, no campo. «Somente você e eu, meu querido, juntos e completamente sós», dizia ela. Juntos e completamente sós, num isolamento que lhe dava a oportunidade de avaliar os abismos quase impenetráveis da estupidez e vulgaridade dela. Porém, apesar do seu enfado, da sua aversão e de toda a sua repugnância intelectual, o desejo continuava. Após esses horríveis fins de semana, continuava irremediavelmente tão adepto de Babs quanto antes. Por seu lado, em seu nível de irmã de caridade, Molly permanecera, apesar de tudo, uma adepta desesperançada de Will Farnaby — sem esperança no que se referia a ele, pois o seu único desejo era que ela o amasse menos e lhe permitisse ir tranqüilamente para o inferno. Mas no que dizia respeito a Molly, o apego era sempre e irreprimivelmente esperançoso. Ela nunca deixava de esperar pelo milagre que o transformaria no bondoso, altruísta e carinhoso Will Farnaby a quem (apesar de todas as evidências e desapontamentos) ela insistia teimosamente em considerar como sendo o verdadeiro. Foi somente no decorrer daquela última e fatal entrevista (na qual afogara sua pena e dera vazão a todo o seu ressentimento pela chantagem feita com sua infelicidade) que lhe dissera de sua intenção de deixá-la para ir viver com Babs. Nesse momento a esperança cedeu lugar ao desespero.
— Sua intenção é realmente essa, Will?
— Sim é.
Foi em desespero que ela fora até o carro, e em completo desespero o dirigira, na chuva, ao encontro da morte. No enterro, quando baixaram o caixão à sepultura, ele prometeu a si mesmo que nunca mais veria Babs. Nunca, nunca, nunca mais! Naquela noite, enquanto se achava sentado à sua mesa de trabalho tentando escrever um artigo sobre «o que há de errado com a juventude» e procurando se esquecer do hospital, da sepultura aberta e da sua própria responsabilidade em tudo o que havia acontecido, foi surpreendido pelo som agudo da campainha da porta. Talvez fosse uma mensagem retardatária de condolências… Abrira a porta e, em vez do telegrama, lá estava Babs, dramática, sem pintura, toda vestida de preto.
— Meu pobre, pobre Will!
Sentaram-se no sofá da sala. Ela acariciara seus cabelos e ambos choraram. Após uma hora estavam nus, na cama.
Passados três meses (como qualquer tolo poderia ter previsto), Babs começara a se cansar dele. Depois de quatro meses um homem absolutamente divino, vindo de Quênia, aparecera num coquetel. Uma coisa levara a outra e, quando Babs apareceu em casa no fim de três dias, foi para preparar a alcova para um novo inquilino e despejar o antigo.
— É isso mesmo o que você quer, Babs?
Era o que ela queria.
Houve um farfalhar nos arbustos do lado de fora da janela e, um instante depois assustadoramente alto e ligeiramente desafinado, um pássaro falante gritou:
— Aqui e agora, rapazes!
— Cale a boca! — gritou Will em resposta.
— Aqui e agora, rapazes! Aqui e agora rapazes! Aqui… — repetiu o mainá.
— Cale a boca! — Fez-se silêncio. — Tive de fazê-lo calar— se porque está absolutamente certo — explicou Will. — «Aqui, rapazes! Agora, rapazes! Aqui e agora»… coisas sem nenhum propósito. Ou não? Será fora de propósito falar sobre a morte de seu marido?
Susila olhou-o em silêncio por um momento e, depois, balançou a cabeça devagar.
— Sim, em relação a tudo o que tenho de fazer agora é completamente inoportuno. Isso foi uma das coisas que tive que aprender.
— É possível que alguém aprenda a esquecer?
— O problema não é esquecer. O que se tem de aprender é recordar e continuar livre do passado. Aprender a ficar simultaneamente ao lado dos mortos, enquanto se está no meio dos vivos. — Ela sorriu-lhe tristemente e acrescentou: — Não é fácil.
— Não é fácil — repetiu ele. Subitamente todas as suas defesas caíram, todo o seu orgulho o deixou. — Você me ajudará? — perguntou.
— Prometo — disse ela, estendendo a mão.
Um som de pisadas os fez voltar as cabeças. O dr. MacPhail entrara no quarto.